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DEZLIÇOES DE FILOSOFIA

CHINESA
André Bueno

AGBOOK

2004/2011
Direitos registrados pela Creative Commons, 2011
BUENO, André
Dez lições de Filosofia Chinesa. São Paulo: Agbook, 2011

Sinologia; Pensamento Chinês; História Chinesa


ÍNDICE

Apresentação, 7
Sobre o Pensar Chinês Antigo, 9
Os Primórdios do Pensar Chinês, 15
O Poder de Domar do Pequeno, 19
As Instruções de Yueh, 23
As Conversações de Confúcio, 29
Sobre a Real Natureza Humana, 35
O Verso do Dao, 41
Sobre um Ladrão de Machado, 49
O Fabulista do Dao, 53
A Necessidade de Padrões, 59
A Regra dos Punhos, 65
A Relatividade das Coisas, 71
Conclusão, 75
Sugestões de Leitura, 81
Apresentação
Dez lições de Filosofia Chinesa é um livro feito
para entendermos um pouco mais sobre o pensamento
da Antiga China. Como bem apontou o Sinólogo e
tradutor Artur Waley (1979:11), costumamos
diferenciar os estudos e transcrições da sabedoria
chinesa em duas categorias; uma “histórica” e outra
“canônica”. A primeira busca analisar a cultura chinesa
tal como um objeto, utilizando uma metodologia seca,
científica, sem nunca se aprofundar em suas
singularidades e reproduzindo uma série de estereótipos
e preconceitos. A segunda, no entanto, vai-se justamente
pelo caminho contrário, tentando visualizar no oriente a
realização de todas as suas utopias - por vezes
escorregando no exagero e no esoterismo, sem contar
com suas ocasionais falhas nas referências históricas.
Indo a fundo, ela consegue penetrar nas culturas
asiáticas de modo especial, conseguindo com
sensibilidade absorver as peculiaridades de cada
sociedade. No entanto, ao projetar sobre as mesmas as
fantasias de um Ocidente degenerado, ela facilmente se
desvia para uma perspectiva salvacionista e religiosa,
perdendo-se de uma busca explicativa racional e
coerente.
Contudo, o tempo da separação entre China e
Ocidente está por ser superado, tendo em vista que os
estudos sobre a Civilização chinesa estão cada vez mais
avançados, permitindo-nos fazer contraposições férteis
entre o que as duas correntes podem nos oferecer de
bom, tendo por base, antes de tudo, um senso crítico
necessariamente treinado e apurado.

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Neste contexto, o objetivo do nosso livro é
conjugar visões históricas e culturais na análise de
textos específicos do pensamento chinês. Queremos,
antes de tudo, realizar um estudo sobre certos aspectos
da sabedoria chinesa imortalizados nos escritos de
grandes autores como Confúcio, Laozi, Zhuangzi, entre
outros. Mas de forma alguma nos deteremos em suas
características mais superficiais e abrangentes, o que
nos aproximará um pouco do campo filosófico da ética.
Não queremos, aliás, fugir dessa obrigação: a
civilização chinesa é carregada desses valores e
análises, e deixá-las de lado é simplesmente ignorar
conteúdos culturais básicos do pensamento, o que
tornaria qualquer trabalho histórico e filosófico bastante
falho.
Tentaremos, com cuidado, articular os textos de
forma cronológica e conceitual. A maior parte deles
data do período das “Cem Escolas de Pensamento”,
quando a China se via próxima de um contexto de crise
e conflito intenso. Pensamos se muitos destes escritos
ainda não têm uma certa significação para nós, o que
discutiremos ao longo de nosso trabalho e na conclusão.
.............................
1a Versão: "Dez lições de Cultura chinesa", em 2000
2a Versão, revisada: 2004

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Sobre o Pensar Chinês Antigo
O pensador indiano R. Panikkar (1988)
observou muito bem que existe atualmente, no campo
historiográfico e filosófico, uma hierarquia estabelecida
entre as ciências ocidentais e o pensamento oriental. O
filtro pelo qual nós realizamos o trabalho de
investigação das civilizações asiáticas é, justamente, o
da nossa cultura, o que nos induz naturalmente a
distorção dos aspectos mais banais do outro. Apesar da
idéia defendida pelo antropólogo C. Geertz (1982) - que
com certa razão afirma que somos produto de uma
cultura (e por isso temos uma melhor possibilidade de
entendermos e expressarmos a nós mesmos, mas não
aos outros) - acreditamos que não é impossível lançar,
sobre as civilizações orientais, um olhar naturalmente
interessado e simpático - o que se torna uma grande
vantagem para o pesquisador estrangeiro perceber algo
em uma cultura que os próprios nativos não conseguem
atentar. Há uma discussão séria em torno dessas
possibilidades de estudo sobre a alteridade, cada qual
com suas qualidades e defeitos que não nos cabe aqui
aprofundar. O fato é que podemos nos utilizar das
experiências de cada uma para compreender, com
melhor proveito, o pensamento oriental. No entanto,
ainda temos a questão desses métodos serem em
essência “ocidentais”, o que não facilita a interpretação
de certos conceitos presentes nas culturas asiáticas.
Uma dessas tendências, por exemplo, é aquela
na qual procuramos fazer traduções aproximadas de
certos termos e princípios do pensamento asiático que
julgamos serem convenientemente iguais ou parecidos
com os nossos (como no caso dos primeiros tradutores

9
ocidentais cristãos que buscaram incessantemente o
termo chinês mais próximo possível da noção de Deus).
Isso ocasiona o problema de encontrarmos contradições,
a todo tempo, nos sistemas de pensamento oriental. Tal
engano tem mesmo que ocorrer, tendo em vista que as
conceituações utilizadas são próprias da nossa cultura,
que formam um sistema diferente dos de China e Índia.
Logo, quando fazemos esta aproximação,
tendemos a enxergar os outros como errados, atrasados,
estranhos, exóticos, etc. Não pensamos que transpomos,
aos mesmos, aspectos de nossa própria realidade, e
como ela não é aplicável em toda sua amplitude a
diversidade de sociedades existentes, a tendência é a
incompreensão e/ou a formulação de modelos bastante
falhos (como a idéia de que a cultura chinesa deriva da
indiana, por exemplo). Aliás, não paramos para pensar
que nem mesmo nossa ciência tem conceituações
definidas sobre certos assuntos, o que nos leva a crer
que, muitas vezes, partimos das idéias do senso comum
e do preconceito para investigarmos a cultura asiática, o
que só pode terminar em catástrofe.
Por outro lado, é muito difícil compreendermos
em toda extensão a mentalidade oriental, e mesmo nos
valendo das isenções saudáveis (não preconceituosas)
que possamos ter, não fomos, em geral, criados e
formados nessas culturas diferentes da nossa. Daí que,
quando tentamos realizar um processo de “conversão”
ao modus do outro, em geral incorremos num outro
caminho desastroso, que nos leva ao anacronismo
(quando não, ao ridículo), utilizando-nos de todos os
estereótipos positivos que possuímos sobre os mesmos
para tal mister, o que não nos deixa escapar, por
conseguinte, do preconceito. Hoje em dia, porém, há

10
uma tendência muito original de fundir este pensamento
antigo com as concepções modernas de ciências
humanas tal como são propostas no Ocidente.
Em meio a essas perspectivas conflitantes e
complicadas, resta-nos ainda perguntar se tudo, no
Oriente, é realmente diferente, ou se não podemos fazer
aproximações seguras dessas culturas com a nossa. Ora,
acreditamos ser totalmente plausível fazer inferências
análogas, se isso for realizado com certo cuidado e
respeito.
Temos que entender que a História e a Filosofia
asiáticas tem suas tradições próprias, que partem de um
conceitual em muitos pontos diferentes do nosso. Os
sistemas orientais insistem, em sua maioria, na
existência de valores e concepções que teriam origem
numa razão universalista, pautada no espírito humano
(Chan, 1978). Todas as sociedades no mundo teriam a
possibilidade de traduzir este princípio - mas, devido à
uma série de fatores, cada um destes grupos formularia
sua própria proposta de interpretação, o que acabaria
por gerar o atrito e o conflito de idéias. Isso decorreria
da incapacidade empírica do ser humano, enquanto ente
material, de apreender a realidade do todo nesta
instância de sua existência.
Esta proposta de cunho metafísico não exige, no
entanto, um engajamento religioso ou espiritual: apenas
atenta ao fato de que todos somos seres humanos, e por
isso mesmo temos a capacidade de descobrir as mesmas
coisas.
Achamos este princípio bastante válido para
iniciarmos a discussão sobre o pensamento chinês.
Podemos, dentro destas proposições, fazermos uma
crítica objetiva e histórica das idéias de cada um desses

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pensadores, sem torná-los melhores ou piores do que os
nossos.
Além disso, o fato destes sistemas de
pensamento serem diferentes não significa, porém, que
não trabalhem com problemas semelhantes aos
encontrados no Ocidente. Isso nos remeterá, na
apresentação dos textos, a possibilidade de aplicação
destas idéias no contexto moderno - ainda que como
propostas apenas filosóficas.
Busquemos entender o pensamento chinês como
um irmão de nossa tradição greco-romana, que possui
suas próprias opiniões sobre os mesmos assuntos, em
função de uma capacidade de formação e leitura
alternativa à nossa. Apenas assim é que teremos a
capacidade de analisar em que medida estas propostas
podem ser válidas ou não tanto para nós quanto para
eles. E, em última instância, de que forma poderemos
empreender um mergulho sobre a cultura do outro e
retiramos dela uma série de instrumentais e conceitos
que nos permitam fazer uma saudável autocrítica sobre
nossa própria sociedade, sobre os caminhos que temos
buscado para resolver os problemas atuais?

Base Histórica

Quase todos os textos que apresentaremos


datam do período entre VI - III a.C., momento de
intensa produção intelectual da Antiga China. Era o
período final de existência da Dinastia Zhou, que
agonizava debaixo das guerras constantes promovidas
pelos Estados Combatentes (as datas tradicionais situam
esta época em 481-221 a.C.) e, diante de um contexto
social e político complexo, os chineses resolveram

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empreender uma revisão profunda de seus valores e
costumes, procurando encontrar fórmulas que
resgatassem seu antigo passado ideal ou, que pudessem
reorganizar sua estrutura de vida (Kaltenmark, 1982 e
Granet, 1997).
Este processo, no entanto, era mais antigo:
desde o século VI a.C., Confúcio e Laozi já atentavam a
degradação que se instalava no seio das comunidades,
nos hábitos e no pensamento. Desde então, formaram-se
várias escolas em torno de mestres destacados, cujas
propostas apresentavam-se como soluções para a época
de crise.
Durante a Dinastia Han, no entanto, uma
classificação genérica, feita com fins didáticos e
teóricos, foi realizada, separando cada uma dessas
correntes segundo uma linha de direcionamento
específica. Elas foram organizadas em nove sistemas
principais, que seriam: a escola dos letrados (de
Confúcio), taoístas, moístas, legistas, nominalistas (ou
“sofistas”), cosmogonitas, políticos, agrícolas e
ecléticos (Jopert, 1979:90). Abordaremos as principais
delas.
Se partirmos da noção de que todos estes
autores compartilhavam da mesma perplexidade diante
da corrupção e violência que afligiam a sociedade (e
quem sabe, talvez, ainda atinjam toda a humanidade),
observamos, porém, que suas propostas construíram-se
de forma substancialmente diferente. E a História do
pensamento chinês não poderia ser, também, encerrada
neste período: como afirma Chan (1978), é nesta época
que se inaugura uma seqüência, dentro da China, de
elaboração e renovação das escolas filosóficas que
continuariam a se desenvolver, sem grandes

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interrupções, até o século XX, quando finalmente o
Marxismo surge, revolucionando a vida do país. No
entanto, estes antigos sistemas continuariam a
sobreviver em outros lugares, como em Taiwan, Japão,
Coréia, etc. onde a influência da Cultura chinesa de fez
sentir de forma significativa.

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Os Primórdios do Pensar Chinês
Podemos afirmar que a gênese da Filosofia
chinesa tradicional, tal como a conhecemos hoje, situa
se no século VI a.C. com Confúcio, Laozi, e o
estabelecimento das primeiras escolas de pensamento da
antiguidade. Esta classificação se dá por dois motivos:
primeiro, pela falta de um conhecimento mais preciso
dos sistemas que existiam anteriormente ao período
citado; segundo, que este mesmo momento histórico
caracteriza-se pelo rompimento das estruturas culturais
vigentes até então, e pelo estabelecimento dos
paradigmas que serviriam como conteúdo de discussão
até os dias de hoje (Chan, 1978). No entanto, algumas
informações fragmentárias nos permitem inferir a
estruturação de diversos conceitos filosóficos anteriores
ao século VI a.C., e creio ser interessante apresenta-los
aqui para compreendermos a base de discussão sobre a
qual os sistemas tradicionais se desenvolveram.
Inicialmente, podemos afirmar que existia uma
cosmologia razoavelmente estabelecida no pensamento
chinês, que trabalhava com uma série de idéias que
remontam ao período Shang, do século XVI a.C., e que
seriam posteriormente desenvolvidas pela dinastia
Zhou. Desde a descoberta das carapaças de tartaruga de
uso premonitório e oracular (Watson, 1969), vemos
menções aos designativos Tian (Céu), Dao (Caminho),
Yi (Mutação), etc. Tais citações aparecem também nos
vasos de bronze de uso ritual da mesma dinastia Shang
(Watson, 1969). Este material nos dá idéia de um
sistema de interpretação e interação com o cosmo que
oscilava entre o religioso e o natural. A conclusão da
formulação deste sistema aparece nos discursos do

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Yijing (Livro das Mutações), recuperado por Confúcio,
que traduz nas fórmulas hexagramáticas a interpretação
que os chineses tinham do que era natureza e da relação
que sua cultura possuía com ela, como veremos adiante.
Neste pensamento primitivo, havia a idéia corrente de
que a civilização era um desdobramento criativo do ser
humano em relação à natureza primordial. No entanto, o
mesmo ser necessitava estar em constante interação com
o cosmo, pois, estando inserido nele, não podia de
forma alguma obliterar os seus canais de comunicação
sensorial, sob o risco de perder-se em si mesmo e em
seu meio.
Esta natureza (ou cosmo) era designada pelo
termo Tian (Céu), ao qual o plano material (a Terra)
estava indissoluvelmente ligado. Perder o caminho era
perder o Dao, ou seja, desligar-se da real natureza para
incorrer na corrupção e na degradação do próprio ser.
No entanto, acreditava-se que a sociedade era uma
reprodução da harmonia celeste: ou, ao menos, eram o
que imaginavam os pensadores da dinastia Zhou. Tendo
assumido o poder no século XI a.C., após a derrubada
dos Shang, os Zhou criaram a idéia de um passado ideal
que culminava na formulação de uma civilização
perfeita - ou seja, a sua.
Neste tempo, surgem os clássicos que Confúcio
depois resgataria: o Li Qi (Manual dos Rituais), o
Shijing (Tratado das Poesias), Shujing (Tratado das
Histórias), Yuejing (Tratado das Músicas) e o Yijing
(Tratado das Mutações). Ele ainda somaria a estes
textos uma crônica histórica escrita por si próprio, o
Chunqiu (Anais das Primaveras e Outonos). Quase
todos estes escritos não tratam de assuntos diretamente
ligados à formulação de um pensamento filosófico, mas

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por se tratarem de conteúdos de uma cultura antiga
ideal, Confúcio os empregaria para o estudo e
aperfeiçoamento de seus discípulos.
A produção deste conhecimento corresponde
diretamente ao aperfeiçoamento das antigas teorias
cosmológicas Shang que o período Zhou promoveu: o
universo, gerado por um princípio (Li) se originaria de
um vazio primordial (Kung, ou Wu). Deste princípio se
origina a oposição complementar fundamental (Yin e
Yang), que geraria os oito estados essenciais da
natureza (os oito Guas, ou trigramas, do Yijing). Noções
como Qi (energia) e Wuxing (cinco agentes) iriam em
breve aparecer, também, na literatura filosófica. Esta
cosmologia seria a base das discussões concernentes a
busca do Dao (o caminho, ou a conexão primordial) que
permeariam a formação das jias (escolas de
pensamento) depois do século VI a.C.
O que aconteceu neste último período é
razoavelmente conhecido e não nos aprofundaremos
nisso: a dinastia Zhou começou a entrar num processo
de degradação das estruturas de poder e as guerras civis
começaram a estalar. Diante do quadro caótico que se
apresentava, os pensadores chineses decidiram resgatar
(ou romper) com o passado e elaborar uma nova
civilização. Foi quando surgiu, então, o já citado
período das Cem escolas de pensamento, donde proviria
a nata destes filósofos chineses que escreveram seus
nomes na História.
Vale ressaltar que quase todo material de que
dispomos hoje para estudar este Filosofia antiga resulta
de um grande esforço empreendido durante a dinastia
Han (III a.C. - III d.C.) para resgatar as obras antigas do
pensamento chinês, já que durante a dinastia Qin (III

17
a.C.), houve a grande queima de livros filosóficos (tidos
como subversivos e reacionários) que açambarcou
vários dos títulos que hoje conhecemos. Mas o esforço
de sábios, famílias e intelectuais permitiu uma
recuperação grandiosa deste material, que os Han
buscaram, na medida do possível, reproduzir de forma
indistinta e imparcial.

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O Poder de Domar do Pequeno
__________
__________
____ ____
__________
__________
__________

Acima, Sun, a suavidade, o vento.


Abaixo, Xien, o criativo, o céu.
Julgamento: O Poder de Domar do Pequeno tem
Sucesso
Nuvens densas, nenhuma chuva vinda de nossa
região Oeste.
Imagem: O vento percorre os céus: a imagem do
Poder de Domar do Pequeno.
Assim o Ser Humano aperfeiçoa a forma externa de
sua Natureza.

Ideograma 9 do Yijing, o Tratado das Mutações

COMENTÁRIOS

O Poder de Domar do Pequeno é um


Hexagrama muito significativo do Yijing, o Livro das
Mutações Chinês, que nos dá conta de um princípio que
norteou, por muito tempo, as concepções de poder e
política na China Antiga. Ele significa a capacidade de
algo pequeno que amansa, retém, segura, estabelece
limites, através da suavidade.

19
No Julgamento das linhas do Hexagrama, há
uma referência ao mítico e sábio rei Wen, no momento
em que este se encontrava incapacitado de vencer o
imperador Zhouxi, de Shang, impondo-o limite, por
conseguinte, pela persuasão suave (Shiji, 6). A
descrição do momento sugere que ainda não é hora de
se atuar com todas as forças, embora no fim tudo possa
ser favorável. O Poder de Domar do Pequeno sugestiona
a capacidade de se exercer influência pela doçura, pela
susceptibilidade, pela submissão sincera do coração, e
não da força. Na Imagem, quando o vento percorre os
céus, o Yijing se remete ao Ser superior que, através de
uma firme disciplina interna, aperfeiçoa suas virtudes
dominando as paixões pequenas.
O que esse Poder de Domar do Pequeno
significa, portanto? Na China Antiga, havia uma crença
de que a real soberania do passado (como a do Rei Wen,
por exemplo) não se pautava exclusivamente na força,
mas sim na capacidade de administrar as coisas da Terra
de acordo com a vontade do povo e do Céu. O Suserano
ideal seria aquele que se submetesse às necessidades da
sociedade, abrindo mão de seus interesses próprios em
prol do bem comum. Assim sendo, ele seria uma
espécie de governante distante, cuja função seria de
instruir e arbitrar o povo, e guia-lo apenas nos
momentos de calamidade, retirando-se do poder nos
tempos de paz e fartura.
Este princípio embasou, em muito, as
concepções sobre sabedoria e governo que foram
propostas por Confúcio e Laozi. O primeiro via, nos reis
do passado, homens prontos a deixarem seus postos de
comando no momento em que julgassem encontrar
pessoas mais capacitadas que eles para o trono.

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Soberanos responsáveis, eles instruíam o povo e eram
isentos de ações egoístas, sendo devotados ao máximo
ao trabalho, tentando governar pela virtude e pelo
exemplo, e não pela intimidação. Seria o caso de Da Yu
(o Grande Yu), que antes de fundar a dinastia Xia,
passou anos trabalhando para dominar o dilúvio chinês,
estando tanto tempo fora de casa que não conheceu seus
filhos senão quando crescidos (sobre os reis do passado,
consultar o Lunyu 8, 12, 13 e 20: o Shujing, 1a parte e o
Shiji, 2). Estes soberanos seriam um exemplo de
civilidade e de amor, atributos capazes de administrar o
mundo de forma harmônica e natural. Laozi também
apreciava a flexibilidade e amabilidade, pelos quais
“pequenos” Estados podiam até conquistar os “grandes”
(Daodejing, 59-60; Lunyu, 5, 13 e 15; e ainda, sobre a
nobreza de espírito, 2, 8 e 15). Esta “conquista” não é a
da força, mas da admiração. É o poder de convencer o
poderoso à não executar a violência perante a mediação
da docilidade.
O Poder de Domar do Pequeno nos ensina que a
Humildade, em muitos casos, não é uma demonstração
de fraqueza: na verdade, ela exige muita força interna,
tanto para refrear os impulsos egoístas quanto para
sustar nossos atos contra o próximo. Nem sempre é hora
de agir com ação e intensidade. É melhor, de acordo
com a circunstância, ser submisso ao contexto e a razão,
prevendo o momento de atuar com segurança.
Mas a submissão não nos impediria de sermos
autênticos com nós mesmos e com os outros? Pensemos
neste aspecto: o que é ser autêntico? O que é “expressar
o íntimo”? Será que nosso desejo de sempre
demonstrarmos o que sentimos não é no fundo uma
manifestação do egoísmo, uma forma de sobrepormos o

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desejo de aceitação das nossas vontades sobre os
outros? O Poder de Domar do Pequeno chama a esse
exame da consciência: a violência, a expressão forte do
íntimo, tudo isso choca, impressiona, mas muitas vezes
é fátuo, efêmero e gera imagens negativas. Quantas
vezes, porém, não nos deparamos com casos em que a
docilidade não domina a fúria? Em que a dominação, a
inveja, o ciúme, tudo isso não passa de demonstrações
de insegurança, enquanto que aqueles que tem o espírito
tranqüilo continuam a realizar suas tarefas, ainda que
com a pecha de “fracos, submissos, etc?” Laozi se
referiu precisamente a este ponto quando disse: todos
querem ser fortes como a árvore, mas, num vendaval, é
a grama, que se curvando ao vento, sobrevive, enquanto
a árvore é arrancada (Daodejing, 76). A sabedoria exige
sempre flexibilidade, adaptação, compreensão sobre o
momento. Isso só existe, no entanto, se formos humildes
o suficiente para percebermos quem somos, onde
estamos, e o que está acima e abaixo de nós. É assim,
portanto, que se constrói a virtude das coisas pequenas,
da razão e do sentimento, contidas no Poder de Domar
do Pequeno.

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As Instruções de Yueh

(...) Tendo assumido o cargo de supervisão de todos


os funcionários, Yueh se apresentou ao rei e disse:
Oh! Os reis sábios agem com obediência de acordo
com a vontade do Céu. A fundação de Estados e o
estabelecimento de capitais, a nomeação de
soberanos, nobres, funcionários, chefes, não se
destinam ao ócio e aos prazeres egoístas, mas sim ao
serviço do povo. O céu é esclarecido e atencioso: que
o sábio rei o tome como exemplo. Assim, não haverá
ministros que não o sigam e, por conseguinte, todo o
povo será bem governado.
É da boca que se origina a vergonha, são as
armaduras que dão origens à guerra. As vestes
importantes, e as comuns, não serão retiradas de
seus baús de forma interesseira; antes de utilizar
uma lança e um escudo, deve a pessoa examinar a si
mesma. Se vossa majestade for prudente e conduzir
assim seu governo, o povo será esclarecido e tudo
será excelente. O bom e o mau governo dependem de
seus auxiliares: os cargos não devem ser atribuídos
aos favoritos, mas aos capazes. As dignidades devem
ser concedidas às pessoas de mérito, não às de
conduta indigna.
Antes de agir, cogite sobre as melhores
possibilidades, e aja no momento oportuno.
Preocupar-se apenas em ser bondoso é perder a
noção do correto, e não empregar o poder que possui
de forma correta é perder o próprio mérito das suas
possíveis realizações.
Que exista preparo em todas as questões, e
com isso não ocorreram calamidades. Não deves

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abrir as portas aos favoritos, que depois o trairão.
Não se envergonhe dos seus erros, ou eles podem se
tornar crimes. Permita que seu espírito se dirija as
questões do bem comum, e suas atitudes serão
corretas. Tanto a licenciosidade quanto o excesso
devem ser banidos da execução dos rituais, o que
conduz à desordem - sem isso, é difícil servir aos
antepassados. (...).

Extrato do Shujing, O Tratado dos Livros

COMENTÁRIOS

Quem é o Ser superior (junzi)? É aquele que


possui os atributos da força ou os da sabedoria? Em
teoria, para os antigos chineses, ambas as qualificações
deveriam estar presentes no ideal “rei-sábio”. O
soberano isento, antes de tudo, era um exemplo de
conduta para a população. Vimos, no texto anterior, a
importância da suavidade e da humildade. No entanto, o
pensamento chinês estabeleceu, desde cedo, uma
dicotomia entre as manifestações componentes da
realidade, que se constituem no Yin e no Yang (embora
no Yijing ambas as noções ainda não apareçam com
estes nomes). O Poder de Domar do Pequeno, em
essência, era de propriedade Yin (apesar de composto,
na maioria do seu corpo, por linhas Yang), pois se
constituía na capacidade de uma tênue linha fraca suster
a ação das linhas fortes. Chega a hora, porém, em que o
governante (o exemplo do ser superior) deve se entregar
ao serviço e agir com energia, dinamizando o
movimento da sociedade de acordo com os ciclos da
natureza. Nesse momento ele age de forma Yang, ou

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seja, gerando impulso, expandido sua energia benéfica e
suas determinações salutares pelo governo e pela
comunidade.
Como isso se corporifica no plano material?
Através de uma série de determinações transparentes,
comedidas, regradas, que colocam os elementos mais
capazes no corpo da administração pública, onde ele
pode vigiar seu trabalho e a execução de suas
atribuições.
Isso não quer dizer que a China fosse um
manancial de bons soberanos. Na verdade, a experiência
com alguns poucos, dignos de nota, é que parecem ter
imprimido no imaginário popular uma concepção acerca
do que era ser um bom governante (Mozi, 4). Este ponto
de vista é confirmado quando levamos em conta que foi
Confúcio quem recuperou o Shujing, e, por conseguinte,
sua releitura dos textos - somada as transformações que
ele sofreu ao longo dos séculos - permitem-nos entrever
que as idéias propostas no mesmo podem decorrer de
uma série de construções ideológicas próprias, mas não
de uma realidade comprovável. Por outro lado,
principalmente a partir da Dinastia Han, quando o
confucionismo torna-se uma doutrina oficial, tais
conceitos são recuperados, o que nos permite afirmar
que este ideal de bom governante, presente no Shujing,
torna-se uma espécie de modelo cultural que norteou a
execução dos deveres pelos monarcas (pelo menos, no
campo mental, tendo em vista que muitos continuaram
incorrendo em excessos).
Cabe-nos aqui discutir em que medida esta
proposta, porém, não deixa de ser consistente com uma
noção de ética política e moral que para nós é tão
importante.

25
Inicialmente, podemos notar a fundamento
primordial, para os chineses, de que um governo só
poderia funcionar se fosse baseado na méritocracia, e
não no nepotismo. Era estranho, ao senso comum, a
idéia de que o filho de um nobre seria tão capaz quanto
o pai apenas por sua ascendência familiar. Como
indicou Confúcio, mesmo para se obterem as bênçãos
de céu e a compreensão do caminho (Dao), era
necessário estudar com afinco (Lunyu 3, 7 e 8). Daí o
comentário de Yueh, que informa o soberano sobre a
necessidade de escolher, segundo a capacidade (e não
por favores) os melhores elementos para o governo. Tal
concepção nos indica dois pontos fundamentais no
discurso: primeiro, de que um governante só poderia
assegurar sua sobrevivência e gravar seu nome no mural
dos exemplos se conduzisse bem os negócios do
governo. Era falsa a idéia, na mentalidade chinesa, de
que a aliança e a distribuição de bens entre os aliados
interesseiros asseguraria o poder de alguém: isso só
daria ensejo, no fundo, à corrupção e a degradação dos
valores, além da intriga e da traição. Em segundo lugar,
podemos supor que o mesmo problema da degradação
devia ser maior do que imaginávamos na China Antiga:
em quase todos os discursos confucionistas (e no de
outras escolas também) os combates à corrupção e ao
nepotismo se faziam premissas básicas da reformulação
social e política.
Esse ponto nos permite fazer uma inferência
segura da contraposição que existia entre o ideal de ser
superior, bom soberano, e o da realidade material. Os
de
constantes apelos ao exemplo dos governantes, feitos
pelos confucionistas, comprovam que a civilização
chinesa era capaz de engendrar, como qualquer outra, a

26
idéia da corrupção e do favorecimento ilícito. No
entanto, os mesmos chineses foram capazes de atentar e
criticar esta condição, tendo-a como degradadora dos
costumes e hábitos culturais. Assim sendo, o egoísmo
humano, individualista, deixa de ser uma questão de
foro íntimo para ser de amplitude pública, na medida em
que prejudica os interesses comuns da sociedade.
Mais do que isso aparece, também, no breve
discurso de Yueh; a necessidade de se planejar o futuro.
Dependia do monarca, em concordância com os anseios
do povo e com a vontade do céu, prestar sempre atenção
aos momentos de agir e de construir. É daí que Mêncio
irá retirar a idéia de que a vontade do céu é,
praticamente, a do bem - estar popular (Mengzi, III:27).
Atenção constante, diligência, responsabilidade, eis os
atributos daquele que desejaria ser respeitado pelos seus
nos negócios públicos: humildade, força, conhecimento
e energia, eis as qualificações daqueles que são sábios.
Para os chineses antigos, se os reis deveriam ser grandes
seres humanos, suas capacidades, no entanto, estariam
ao alcance de todos os mortais; e essa modificação
íntima dos seres é que representa o sustentáculo de uma
sociedade ideal e harmônica, onde todos seriam
virtuosos em prol do bem comum, e não em função de si
mesmos (Lunyu, 17).

27
28
As Conversações de Confúcio

O Mestre disse: estudar sem refletir é inútil; meditar


sem estudar é perigoso.
O Mestre disse: (...) praticar o Ren é começar por si
mesmo: querer elevar os outros tanto quanto
queremos elevar-nos a nós mesmos e desejar o seu
êxito tanto quanto desejamos o nosso. Acolhe em ti a
idéia do que podes fazer pelos outros - eis o que te
porá no caminho do Ren.
Fan Chi perguntou: o que é Ren? O mestre disse:
ame a todas as pessoas.
Zigong: existe uma palavra que possa guiar nossa
ação por toda a vida? O Mestre disse: não faça aos
outros o que não quer que façam com você.

Do Lunyu, as Conversações de Confúcio

COMENTÁRIOS

Kung fuzi, ou Confúcio, um dos grandes sábios


da antiguidade chinesa -que dispensa apresentações - foi
um trabalhador incessante no resgate das tradições, tal
como dos antigos mitos inspiradores. Seria difícil para
nós, portanto, escolher uma passagem em especial do
Lunyu (Conversações, ou Analectos), que englobasse
uma parte substancial do seu pensamento. Mas talvez o
que mais surpreenda, em nossa proposta de investigar as
similitudes do pensamento oriental e ocidental, é a
noção apresentada por ele sobre Humanismo (Ren). Nos
séculos XVI-XIX, os missionários cristãos ficaram
pasmos, ao constatar que seria difícil converter um povo

29
que vivia sob a égide de uma doutrina oficial pregadora,
antes de tudo, deste amor igualitário.
Por este motivo, devemos ter o confucionismo
como um sistema de pensamento muito bem
estruturado, pautado em valores definidos, como o
próprio Ren (Humanismo), Li (Ritual), Zheng
(Conduta), entre outros. Decidimos por privilegiar estes
três, que vêm de encontro a nossa análise.
Iniciemos aqui, por motivos didáticos, pelo Li.
Para Confúcio e seus seguidores, a questão ritual era o
grande índice da civilidade humana, separando-os dos
bárbaros e ignorantes (Lunyu, 13). No entanto, não
havia ninguém, na mentalidade confucionista, que não
pudesse se educar nos rituais e na cultura (educar-se,
aliás, era a base da formação de um ser humano, sem o
que ele não se diferenciaria dos outros animais) (Lunyu,
12). Os rituais, por conseguinte, eram os atos oficiais,
religiosos e sociais responsáveis pela interação entre os
membros da comunidade e pela sua conexão com a
ordem natural e a vontade do Céu. Para este sábio, a
execução do ritual era uma forma de assegurar a
reprodução de uma velha estrutura de vida que havia
possibilitado a existência da China de sua época
(Lunyu, 10). A degradação moral e a corrupção dos
costumes, bem como a apropriação indébita do poder
vinham, justamente, do desconhecimento que as pessoas
tinham sobre a importância dos rituais, e isso ocorria
tanto pelas tendências egoísticas dos homens quanto
pela sua má formação educativa.
Estudar, para Confúcio, era a base de tudo; era o
que assegurava a conduta reta (Zheng) e a justiça (Yi)
nos negócios públicos e para com as pessoas. Para ele, a
conduta não era apenas uma forma polida de etiqueta:

30
era um meio pelo qual as pessoas conheciam seus
limites internos e externos, garantindo seu bom
relacionamento com o próximo. Era também uma forma
de autocontrole, que em última analise levava a criatura
a perceber sua importância no mundo, deslocando-a dos
interesses próprios para os interesses da comunidade.
Temos uma noção muito hipócrita da etiqueta,
que em nossas concepções apresenta-se como uma
forma diplomática de relacionamento, muito ligada à
cultura de elite. A idéia dos confucionistas ia bem além
da mera formalidade: o hábito da retidão na conduta
moral deveria forçar o Ser a repensar suas atitudes,
atentando a seu papel social (Lunyu, 12 e 13). Assim
sendo, as práticas de relacionamento não seriam uma
repressão dos sentimentos, mas sim uma expressão
digna e respeitosa do íntimo, que através da
formalidade, seriam filtradas de forma não agressiva.
Estas idéias se originavam da concepção de
Confúcio de que Ren (o Humanismo) era, de fato, a
base de todo o Mundo. Mas o que é Humanismo numa
visão confucionista?
É complicado traduzir este termo para nossa
língua, tendo em vista que ele engloba várias idéias
diferentes, mas façamos uma aproximação explicativa.
O primeiro conceito que podemos utilizar para
entender este Humanismo confucionista é o do Amor.
Houve uma grande deturpação em relação à proposta de
distribuição do afeto entre os seres, e muitos tenderam a
acreditar que Confúcio defendia que só era possível
amar aqueles que também fossem civilizados, o que em
breve se traduziu por “chineses”. Isso não é verdade:
mesmo criticando os bárbaros do Norte por seus
costumes diferentes e agressivos, Confúcio nunca

31
estabeleceu um limite para quem poderia ou não
entender o caminho (Dao) por ele proposto. A base
desse Humanismo, assim como do ritual e da conduta
eram, sempre, os estudos. Estudar a si próprio, estudar
os outros, estudar a cultura, formando assim um
arcabouço íntimo de idéias e valores: eis o mister dos
autênticos confucionistas (Lunyu, 1). Assim sendo,
Amar é um termo que se aproxima pela noção de
sentimento afetivo recíproco, de compreensão mútua, de
equilíbrio e equanimidade entre as pessoas. Isso não
basta, porém, para explicar o Ren.
Devemos aqui incluir outra noção, a do
Altruísmo. A ajuda desinteressada faz parte dos
elementos componentes do Ren, o que permite o
equilíbrio da sociedade pelo aproveitamento sadio de
todos os seres. Confúcio era contra a caridade direta,
que para ele só reforçava as desigualdades e a
acomodação (Lunyu, 6). Era necessário empreender a
educação comum, a ajuda mútua e a distribuição do
trabalho para que todos pudessem viver em uma
harmonia digna, justa. Uma pessoa só seria lançada ao
desequilíbrio e a carência se não tivesse trabalho ou,
ainda, se mesmo com trabalho, não tivesse uma
educação que lhe impedisse de cometer excessos, ou
que a fizesse desconhecer as regras de conduta e de
ritual.
No período Han, quando da adoção do
Confucionismo pelo Estado, a China passou por um
período de grande renovação cultural e intelectual
derivada destas propostas. No entanto, esta escola foi
incrivelmente deturpada em períodos posteriores,
transformando-se até numa religião, algo que Confúcio
provavelmente lastimaria. O principal desvio, no

32
entanto, foi a transformação do ritual em um separador
da cultura chinesa em relação ao resto do mundo
(Jopert, 1979: 92); somada a banalização do Ren, que se
transformou em um conceito de afeto disperso e
superficial, dirigido em termos caritativos, o
confucionismo perdeu grande parte de sua potência
como proposta universal para se tornar um discurso
sinocentrista de civilização.
Temos que nos impressionar, no entanto, com a
atualidade e a abrangência da proposição original de
Confúcio. “Amar a todos”, e “não fazer ao próximo o
que não quer que façam com você” são, no mínimo,
afirmações tiradas de uma razão humana que deve
transcender a lógica cultural. Nessa hora somos
obrigados a nos perguntar se, de fato, as correntes do
pensamento oriental não estariam certas, ao afirmar a
importância da ascendência do espírito humano sobre
certos valores e conceitos que surgem, em diferentes
sociedades e contextos históricos, levando em conta que
estas conclusões foram feitas tendo por base
pressupostos culturais completamente diferentes. E o
que dizer então da idéia de educação e comportamento?
Quanto tempo levamos para concluir isso, com nossas
concepções modernas sobre ciências humanas? Há que
se pensar aí, realmente, numa possível universalidade
do saber, patrimônio indelével da mentalidade humana
que de tempos em tempos é inferida por estes grandes
pensadores? Não podemos ter certeza, mas Confúcio, já
no século VI a.C. foi capaz de elaborar uma proposta,
em muitos aspectos invejável, para a resolução de
problemas sociais que parecem atravessar a existência
humana com persistência e tenacidade, sobre os quais
apenas a vontade íntima seria capaz de se sobrepor.

33
34
Sobre a Real Natureza Humana
Mêncio disse: “todos tem um coração sensível aos
sofrimentos de outros. Os grandes reis do passado
tiveram este coração sensível, e políticas cheias de
compaixão foram adotadas. Trazer a ordem ao reino
é tão fácil quanto mover um objeto na palma de sua
mão, e quando você tem um coração sensível tenta
sempre pôr em prática políticas de compaixão. Me
deixe dar um exemplo do que eu digo, ou seja, que
todos tem um coração sensível aos sofrimentos de
outros: qualquer um que tenha visto, de repente, um
bebê próximo de cair em um poço se sentiria
alarmado e iria salva-lo. Não o faria porque quis
melhorar suas relações com os pais da criança, nem
porque quis adquirir uma reputação boa entre seus
amigos e vizinhos, ou ainda, porque não gostou de
ouvir a criança gritar. Apenas o faria por
compaixão. Disto segue que qualquer um à quem
falte sentimentos de comiseração, de carinho, de
cortesia ou um sentido de certo e de errado, não
pode ser entendido como humano.
(...) Gaozi disse: “a natureza humana é como a água
correndo: quando um curso é aberto ao leste, ela flui
para o leste; quando uma corrente é aberta ao oeste,
flui para o oeste. A natureza humana é mais
inclinada ao bem tanto para o leste quanto para o
oeste”. Mêncio respondeu: “a água não tem
preferência pelo leste ou pelo oeste, mas não tem
uma preferência pelo cimo ou para baixo?” A
bondade é na natureza humana como fluir da água
para baixo. Não há nenhuma pessoa que não seja
boa e nenhuma água que não flua para baixo.

35
Espirrada, ela pode molhar sua cabeça; se forçada,
pode ser trazida acima de um monte. Mas esta não é
a natureza da água; são circunstâncias específicas.
Embora os povos possam ser feitos para serem maus,
suas naturezas não são mudadas.

****

Xun Zi disse: A natureza do homem é má. Bom é o


produto humano. A natureza humana é tal que os
povos nascem com amor ao lucro, e se seguirem essa
inclinações, eles lutarão e arrebatar-se-ão uns aos
outros, e as inclinações ao dever e a produção
morrerão. Eles nascem com medos e ódios. Se os
seguirem, transformar-se-ão em violentos e
tendenciosos, indo de contra a boa fé, que morrerá.
Se forem indulgentes, a desordem da licenciosidade
sexual resultará na perda dos princípios rituais e da
moral. Em outras palavras, se o povo agir de acordo
com a natureza humana e seus desejos, eles
inevitavelmente lutarão, arrebatar-se-ão, violarão as
normas e agirão com violento abandono.
Conseqüentemente, somente depois de
transformados por professores e por princípios
rituais e morais, conforme a cultura, poderão
permanecer em boa ordem. Visto por este lado, é
óbvio que a natureza humana é má, e bom é o
produto humano.

Extratos do Livro de Mêncio e do Livro de Xunzi

36
COMENTÁRIOS

Os dois grandes nomes do Confucionismo,


depois do próprio Confúcio, foram Mengzi (Mêncio) e
Xunzi, que desenvolveram a doutrina a partir de uma
nova perspectiva interpretativa. Mêncio (IV-III a.C.) é
considerado por muitos o grande idealista dessa escola,
e seu texto foi adicionado ao cânon tradicional. Já Xunzi
impregnou o discurso com uma forte noção racionalista,
cujos desdobramentos contribuíram de forma
significativa para a formação do pensamento político de
sua época (III a.C.). Ambos foram quase
contemporâneos, e suas propostas foram discutidas
simultaneamente.
Mêncio e Xunzi inauguraram, dentro do
Confucionismo, a discussão sobre a real natureza
humana. Ela seria boa ou má? Confúcio não disse muito
a respeito, preocupando-se mais com a questão da
retificação das pessoas do que propriamente com sua
natureza. Para Mêncio, no entanto, era importante
explicar esta dimensão do pensamento confucionista,
tendo em vista uma crítica séria que era feita aos
métodos de sua escola.
A crítica pautava-se na questão da educação: se
ela era fundamental para a construção da sociedade
ideal e harmônica, porque tantos nobres considerados
“educados” continuavam a empreender a corrupção e a
degradação moral? Porque os mais ricos eram mais
cobiçosos que os pobres, se muitos haviam podido
estudar e, teoricamente, esclarecer-se?
A resposta de Mêncio vinha de encontro à idéia
de que não havia um mal intrínseco tanto nos pobres
quanto nos ricos. Ambos nasciam com espíritos bons,

37
ou destinados ao bem, mas a atração pela fama e pelas
riquezas matérias é que corrompiam o ser humano.
Desde cedo ele seria estimulado a tirar proveito, a
cobiçar, a roubar, a trair, se esse fosse o exemplo gerado
pela sua família e pelos líderes de seu povo. A
educação, portanto, seria a grande arma para esclarecer,
de fato, os problemas da sociedade. Aqueles que,
mesmo sendo considerados “bem educados”,
continuassem a explorar e a praticar a vilania não teriam
sido, para Mêncio, devidamente instruídos. A educação,
em sua visão (que concordava com Confúcio) devia,
acima de tudo, clamar ao exame interior do Ser. Sem
isso, ela não seria mais do que um lustre intelectual,
uma polidez cultural que não alteraria o caráter
deformado das pessoas.
Por isso mesmo Mêncio não via, do maior nobre
ao menor camponês, diferenças que os fizessem seres
humanos diferentes e melhores (ou piores) uns que os
outros. A separação hierárquica seria apenas uma
circunstância transitória, e até discutível, que serviria
somente à necessidade de organização social em torno
da administração pública. Por este motivo, qualquer um
que tivesse seu bom coração firme, por conseguinte, era
candidato a exercer o poder, o que seria demonstrado
pela vontade do céu.
Xunzi, no entanto, considerou que a perspectiva
de Mêncio era por demais idealista, e por mais que o
Céu prometesse catástrofes aos governantes corruptos,
ainda assim o gênio humano continuava a agir,
disseminando a maldade. Partindo deste princípio é que
Xunzi concluiu justamente o contrário de Mêncio: a
natureza humana seria má, selvagem, idêntica a
natureza dos animais que se juntariam em bandos para

38
caçar, matar e procriar. No entanto, este mesmo ser
humano precisou estabelecer limites que assegurassem
sua existência, sendo capaz de gerar uma idéia de lei e
justiça que intermediaria seus conflitos com o outro.
Xunzi entendia ser isso um Saber social (Cultura), ou
seja, um sistema de reprodução da sociedade que
disciplinava seu modo de vida, vinculada,
fundamentalmente, a questão da educação, que seria a
transmissão desta estrutura entre gerações. Vemos aí,
novamente, o problema dos estudos aparecendo como
um fator primordial na ótica confucionista. Xunzi era
pessimista, mas não descrente do ser humano: pelo
contrário, acreditava que mesmo esse ser, de natureza
vil, era capaz de articular um modo de vida que
respeitasse os limites alheios. Logo, se a China de sua
época vivia uma crise, era porque realmente as pessoas
não estavam sendo bem educadas: e isso permitia que
seus instintos primitivos aflorassem em toda a sua força.
O ser humano tinha todo o potencial de ser bom, mas
disso dependia que toda a sociedade exercesse uma
pressão constante sobre si própria e sobre os
governantes para regular suas ações, e disseminar a
prática do bem e da cultura. Eram necessários princípios
rígidos na avaliação do cotidiano. E assim sendo,
valendo-se de suas forças, a humanidade independeria,
mesmo do Céu, para sobreviver.
A questão da natureza humana foi tão
importante, para a China Antiga, quanto é para nossa
sociedade hoje. As idéias de Xunzi influenciaram vários
pensadores políticos, como Han Fei (que veremos
adiante), cujas propostas radicais guardavam bastante
do pessimismo de seu mentor. Já Mêncio conclamava as
pessoas a repensarem seus medos e desconfianças,

39
diante da ação da bondade; e a reagir quando a maldade
prevalecesse (Mengzi IV:3). Como nos situamos diante
dessas análises do espírito humano? Quantas vezes
estabelecemos preconceitos e estereótipos em relação a
outras culturas e povos por não sabermos sua
mentalidade? O Ocidente esperou até Hobbes e Locke
(século XVII) para chegar a uma discussão semelhante,
e ainda assim, em nenhuma parte do mundo chegou-se à
um consenso. Parece-nos aqui que a opção por uma
interpretação sobre a real natureza humana dependeu,
sempre, das perspectivas mentais daqueles que a
propuseram, fossem elas positivas, negativas, ou mesmo
neutras. No entanto, a maneira de encarar esta dúvida,
no ponto de vista chinês, não se encontrava na avaliação
metafísica do problema, mas sim, na sua resolução
pragmática. E para os confucionistas, o sempre
recorrente discurso da educação se fazia necessário.
Isso nos coloca em outro nível de
questionamento: pode uma construção humana (a
educação, em si) modificar o espírito de um povo, ou
mesmo de apenas uma pessoa só? Ou cada um já
nasceria com uma tendência, com uma pré-disposição,
que a educação apenas lapidaria, afirmaria ou
destruiria? Na dúvida, os mesmos confucionistas
optaram pelo dogma do ensino: afinal, ainda que
existisse (ou não) um destino traçado para cada ser,
cumpria à sociedade instruí-los sobre suas capacidades,
seus limites e direitos. Diante disso, somente a
consciência poderia determinar, realmente, o caminho a
ser tomado pelo indivíduo, fosse qual fosse sua índole
natural.

40
O Verso do Dao
O caminho que pode ser seguido não é o Caminho
perfeito.

O nome que pode ser dito não é o nome do Eterno.

No princípio está o que não tem denominação.

O que tem nome é a Mãe de todas as coisas.

Para que possamos observar seus segredos, devemos


permanecer sem desejos.

Se formos até ela com desejos, só vislumbraremos


sua forma externa, a casca em torno da essência.

Estes dois estados existem para sempre unidos.


Diferentes apenas pelo nome, são idênticos, juntos,
entrelaçados.

São os mistérios, mistérios além dos mistérios.

[São] O portal, que conduz a tudo aquilo que é sutil e


maravilhoso, esconderijo de todas as essências.

Verso 1 do Daodejing, o Tratado do Caminho e da


Virtude de Laozi

41
COMENTÁRIO

O misterioso pensador Lao zi teria vivido em


época contemporânea a de Confúcio (VI a.C.), mas sua
existência continua sendo um motivo de controvérsia.
Acreditamos que não é sumamente importante discutir
agora este ponto, em virtude de duas questões: primeiro,
que o nosso objetivo aqui é analisar a proposta contida
no texto; texto esse que, numa segunda assertiva, já
influenciava o pensamento chinês no século IV a.C.
através de autores como Liezi e Zhuangzi. Assim sendo,
o fato de ter havido, ou não, alguém chamado Laozi, já
não era importante desde o século V a.C., o que se dirá
agora. Empregaremos, assim, a figura do suposto autor
para introduzir o discurso taoísta, sem que haja aqui
uma afirmação sobre sua condição real de existência.
Em meio ao caos que se instalava no século VI a.C., a
proposta de Laozi baseou-se num distanciamento claro
das decadentes instituições políticas dos Zhou.
Empreender um retorno à natureza primordial do ser,
essa sim seria a busca ideal da salvação. Os tempos
antigos representavam para os taoístas uma época de
paz, de desapego, que fora obtido graças à
harmonização natural dos seres com o meio. No intuito
de fazer prevalecer esta paz, porém, apareceram os
sábios, que instituíram leis, promulgaram regras, e
lançaram a desconfiança entre as pessoas, ensejando os
desejos egoístas de sobrevivência e acúmulo material.
Por causa disso, a sociedade perdeu o Dao (Tao), o
caminho, conceito esse já existente na mentalidade
chinesa que os taoístas (ou daoístas - optamos pelo
primeiro termo, mais comum) iriam desenvolver ao
máximo. O Dao não poderia, em essência, ser

42
explicado. Parece tratar-se de uma fórmula de harmonia
com a natureza, onde o Ser descobriria sua posição
atuante no ciclo cósmico. Isso exigia que a pessoa
comum, portanto, se desprendesse das coisas mundanas
que atavam-na, no círculo vicioso das convenções
sociais, para descobrir, no seu íntimo, o ritmo das
relações existentes entre seu corpo, seu espírito e a
natureza.
Por isso mesmo, a descrição lingüística do Dao
não era possível, para os taoístas, por se tratar de uma
experiência transcendente, desligada das sensações que
governam os seres comuns. A matéria e o espírito
seriam, na verdade, desdobramentos de uma única fonte
primordial, inominável, que provinha da entidade
geradora do cosmo, a Mãe-natureza (Daodejing, 6 e 52).
Partindo dela, estabelece-se a dicotomia constituinte da
matéria, os princípios opostos, o Yin e o Yang. E da
fusão de ambos nasce o Três, o filho, o manancial das
Dez mil Coisas (expressão chinesa para o universo)
(Daodejing, 42). Para se acessar, por conseguinte, essa
realidade, o ser precisaria buscar dentro de seu próprio
espírito a noção de equilíbrio e interação que se
chamaria Dao. Ele não poderia dispensar a matéria, do
qual faz parte: mas pode tentar apreende-la sem desejo,
sem noção de posse, o que permite então a livre
expressão das propriedades das coisas (Daodejing, 48,
49 e 72). Esta isenção do desejo, e o livre fluir do
conhecimento, é que davam ensejo ao conceito da Não -
ação (wu wei).
Esta clivagem taoísta é bastante interessante:
quantas vezes não deixamos de enxergar as coisas
porque nelas projetamos nossas ânsias e desejos? É
exatamente por isso que Laozi propunha uma

43
aproximação isenta, sem o que só seríamos capazes de
observar a forma externa das mesmas, e nelas
continuaríamos a sobrepor nossas concepções próprias
de mundo que não seriam nada mais, nada menos, do
que erros de leitura da realidade, propostas pela Cultura.
De fato, esta mesma Cultura aparecia aí, para os
taoístas, como um filtro deformador da realidade
natural: uma construção até necessária, para que o
homem pudesse interagir com o meio. Mas, a partir do
momento que a mesma se tornasse um sistema de
Domínio sobre a natureza, então ela começa a se
degradar e corromper, pois passa a ser uma construção
irreal (e ideal) sobre a verdade cósmica. Derivariam
disso os conflitos entre os países, os povos, as famílias,
cada qual porque nenhum desse seres percebe que os
atributos do cosmo estão presentes, por igual, em cada
um deles.
Mas essa realidade natural do Ser seria de fácil
acesso? Na verdade sim, e não. Ela dependeria do
esforço individual de cada um, o que a torna um
caminho tortuoso e complicado, mas que ao mesmo
tempo está aberto diante de nós, já que fazemos parte
desta natureza e não podemos dela nos separar. Este
seria o Portal do conhecimento, dos mistérios, presente
na entrada do Dao (Daodejing, 34 e 70).
Estas concepções taoístas conclamavam as
pessoas ao estudo íntimo e a meditação profunda do
papel do ser humano no seu meio. Laozi foi um tanto
hermético nos seus discursos sobre o resgate da
harmonia primordial, mas ao mesmo tempo foi original
e autêntico, quando propôs que a real liberdade do Ser
não poderia ser atingida pela prática de uma cultura que
trazia dentro de si o cerne da degradação. Toda e

44
qualquer construção humana, que se distancia de uma
base natural, tenderia a gerar perturbação, já que ela
provocaria o surgimento de novas ânsias, duvidas,
conflitos e perigos, que jogariam os seres uns contra os
outros. A abordagem do Caminho deveria ser feita, com
segurança, através da flexibilidade do pensamento, da
ação contida e do coração aberto aos movimentos do
mundo.
O primeiro verso do Daodejing nos diz respeito,
portanto, a necessidade que os seres humanos teriam de
reencontrar sua posição na natureza cósmica. Seria um
engano pensarmos que somos donos de algo (ou de
nossa própria vida, ou do meio), já que esta consciência
ideológica deriva de uma noção maior de Cultura, mas
que não esclarece, em si, o fato de que todos os seres
nascem e morrem, e apenas natureza continua a existir.
Assim sendo, nós pertencemos à natureza, e não o
contrário. Laozi pensava, com isso, em chamar as
pessoas à construção de uma sociedade mais harmônica,
baseada na compreensão deste princípio, que nos induz
a agir não de forma selvagem, mas que nos traz a
consciência da transitoriedade das coisas, e que por isso
mesmo, nos força à rever nossos desejos e angústias
como sentimentos vãos, numa existência que não exige
nada disso para assegurar nossa sobrevivência.
A proposta de Laozi nos faz pensar, em termos
modernos, na questão da responsabilidade individual
sobre o mundo, sobre as das ditas “comunidades
primitvas” e mesmo sobre a questão ecológica. Em que
medida nós assumimos um exame íntimo de nossas
vidas e não criamos para elas mais necessidades do que
realmente precisaríamos? A cultura, por muitas vezes,
não nos induz ao excesso desmedido, criando anseios

45
sobre coisas que seriam totalmente dispensáveis em
nossas vidas, mediante um exame mais atento? Quando
observamos as “comunidades primitivas”, que durante
um bom tempo conseguiram estabelecer um padrão de
vida bastante significativo, pautado exclusivamente na
harmonia com a natureza e o meio, podemos realmente
assegurar que a evolução material seria o único caminho
de desenvolvimento possível para a sociedade? E ainda,
as construções tecnológicas, que se propõe a serem
reprodutoras da vida humana, muitas vezes não
ameaçam o meio ambiente, pondo em perigo, por
conseguinte, a própria existência das sociedades
mundiais?
Na antiguidade chinesa, o taoísmo terminou por
se destacar como um caminho exotérico de
compreensão da realidade natural, pondo-o num
patamar religioso acessível somente pela meditação e,
por vezes, pela alquimia (Palmer, 1993 e Eliade, 1978).
Numa perspectiva moderna, isso seria considerar que o
taoísmo tenderia a ser um movimento contra a evolução
técnica da humanidade, privilegiando o distanciamento
e o abandono das necessidades materiais. Essa idéia é
uma constante na interpretação de vários sistemas de
pensamento oriental, mas não podemos assegurar que os
taoístas, em bloco, pensassem assim. Na verdade, talvez
seu intuito fosse criticar uma cultura que destruía seus
próprios elementos em função de interesses particulares
e egoísticos, afastando o ser da sua natureza inicial
(Daodejing, 65). O retiro, aí, não despende que a
humanidade parasse sua caminhada: mas que, apenas,
revisse seus passos. Se assim for, a descoberta dos
mistérios que envolvem o caminho não seria, nada mais,
nada menos, do que a criação de uma sociedade onde

46
seres conscientes fossem capazes de assegurar a vida
comum através de uma relação mais equânime e
adaptada à realidade do meio. O caminho, portanto,
seria se deixar conduzir por este movimento natural e
constante, sem conflitos, sem atritos, sem desperdícios
(Ibidem, 63, 73). Eis uma mensagem significativa, que
Liezi e Zhuangzi trabalhariam para tornar mais
acessível ao público através de suas parábolas, que
veremos a seguir.

47
48
Sobre um Ladrão de Machado
Um homem perdeu seu machado, e desconfiou que o
filho do vizinho o tivesse roubado. Começou a
espiona-lo, e tudo parecia indicar que suas
desconfianças estavam corretas: o rapaz andava
como um ladrão de machado; sorria como um ladrão
de machado, e seu modo de falar parecia ser
hipócrita como o de um ladrão de machado. Todos
os seus movimentos tendiam a disfarçar sua culpa.
Mas, um dia, aconteceu deste homem, que perdeu o
machado, cavar um lugar qualquer no vale e topar
com o seu instrumento de trabalho perdido em um
canto, perto do lugar onde sempre fazia seu serviço.
No dia seguinte, ele olhou novamente o filho do
vizinho, e concluiu que todos os seus movimentos,
todo o seu ser, nada tinham haver com os de um
ladrão de machado.

do Livro de Liezi

COMENTÁRIOS

Liezi teria vivido no século IV a.C., tendo sido,


tradicionalmente, mestre de Zhuangzi. Teria herdado de
Laozi o gosto por versos profundos, mas ao mesmo
tempo iniciou a transmissão dos saberes taoístas pela via
dos contos e apanágios, que tiveram seu ápice com o
discípulo famoso.
A parábola do Ladrão de Machado exemplifica
a questão do preconceito e das construções irreais, que
fomentamos sobre as coisas e sobre os outros, quando
nos vemos em momentos de angustia ou de irreflexão.

49
Isso só ocorreria por causa das exigências que a
sociedade nos lança todos os dias: precisamos trabalhar,
às vezes sem saber porque ou como. Não é importante
se o serviço gera prazer ou satisfação: sua execução está
vinculada a um fim, e não ao ato em si. Este fim é a
sobrevivência. Mas a concepção ideológica da
subsistência, como uma meta individualista, não seria a
geradora justamente dos males humanos? Senão
vejamos: porque o lenhador achava que alguém o havia
roubado? Em princípio, porque seu machado só poderia
ter sumido assim. Alguém queria levar vantagem sobre
ele, e, em última análise, sobre a vida. Ele desconfia do
filho do vizinho: vê nele toda a sua insegurança
manifesta, a quase comprovação do delito que põe, o
outro, como culpado de seu fracasso. E no final,
descobre que o engano era seu mesmo.
A percepção de Liezi é vasta neste aspecto: ela
realiza a contraposição entre o individual e o coletivo,
noção importante na sociedade chinesa, intensamente
gregária. A idéia de obrigação social incide sempre com
muita força no espaço individual, e uma forma de
escapismo é atribuir os problemas íntimos às condições
externas adversas.
Sabemos que, por muitas vezes, a força da
ideologia e da cultura macera o sentimento humano
numa determinada fôrma, que o adapta, à força, as
convenções do meio (Liezi, 2). Mas a parábola de Liezi
nos mostra duas coisas importantes: primeira, de que
não podemos viver sempre em função da sociedade, já
que ela não é capaz de gerar sempre respostas para
nossos problemas. Na verdade, vivemos das regras, mas
quando fracassamos, muitas das vezes essas mesmas
convenções nos abandonam (Liezi, 8). Em segundo

50
lugar, a sociedade é constituída por nós: são as pessoas
que fazem as desconfianças, os conflitos, as incertezas.
Se examinássemos todos os passos de nossa vida,
saberíamos reconhecer, com justiça, o que fizemos de
errado e o que não foi culpa nossa. Melhor ainda, talvez
percebêssemos mesmo que muitas das ofensas que
sofremos, e que julgamos serem decisivas na nossa
formação não passam, diante de um olhar atento, de
mera imaturidade e frivolidade. Dentro do olhar taoísta
de Liezi, o caso do roubo do machado mostra que o ser
humano ainda tem muito por fazer para viver numa
sociedade harmoniosa.
Para que o Todo seja perfeito, cada um tem que
fazer seu esforço individual para que a mudança ocorra.
É necessário tentar compreender o caminho (Dao),
senão vamos continuar nos perdendo nas ilusões
materiais, nas próprias paranóias que construímos sobre
o que nos cerca (Liezi, 1). Não existiria, nessa visão, um
conflito entre a noção de indivíduo e coletivo: na
verdade, assim como o Yin e o Yang, ambos são
diferentes, mas ao mesmo tempo se completam, e um
depende do outro. Assim, a cultura não pode ser nunca
entendida como tábua de salvação, se não for precedida
de uma reflexão moral e ética profunda e sincera,
desprendida da cobiça e isenta de interesse; o que é
muito difícil, na prática, mas não impossível, se
levarmos em conta que cada trabalho é feito
diariamente, passo após passo. Como no caso do
lenhador, nenhuma floresta será derrubada no primeiro
dia de esforço: é o serviço contínuo que traz o
aperfeiçoamento constante e a obtenção das metas.

51
52
O Fabulista do Dao
Não Absoluto
Se um homem dorme em um lugar úmido, resfria-se
e morre. Mas e as enguias? Viver em cima de uma
árvore é difícil, e esgota os nervos de qualquer um.
Mas que me dizes dos macacos? Entre o homem, a
enguia e o macaco, quem habita o lugar certo,
absolutamente? Os seres humanos alimentam-se de
carne, o gamo de erva, as centopéias de cobras, as
corujas e corvos de ratos. Desses quatro, qual é o
gosto certo, absolutamente? O macaco se une a
macaca, o gamo à corça; as enguias unem-se aos
peixes, enquanto os homens admiram Mao Qiang e
Li Chin à vista dos quais os peixes mergulhariam,
horrorizados, na profundidade das águas, as aves
voariam alto no Céu e os gamos fugiriam correndo.
Quem dirá, contudo, qual é o correto padrão de
beleza? Na minha opinião, o padrão da virtude
humana, e do positivo e negativo, é tão obscuro que é
impossível realmente saber qual seja.

A Escolha de Zhuangzi
Zhuang zi estava pescando no rio Pu, quando o
príncipe de Zhu mandou dois altos funcionários
convidá-lo para assumir o cargo de administrador
do Estado Zhu.
Zhuangzi continuou pescando e, indiferente, disse:
"Ouvi falando que em Zhu há uma tartaruga
sagrada que morreu há cerca de três mil anos. E que
o príncipe guarda cuidadosamente essa tartaruga em
um cofre no altar de seus ancestrais. Ora, para essa
tartaruga seria melhor estar morta e ter os seus

53
restos venerados, ou estar viva e arrastando a sua
cauda na lama?".
"Seria melhor estar viva e arrastando a sua cauda
na lama", responderam os dois altos funcionários.
"Ide embora!", gritou Zhuang zi. "Eu também
prefiro arrastar a minha cauda na lama".

Zhuangzi à Morte
Quando Zhuang zi estava para morrer, os seus
discípulos manifestaram a vontade de lhe fazerem
um esplêndido funeral. Mas Zhuangzi disse: “Com o
céu e a terra por meu féretro; com o Sol, a Lua e as
estrelas como ornamentos fúnebres, e com toda a
criação para me levar ao túmulo - os preparativos
para o meu funeral já não estão prontos?”.
"Tememos" argumentaram os discípulos "que os
abutres devorem o corpo do senhor" Ao que Zhuang
zi replicou: "Acima do chão serei alimento dos
abutres; debaixo do chão serei alimento dos vermes e
das formigas. Por que tirar de uns para dar aos
outros?".

Extratos do Livro de Zhuangzi

COMENTÁRIOS

Com Zhuangzi, a escola taoísta completou sua


tríade, tal como a dos confucionistas. Mas este incrível
contador de histórias, que tornou o Dao acessível aos
leigos, deixou uma mensagem humanística profunda,
que nos surpreende pela sua sensibilidade e agudeza.
Vejamos a primeira fábula: quem pode saber o que é
melhor, em absoluto? Quantas vezes alguém pode nos

54
indicar um caminho achando que é o melhor,
desconhecendo por completo nossa individualidade?
Zhuangzi não nega o valor da experiência humana, mas
contesta sua abrangência e especificidade. Em geral, o
que vivemos são construções ideológicas e culturais que
são alheias aos impositivos de nosso espírito (Zhuangzi,
2), mas então, como podemos manifestá-los em nossa
sociedade? Quem pode saber, realmente, o que é melhor
pra nós, senão nós mesmos? Mas Zhuangzi não era,
também, um defensor do egoísmo e da imaturidade.
Para ele, as experiências humanas deveriam ser a base
sobre qual nós observaríamos a vacuidade de certas
coisas, e não uma muralha, construída pelas decepções,
que fechariam nossa alma ao mundo.
Em geral, o chamado “conhecimento da vida”
seria, na visão deste pensador, nada mais do que um
conjunto de amarguras e rancores que induzem as
pessoas à sempre lutarem pelo que é transitório, o que
dá prestígio, mas que não é a definitiva realidade do ser.
As sensações não deveriam servir para que todos
desenvolvessem uma visão egoísta e pessimista do
mundo: elas teriam por fundamento, na verdade, a
possibilidade de fazer com que as pessoas
reconhecessem as diferenças que existem entre os Seres
da natureza. E isto não faria com que houvesse,
necessariamente, uma hierarquia cósmica que
determinasse a posição de cada um no universo; cada
qual tem, de fato, seu lugar nos ciclos naturais, mas
cada um com sua importância, ninguém melhor ou pior
do que o outro.
É por isso que Zhuangzi recusara as honrarias
de um bom cargo, no segundo conto: porque se deixar
prender em obrigações matérias e transitórias, cujas

55
preocupações cotidianas e monótonas nada têm haver
com a realidade última do mundo (ibidem, 17)? Tinha o
que precisava para seu sustento, então porque querer
mais? Seria comodismo? Ou a negação daquilo que
muitos querem, o Poder e o Prestígio?
Como vimos antes, a força, na visão taoísta, é
efêmera e rápida, em contraposição a suavidade, que é
durável e sutil. Assim também seriam o Poder e o
Prestígio: hoje, um homem é soberano; e amanhã,
escravo de outro rei. Somente aqueles que percebessem
o caminho seriam capazes de compreender que todas
essas coisas passam. A fome, sim, seria uma realidade;
nascer, morrer, procriar, eis o que todos fazem, do mais
alto político até o mais baixo popular. Disto se concluía
que todas as disputas em torno de valores, posses, bens
e posições nada mais eram do que construções humanas,
pois todos, enfim, precisam do mesmo básico para
viver.
É por isso que Zhuangzi encerra brilhantemente
sua vida retribuindo, à natureza, seu corpo (ibidem, 32).
A mesma Mãe que dá, é a que tira. E, no entanto, como
podemos achar que não fazemos parte dela, se somos
entes perenes, já que no ciclo cósmico não há perdas,
mas apenas manifestações da mesma matéria? Como
podemos nos fazer mais ou menos importantes que
outros, se somos feitos do mesmo princípio e se
necessitamos das mesmas coisas? (ibidem, 7)
Zhuangzi é um apanágio sobre o preconceito e
sobre o egoísmo. Não que Laozi e Liezi não tenham se
pronunciado, e bem, sobre estas coisas, mas Zhuangzi
explorou-as ao máximo, aproximando seu discurso das
pessoas mais ignorantes e menos instruídas. A salvação
estaria ao alcance de todos, e ela seria facilmente

56
atingida por aqueles que conseguissem se desprender
dos grilhões materialistas do mundo para perceber, com
naturalidade, a presença do caminho (Dao), da
existência real do Ser.
Muito nos impressiona ver que, no século IV
a.C., este autor já era capaz de discutir as diferenças
sociais e materiais sob uma ótima humana, isenta de
preconceitos, pautada unicamente numa crítica ao
mundo, e não somente à sua cultura. Se nesta época já
era possível realizar tal inferência, vemos que a criação
de um conceito humanístico não é privilégio de
nenhuma sociedade, mas de uma “sabedoria universal”,
inerente a todos os povos (se, de fato, esta sabedoria
existe). Somente as construções ideológicas
fomentariam um pessimismo sobre o Ser (como em
Xunzi), que transparecesse no estabelecimento de
códigos e leis desiguais e hierárquicas: a tendência do
espírito, em si, seria reconhecer-se como igual, o que
tornaria a fraternidade e o amor os únicos princípios
verdadeiros do mundo.

57
58
A Necessidade de Padrões
Mozi disse: “Para fazer o que quer que seja, cumpre
ter padrões. Ninguém realizou coisa alguma sem
eles. Os fidalgos, no exercício de suas funções de
generais e conselheiros, não os dispensaram. Os
próprios artesãos regem-se por padrões. Assim,
constroem objetos quadrados, de acordo com o
quadrado; e recorrem ao compasso, para as figuras
circulares; desenham linhas retas com a régua de
carpinteiro; e o prumo lhes vale para as
perpendiculares. Todos os artífices, capazes ou não,
empregam esses cinco padrões. Apenas os mais
hábeis são perfeitos. E os menos hábeis, os que não
alcançaram a perfeição, andarão melhor, se fizerem
uso dessas regras. Eis porque todo artesão se norteia
por moldes certos”. “Ora, o governo do império e o
dos grandes países não se atém a padrões; isto
demonstra que os governantes são menos inteligentes
que os artífices”. “Que devemos tomar como
exemplo de bom modelo de governo? Deve cada um
imitar os pais? Há muitos pais no mundo; poucos são
magnânimos. Se todos seguirem o exemplo dos pais,
raras vezes procederão nobremente. E imitar um
procedimento indigno não será ater-se ao padrão
adequado”. “Poderia cada um nortear-se pelo
exemplo de seu mestre? Muitos são os mestres; mas
poucos os mestres dotados de uma alma grande.
Logo, se todos imitarem o seu mestre, nem sempre
imitarão um bom exemplo. Nortear-se pelos maus
exemplos não é adotar o padrão apropriado.
Convém que cada um imite o seu soberano? Há
muitos soberanos; raros, porém, são exemplares.

59
Imitando-os, nem sempre andaremos bem. Não é boa
norma copiar um mau proceder. Logo, nem os pais,
nem o mestre, ou o soberano, podem ser aceitos
como padrões de governo”. “Que devemos, então,
escolher como padrão de governo? Nada melhor do
que orientarmo-nos pelo Céu. O Céu abrange tudo; é
imparcial nas suas atividades, generoso e incessante
nas suas bênçãos, guia infatigável e constante. Assim,
quando os reis sábios tomaram o Céu por modelo,
moldaram por ele as suas ações e empresas. Faziam
o que o Céu desejava e evitavam o que o Céu pudesse
condenar”. “Ora, o que é que o Céu preza, e o que é
que o Céu abomina? Indubitavelmente, o Céu deseja
que os homens se amem e auxiliem mutuamente, e
reprova que se odeiem e hostilizem. Como chegamos
a esta conclusão? Simplesmente porque o Céu ama e
favorece toda a humanidade. E como sabemos que o
Céu ama e favorece a humanidade inteira? Porque o
céu protege a todos, e de todos aceita oferendas.
Todos os reinos do mundo, grandes ou pequenos, são
cidades do Céu; todos os homens, velhos ou moços,
fidalgos ou humildes, são súditos celestes; em
verdade, todos eles apascentam bois e ovelhas,
alimentam cães e porcos e preparam vinho e bolos
para sacrificá-los ao Céu. Acaso não significa isto
que o Céu protege a todos e de todos aceita
oferendas? Desde que é assim, como não deveríamos
pensar que o Céu deseja que os homens se amem e
auxiliem mutuamente? Logo, o Céu abençoará os
que procederem de acordo com esse preceito, e
amaldiçoará os que odeiam e prejudicam o próximo,
pois foi dito: “a adversidade há de punir o assassino
do inocente”. Como explicaríamos, de outro modo, o

60
fato de recair sobre os criminosos a maldição
celeste? Logo, o Céu deseja o amor do próximo, e
detesta o ódio ao próximo”.

Extrato da parte 4 do Livro de Mozi

COMENTÁRIO

Mo zi foi um dos grandes críticos do


Confucionismo, tendo vivido, provavelmente, em torno
do século V - IV a.C. Uma série de evidências indica
que Mozi deve ter estudado os mesmo clássicos que
Confúcio, chegando a conclusões diametralmente
opostas, porém, das propostas apresentadas pela Escola
dos Letrados. Supõe-se que essa diferença de
interpretação tenha vindo da condição social de Mozi,
muito mais próxima da plebe do que da fidalguia Zhou
(Jopert, 1979:102-3).
Este autor era um pregador retórico
contundente, como seu texto mostra.Tinha uma
relutância profunda para com o confucionismo, que
considerava uma ideologia de elite. Mozi era antes de
tudo um defensor das causas populares, e via na
estrutura política da Dinastia Zhou um sistema
corrompido, injusto, criado em torno dos interesses das
classes altas. Sua capacidade de perceber a realidade, de
forma pragmática, levou-o a conclusão de que o mundo
não precisava de governantes distantes do povo, já que o
mesmo povo é quem produzia o sustento da sociedade,
e, por conseguinte, a grande estrutura oficial
(administradores, funcionários, etc) formava apenas um
grupo de parasitas que se alimentavam do esforço
alheio. Desta forma, a única inspiração correta, para ele,

61
provinha do Céu, que tratava todos como iguais e não
via distinção na atribuição de benesses (Mozi, 4). Sua
proposta de amor universal tornava literalmente iguais
todas as pessoas, sem diferenças de classe, cor, sexo,
raça, etc., e por isso, era importante que o povo se
unisse para poder administrar, de forma independente,
sua própria vida (Mozi, 15-6).
Mozi chegava, numa analogia, bem perto do
ideal marxista-comunista, já que conseguia
compreender que a estrutura sobre a qual a sociedade
funciona estava calcada no trabalho dos populares (ou
talvez, proletariado?). Diante disso, se as classes baixas
soubessem se unir, elas não mais dependeriam da
interferência das elites para organizar a produção e a
distribuição dos bens comuns, findando com a
desigualdade, a exploração, e fomentando o surgimento
de uma sociedade mais equânime e justa. Por isso
mesmo Mozi combatia a cultura da elite, e por
conseqüência, aquilo que ele considerava ser a maior
expressão dos mesmos, os confucionistas (ibidem, 39),
já que ao seu ver, seriam estas concepções de
pensamento que não permitiriam, ao povo, enxergar
suas potencialidades.
Embora pacifistas, os moístas também se
uniram para defender cidades ameaçadas por pilhagens,
pela bandidagem e por governantes corruptos, tornando
se eficientes generais na defesa das causas populares
(ibidem, 17-8).
Este atraente sistema de pensamento nos
possibilita perceber que Mozi já havia compreendido a
realidade das desigualdades sociais, colocando o
problema da cultura como um dos grandes
impedimentos ideológicos para a construção da tão

62
procurada harmonia universal (tal como outros autores
já haviam proposto, igualmente). No entanto, a saída
possível, para estes problemas, era a criação de um novo
sistema, independente das velhas estruturas, que não
mais desse espaço ao surgimento das hierarquias e à
concentração de poder em mãos individuais. Mozi era
um grande estimulador das estruturas comunitárias,
defendendo a liberdade de seus integrantes na
administração de seus negócios públicos desde que
houvesse, por parte dos mesmos, um comprometimento
constante na ajuda dos menos favorecidos (os famintos,
os camponeses arruinados por pestes, secas, os pobres,
etc) (ibidem 15, 16 e 26).
O ideal de Mozi, porém, não reconheceu a força
das estruturas mentais, na hora em que processam as
mudanças. A cultura não é um elemento autônomo que
fraciona as classes sociais de forma independente: ela
depende da ação dos indivíduos, e, grande parte das
vezes, nas classes populares, este discurso se reproduz
de forma intensa, partindo de pressupostos que incutem,
na mente dos mesmos, a impossibilidade de se mudar
um regime ou um sistema.
Além disso, sua pregação contra a cultura não
reconhecia o valor que a mesma tinha de processar
alterações no imaginário e na ideologia social. Sua
crítica era precisa à sociedade Zhou, mas é desse mesmo
contexto que ele, Mozi, surgiu, e disso derivava sua
proposta revolucionária. Era compreensível sua raiva
contra as estruturas opressoras da época, que lançavam
o povo a miséria, mas talvez ele tenha exagerado no seu
combate contra o sistema cultural. Sua percepção de que
a ideologia era vinculada pela literatura, pelos rituais e
pela religião era perfeita: mas há que nos perguntarmos

63
se destruí-la, por completo, asseguraria a efetividade de
um novo sistema. Mozi não levou em conta a ambição
humana. Mesmo nas comunidades que adotaram suas
idéias, surgiram pessoas que, fosse por fraqueza de
espírito, fosse por pura e simples discordância,
acabaram por recair nos mesmos processos de
concentração de poder e riqueza que ele tanto havia
combatido.
Mozi depositava no Céu, e na fé, suas
esperanças de modificar a sociedade (Mozi, 26 e 27).
Poucos foram, porém, os que puderam continuar dando
ensejo à sua proposta após sua morte. As crenças
moístas nos demonstram que a noção de igualdade é
uma recorrência comum entre as sociedades oprimidas,
principalmente no seio das classes populares, onde a
insatisfação campeia contra a desigualdade, e que clama
por justiça. Mas o questionamento que fica é: será que a
humanidade estaria preparada para uma sociedade de
amor universal, igualitária, ou esta seria uma utopia, já
que a tendência natural do Ser seria o individualismo?
Se pensarmos do ponto de vista chinês, veremos que
nada disso seria impossível, mas dependeria da
vinculação de vários elementos, tais como a meditação
individual, o estudo, a compreensão da natureza,
políticas de compaixão, etc...Valores presentes em todas
as outras escolas que apresentamos até aqui, mas cada
qual com um entendimento sobre o que isso significaria.

64
A Regra dos Punhos
O meio pelo qual uma regra inteligente pode
controlar seus ministros é chamado de "os dois
punhos". Esses dois punhos são a punição e a
recompensa. Que significam o castigo e a
recompensa? Quando se infligi a morte ou a tortura
em cima dos culpados, é chamado castigo; já os
incentivos para homens do mérito são chamados de
recompensa. Os ministros tem receio das censuras e
das punições, mas são afeiçoados ao incentivo e a
recompensa. Conseqüentemente, se o senhor dos
homens usar os punhos do castigo e da recompensa,
todos os ministros temerão sua severidade, e por seu
turno, sua liberdade - mas executarão com grado o
seu dever. (...) Agora, supondo que o senhor dos
homens colocasse o direito da punição e do lucro nas
mãos dos ministros, deixando para outros o exercício
de sua autoridade, a seguir todos no país temeriam
os ministros, e por seu turno as leis, voltando-se para
os primeiros e afastando-se das últimas. Esta é a
calamidade da perda da regra dos punhos do castigo
e da recompensa.

Extrato do Livro de Hanfeizi

COMENTÁRIOS

Os legistas foram os grandes unificadores do


império chinês no século III a.C., emprestando sua
ideologia forte e radical ao governo do reino de Qin,
que, possuidor de uma estrutura sólida e de uma
máquina militar invejável, demoliu um a um os

65
principados que formaram o período dos Estados
Combatentes.
Esta escola teria surgido com Shang Yang, no
século IV a.C., que foi o grande formulador da estrutura
de poder Qin. No século III a.C., dois outros
especialistas no legismo, Han Fei zi e Li si, fizeram os
preparativos finais para a ascensão deste Estado na
política chinesa. Conquanto Han Fei fosse o grande
ideólogo da escola legista, Li si foi o ministro que
aplicou as medidas com eficiência. Mas, enciumado, Li
si resolveu intrigar e condenar Han Fei, encerrando
assim com a linhagem de brilhantes autores desta escola
(Jopert, Han
1979:108).
Fei teria estudado com Xunzi e ainda, teria

retirado inspiração tanto do livro de Shang Yang (um


dos primeiros “legistas”) como do moísmo, empregando
ainda alguns textos antigos, tal como o Sunzi Bingfa (o
Livro da Lei da Guerra de Sunzi).
Suas idéias deixam claro uma descrença total
com o passado, e a necessidade de se fazer tudo novo.
Não se preocupavam - e nem perdiam tempo - com a
discussão sobre a natureza humana, acreditando que os
efeitos, e não as causas, é que podiam ser controlados.
Para isso, construíram a idéia de que um sistema
político só podia ser gerido por leis firmes e
determinadas, independentes de condições sociais ou
materiais.
A proposta era simples: centralizar o poder
única e exclusivamente nas mãos do soberano: acabar
com privilégios nobiliárquicos e implodir com as
diferenciações sociais. A hierarquia existente seria
definida pelas atribuições de cada um, e não pela sua
riqueza ou posição social. Mais, essas atribuições

66
seriam detalhadamente definidas por lei, para que não
houvesse uma sobreposição de poderes e/ou uma
invasão do espaço do outro.
Muito se criticou a proposição legista na época.
Ela gerava horror aos confucionistas, pois as questões
não seriam mais julgadas pela sabedoria, e sim por uma
lei seca. Os filósofos taoístas acreditaram que esta era
uma construção mais artificial do que qualquer outra,
fadada ao fracasso; mas os mesmos já estavam
divididos, na época, e sua transformação em religião
diminuiu, em parte, o seu interesse por política.
O que ocorreu é que os legistas conseguiram
concretizar, ainda que de forma efêmera, a
transformação da sociedade. Estruturam as bases do
novo império chinês na figura de Qin Shi Huang Di - e
ainda que suas leis fossem cruéis, criaram a idéia de
igualdade jurídica, que não via distinção na aplicação
das culpas e das penas aos membros da sociedade,
fossem quem fossem.
Quando Han Fei falou sobre o castigo e a
recompensa, ele não se preocupou em tentar entender se
o homem era bom ou mal; se estava ligado ou desligado
da natureza; se havia necessidade de uma discussão
pública ou privada do poder; se os seres devem ou não
ser instruídos. Para ele, todos estes aspectos são de
âmbito individual, e não diziam respeito à premência de
organizar o poder e a coletividade de uma forma única e
coesa (Hanfeizi, 48).
O realismo legista trouxe uma experiência
singular para a China. Forçou o abandono das idéias de
propriedade particular e absorveu todas as terras nas
mãos do imperador, criando uma forte máquina estatal.

67
Combateu a cultura antiga, promovendo queimas de
livros e perseguições políticas (Shiji, 5 e 6).
O legismo nos faz pensar se a força, por vezes,
não seria a única solução efetiva em momentos de
grande crise. Se pensarmos como os taoístas, veremos
que ela poderia até ter sido empregada no momento
correto, mas não sobreviveu além da época Qin. No
entanto, a estrutura organizada pelos legistas foi
suavizada e aproveitada, em muitos aspectos, pelos
confucionistas Han.
Acreditamos que a virtude de Han Fei foi
mostrar (ainda que não da melhor forma) que a força de
um Estado e de uma ideologia se valem, quase sempre,
do monopólio da violência. A administração, tanto da
punição, quanto da recompensa, resumem os
pressupostos de que a coletividade não possui uma
identidade definida, e por isso mesmo, não pode ser
julgada nem guiada por princípios diferentes. Uma
única lei é necessária, o que torna todos as pessoas
iguais. Não haveria espaço, numa sociedade deste
gênero, para o interesse próprio, sob pena de punições
severas. É, portanto, a violência, um mal necessário? É,
a força, uma realidade indissociável da prática do
poder? Será que os melhores governos têm que se
basear numa administração forte, austera, porém
radical? Até porque isso nos faz questionar, também,
sobre a efetividade dessas medidas. Como disse uma
vez Montesquieu, os melhores códigos legais são os que
têm menos leis, porque demonstram uma sociedade
evoluída, que não necessita de tantas regras para viver.
Se Han Fei promulgou tantas diretrizes, é bem provável
que a quantidade de crimes fosse enorme. Além disso, o
povo, que deveria ser o maior beneficiário dessa

68
“igualdade”, ateou fogo à tumba de Qin Shi Huang Di,
revoltado com os anos de exploração. Logo, mesmo as
propostas legistas nos fazem ver que a manipulação do
poder pela força gera descontentamento e atrito, já que
ela não impede a manifestação dos interesses
individuais no sistema social. Em muitos casos, a
igualdade jurídica, se não bem vistoriada, torna-se um
embuste à realidade das divisões materiais e sociais. E,
assim sendo, mesmo todas as benesses advindas de um
sistema político fechado podem perder-se no mar da
violência.

69
70
A Relatividade das Coisas
“O que é infinitamente grande não tem nada que lhe
seja exterior; e o que é infinitamente pequeno não
tem nada que lhe seja interior”.

“O que não tem espessura não pode acumular-se,


mas pode ser estendido”.

“Se um bastão de um pé de altura for divido, a cada


dia, em dois, continuará assim por uma infinidade de
gerações”.

“O vôo de uma flecha lançada rapidamente se


compõe de espaços que não estão em movimento nem
em repouso”.

“No momento em que se nasce, começa-se a morrer”.

Fragmentos de Huizi (fonte, Livro de Zhuangzi, 33)

COMENTÁRIOS

Para finalizar nossa seção de textos, fazemos


uma exposição de alguns dos aforismos de Huizi, um
dos expoentes da Escola dos Nomes, também chamada
de “sofismo chinês”.
Hui zi foi amigo de Zhuangzi (Zhuangzi, 33)
com quem travava fabulosos diálogos. Muitas de suas
máximas estão espalhadas pelo livro do autor taoísta,
que o tinha em alta conta pela sua inteligência e
argumentação.

71
Os Nominalistas eram mestres no discurso e na
linguagem, acreditando que o uso das palavras era
importante para a vinculação das idéias, mas que, ao
mesmo tempo, elas possuíam autonomia sobre o real,
podendo proporcionar construções díspares.
É o caso dos paradoxos propostos por Huizi,
que muita semelhança guardam com seus
contemporâneos gregos. Seu objetivo era demonstrar
que, pelo uso correto e intencional dos termos e
denominações, podemos fazer as mais abstratas
construções, destruindo (ou articulando) os sistemas
lógicos pela deturpação das premissas básicas.
Mas qual era o ponto principal deste discurso?
A relatividade das coisas. Tudo é relativo, e por isso as
idéias não se ligam diretamente à realidade, mas apenas
suscitam processos na mesma. Não há uma separação
absoluta entre as coisas. Se um animal é morto, por
exemplo, ele deixa de existir enquanto animal, mas se
transforma em alimento para outro. Logo, os estados são
transitórios e se alternam, não tendo fim.
A importância disso reside no fato de que tudo
converge para uma única realidade, embora tudo seja
relativo. Como o tudo não é coisa alguma, é do nada
que provém tudo. Por isso mesmo, todas as coisas são
iguais, e devem ser amadas indiscriminadamente.
Hui zi também pregava o amor universal, e ia
mais além do que todas as noções de Amor presentes no
Confucionismo, no Moísmo, etc. Para ele, toda e
qualquer coisa era um objeto dessa realidade única e,
por conseguinte, com semelhanças conosco. Logo, ela
deveria ser amada, respeitada, e venerada, em
equivalência com todas as outras manifestações da
realidade suprema. Hui zi parece ser o fecho perfeito

72
para estes textos: tudo é relativo, mas todas as coisas
provêm da mesma fonte.
Resta-nos pensar que fonte é essa: será uma
sapiência humana universalista, tal como proposto pelos
orientais? Será uma realidade metafísica? Ou será,
ainda, uma pura e simples manifestação do homem
diante dos mesmos contextos e problemas? Aliás, será
que todas essas correntes estão certas, ou nenhuma está?
E ainda, suas propostas são temporais, ou atemporais?
São reais ou utópicas? Vem de algo além ou da simples
constatação do mundo? Esta é, simplesmente, uma
resposta que os chineses não quiseram dar. E, na dúvida,
Huizi disse a mesma coisa que Confúcio: amem a todas
as criaturas, sem discriminações.

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Conclusão
Os desdobramentos destas propostas na cultura
chinesa foram muitos, e fica-nos impossível apresentar
um resumo desta história e de suas transformações neste
trabalho de caráter introdutório, o que sugerimos que o
leitor faça através de nossas indicações bibliográficas.
Achamos importante, porém, que uma discussão seja
feita nessa pequena conclusão: é possível vivenciar
alguns desses sistemas filosóficos na atualidade?
Primeiro, observemos a realidade histórica dessas
doutrinas: o taoísmo só é encontrado hoje como
religião, e não sabemos como ele seria praticado, de
fato, pelos seus primeiros autores. Na verdade, os
pesquisadores de hoje tendem a concordar que o
Taoísmo religioso não tem muitas semelhanças com o
filosófico, senão a de uma base textual sobre os quais as
duas vertentes têm interpretações bem diferentes. Já o
confucionismo, que também virou uma religião, acabou
sumindo com o Império, mas os resquícios de sua
mentalidade estão presentes nas sociedades da China,
Japão, e de outros países asiáticos. O legismo também
deixou seu legado no direito chinês, assim como o
moísmo favoreceu (será?) um sentimento de comunhão
entre as classes baixas. Mas estes são reflexos pálidos
de sistemas de pensamento que já foram pujantes.
Somente o taoísmo e o confucionismo estiveram
presentes na vida dos chineses até o século XX, quando
a revolução marxista perseguiu muitas seitas religiosas e
empreendeu um combate sério a ideologia conservadora
(e já bastante deformada, em relação as suas origens) do
império, ligada ao pensamento de Confúcio e de sua
escola.

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Então, se nos decidimos por seguir qualquer um
desses sistemas, temos que ter em mente que nossas
reconstruções podem não corresponder diretamente à
realidade da gênese e da forma dos mesmos. E temos
um outro problema ligado à isso: se compreendermos
que o surgimento dessas escolas tem relação com o
contexto de crise existente na época, podemos realizar
duas inferências sobre o assunto: sim, a propostas
dessas escolas seriam válidas, porque os problemas de
hoje são os mesmo da época ou: não, os problemas
podem ser os mesmos, mas a sociedade já mudou
bastante e conta atualmente com recursos que podem
tanto facilitar como dificultar, ainda mais, a resolução
das coisas.
Como ocidentais, temos ainda a barreira cultural
imposta pelos nossos processos de formação. Seremos,
por conseguinte, capazes de empreender uma disciplina
estranha ao nosso condicionamento, ou perdermos
tempo somente tentando praticá-la, sem atingir um
avanço maior? Ou será, ainda, que podemos
efetivamente conseguir entender o que cada um destes
sistemas nos propõe?
Se levarmos em conta que a abordagem dessas
escolas se remete à valores que podem ser ditos
universais (ou não), precisamos analisar sua amplitude:
se forem, de fato, baseados num dito espírito humano,
então não só podemos praticá-los com entende-los, mas
precisamos antes nos perguntar se já não existe coisa
semelhante no Ocidente, já que, como seres humanos,
seríamos capazes de apreender a realidade tão bem
quanto qualquer outra sociedade do mundo. No entanto,
se admitirmos que essas concepções são construções
culturais, então seria no mínimo um anacronismo tentar

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recuperar qualquer uma delas, tendo em vista que até o
contexto temporal e cultural já passou.
Além disso, supondo que ignorássemos estes
problemas e, ainda assim, tentássemos aplicar qualquer
uma dessas visões no cotidiano, seria necessário
também que avaliássemos se elas deveriam ser
empregadas na suas formas tradicionais ou adaptadas.
As formas tradicionais encontrariam falhas inúmeras, já
que muitas das técnicas estão obsoletas em função das
mudanças culturais. No entanto, se as adaptarmos, ou se
utilizarmos as versões mais recentes (seja de que época
for), estaremos lidando com deformações, o que
acidentalmente conduziria (ou não) ao erro.
Se, no entanto, entendermos que as questões
levantadas por esses filósofos chineses ainda são
pertinentes, e ainda, que podemos compreende-las com
perfeição e aplicá-las ao cotidiano, será que teremos
condições de assumir uma possível dificuldade de
inserção social, ou será necessário o isolamento?
Acreditamos que, na verdade, algumas clivagens podem
ser feitas, sem entrarmos no mérito pessoal da questão,
já que a interpretação que cada um terá sobre estes
fatores é que determinará sua aceitação (ou não) à
prática de um desses sistemas filosóficos.
Achamos imprescindível, primeiramente, que os
estudiosos tenham em mente a premência de analisar o
pensamento oriental não somente por uma afinidade ou
interesse volátil, mas por seus conteúdos complexos e
abrangentes que nos forçam a rever nossa arrogância
intelectual. Vemos que uma série de concepções foi
inferida, pelos chineses, no campo das idéias, bem antes
do Ocidente. Não assumimos aqui que o Ocidente ficou
atrasado ou defasado em relação ao Oriente, mas na

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verdade, nossas Ciências tomaram um caminho
diferente, e nos dias atuais, quando se tenta resgatar ao
máximo a questão humana dentro da Filosofia e da
História, nos voltamos para o pensamento asiático como
um grande estudioso do assunto, com uma longa
tradição nas discussões do gênero. Mas, voltamos a
insistir: não há sistema melhor ou pior que o outro. Não
há superioridade de pensamento de uma sociedade para
outra.
As idéias (mesmo na visão de alguns autores
orientais, que, aliás, defendem esta postura) não são
uma exclusividade de uma cultura, mas pertencem ao
dito espírito humano, que se manifesta em todos os
lugares. Se uma leitura desta realidade aparece em
algum lugar antes de outro, isso só se deve ao contexto,
e ainda assim, sofre a ação, na sua análise, de uma série
de paradigmas culturais. Logo, todo este conjunto de
pensamentos está em interação constante com a
humanidade, não sendo privilégio de ninguém. O
próprio século VI a.C. dá mostras disso, quando vemos
o surgimento da filosofia grega, do budismo na Índia,
do aperfeiçoamento do hinduísmo e, finalmente, das
escolas chinesas. Não é válido também o argumento do
difusionismo antropológico, tendo em vista que esta
teoria só foi criada para justificar a ascendência do
Ocidente sobre o Oriente. Além disso, a variedade de
sistemas, e o tempo de geração entre eles foram muito
escassos para caracterizar uma distribuição de idéias de
uma cultura para outra.
Conseqüentemente, temos que admitir que os
sistemas orientais são tão válidos como os nossos, e se
tornam importantes na medida que ainda afetam o
desenvolvimento das sociedades, não somente na Ásia,

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como também em outras partes do mundo, para onde
estas populações têm migrado. Além disso, vivemos um
movimento recíproco de trocas culturais, devido a
processos como o de globalização, que nos permitem
vivenciar e experimentar caminhos dos mais diversos
tipos, vindos de todas as partes do mundo, com maior
facilidade. Trabalhar com a filosofia oriental é,
igualmente, demolir o muro do preconceito. Não
obstante as conceituações que ela pode nos fornecer,
temos que ter em vista que existe uma grande tradição
entre os pensadores ocidentais de recorrer ao
pensamento asiático como auxiliares em seus escritos
(Voltaire, Montesquieu, Schopenhauer, Nietzsche, Jung,
etc.), o que não nos torna, por conseguinte, tão distantes
de nossos equivalentes chineses e indianos. Na verdade,
as Ciências Humanas nestes países também tem se
valido de nossos métodos científicos para aprimorar os
seus.
Podemos concluir, portanto, que o pensamento
chinês (ou ainda, oriental) pode, e deve, na medida do
possível, ser estudado e utilizado como forma de
conhecimento pelo Ocidente, na medida em que oferece
um vasto instrumental para o desenvolvimento da
capacidade crítica humana. Ainda permite que nos
interemos sobre outras culturas diferentes das nossas, e
nos força a revisão de certos estereótipos, preconceitos e
paradigmas que são aplicados não só ao outro como
dentro de nossas próprias sociedades. São também
sistemas auxiliares (mas, bem lembrado, equivalentes)
aos nossos que, no entanto, nos colocam na discussão
sobre a ascendência das idéias, permitindo-nos compor
um sistema mais flexível de entendimento sobre o
mundo, na medida em que se apresentam como provas

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críticas de que é possível a elaboração, em qualquer
parte do globo, de idéias semelhantes. Sabendo disso
reconhecermos, sem má vontade, que muitas das
concepções apresentadas pelos chineses, neste livro, são
bem parecidas com as nossas: e podemos nos regozijar
ao perceber que, mesmo com as diferenças culturais,
existe realmente um espírito humano que açambarca a
todos nós de forma equânime, profunda e fraterna.

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Sugestões de Leitura
Nesta sucinta bibliografia, gostaria de apresentar
algumas sugestões de leitura, privilegiando o material
em português - com exceção de algumas outras obras
em língua estrangeiras que acredito serem bastante
interessantes.

Sobre o pensamento chinês e sua história, ver o clássico


O Pensamento Chinês, de Marcel Granet (Contraponto,
1997) e História da Filosofia Chinesa, de Max
Kaltenmark (Gradiva, 1982). Há um excelente manual
de história chinesa de Ricardo Joppert, Alicerce
Cultural da China (Avenir, 1979). Uma coletânea de
textos sobre pensamento asiático aparece no livro
Filosofia: Oriente, Ocidente (Cultrix-USP, 1978), nos
quais se destacam os artigos “história da filosofia
chinesa” e “o espírito do pensamento oriental” de Chan
Wing-tsit. Na redação original deste trabalhão não
utilizei (mas sugiro) o recém lançado livro de Anne
Cheng, Historia Del pensamiento chino (Bellaterra,
2003).

Sobre o I Ching, recomendo as traduções de Wilhelm


(Cultrix, 1988), Legge (Hemus, 2000) e do Padre
Joaquim Guerra (com o nome de Yi Keng, editado pelos
Jesuítas de Macau, 1984). Este último também publicou
uma tradução completa do Shujing com o nome de
Escrituras Selectas (Jesuítas de Macau, 1982).
Encontramos ainda parte do Shujing traduzido por Lin
Yutang no Livro Sabedoria da Índia e China (Pongetti,
1957).

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O dedicado padre Guerra ainda nos legou o
Quadrivolume de Confúcio (que contém as obras
principais da escola dos letrados, incluindo o Lunyu) e o
Livro de Mâncio (tradução completa dos textos de
Mêncio), ambos publicados em Macau em 1984. Uma
excelente versão do Lunyu é a de Anne Cheng (Ibrasa,
2000), e partes do livro de Mêncio também estão
presentes em Yutang, 1957. Uma boa introdução sobre
Xunzi pode ser encontrada no livro de Carmelo
Elorduy, Humanismo Político Oriental (BAC, 1972).
Existem muitas traduções do Daodejing em português,
mas poucas boas. Indico a de Richard Wilhelm (Cultrix,
1985) e a de Mario Sproviero (Hedra, 2003). Sobre
Zhuangzi, as melhores traduções são de Yutang, 1957 e
Burton Watson (Escritos básicos de Chuang tzu.
Cultrix, 1988). Uma tradução original e interessante é a
de Hammil & Seaton (Chuang tzu. Cultrix, 2000). Ver
ainda a coletânea de textos taoístas de Henri Normand,
Os Mestres do Tao (Pensamento, 1988), o texto de
Artur Walley El Camino y su poder (Kier, 1979) e o
bom manual de introdução Elementos do Taoísmo
(Ediouro, 1993) de Martin Palmer.

Sobre os moístas, legistas e nominalistas praticamente


nada há em português. Alguns trechos de Mozi foram
traduzidos em Yutang, 1957 e Shang Yang recebeu uma
tradução em português (Europa-América, 1999). Uma
boa fonte de textos é o livro Sources of Chinese
Philosophy, de Chan Wing-tsit (Columbia, 1960 - várias
vezes reeditado).

Para completar estas indicações, boas obras sobre


Confúcio e o Confucionismo são a de Raimond Dawson

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(Confúcio. FCE, 2000) e C. Jingpan Confucius as a
teacher (Beijing, 1990). Sobre História Chinesa, o
clássico A Civilização Chinesa, de Marcel Granet
(Ferni, 1979), o Mundo Chinês, de Jacques Gernet
(Cosmos, 1969) e A China Antiga, de W. Watson
(Verbo, 1969). Vale consultar também o texto de
Mircea Eliade & Couliano História das crenças e idéias
religiosas (Zahar, 1978). O Shiji (Recordações
Históricas, de Sima Qian) foi parcialmente traduzido
por Burton Watson sob o título Records of Grand
Historian (Columbia, 1993). O citado livro de Geertz é
Antropologia das Culturas (Zahar, 1978), e o artigo de
Raimond Panikkar, É a questão dos direitos humanos
uma noção ocidental? está na revista Diógenes,
(Brasília, 1988). Vejam ainda o texto de Eduard Said,
Orientalismo (Zahar, 1996), fundamental para
compreender para como o Ocidente interpreta o Oriente.
Lançados recentemente, os livros de François Jullien
Figuras da Imanência, O sábio não tem idéia e Tratado
da Eficácia são também excelentes estudos sobre a
filosofia chinesa.

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Confúcio e Laozi num relevo
em pedra da Dinastia Han

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