Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
Existiria alguma civilização que não teria se preocupado em criar e preservar suas
narrativas míticas de origem? A pergunta parece insólita. Quaisquer coletâneas de
narrativas religiosas nos mostram, após uma ampla e segura pesquisa, que
praticamente todas as culturas antigas possuíram seus mitos criadores. (Eliade,
1978). De fato, tornou-se quase natural, para nós, acreditar que todas as sociedades
têm um ou mais mitos fundadores. Isso se deve a alguns fatores fundamentais: as
investigações no campo da História das Religiões nos mostram que a preocupação
com tradições de cosmogênese são praticamente um padrão no pensamento
humano, desde os tempos mais antigos. (Eliade, 1991) Dois elementos
contribuiriam para reforçar essa preocupação: primeiramente, a Filosofia Grega, em
busca das origens da natureza, dedicou-se a estudar o início de tudo (Arché ἀρχή),
contrapondo-se aos mitos de origem, e defendendo, do modo geral, que o
funcionamento do universo só poderia se dar por meio de uma única lógica
fundamental; posteriormente, o Cristianismo defenderia também uma concepção
monogônica, fundamentada na criação divina, que consolidava a ideia de uma
fundação singular – e, ainda que essa concepção pudesse ser considerada como
“mítica”, seu estabelecimento gradual, ao longo da história, tornou-a um ponto
crucial em qualquer investigação científica até um período recente de nossa história.
Assim, podemos dizer que o estudo das práticas religiosas de qualquer civilização,
em seus amplos aspectos, pressupõe a existência de alguma crença de criação ou
origem. E nesse caso específico, a China novamente nos apresenta problemas
notáveis e de difícil solução.
Desde o século 16, quando os missionários cristãos começaram a aportar na
China, notaram nas documentações historiográficas e canônicas a ausência de mitos
de criação. Algumas tradições, esparsas, estavam presentes no folclore e nas
práticas do Daoísmo, sem que representassem uma crença realmente consolidada
de origem mítica. Além disso, o rastreio desses mesmos mitos mostrava que eles
eram bastante tardios em relação ao início histórico da civilização chinesa. A
literatura intelectual, contudo, não abordava esse aspecto – considerado tão
fundamental para o pensamento ocidental, mas pouco relevante para os chineses.
Os letrados (Ru 儒), especialistas em história, filosofia e ciências, bocejavam
quando questionados sobre essas tradições de origem, que eles mesmos
consideravam irreais. De fato, as narrativas mais antigas, preservadas em
documentos como o Yijing 易經 (Tratado das Mutações), o Shujing 書經 (Tratado
1
Texto originalmente apresentado em 2013.
Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.
dos Livros) e o Liji 禮記 (Memórias Culturais), que tratam das eras mais distantes
da cronologia chinesa, repetem sempre uma descrição humanizada do passado
chinês. O povo vivia em situação similar à que descrevemos como “pré-histórica”,
sem qualquer referência a uma origem anterior. Quando demandados sobre isso, os
acadêmicos chineses davam duas respostas distintas: uma de caráter prático,
afirmava que nenhum ser humano estaria presente nessa origem, e por isso, não
poderia saber como ela se deu; a outra, de cunho científico e especulativo, propunha
não uma cosmogonia, mas sim uma cosmologia, para explicar as origens e a criação
do universo.
Isso nos lançaria diante de um caso único na humanidade: seria a cultura
chinesa desprovida de mitos de criação? O problema se desdobra em vários
âmbitos, quer sejam: a existência de uma exceção reveladora quanto à
sistematização da história das religiões; uma quebra na insistência, essencialmente
Ocidental, de ler o mundo apenas por seu prisma, de forma exclusiva; por outro
lado, a constatação do pouco conhecimento que temos da história chinesa, e das
próprias visões que os chineses têm sobre essa questão.
O que examinaremos em nosso texto, portanto, é o debate, que ainda se
desenvolve, sobre o problema da China ter ou não seus mitos de criação. Para isso,
examinaremos brevemente os discursos sinológicos contra ou a favor dos mitos
criadores na China antiga, e seus problemas; em seguida, analisaremos algumas
passagens documentais chinesas, que ilustram esse debate; por fim, quais as
considerações que os próprios chineses fazem sobre isso, através da análise de
algumas produções históricas chinesas. Como contexto temporal, definiremos o
período limite do século +3, quando teria surgido um primeiro mito de criação nas
fontes chinesas, como veremos adiante.
66
Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.
temporal), ela poderia aceitar a presença dos deuses na fundação do cosmo. Por fim,
a abordagem cosmológica pode mesmo supor que os deuses existiriam, desde que
submetidos a uma ordem natural, passível de uma explicação racional. No caso
específico dos gregos pré-socráticos, a cosmologia teria sido a primeira abordagem
contra as tradições míticas, construindo a perspectiva investigativa das ciências, e
propondo sistemas de interpretação da natureza (Bornheim, 1998).
E como essas definições se aplicariam ao caso chinês? Como veremos, a
questão é que as narrativas que consideramos como cosmogônicas estão
praticamente ausentes da antiga literatura chinesa, e as evidências materiais
apresentam-nos os cultos primitivos, mas não mitos de origem. Por outro lado, o
mais antigo texto chinês conhecido – o Yijing – é o primeiro tratado de ciências da
China antiga, caracterizando um complexo sistema de cosmologia criativa. Nele, é
proposto um sistema de interpretação da natureza, codificado em símbolos e
esquemas matemáticos, cujas atribuições equivaleriam a propriedades elementais
da natureza. Isso poderia qualificá-lo como um texto cosmológico; mas a relutância
dos sinólogos, calcada em muito em preconceitos culturais e religiosos,
costumeiramente classificou o livro como “místico”, atribuindo-lhe uma imagem
cosmogônica. Essa visão era corroborada pelos próprios chineses, que vulgarmente
usavam o livro como oráculo; por entender que ele explicava racionalmente a
natureza, então, o desenrolar dos acontecimentos e das coisas poderia ser
compreendido, em suas leis e dinâmica, pela consulta ao livro! Notemos, pois, que
o uso das conotações “cosmogonia” e “cosmologia” pode receber caracteres
pejorativos ou deturpados, se não houver cuidado com sua utilização. Utilizaremos
esses termos, aqui, buscando aproximá-los o máximo possível da interpretação que
os próprios chineses dariam aos seus textos, segundo suas tradições
historiográficas. Isso implica, claro, na presença de controvérsias e debates acerca
dessas mesmas interpretações: no entanto, veremos que as discussões sobre a
mitologia e a cosmologia chinesa continuam a ser atravessados pelos mais diversos
preconceitos ou projeções, dificultando uma compreensão mais ampla sobre as
possibilidades do caso chinês.
Ausências
Ao examinarmos a literatura chinesa antiga, notaremos o mais absoluto desinteresse
dos escritores chineses por mitos de criação. O principal corpus da antiguidade
chinesa constitui-se dos chamados Zhonguo Gudian Dianji 中國古典典籍
(Clássicos chineses) que, até o século -6, era formado por seis livros: Yijing 易經
(Tratado das Mutações), Shujing 書經 (Tratado dos Livros), Shijing 詩經 (Tratado
dos Poemas), Liji 禮記 (Memórias culturais), Chunqiu 春秋 (Primaveras e
Outonos) e Yuejing 樂經 (Tratado da Música). Esses livros remetem-se a períodos
datados do século -18 (ou mais), e sua primeira redação foi feita, provavelmente,
em torno do século -11. No século -6, Confúcio 孔夫子 (-551-479) empreendeu a
reedição e preservação desses livros, promovendo sua consolidação como alicerce
cultural da civilização chinesa. Neles não há qualquer traço de um mito de origem.
Somente o Yijing, como dissemos, apresenta uma proposta de sistema cosmológico,
67
Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.
68
Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.
69
Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.
Narrativas de Origem
Antes de começarmos a examinar as narrativas e especulações chinesas, precisamos
ainda definir um último ponto crucial: quando falamos de origens, ao que nos
referimos? Por tratarmos do aspecto essencial do cosmo, atentamos unicamente aos
fragmentos que tratem sobre cosmogonia ou cosmologia – ou seja, especificamente
a origem do universo. Esse dado é importante, pois autores como Birrell, por
exemplo, incluem os mitos de criação da humanidade como mitos de origem –
confusão essa que causa indistinção na análise dos fragmentos. A criação humana,
bem como os mitos de inundação, entre outros, são posteriores a cosmogênese.
Nesse caso, os chineses têm seus mitos que, mesmo sendo tardios, dão versões
diferenciadas das origens dos seres e da sociedade. A questão, porém, não é essa.
Analisamos aqui a proposta de criação da natureza, que precede esses momentos
das narrativas mitológicas. Nesse caso, pois, entendemos que a postura de Girardot
e Birrell trata de ampliar o conceito de “criação” para abranger mitos diversos,
numa tentativa de corroborar uma teoria. Lewis (2006, p.21-8), em outro exemplo,
ao analisar os mitos de inundação na China, faz uma introdução em que repete esses
mesmos equívocos, associando os mitos de cosmogênese com os mitos de
surgimento da humanidade, em um único conjunto. Esse é um dos pontos fracos
fundamentais das teorias propostas por Giradot.
Comecemos pelo Yijing (Tratado das Mutações, sécs. -12 ou -11). O Yijing é
provavelmente o primeiro livro chinês a nos dar uma visão organizada de universo,
buscando explicar a natureza por meio de suas estações, tendências e qualidades,
expressas num sistema complexo absolutamente associativo, simbólico e
correlacionado. As forças naturais são catalogadas em conjuntos de expressões –
70
Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.
água, fogo, trovão, montanha, etc. – que significam expansões de um sistema dual
primário, conhecido por Yin 阴 – Yang 阳. Yin e Yang não são duas forças
primevas, ou duas essências universais, e uma série de equívocos tem sido
causados, nesse sentido, entre os leitores ocidentais - e mesmo entre os chineses -
que desconhecem mais profundamente essa teoria. Yin e Yang representam, nesse
antigo sistema cosmológico, a ideia de uma oposição primária e correlata, pelo qual
algo se revela pela sua interdependência com outra coisa. São, por assim dizer,
coordenadas pelas quais concebemos uma imagem, operando em nível básico como
nossa classificação X e Y. Nesse sistema, pois, tudo se define por oposição
complementar. Uma simples linha só existe, por exemplo, pela contraposição do
traço no papel; ela mesma só existe porque tem dois lados, e divide o espaço em
dois, etc. De modo a organizar a expressão dessas tendências, os autores do Yijing
decidiram grifar como um traço contínuo a coordenada Yang _____ e, como um
traço partido, a coordenada Yin __ __. A combinação dessas linhas em sistemas
triplos gerava os Gua 卦(Trigramas), que representavam oito fenômenos ou
dimensões básicas da natureza (como dissemos; Água, Fogo, Céu, Terra, Trovão,
Montanha, Lago e Vento), denominados de sistema Bagua 八卦 (Oito trigramas).
Assim, de um princípio único é gerada a oposição complementar; dela, surgem os
trigramas, imagens da natureza; e da associação deles provém todos os seres,
estações, movimentos da natureza. Nessa teoria, estava implícita a cópula entre as
duas coordenadas para a geração de uma imagem.
O Bagua organizava as tendências da natureza num sistema que indicava
direções, movimentos, posturas e qualidades, expressos em dois arranjos básicos
chamados de “Céu Anterior” e “Céu Posterior”. Não nos cabe aqui aprofundar a
complexidade desse sistema cosmológico, mas explicar seus desdobramentos para
a mentalidade chinesa. As sequências organizadas de trigramas produziam sessenta
e quatro hexagramas, que representavam, dentro desse sistema, as tendências e
propensões dos movimentos naturais. Por causa disso, os chineses desenvolveram
a ideia de que o Yijing poderia explicar as leis ecológicas, bem como ser utilizado
com fins oraculares, antevendo eventos, o desfecho de situações naturais e
explicando a configuração e propriedades de determinadas tendências sociais e
cosmográficas (Wilhelm, 1986 e Javary, 1989). O papel do Yijing, porém, era mais
amplo. Ele descrevia e acompanhava a Mutação (Yi 易), ou ainda, “Tudo-abaixo-
do-Céu” (Tianxia 天下) por meio de símbolos, de sistemas correlatos, que
permitiam explicar “cientificamente” a Natureza e o mundo através do sistema Yin–
Yang. Do mesmo modo, a criação das coisas seria um processo contínuo,
atemporal, indefinido e infinito. O ciclo da natureza, por ser perene, não demandava
início, e nem teria fim.
Esse sistema explicativo foi adotado pela intelectualidade chinesa de modo
amplo, e manteve-se como base do raciocínio interpretativo sobre a natureza. Ao
sacrificarem para seus ancestrais e deuses, os chineses provavelmente tinham em
mente que mesmo os espíritos seguiam essa ordenação cósmica, e não pretenderam
qualquer tipo de alternativa para esse sistema.
71
Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.
Especulações
Uma especulação sobre esse sistema apareceu no Chuci 楚辭 (Cantos de Chu),
atribuído a Qu Yuan 屈原 (-343-278), coleção de poemas nos quais vários temas,
ligados a natureza, a vida e a religiosidade são questionadas. Na seção “Perguntas
Celestiais” (Tianwen 天問), Qu Yuan reflete sobre a origem do “Mundo da
Mutação”, no trecho que se segue:
72
Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.
O Dao gerou o Um
O Um gerou o Dois.
O Dois gerou o Três.
O Três gerou as dez mil coisas.
O universo criado carrega o Yin atrás e o Yang adiante.
Através da união de princípios penetrantes a harmonia é obtida.
(Daodejing, 42)
73
Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.
Um significa o ciclo gerador; dois, Yin e Yang; três, o Gua; e a partir dos Gua, gera-
se o mundo, no ciclo infindável da mutação. Goldin (2008, p.4-5) cita igualmente
essa passagem de Laozi, entendendo-a como um mito de criação. É preciso notar
que o autor, dominando profundamente o chinês antigo, entende que os conceitos
apresentados no fragmento caracterizam, justamente, um mito criador como tal,
contrapondo-se a visão ‘agenética’ da China defendida por Ames, Hall e outros.
Voltamos aqui, novamente, a tensão que caracteriza o debate: aceitar esse
fragmento como um mito criativo descartaria a possibilidade do pensamento chinês
gerar um sistema lógico e explicativo racionalizado sobre a natureza? Podemos
aceitar que esse sistema seria uma cosmogonia se entendermos que os chineses
acreditavam nele de modo dogmático, baseado na fé. Isso é possível. Contudo,
ninguém rezava para Yin e Yang. Robinet (2007, p.523-25) defende a ideia de que
Hundun seria um conceito explicativo para designar as coisas em um estado anterior
à aquisição da forma. Tal como um ovo transformar-se-á num pássaro, ou uma
semente numa planta, ou o feto num ser, o estado primevo (Hundun) designaria
essa condição de mudança de algo indistinto para uma forma definida.
Essa visão foi inteiramente aperfeiçoada no livro de Liezi 列子, suposto mestre
de Zhuangzi que teria vivido em torno do séc. -5. O texto que atualmente
conhecemos foi datado da época Han, em torno do séc. -1, razão pela qual o
apresentamos na sequência. Nele, Liezi desenvolve plenamente a teoria da evolução
cósmica, sustentando a mesma base proposta no sistema Yijing:
74
Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.
Na época que o Céu e a Terra não tinham forma, esta foi chamada
de grande mistura, pois tudo era vasto, imenso, obscuro e
indistinto. O Dao começou nas imensidões do vazio. Ele
engendrou o tempo, que engendrou os sopros. Os sopros geraram
os contornos; sua dispersão iniciou a separação, e o que era leve
e fátuo deu origem ao Céu. O que era grosso e pesado se
aglomerou para formar a Terra. A reunião e a condensação do
leve e sutil foi rápida, mas a solidificação e a aglomeração do
pesado e denso foram delicadas. Assim é que o Céu tornou-se
fixo, mas a Terra não. As essências do Céu e da Terra constituem
o yin e o yang. As essências condensadas de yin e yang
constituem as quatro estações. As essências dispersas nas quatro
estações constituem os dez mil seres. (Huainanzi, 3)
75
Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.
mitificado, cujas teorias poderiam ser lógicas, mas não necessariamente ‘cosmo-
lógica’. Ademais, o Huainanzi (cap.6) apresenta outro mito, envolvendo a figura
mítica de Nuwa, ora considerada deusa, ora considerada uma sábia da aurora dos
tempos. No livro, ela surge consertando a estrutura do Céu e da Terra, o que foi
considerado por Birrell e Lewis a indicação de outro mito criador. Não há, todavia,
qualquer menção à criação propriamente dita. O mundo já existia, mas estava sendo
arrumado, encontrando suas formas ideais. Considerar essa passagem como um
mito de criação é forçar limites para a prova de uma teoria.
Ora, ainda na época Han, Wang Chong 王充 (+27+100), pensador
confucionista com uma forte tendência cética, já defendia o papel espontâneo da
criação, sem preocupar-se com possíveis mitografias para isso:
76
Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.
O corpo de Pangu seria o próprio universo, e das partes de seu corpo teriam
surgido todas as coisas da natureza. Outro fragmento sobre Pangu, do mesmo séc.
+3, está presente no livro Wuyun linian ji 五遠歷年紀, do mesmo Xu Zheng, que
aparentemente dá continuidade a narrativa anterior:
77
Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.
Como Lincoln (1968) e Lajoye (2013) propuseram, é difícil não relacionar esse
mito com o mito de Purusha पुरुष, presente no Rig Veda (10,90) indiano. Sua
aparição tardia no folclore chinês suscita os mais diversos tipos de interpretação.
Girardot (1976, 298) convenceu-se de que esse mito era legitimamente chinês, e
muito mais antigo do que o séc. +3, mas não explicou exatamente a razão disso. A
arqueologia ainda não forneceu qualquer comprovação para essa afirmação. É
possível que esse mito tenha sido trazido de fora da China, por meio da rota da seda,
e incorporado a mitologia popular. Afinal, o sistema Yin-Yang constituía um
sistema complexo, e seu texto básico, o Yijing, são hoje ainda de difícil domínio.
O mito de Pangu encaixava-se facilmente nas cosmogonias chinesas, sem entrar em
conflito com os deuses nativos. Girardot (ibid.), finalmente, usa de um argumento
retórico para afirmar seu ponto de vista: mesmo que o mito de Pangu seja tardio,
ele excluiria a China de sua exclusividade no mundo das mitologias, apresentando,
também, um mito de criação. Isso encerraria a discussão, deslocando o problema
da temporalidade da questão para a sua causalidade – existindo um mito, portanto,
a questão se encerra, não importando quando ele foi assimilado ou difundido.
Essa afirmação parece correta, se aceitarmos que as formulações míticas são
providas de uma temporalidade que não necessariamente acompanha a história. Por
outro, se o mundo religioso chinês é passível de uma investigação histórica, cujo
objetivo seja entender a sua evolução e transformações, a afirmação de Girardot
torna-se problemática. O mito de criação passa a existir na sociedade chinesa, mas
por alguma razão que hoje não conhecemos bem. Isso não implica na anulação da
cosmologia, nem se transpõe para o passado do qual não faz parte. Apenas no
âmbito folclórico o mito se difunde; mas podemos rastreá-lo, e descobrir quando
ele “passou a existir” no imaginário chinês, fazendo-nos pressupor algum tipo de
causa cultural ou mental que ainda está por ser estudada. Nesse ponto, enfim,
precisamos ver o que os pensadores chineses mais recentes entendem sobre essa
questão.
78
Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.
Para entendermos a visão chinesa sobre esse tema, precisamos, portanto, verificar
de que modo são tratados os mitos de criação nos estudos históricos e
antropológicos chineses.
Numa breve relação das obras de história feitas pelos próprios chineses, e
disponibilizadas em línguas ocidentais, nenhuma delas aponta indícios de quaisquer
mitos, chegando mesmo a ignorar as práticas religiosas. Chen (1962), Bai (1984),
Jiao (1986), Li & Xu (1986), Cao & Sun (2011), todos, sem exceção, colocam o
plano histórico como fruto das ações humanas, minimizando o papel da religião.
Recorrendo a literatura chinesa não traduzida, encontramos a História da China 中
国通史, vol. 1, de Fan Wenlan 范文澜 (+1893+1969), que propõe a teoria de Pangu
ser um mito absorvido por tribos do sul da China, usado para preencher o vazio
causado pela ausência de um mito criador (e podemos nos perguntar por qual razão
uma sociedade precisaria ‘preencher’ esse ‘vazio’).
Foi o mitólogo Yuan Ke 袁珂 (+1916+2001) que propôs a possibilidade do
nome Pangu ser uma deformação de Paoxi 庖犧, outro nome de Fuxi 伏羲, um dos
fundadores míticos da civilização chinesa (Yuan, 1991). Yuan foi um dos grandes
pesquisadores da mitologia chinesa, promovendo uma vasta recolha de mitos e
tradições folclóricas populares, além de possuir um grande domínio da literatura.
Todavia, ele também defendia que o mito de Pangu, tardio, surgira em função de
alguma necessidade folclórica ou imaginária do povo.
Observemos, portanto, que os intelectuais chineses mantinham a mesma
distância em relação a possíveis mitos de criação, tal como os antigos historiadores
confucionistas. De fato, parece que os chineses haviam incorporado a ideia de
constituírem uma civilização privilegiada, dotada de razão desde ermos tempos,
como afirmou Fan Wenlan. Na década de 1960-70, o governo comunista chinês
promoveu, por outro lado, um resgate das tradições folclóricas, expresso pela
publicação de vários livros com contos e lendas tradicionais. O objetivo dessas
coleções era promover a cultura chinesa, num formato generalizado e unificado,
com fins educativos e nacionalistas. Em português, Mitologia Chinesa (1986, 2
vols.) foi publicado pelo Instituto de Línguas Estrangeiras de Beijing, e nele estava
incluído o mito de Pangu, como um mito absolutamente chinês. As histórias são
apresentadas, no entanto, em caráter fantasioso – ou seja, como se os próprios
chineses nunca tivessem acreditado nelas. Por analogia, é como se nós, brasileiros,
lêssemos sobre mitos tupis. Essa distância, aparentemente, seria definitiva.
Conclusão
O que observamos, desse modo, é que os chineses preservaram a concepção de
escrever uma historiografia afastada das crenças mitológicas, ignorando possíveis
teorias cosmogônicas. Herdeiros orgulhosos da ideia de que sua civilização ateve-
se, desde o início dos tempos, às cosmologias, a ausência de mitos de criação
antigos evidenciaria a sua singular condição de sociedade racionalista e estudiosa.
Essa condição – talvez em parte alimentada pelos próprios chineses – foi
transmitida aos especialistas ocidentais, que criaram o debate em torno da
existência ou não de cosmogonias na China antiga. Por seu turno, esses mesmos
sinólogos transformaram a questão numa extensão do debate orientalista clássico
79
Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.
do século 19, no qual a ausência poderia ser utilizada como detrator da cultura
chinesa, ou elemento de exotismo.
Nossa apresentação não pretendeu dar um fim ao debate, mas fazer as
considerações necessárias sobre os principais argumentos dos autores pró ou contra
a singularidade chinesa. Examinamos que os argumentos de Girardot e Birrell
possuem vários problemas conceituais e interpretativos, e somente Goldin foi capaz
de proporcionar um panorama, pautado em fontes primárias, capaz de responder a
essa polêmica conceitual e historiográfica. Por outro lado, os demais autores que
mantiveram a teoria da China sem mitos de criação foram bastante influenciados
pelas concepções tradicionais dos próprios chineses, reproduzindo uma ideia
comum na historiografia antiga, que desprezava as mitologias populares. A
possibilidade de a civilização chinesa ser exclusiva no mundo, em relação aos mitos
de criação, foi bem aproveitada pelos próprios intelectuais chineses da era
comunista, que reforçaram, assim, a ideia de um povo especial em termos de
mentalidade.
Somente a arqueologia poderá nos fornecer, no futuro, novas informações
sobre essa questão, tendo em vista que a literatura clássica consolidou algumas das
visões já discutidas. É possível que venhamos a descobrir, em alguma tumba, que
no seio da sociedade chinesa antiga existiam traços de mitos criadores; mas, a sua
irrelevância perante a intelectualidade, manifesta na escassez dos registros, nos
mostra que, de uma maneira ou de outra, os intelectuais de elite se pretendiam
filosóficos, racionalizados e pragmáticos; e nesse sentido, acabaram legando uma
visão de mundo bastante distinta, capaz de lançar desafios aos nossos métodos
históricos e antropológicos, e forçando-nos a repensar algumas de nossas
construções conceituais.
Referências
Abbagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
Ames, Roger & Hall, David. Anticipating China: Thinking Through the
Narratives of Chinese and Western Culture. New York: State University of New
York Press, 1995.
Bai Shouyi. História de China. Beijing: Edições em línguas estrangeiras, 1984.
Birrell, Anne. Chinese Mythology: An Introduction. Baltimore: Johns Hopkins
University Press, 1993.
Bornheim, Gerd. Os Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo: Cultrix, 1998.
Cao Dawei e Sun Yanjing. História da China. Shanghai: China intercontinental
press, 2011.
Chen Chih-ping e CHEN Shih-fu. Um resumo da história da China. Beijing: China
Publishing Company, 1962.
Ching, Julia. O senso religioso dos chineses in Boff, Leonardo [org.] China e
Cristianismo. Petrópolis: Vozes, 1978.
Coletânea. Mitologias Chinesas. Beijing: Instituto de Línguas Estrangeiras, 1986.
Eliade, Mircea. História das crenças e ideias religiosas. Tomo 2, vol.1. Rio de
janeiro: Zahar, 1983.
Eliade, Mircea. From Primitives to Zen; A Thematic Sourcebook of the History of
Religions. New York: Harpercollins, 1978.
80
Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.
81