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SINO | textos

CHINA: UMA CIVILIZAÇÃO SEM MITOS DE CRIAÇÃO?1


André Bueno

Introdução
Existiria alguma civilização que não teria se preocupado em criar e preservar suas
narrativas míticas de origem? A pergunta parece insólita. Quaisquer coletâneas de
narrativas religiosas nos mostram, após uma ampla e segura pesquisa, que
praticamente todas as culturas antigas possuíram seus mitos criadores. (Eliade,
1978). De fato, tornou-se quase natural, para nós, acreditar que todas as sociedades
têm um ou mais mitos fundadores. Isso se deve a alguns fatores fundamentais: as
investigações no campo da História das Religiões nos mostram que a preocupação
com tradições de cosmogênese são praticamente um padrão no pensamento
humano, desde os tempos mais antigos. (Eliade, 1991) Dois elementos
contribuiriam para reforçar essa preocupação: primeiramente, a Filosofia Grega, em
busca das origens da natureza, dedicou-se a estudar o início de tudo (Arché ἀρχή),
contrapondo-se aos mitos de origem, e defendendo, do modo geral, que o
funcionamento do universo só poderia se dar por meio de uma única lógica
fundamental; posteriormente, o Cristianismo defenderia também uma concepção
monogônica, fundamentada na criação divina, que consolidava a ideia de uma
fundação singular – e, ainda que essa concepção pudesse ser considerada como
“mítica”, seu estabelecimento gradual, ao longo da história, tornou-a um ponto
crucial em qualquer investigação científica até um período recente de nossa história.
Assim, podemos dizer que o estudo das práticas religiosas de qualquer civilização,
em seus amplos aspectos, pressupõe a existência de alguma crença de criação ou
origem. E nesse caso específico, a China novamente nos apresenta problemas
notáveis e de difícil solução.
Desde o século 16, quando os missionários cristãos começaram a aportar na
China, notaram nas documentações historiográficas e canônicas a ausência de mitos
de criação. Algumas tradições, esparsas, estavam presentes no folclore e nas
práticas do Daoísmo, sem que representassem uma crença realmente consolidada
de origem mítica. Além disso, o rastreio desses mesmos mitos mostrava que eles
eram bastante tardios em relação ao início histórico da civilização chinesa. A
literatura intelectual, contudo, não abordava esse aspecto – considerado tão
fundamental para o pensamento ocidental, mas pouco relevante para os chineses.
Os letrados (Ru 儒), especialistas em história, filosofia e ciências, bocejavam
quando questionados sobre essas tradições de origem, que eles mesmos
consideravam irreais. De fato, as narrativas mais antigas, preservadas em
documentos como o Yijing 易經 (Tratado das Mutações), o Shujing 書經 (Tratado

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Texto originalmente apresentado em 2013.
Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.

dos Livros) e o Liji 禮記 (Memórias Culturais), que tratam das eras mais distantes
da cronologia chinesa, repetem sempre uma descrição humanizada do passado
chinês. O povo vivia em situação similar à que descrevemos como “pré-histórica”,
sem qualquer referência a uma origem anterior. Quando demandados sobre isso, os
acadêmicos chineses davam duas respostas distintas: uma de caráter prático,
afirmava que nenhum ser humano estaria presente nessa origem, e por isso, não
poderia saber como ela se deu; a outra, de cunho científico e especulativo, propunha
não uma cosmogonia, mas sim uma cosmologia, para explicar as origens e a criação
do universo.
Isso nos lançaria diante de um caso único na humanidade: seria a cultura
chinesa desprovida de mitos de criação? O problema se desdobra em vários
âmbitos, quer sejam: a existência de uma exceção reveladora quanto à
sistematização da história das religiões; uma quebra na insistência, essencialmente
Ocidental, de ler o mundo apenas por seu prisma, de forma exclusiva; por outro
lado, a constatação do pouco conhecimento que temos da história chinesa, e das
próprias visões que os chineses têm sobre essa questão.
O que examinaremos em nosso texto, portanto, é o debate, que ainda se
desenvolve, sobre o problema da China ter ou não seus mitos de criação. Para isso,
examinaremos brevemente os discursos sinológicos contra ou a favor dos mitos
criadores na China antiga, e seus problemas; em seguida, analisaremos algumas
passagens documentais chinesas, que ilustram esse debate; por fim, quais as
considerações que os próprios chineses fazem sobre isso, através da análise de
algumas produções históricas chinesas. Como contexto temporal, definiremos o
período limite do século +3, quando teria surgido um primeiro mito de criação nas
fontes chinesas, como veremos adiante.

Uma definição conceitual


Antes de começarmos nossa investigação, precisamos, porém, definir alguns termos
básicos. Do que estamos a tratar quando falamos de mitos chineses? Podemos
aceitar que os pensadores da China antiga lidavam com cosmogonias ou
cosmologias? Esses dois conceitos são fundamentais, e a maneira – sutil – como
eles são aplicados no contexto sinológico revelam, para nós, alguns dos problemas
que precisaremos enfrentar.
Tomo como ponto de partida as definições de cosmogonia e cosmologia de
Abbagnano (2007, p.226). Cosmogonia (κοσμογονία) seria o “Mito ou doutrina
referente à origem do mundo”, ou seja: uma proposta de compreensão acerca das
origens calcada em tradições, orais ou escritas, cujo fundamento seria
essencialmente religioso. Como característica básica da cosmogonia, o critério para
sua aceitação era a fé no mito, ele próprio estruturador de sua lógica interna. Já a
cosmologia (κοσμολογία) seria uma tentativa racional de compreender as origens e
o funcionamento do universo, desligando-se (a princípio) da crença dogmática e
religiosa. A cosmologia tentaria explicar o mundo pelo raciocínio baseado na
observação dos fenômenos da natureza, buscando sistematizar suas leis e seus
princípios. Isso implica dizer que a cosmologia pode negar as tradições míticas, se
contesta as origens do universo; todavia, se o questionamento cosmológico se
circunscreve a tentar compreender a ecologia da natureza (desligando-se da questão

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temporal), ela poderia aceitar a presença dos deuses na fundação do cosmo. Por fim,
a abordagem cosmológica pode mesmo supor que os deuses existiriam, desde que
submetidos a uma ordem natural, passível de uma explicação racional. No caso
específico dos gregos pré-socráticos, a cosmologia teria sido a primeira abordagem
contra as tradições míticas, construindo a perspectiva investigativa das ciências, e
propondo sistemas de interpretação da natureza (Bornheim, 1998).
E como essas definições se aplicariam ao caso chinês? Como veremos, a
questão é que as narrativas que consideramos como cosmogônicas estão
praticamente ausentes da antiga literatura chinesa, e as evidências materiais
apresentam-nos os cultos primitivos, mas não mitos de origem. Por outro lado, o
mais antigo texto chinês conhecido – o Yijing – é o primeiro tratado de ciências da
China antiga, caracterizando um complexo sistema de cosmologia criativa. Nele, é
proposto um sistema de interpretação da natureza, codificado em símbolos e
esquemas matemáticos, cujas atribuições equivaleriam a propriedades elementais
da natureza. Isso poderia qualificá-lo como um texto cosmológico; mas a relutância
dos sinólogos, calcada em muito em preconceitos culturais e religiosos,
costumeiramente classificou o livro como “místico”, atribuindo-lhe uma imagem
cosmogônica. Essa visão era corroborada pelos próprios chineses, que vulgarmente
usavam o livro como oráculo; por entender que ele explicava racionalmente a
natureza, então, o desenrolar dos acontecimentos e das coisas poderia ser
compreendido, em suas leis e dinâmica, pela consulta ao livro! Notemos, pois, que
o uso das conotações “cosmogonia” e “cosmologia” pode receber caracteres
pejorativos ou deturpados, se não houver cuidado com sua utilização. Utilizaremos
esses termos, aqui, buscando aproximá-los o máximo possível da interpretação que
os próprios chineses dariam aos seus textos, segundo suas tradições
historiográficas. Isso implica, claro, na presença de controvérsias e debates acerca
dessas mesmas interpretações: no entanto, veremos que as discussões sobre a
mitologia e a cosmologia chinesa continuam a ser atravessados pelos mais diversos
preconceitos ou projeções, dificultando uma compreensão mais ampla sobre as
possibilidades do caso chinês.

Ausências
Ao examinarmos a literatura chinesa antiga, notaremos o mais absoluto desinteresse
dos escritores chineses por mitos de criação. O principal corpus da antiguidade
chinesa constitui-se dos chamados Zhonguo Gudian Dianji 中國古典典籍
(Clássicos chineses) que, até o século -6, era formado por seis livros: Yijing 易經
(Tratado das Mutações), Shujing 書經 (Tratado dos Livros), Shijing 詩經 (Tratado
dos Poemas), Liji 禮記 (Memórias culturais), Chunqiu 春秋 (Primaveras e
Outonos) e Yuejing 樂經 (Tratado da Música). Esses livros remetem-se a períodos
datados do século -18 (ou mais), e sua primeira redação foi feita, provavelmente,
em torno do século -11. No século -6, Confúcio 孔夫子 (-551-479) empreendeu a
reedição e preservação desses livros, promovendo sua consolidação como alicerce
cultural da civilização chinesa. Neles não há qualquer traço de um mito de origem.
Somente o Yijing, como dissemos, apresenta uma proposta de sistema cosmológico,

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organizado e racionalizado, nas mesmas feições dos sistemas especulados pelos


pensadores pré-socráticos.
Isso não significa que os chineses não conhecessem mitos de criação. A
questão, porém, é que não restaram quaisquer fragmentos deles. As evidências
arqueológicas disponíveis nos mostram, até agora, representações dos deuses
antigos, e dos mais variados mitos, mas não de mitos de criação. Assim sendo, se
existiam mitos de criação entre os chineses, eles eram tão pouco relevantes aos
cronistas que, em seus primeiros textos, não havia interesse em preservá-los. Como
dissemos, as histórias se remetiam, no máximo, sobre um tempo imemorial em que
a humanidade vivia da caça, coleta e nomadismo.
Os intelectuais chineses priorizavam, em seus escritos, a manutenção dos
rituais que preservavam a ordem social e política, mas não necessariamente os
fundamentos das crenças religiosas. O Liji nos preserva muitos dos ritos, tradições
e costumes chineses, mas pouco sobre suas teologias. É possível que eles fizessem
uma distinção entre seus mitos e a abordagem cosmológica do Yijing, embora uma
não excluísse a outra. De fato, as tradições da mitologia chinesa costumam inserir
seus personagens na natureza regida pelo sistema “Yin 陰 - Yang 陽”, e não o
contrário. Por outro lado, a vinculação desses textos nos mostra o interesse em
preservar um pensamento não-mítico, mas essencialmente historiográfico,
sociológico e culturalista. Curiosamente, pois, os antigos pretendiam legar uma
imagem racionalizada de si mesmos. Isso iria marcar a redação da história chinesa,
sempre muito cuidadosa e receosa em reproduzir mitos, manifestações miraculosas
ou aparições fantásticas.
O quadro dos fragmentos textuais, surgidos depois do século -6, nos mostra
diversos tipos de especulação e possíveis mitos de criação; e neste âmbito que se
inicia o debate – eminentemente sinológico – sobre a existência ou não de mitos de
criação.

A China seria uma exceção?


Havíamos comentado que, desde o séc. 16, a chegada dos cristãos a China “revelou”
ao mundo a “inexistência” de um mito criador chinês em seu passado mais remoto.
Os missionários europeus, com destaque para os jesuítas, eram dedicados
estudiosos das culturas com os quais entravam em contato, buscando encontrar as
melhores vias para sistematizar a conversão religiosa. Ao perceberem a ausência de
um mito de criação na literatura clássica de antes do século -6, esses religiosos
elaboraram diversas visões para isso. Em linhas gerais, seu parecer era de que os
chineses seriam, desde o passado, materialistas e supersticiosos; por outro, que essa
ausência demonstraria uma certa falha em termos de pensamento religioso. Notem,
pois, que esse demérito estaria ligado à ausência de uma “condição obrigatória”, o
mito de criação. Um quadro geral desse senso religioso chinês foi bem definido
por Ching (1978), em linhas gerais:

Os chineses já foram caracterizados por missionários e estudiosos


- nativos e ocidentais, do passado e do presente - de várias
maneiras diferentes: ou como religiosos e teístas ou como
irreligiosos, ateus e voltados para este mundo. Nos séculos XVII

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e XVIII esta divisão de opiniões condicionou as rivalidades


surgidas nos círculos missionários e que se espalharam pelos
círculos filosóficos europeus (...) Jesuítas e dominicanos
dividiram-se em lados opostos. Também os filósofos estavam
divididos. Leibniz considerava os chineses religiosos e teístas,
mas formou seu julgamento em parte ao ler o tratado do
missionário jesuíta Longobardi, que tendia a favorecer o lado
oposto. Christian Wolff, grande amigo de Leibniz, elogiava os
chineses por sua "moralidade natural", moralidade esta fundada
em conceitos estritamente filosóficos, sem nenhuma referência à
religião e sem nenhuma fé em Deus. Um estudioso chinês de
tempos mais recentes afirma, acerca de seu próprio povo, que eles
são "a-religiosos", e sua opinião vem confirmada por vários
estudiosos ocidentais. Joseph Needham, eminente historiador da
ciência e ele próprio pessoa religiosa, acentuou que os chineses
não possuem uma fé em Deus igual à do Ocidente - um Deus
Criador e Legislador - fazendo eco assim ao juízo do filósofo
Filmer Northrop. Por outro lado, escreveram-se artigos eruditos
sobre a exata noção de fé dos chineses em Deus e continua a
pesquisa sobre o assunto. A arqueologia continua a desenterrar
provas em apoio dum primitivo teísmo religioso.

A questão do mito de criação, portanto, era apenas a ponta de um iceberg muito


maior, envolvendo o desafio de converter a sociedade mais populosa do planeta,
cujas tradições religiosas possuíam milênios de existência. Todavia, o problema da
“criação” tornara-se um ponto de inflexão. Ao longo do século 20, alguns sinólogos
– sinófilos, e não sinófobos – encantaram-se com as possibilidades antropológicas
de lidar com uma civilização isenta de um mito originário do mundo. Era fascinante
pensar que os chineses poderiam ser, talvez, a única civilização que, desde a
antiguidade, se alicerçaria na razão.
Forke (1925) e Granet (1997 [original 1931]), eminentes sinólogos da virada
do século, defenderam claramente a ideia da “civilização racional” e cosmológica.
Smith (1971) e Eliade (1983) analisaram os mais diversos aspectos da religiosidade
chinesa sem preocupar-se com a questão da criação chinesa, bem como Henderson
(1984), especialista em cosmologia chinesa, deixou o problema totalmente de lado,
e Ames & Hall (1995), numa análise mais recente, reforçaram a mesma ideia, ao
esmiuçarem as estruturas do pensamento chinês. Kalinoswski (1996) tratou a
questão com cuidado, preferindo utilizar o termo “cosmogênese” para algumas
teorias, e “teogonia” somente para mitos posteriores. Por fim, o trabalho de
Lagerwey e Kalinoswki (2009), que perscruta a religiosidade chinesa nas primeiras
dinastias, com base em materiais arqueológicos e textuais atualizados,
simplesmente não aborda a questão.
Podemos dizer que o primeiro autor a se preocupar em revisar essa questão foi
Girardot (1976 e 2008 [original de 1983]), cujos trabalhos tentam provar a
existência de mitos criadores na China, que devem ser interpretados a partir de
fragmentos da literatura pós séc.-6. Birrell (1993) e Goldin (2008) enfatizam a ideia

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de que a suposta inexistência de mitos criadores se trata de um preconceito eletivo


contra a cultura chinesa. Os chineses possuiriam sim seus mitos, e eles estão claros
em sua literatura.
Duas questões são necessárias aqui, a meu ver: tanto Girardot como Birrell, por
exemplo, insistem que os chineses possuem seus mitos criadores: mas porque uma
civilização precisa ter mitos criadores? Esses autores são sinólogos
experimentados, cujos argumentos são igualmente bem embasados: todavia, sua
insistência em retirar os chineses de sua (pretendida) singularidade antropo-
religiosa não seria, enfim, uma forma de preconceito às avessas? A não aceitação
dessa especificidade chinesa não constitui, também, um efeito inconsciente e tardio
da prática orientalista? Temos aqui uma ambiguidade importante: se os chineses
não forem “iguais” a nós em suas narrativas míticas, eles são “diferentes”, e assim,
passíveis de uma visão crítica pejorativa (pela ‘ausência’ de um mito criador); por
outro lado, buscar uma “igualdade forçada” não significaria desrespeitar essa
singularidade? No impasse que se estabelece, precisamos voltar aos conceitos
propostos no início. Girardot e Birrell demonstram ter certa dificuldade em
estabelecer os limites entre “cosmogonia” e “cosmologia”. Como notaremos, eles
parecem confundir metáforas com especulações cosmogônicas. O próprio trabalho
de Girardot (1983) centra-se em compreender os mitos de criação chineses com
base no Daoísmo, associação essa que privilegia apenas um aspecto do pensamento
chinês, em detrimento da historiografia chinesa e das outras escolas.

Narrativas de Origem
Antes de começarmos a examinar as narrativas e especulações chinesas, precisamos
ainda definir um último ponto crucial: quando falamos de origens, ao que nos
referimos? Por tratarmos do aspecto essencial do cosmo, atentamos unicamente aos
fragmentos que tratem sobre cosmogonia ou cosmologia – ou seja, especificamente
a origem do universo. Esse dado é importante, pois autores como Birrell, por
exemplo, incluem os mitos de criação da humanidade como mitos de origem –
confusão essa que causa indistinção na análise dos fragmentos. A criação humana,
bem como os mitos de inundação, entre outros, são posteriores a cosmogênese.
Nesse caso, os chineses têm seus mitos que, mesmo sendo tardios, dão versões
diferenciadas das origens dos seres e da sociedade. A questão, porém, não é essa.
Analisamos aqui a proposta de criação da natureza, que precede esses momentos
das narrativas mitológicas. Nesse caso, pois, entendemos que a postura de Girardot
e Birrell trata de ampliar o conceito de “criação” para abranger mitos diversos,
numa tentativa de corroborar uma teoria. Lewis (2006, p.21-8), em outro exemplo,
ao analisar os mitos de inundação na China, faz uma introdução em que repete esses
mesmos equívocos, associando os mitos de cosmogênese com os mitos de
surgimento da humanidade, em um único conjunto. Esse é um dos pontos fracos
fundamentais das teorias propostas por Giradot.
Comecemos pelo Yijing (Tratado das Mutações, sécs. -12 ou -11). O Yijing é
provavelmente o primeiro livro chinês a nos dar uma visão organizada de universo,
buscando explicar a natureza por meio de suas estações, tendências e qualidades,
expressas num sistema complexo absolutamente associativo, simbólico e
correlacionado. As forças naturais são catalogadas em conjuntos de expressões –

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água, fogo, trovão, montanha, etc. – que significam expansões de um sistema dual
primário, conhecido por Yin 阴 – Yang 阳. Yin e Yang não são duas forças
primevas, ou duas essências universais, e uma série de equívocos tem sido
causados, nesse sentido, entre os leitores ocidentais - e mesmo entre os chineses -
que desconhecem mais profundamente essa teoria. Yin e Yang representam, nesse
antigo sistema cosmológico, a ideia de uma oposição primária e correlata, pelo qual
algo se revela pela sua interdependência com outra coisa. São, por assim dizer,
coordenadas pelas quais concebemos uma imagem, operando em nível básico como
nossa classificação X e Y. Nesse sistema, pois, tudo se define por oposição
complementar. Uma simples linha só existe, por exemplo, pela contraposição do
traço no papel; ela mesma só existe porque tem dois lados, e divide o espaço em
dois, etc. De modo a organizar a expressão dessas tendências, os autores do Yijing
decidiram grifar como um traço contínuo a coordenada Yang _____ e, como um
traço partido, a coordenada Yin __ __. A combinação dessas linhas em sistemas
triplos gerava os Gua 卦(Trigramas), que representavam oito fenômenos ou
dimensões básicas da natureza (como dissemos; Água, Fogo, Céu, Terra, Trovão,
Montanha, Lago e Vento), denominados de sistema Bagua 八卦 (Oito trigramas).
Assim, de um princípio único é gerada a oposição complementar; dela, surgem os
trigramas, imagens da natureza; e da associação deles provém todos os seres,
estações, movimentos da natureza. Nessa teoria, estava implícita a cópula entre as
duas coordenadas para a geração de uma imagem.
O Bagua organizava as tendências da natureza num sistema que indicava
direções, movimentos, posturas e qualidades, expressos em dois arranjos básicos
chamados de “Céu Anterior” e “Céu Posterior”. Não nos cabe aqui aprofundar a
complexidade desse sistema cosmológico, mas explicar seus desdobramentos para
a mentalidade chinesa. As sequências organizadas de trigramas produziam sessenta
e quatro hexagramas, que representavam, dentro desse sistema, as tendências e
propensões dos movimentos naturais. Por causa disso, os chineses desenvolveram
a ideia de que o Yijing poderia explicar as leis ecológicas, bem como ser utilizado
com fins oraculares, antevendo eventos, o desfecho de situações naturais e
explicando a configuração e propriedades de determinadas tendências sociais e
cosmográficas (Wilhelm, 1986 e Javary, 1989). O papel do Yijing, porém, era mais
amplo. Ele descrevia e acompanhava a Mutação (Yi 易), ou ainda, “Tudo-abaixo-
do-Céu” (Tianxia 天下) por meio de símbolos, de sistemas correlatos, que
permitiam explicar “cientificamente” a Natureza e o mundo através do sistema Yin–
Yang. Do mesmo modo, a criação das coisas seria um processo contínuo,
atemporal, indefinido e infinito. O ciclo da natureza, por ser perene, não demandava
início, e nem teria fim.
Esse sistema explicativo foi adotado pela intelectualidade chinesa de modo
amplo, e manteve-se como base do raciocínio interpretativo sobre a natureza. Ao
sacrificarem para seus ancestrais e deuses, os chineses provavelmente tinham em
mente que mesmo os espíritos seguiam essa ordenação cósmica, e não pretenderam
qualquer tipo de alternativa para esse sistema.

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Especulações
Uma especulação sobre esse sistema apareceu no Chuci 楚辭 (Cantos de Chu),
atribuído a Qu Yuan 屈原 (-343-278), coleção de poemas nos quais vários temas,
ligados a natureza, a vida e a religiosidade são questionadas. Na seção “Perguntas
Celestiais” (Tianwen 天問), Qu Yuan reflete sobre a origem do “Mundo da
Mutação”, no trecho que se segue:

Quem sabe o que se passou na antiguidade, que viu o começo das


coisas? Como podemos ter certeza de como era antes o céu acima
e a terra abaixo, antes de tomarem forma? Uma vez que ninguém
poderia penetrar a escuridão quando a escuridão e a luz ainda
estavam juntas, como é que sabemos sobre o caos das formas não
substanciais? Que tipo de coisas são a escuridão e a luz? Como
Yin e Yang viraram três, quando, onde?

O restante do texto não dá resposta para essa questão. Qu continua o capítulo


fazendo outras perguntas, e comentando o nascimento dos deuses. Eles não
escapam, porém, da sistematização cosmológica. Birrell (1993, p.27) admite esse
ponto, mas entende que o trecho revela a expansão espontânea do universo,
constituindo um fragmento marcante sobre a “cosmogonia chinesa”. Esse, a meu
ver, é o problema. Ao atrelar uma cosmogonia a uma cosmologia, Qu Yuan
reproduz um raciocínio tipicamente chinês de síntese, sem excluir duas
possibilidades distintas. Do mesmo modo, não haveria problema em explicar um
sistema cósmico como cosmologia, e um o sistema religioso como uma cosmogonia
(de fato, aliás, essas são as atribuições dos termos). Todavia, Birrell defende, ainda
que indiretamente, que uma cosmologia só pode vir depois das cosmogonias, como
fruto de um raciocínio lógico; igualmente, ela não associa o texto de Qu Yuan com
o Yijing, ignorando a possibilidade de tratar-se de uma especulação sobre a antiga
cosmologia do tratado; assim, no afã de defender a teoria cosmogônica chinesa,
Birrell não aceita a possibilidade do Yijing ser um texto baseado numa razão
filosófica, e sim, mítica. Por fim, o Chuci é uma coletânea de poemas de cunho
popular, e temos pleno conhecimento de que uma das características da cultura
popular é o senso comum, que promove associações diversas entre o conhecimento
dito “científico” (racionalizações) e as crenças religiosas e supersticiosas diversas.
Certamente, estamos diante de uma questão escorregadia. Ao conceituar o
fragmento do Chuci como uma especulação cosmogônica, facilmente a realocamos
para o mundo dos mitos, desprezando, de certo modo, a capacidade chinesa de
raciocinar filosoficamente. Esse é o mesmo problema apresentado por Girardot
(1983), em sua proposta de compreender um fragmento da obra de Zhuangzi 莊子
(-369-286) que traria o primeiro mito de criação chinês de forma clara:

O Rei do Mar do Sul era age-conforme-teu-palpite,/ O Rei do Mar


do Norte era age-num-relâmpago./ O Rei do lugar entre um e
outro era A Não-Forma (Hundun 混沌, ou Caos).

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Ora, o Rei do Mar do Sul/E o Rei do Mar do Norte/ Costumavam


ir juntos freqüentemente/ À terra do Não-Forma./ Este os tratava
bem.
Então, consultavam entre si,/ Pensavam num bom plano,/ Numa
agradável surpresa para Não-Forma/ Como penhor de gratidão.
«Os homens», disseram, «têm sete aberturas/ Para ver, ouvir,
comer, respirar,/ E assim por diante./ Mas o Não-Forma/ Não tem
aberturas./ Vamos fazer nele/ Algumas aberturas».
Depois disso/ Fizeram aberturas em Não-Forma,/ Uma por dia,
em sete dias./ Quando terminaram a sétima abertura,/ Seu amigo
estava morto./ Disse Lao Tan: «Organizar é destruir». (Zhuangzi,
cap.7)

O primeiro questionamento que podemos fazer é: trata-se de fato de um mito, ou de


uma metáfora? O livro de Zhuangzi é repleto dessas histórias. Ademais, o final
desse fragmento é claro: abrir os sentidos ao mundo incide em fazer parte dele, e
assim, perder-se. Isso vem de encontro ao conceito fundamental do Daoísmo de
Ziran 自然 (Natureza Original), que propunha que a absorção da cultura era fatal
para a existência do indivíduo. Assim, o ideal seria desprender-se da vida social, e
buscar um reencontro com a nossa “autêntica natureza” em relação ao cosmo. Daí
a razão pela qual, no final da história, a aquisição da capacidade de ver, ouvir,
enxergar e falar leva Hundun à morte. Ele percebe o mundo artificial, e morre.
Antes, ele vivia em sua condição natural mais pura. Não podemos crer, portanto,
que se trate mesmo de um mito. O termo havia aparecido anteriormente na obra de
Laozi 老子 (séc. -6?), o Daodejing 道德經, como um designativo do caos
primordial, ainda de acordo com a cosmologia proposta pelo Yijing:

Antes do Céu e da Terra existirem


só havia uma nebulosa (Caos, o Hundun):
silenciosa, isolada,
suspensa, sozinha e imutável,
eternamente evoluindo sem decair,
digna de ser a Mãe de todas as Coisas.
Não sei o seu nome
Eu a chamo “Dao”. (Daodejing, 25)

Note-se que o raciocínio empregado é o mesmo da sistematização cosmológica do


Yijing, o que fica evidenciado quando lemos o trecho a seguir:

O Dao gerou o Um
O Um gerou o Dois.
O Dois gerou o Três.
O Três gerou as dez mil coisas.
O universo criado carrega o Yin atrás e o Yang adiante.
Através da união de princípios penetrantes a harmonia é obtida.
(Daodejing, 42)

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Um significa o ciclo gerador; dois, Yin e Yang; três, o Gua; e a partir dos Gua, gera-
se o mundo, no ciclo infindável da mutação. Goldin (2008, p.4-5) cita igualmente
essa passagem de Laozi, entendendo-a como um mito de criação. É preciso notar
que o autor, dominando profundamente o chinês antigo, entende que os conceitos
apresentados no fragmento caracterizam, justamente, um mito criador como tal,
contrapondo-se a visão ‘agenética’ da China defendida por Ames, Hall e outros.
Voltamos aqui, novamente, a tensão que caracteriza o debate: aceitar esse
fragmento como um mito criativo descartaria a possibilidade do pensamento chinês
gerar um sistema lógico e explicativo racionalizado sobre a natureza? Podemos
aceitar que esse sistema seria uma cosmogonia se entendermos que os chineses
acreditavam nele de modo dogmático, baseado na fé. Isso é possível. Contudo,
ninguém rezava para Yin e Yang. Robinet (2007, p.523-25) defende a ideia de que
Hundun seria um conceito explicativo para designar as coisas em um estado anterior
à aquisição da forma. Tal como um ovo transformar-se-á num pássaro, ou uma
semente numa planta, ou o feto num ser, o estado primevo (Hundun) designaria
essa condição de mudança de algo indistinto para uma forma definida.
Essa visão foi inteiramente aperfeiçoada no livro de Liezi 列子, suposto mestre
de Zhuangzi que teria vivido em torno do séc. -5. O texto que atualmente
conhecemos foi datado da época Han, em torno do séc. -1, razão pela qual o
apresentamos na sequência. Nele, Liezi desenvolve plenamente a teoria da evolução
cósmica, sustentando a mesma base proposta no sistema Yijing:

Portanto, existe um Princípio Criativo que, em si mesmo, é


incriado, e um Princípio de Mudança que, em si mesmo,
permanece inalterável. O Incriado é capaz de originar toda a vida
e o Inalterável capaz de conduzir toda a mudança. Toda a
produção de mudança está sujeita à continuidade. Do mesmo
modo aquilo que se desenvolve está igualmente sujeito à
evolução. Assim resulta um fluxo permanente de mudança e de
evolução que, sob a forma de Lei, jamais cessa de operar. Assim
aconteceu com os contrários de Yin e Yang, da mesma forma que
com as quatro estações. Yin e Yang formam os Princípios
positivo e negativo da Natureza, predominando de forma
alternada sob o aspecto de dia e noite. Mas acerca do Incriado,
podemos conjecturar apenas que permanece só em si mesmo. A
realidade do Supremo Incriado não pode ser comprovada.
Podemos unicamente supor que seja misteriosamente uno, isento
de princípio e fim. O Incriado vai e vem e o seu alcance é
ilimitado. Dele só podemos supor que seja único e que os seus
caminhos sejam inexauríveis. (...) No Sublime Princípio da
Unidade reside o começo das qualidades indiferenciadas. Não
comporta sujeito nem objeto, forma nem contornos. Numa altura
em que a substância, a forma e as qualidades essenciais ainda se
encontravam no estado indistinto de associação, existia o Caos
que incorporava todas as coisas numa mistura ainda indissociável.

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Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.

Os elementos mais refinados e depurados que tendem a elevar-se


constituíram os Céus, enquanto os mais grosseiros e pesados, que
tendem a permanecer em baixo constituíram a Terra. A
substância, uma vez proporcionada de forma harmoniosa, tornou-
se o Homem. (Liezi, 1)

Quero chamar atenção a dois elementos fundamentais aqui: na primeira parte, de


como o ciclo cósmico é gerado pelo “incriado” (ou, “não-criado”), isto é, um
princípio gerador que simplesmente dá começo e fim a tudo, sem nunca ter tido um
“início”. Na segunda parte, Céu e Terra são separados em um processo natural, sem
intercessões divinas, e a criação humana é gerada pela natureza.
O mesmo repete-se em textos descobertos mais recentemente, como o Daoyuan
道原, encontrado em 1973, e datado da época Han. O período Han 漢朝 (-206 a
+221) foi marcado por diversas sínteses entre as escolas de pensamento, e a escola
Yin-Yang (também denominada na Sinologia como “Cosmológica”) alcançara
grande prestígio, influenciando as doutrinas confucionista e e daoísta. Um dos
exemplos de continuidade e influência do pensamento cosmológico chinês surge no
Huainanzi 淮南子 (sécs. -2? -1?), uma coletânea de textos daoístas que abordam
vários tópicos da cultura e do pensamento chinês, desde questões políticas até mitos
e folclore da época. O Huainanzi foi muito criticado pelos próprios pensadores
chineses por colocar, lado a lado, lendas antigas e narrativas do imaginário com
questões filosóficas e institucionais prementes da época. É possível que o livro
tenha sido constituído a partir de textos fragmentados, constituindo uma espécie de
enciclopédia daoísta de temas gerais. Birrell (1993, p.29) e Goldin (2008, p.6)
defendem, mais uma vez, que o Huainanzi apresenta um mito de criação. A
narrativa é essa:

Na época que o Céu e a Terra não tinham forma, esta foi chamada
de grande mistura, pois tudo era vasto, imenso, obscuro e
indistinto. O Dao começou nas imensidões do vazio. Ele
engendrou o tempo, que engendrou os sopros. Os sopros geraram
os contornos; sua dispersão iniciou a separação, e o que era leve
e fátuo deu origem ao Céu. O que era grosso e pesado se
aglomerou para formar a Terra. A reunião e a condensação do
leve e sutil foi rápida, mas a solidificação e a aglomeração do
pesado e denso foram delicadas. Assim é que o Céu tornou-se
fixo, mas a Terra não. As essências do Céu e da Terra constituem
o yin e o yang. As essências condensadas de yin e yang
constituem as quatro estações. As essências dispersas nas quatro
estações constituem os dez mil seres. (Huainanzi, 3)

O fragmento é substancialmente semelhante ao outros descritos anteriormente, com


exceção de Zhuangzi. Podemos, portanto, adotar dois pontos de vista: um, que se
trata de uma apresentação da teoria cosmológica Yin-Yang; dois, a repetição de
uma narrativa mítica e cosmogônica. Novamente, aceitar a segunda ideia implica
em considerar que a escola Yin-Yang de pensamento se baseava num simbolismo

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Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.

mitificado, cujas teorias poderiam ser lógicas, mas não necessariamente ‘cosmo-
lógica’. Ademais, o Huainanzi (cap.6) apresenta outro mito, envolvendo a figura
mítica de Nuwa, ora considerada deusa, ora considerada uma sábia da aurora dos
tempos. No livro, ela surge consertando a estrutura do Céu e da Terra, o que foi
considerado por Birrell e Lewis a indicação de outro mito criador. Não há, todavia,
qualquer menção à criação propriamente dita. O mundo já existia, mas estava sendo
arrumado, encontrando suas formas ideais. Considerar essa passagem como um
mito de criação é forçar limites para a prova de uma teoria.
Ora, ainda na época Han, Wang Chong 王充 (+27+100), pensador
confucionista com uma forte tendência cética, já defendia o papel espontâneo da
criação, sem preocupar-se com possíveis mitografias para isso:

Pela fusão entre a matéria e a energia do Céu e da Terra é que


todas as coisas do mundo são criadas espontaneamente, assim
como a mistura entre a matéria e a energia de marido e mulher
geram as crianças espontaneamente. Entre as coisas produzidas,
existem os seres que sentem fome e frio. Vendo que os cinco
grãos podem ser comidos, eles os consomem; e vendo que a seda
e o cânhamo podem ser usados, se vestem com eles. Algumas
pessoas, porém, afirmam que o Céu criou os grãos para alimentar
a humanidade, e a seda e o cânhamo para vestir as pessoas. Isso
seria o mesmo que afirmar que o ser humano foi criado para ser
agricultor, e a mulher para ser tecelã. Para mim, essa opinião é
questionável e inaceitável. Raciocinando segundo os princípios
daoístas, encontramos a afirmação de que a natureza impregna
todas as coisas com matéria e energia. Entre todas essas coisas, o
grão dissipa a fome, a seda e o cânhamo protegem do frio. Por
isso, o homem come os grãos, e se veste de seda e cânhamo. Mas
o Céu não produz, de propósito, os grãos que o alimentam, nem
os panos que o vestem, assim como não lança calamidades para
puni-lo. As coisas são produzidas espontaneamente, e o homem
faz proveito delas; todavia, quando elas mudam
espontaneamente, ele se assusta com isso. A teoria comum, pois,
é desanimadora. Onde estaria a espontaneidade, se todas as
mudanças fossem promovidas pelo Céu de forma intencional? E
como tudo poderia ser espontâneo, se houvesse um objetivo ou
propósito? (Lunheng 論衡, 3)

Wang estava consciente, portanto, da presença de mitos no imaginário chinês. Por


alguma razão que hoje não conhecemos devidamente, o período Han é um momento
de resgate de mitos e tradições lendárias antigas, o que fica bastante explícito na
construção do Huainanzi e do Shanhaijing 山海經, outro livro dedicado a
apresentar lendas, lugares imaginários e o bestiário folclórico chinês. É possível
que a China se beneficiasse de um período de integração duradouro entre suas
regiões e culturas, permitindo que a construção desses tipos de enciclopédias fosse
feita; não sabemos se elas se tratavam de etnografias ou mitografias, ou

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Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.

simplesmente de literatura vulgar. A questão é que vários conteúdos de cunho


folclórico estavam sendo registrados, e podemos acreditar que alguma teoria
cosmogônica estivesse sendo divulgada ou debatida. Como Wang Chong expressa
no final do trecho, “Onde estaria a espontaneidade, se todas as mudanças fossem
promovidas pelo Céu de forma intencional? E como tudo poderia ser espontâneo,
se houvesse um objetivo ou propósito?”. Temos que assumir, aqui, que essa última
frase pode se referir a algum tipo de especulação sobre uma “razão celestial” para
a criação do mundo, própria da concepção cosmogônica. Mas qual, exatamente, não
sabemos. Temos conhecimentos de mitos de criação sobre a humanidade, mas não
de origem do universo. Se for a isso que Wang Chong se referia, sua última frase
adquire, então, um sentido mais específico. Mesmo assim, sua concepção de Céu
mantinha-se atrelada ao sistema do Yijing.
No mais, os maiores historiadores Han, Sima Qian 司馬遷 (-145-90) e Bangu
班固 (+32+92) não citam, em nenhum momento, preocupações com a origem do
universo – embora Sima reproduzisse, em sua organização cronológica, o ciclo de
criação cosmológica do Yijing e das cinco fases (Wuxing); mas o assunto, enfim,
não parecia ser prioridade para os letrados chineses.

O primeiro mito de criação chinês


O primeiro mito que ‘atenderia’ as características de uma narrativa cosmogônica é
o de Pangu 盤古, surgido em torno do século +3. A narrativa aparece no livro
Sanwu liji 三五歴記, de Xu Zheng 徐整 (+220+265) que trata justamente de
passagens folclóricas e míticas:

Estavam o Céu e a Terra mesclados como se fossem um ovo, e


dali de dentro nasceu Pangu. O Céu e a Terra levaram dezoito mil
anos para se separar; o Yang, que era claro, foi se tornando o céu
e o Yin, que era escuro, foi se tornando a terra. E em meio a tudo
isso, Pangu foi transformando-se, alcançando a sabedoria do céu
e a potencia da terra. Durante dezoito mil anos o Céu foi subindo
e a Terra descendo, e Pangu crescia junto, e quando eles
alcançaram o máximo de sua separação, Pangu também atingiu
seu tamanho final. (apud Mathieu, 1989, p.27-9)

O corpo de Pangu seria o próprio universo, e das partes de seu corpo teriam
surgido todas as coisas da natureza. Outro fragmento sobre Pangu, do mesmo séc.
+3, está presente no livro Wuyun linian ji 五遠歷年紀, do mesmo Xu Zheng, que
aparentemente dá continuidade a narrativa anterior:

Estando Pangu – o primeiro que nasceu – a ponto de morrer, todo


seu corpo se transformou; seu hálito se transformou no vento e
nas nuvens; seu olho esquerdo o sol e a o direito a lua; as quatro
extremidades e os cinco membros nas quatro direções e nos cinco
cumes; o sangue nos rios azul e amarelo; os tendões e as veias nas
principais vias de comunicação da terra; os músculos e a carne

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nas terras pantanosas; o cabelo e os demais pelos do corpo nos


astros e planetas; a pele nos prados e bosques; os dentes e ossos
nos minerais e nas pedras; o esperma a coluna nas pérolas e jades;
a transpiração e o suor na chuva e nos pântanos; e, por fim, as
pulgas que haviam em seu corpo se transformaram, despertadas
pelo contato do vento, nas pessoas e nos povos. (ibid)

Como Lincoln (1968) e Lajoye (2013) propuseram, é difícil não relacionar esse
mito com o mito de Purusha पुरुष, presente no Rig Veda (10,90) indiano. Sua
aparição tardia no folclore chinês suscita os mais diversos tipos de interpretação.
Girardot (1976, 298) convenceu-se de que esse mito era legitimamente chinês, e
muito mais antigo do que o séc. +3, mas não explicou exatamente a razão disso. A
arqueologia ainda não forneceu qualquer comprovação para essa afirmação. É
possível que esse mito tenha sido trazido de fora da China, por meio da rota da seda,
e incorporado a mitologia popular. Afinal, o sistema Yin-Yang constituía um
sistema complexo, e seu texto básico, o Yijing, são hoje ainda de difícil domínio.
O mito de Pangu encaixava-se facilmente nas cosmogonias chinesas, sem entrar em
conflito com os deuses nativos. Girardot (ibid.), finalmente, usa de um argumento
retórico para afirmar seu ponto de vista: mesmo que o mito de Pangu seja tardio,
ele excluiria a China de sua exclusividade no mundo das mitologias, apresentando,
também, um mito de criação. Isso encerraria a discussão, deslocando o problema
da temporalidade da questão para a sua causalidade – existindo um mito, portanto,
a questão se encerra, não importando quando ele foi assimilado ou difundido.
Essa afirmação parece correta, se aceitarmos que as formulações míticas são
providas de uma temporalidade que não necessariamente acompanha a história. Por
outro, se o mundo religioso chinês é passível de uma investigação histórica, cujo
objetivo seja entender a sua evolução e transformações, a afirmação de Girardot
torna-se problemática. O mito de criação passa a existir na sociedade chinesa, mas
por alguma razão que hoje não conhecemos bem. Isso não implica na anulação da
cosmologia, nem se transpõe para o passado do qual não faz parte. Apenas no
âmbito folclórico o mito se difunde; mas podemos rastreá-lo, e descobrir quando
ele “passou a existir” no imaginário chinês, fazendo-nos pressupor algum tipo de
causa cultural ou mental que ainda está por ser estudada. Nesse ponto, enfim,
precisamos ver o que os pensadores chineses mais recentes entendem sobre essa
questão.

Reproduzindo visões consagradas


A historiografia chinesa manteria seu silêncio sobre a questão dos mitos de criação,
e nunca incorporaria o mito de Pangu nas narrativas históricas. Pensadores
fundamentais para a civilização chinesa, como Zhou Dunyi 周敦頤 (1017-1073) e
Zhuxi 朱熹 (+1130+1200) renovariam, de tempos em tempos, os estudos sobre a
cosmologia chinesa, deixando sistematicamente de lado a discussão mitológica.
Contudo, a última grande revolução nos estudos literários e humanos na China
foi a entrada das teorias ocidentais, notadamente do Marxismo, a partir do século
20. O forte impacto do pensamento marxista modificou o panorama das ciências
chinesas, influenciando diretamente a escrita da história e do imaginário chinês.

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Bueno, André. SinoTextos, 65-81. Proj. Orientalismo, 2021.

Para entendermos a visão chinesa sobre esse tema, precisamos, portanto, verificar
de que modo são tratados os mitos de criação nos estudos históricos e
antropológicos chineses.
Numa breve relação das obras de história feitas pelos próprios chineses, e
disponibilizadas em línguas ocidentais, nenhuma delas aponta indícios de quaisquer
mitos, chegando mesmo a ignorar as práticas religiosas. Chen (1962), Bai (1984),
Jiao (1986), Li & Xu (1986), Cao & Sun (2011), todos, sem exceção, colocam o
plano histórico como fruto das ações humanas, minimizando o papel da religião.
Recorrendo a literatura chinesa não traduzida, encontramos a História da China 中
国通史, vol. 1, de Fan Wenlan 范文澜 (+1893+1969), que propõe a teoria de Pangu
ser um mito absorvido por tribos do sul da China, usado para preencher o vazio
causado pela ausência de um mito criador (e podemos nos perguntar por qual razão
uma sociedade precisaria ‘preencher’ esse ‘vazio’).
Foi o mitólogo Yuan Ke 袁珂 (+1916+2001) que propôs a possibilidade do
nome Pangu ser uma deformação de Paoxi 庖犧, outro nome de Fuxi 伏羲, um dos
fundadores míticos da civilização chinesa (Yuan, 1991). Yuan foi um dos grandes
pesquisadores da mitologia chinesa, promovendo uma vasta recolha de mitos e
tradições folclóricas populares, além de possuir um grande domínio da literatura.
Todavia, ele também defendia que o mito de Pangu, tardio, surgira em função de
alguma necessidade folclórica ou imaginária do povo.
Observemos, portanto, que os intelectuais chineses mantinham a mesma
distância em relação a possíveis mitos de criação, tal como os antigos historiadores
confucionistas. De fato, parece que os chineses haviam incorporado a ideia de
constituírem uma civilização privilegiada, dotada de razão desde ermos tempos,
como afirmou Fan Wenlan. Na década de 1960-70, o governo comunista chinês
promoveu, por outro lado, um resgate das tradições folclóricas, expresso pela
publicação de vários livros com contos e lendas tradicionais. O objetivo dessas
coleções era promover a cultura chinesa, num formato generalizado e unificado,
com fins educativos e nacionalistas. Em português, Mitologia Chinesa (1986, 2
vols.) foi publicado pelo Instituto de Línguas Estrangeiras de Beijing, e nele estava
incluído o mito de Pangu, como um mito absolutamente chinês. As histórias são
apresentadas, no entanto, em caráter fantasioso – ou seja, como se os próprios
chineses nunca tivessem acreditado nelas. Por analogia, é como se nós, brasileiros,
lêssemos sobre mitos tupis. Essa distância, aparentemente, seria definitiva.

Conclusão
O que observamos, desse modo, é que os chineses preservaram a concepção de
escrever uma historiografia afastada das crenças mitológicas, ignorando possíveis
teorias cosmogônicas. Herdeiros orgulhosos da ideia de que sua civilização ateve-
se, desde o início dos tempos, às cosmologias, a ausência de mitos de criação
antigos evidenciaria a sua singular condição de sociedade racionalista e estudiosa.
Essa condição – talvez em parte alimentada pelos próprios chineses – foi
transmitida aos especialistas ocidentais, que criaram o debate em torno da
existência ou não de cosmogonias na China antiga. Por seu turno, esses mesmos
sinólogos transformaram a questão numa extensão do debate orientalista clássico

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do século 19, no qual a ausência poderia ser utilizada como detrator da cultura
chinesa, ou elemento de exotismo.
Nossa apresentação não pretendeu dar um fim ao debate, mas fazer as
considerações necessárias sobre os principais argumentos dos autores pró ou contra
a singularidade chinesa. Examinamos que os argumentos de Girardot e Birrell
possuem vários problemas conceituais e interpretativos, e somente Goldin foi capaz
de proporcionar um panorama, pautado em fontes primárias, capaz de responder a
essa polêmica conceitual e historiográfica. Por outro lado, os demais autores que
mantiveram a teoria da China sem mitos de criação foram bastante influenciados
pelas concepções tradicionais dos próprios chineses, reproduzindo uma ideia
comum na historiografia antiga, que desprezava as mitologias populares. A
possibilidade de a civilização chinesa ser exclusiva no mundo, em relação aos mitos
de criação, foi bem aproveitada pelos próprios intelectuais chineses da era
comunista, que reforçaram, assim, a ideia de um povo especial em termos de
mentalidade.
Somente a arqueologia poderá nos fornecer, no futuro, novas informações
sobre essa questão, tendo em vista que a literatura clássica consolidou algumas das
visões já discutidas. É possível que venhamos a descobrir, em alguma tumba, que
no seio da sociedade chinesa antiga existiam traços de mitos criadores; mas, a sua
irrelevância perante a intelectualidade, manifesta na escassez dos registros, nos
mostra que, de uma maneira ou de outra, os intelectuais de elite se pretendiam
filosóficos, racionalizados e pragmáticos; e nesse sentido, acabaram legando uma
visão de mundo bastante distinta, capaz de lançar desafios aos nossos métodos
históricos e antropológicos, e forçando-nos a repensar algumas de nossas
construções conceituais.

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