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ARS Fernando Carlos Chamas*


ano 13
n. 25 Origens das formas budistas

Origins of Buddhist forms

palavras-chave: As características de uma imagem de Buda são o resultado do processo milenar


Budas; mitologia; Oriente;
que uniu três fatores: as mitologias orientais mais antigas que o budismo, sua
artes; beleza.
capacidade de se adequar às crenças locais e as suas próprias reinterpretações.
Após o surgimento das primeiras estátuas que representavam o Buda histórico,
o ideal de beleza para um ser que alcançou a Iluminação baseou-se nas antigas
“ciências” orientais, predominantemente mentais e de energias sutis. Enquanto
a estética ocidental discutia as idealizações da arte com racionalidade, ignorando
um oriente “pagão e supersticioso”, as imagens budistas personificavam estados
mentais que o ocidente só cogitaria na sua modernidade. A arte budista transmite
o legado ancestral e imutável de chaves místicas da consciência e do equilíbrio..

keywords: The features of a Buddha’s image are the result of very ancient process that
Buddhas; mythology;
united three factors: the Eastern mythologies which are older that than
East; arts; beauty.
Buddhism, its ability of adapting itself to local beliefs and its re-interpretations.
After the emergence of the first statues representing the historical Buddha,
the ideal of beauty concerning a being who attained the enlightenment was
based on the ancient oriental “sciences”, predominantly mental and marked by
subtle energies. While the Western Aesthetics was arguing about idealization
in art through its rationality, disregarding a “pagan and superstitious East”,
the Buddhist images were embodying mental states that the West only would
regard in its modernity. Buddhist art conveys the ancestral and immutable

* Universidade de
legacy of mystical keys of consciousness and equilibrium.
São Paulo (USP).

Buda Rushana (盧舎那


仏, Vairocana Buddha).
Período Nara. Cerca do
ano 759. Laca e lâminas
de ouro. Altura: 304,5 cm.
Templo Tōshōdaiji, Nara.
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Ao estudar as imagens budistas japonesas somos levados por dois ca- FERNANDO CHAMAS
minhos bem claros. Um, que percorre as inúmeras imagens em templos do Origens das formas budistas

Japão, e outro, que busca a origem delas e de suas características. A bem suce-
dida difusão do budismo no Japão, a imigração de japoneses que continuaram
as suas crenças no exterior e Budas com fisionomia da etnia amarela fazem
pensar que o budismo nasceu lá. Porém, é o Japão que foi incluído na história
da arte budista e a contribuição artística e religiosa desse país ao budismo é
uma das maiores do mundo até hoje.
Focalizando a compreensão inicial dessa arte, acrescentam-se breve-
mente alguns dados históricos e religiosos.
Buda nasceu por volta de 563 a. C., no nordeste da Índia, mas sua etnia
provavelmente não era nativa. Sendo da casta dos guerreiros, os xátrias, su-
postamente também faziam parte da etnia dos arianos, povo de origem indo-
-europeia que invadiu o norte da Índia e escravizou os hindus nativos, de pele
mais escura. Os brâmanes estabeleceram o bramanismo, conhecido como
hinduísmo, impondo sua estética, mas também incorporando nela elementos
nativos ou pré-arianos como a flor de lótus.
Segundo histórias e lendas, o príncipe Gautama deixou seu palácio
para buscar a verdade e alcançou o estado de Buda, mais conhecido como
Iluminação (em japonês, satori), “o despertar da consciência”. Viveu até os
oitenta anos, e sua morte é conhecida como nirvana, que é “a libertação da
samsara”, a Roda da Vida1, episódios muito representados em esculturas e
pinturas. Tal transcendência só poderia ser atingida pelos ascetas brâmanes,
jamais por um guerreiro, e muito menos por um príncipe.
Até aqui, temos três camadas de representação desse estado búdico: a
da etnia, que representava uma aristocracia dominante, a do Gautama antes
do seu despertar, e a do Gautama após o seu despertar. Nada há que com-
prove uma mudança física sobrenatural de seu corpo com a Iluminação, e ele
mesmo rejeitava qualquer abstração nesse sentido. Basicamente, o estado de
Buda é tido como inexplicável e impossível de se representar em qualquer
forma de expressão visual. Obviamente, porém, por mais que suas primei-
ras formas mostrassem a sua presença imanente, como pelas suas pegadas
(bussoku-seki) ou pela árvore sob a qual despertou, a sua imagem humana
acabou tornando-se uma prática naquela cultura. Em meio à rica arte religiosa
e naturalista hindu, o não fazer estátuas de Buda já foi uma reação inicial
à cultura predominante, mas não ao seu interesse atávico em fisiognomia,
1. Em sânscrito: bodhi, nirvana
divindades e símbolos. Não se pode afirmar que havia uma regra budista que
e samsara. Em japonês, respec-
considerasse profana a criação de imagens, mesmo porque se acredita que tivamente, satori, nehan e rin’ne.
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ARS Buda seja uma das encarnações (avatares) de Krishna, por sua vez, Vishnu, da
ano 13 trindade sagrada do hinduísmo, ao lado de Shiva e Brahma2. O budismo já se
n. 25 havia dividido e sua corrente esotérica se fartou do esoterismo hindu. Foi esta
a corrente, a mahayana, que foi para o oriente, primeiro, deixando sua marca
no Tibete como budismo vajrayana, um sincretismo com a religião nativa
Bön. Depois, indo para a China, a Coreia e o Japão, sincretizou-se aos xama-
nismos locais, então suas religiões nativas, taoismo, no continente, e xinto-
ísmo, no Japão.Foi na região de Gandhara3, coração do Império Kusana
(30-375), parte superior do Rio Indo sob o domínio do rei Kanishka,
que a iconografia de um homem “santo” em formas de Buda gradual-
mente foi tomando forma em esculturas e monumentos, mostrando as
2. “Os adeptos do bramanismo
consideraram Buda como uma influências das etnias locais4.
encarnação ilusória de Vishnu
A região de Gandhara tinha sido por longo tempo um cruzamen-
(...)”, uma das condições
para que o budismo deixasse to de influências da cultura persa e depois grega (cerca de 560 a 300
pelo menos rastros na Índia.
a. C.). Já durante o reinado do imperador de Maurya, Ashoka (304-232
BULFINCH, Thomas. O Livro
de Ouro da Mitologia: (a idade a. C.), que amparou o budismo, a região tinha se tornado cenário de
da fábula): história de deuses
intensiva atividade de missionários budistas, mas ainda não se faziam
e heróis. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2002, p. 367. imagens de Buda, apenas imagens budistas como marcos históricos e
estupas (pagodes), onde se guardam alguns restos mortais de Buda.
3. Hoje, noroeste do Paquistão
e leste do Afeganistão No século I d. C., os governos dos impérios Kusana, que in-
entre os séculos I a.C. e 7
cluíam Gandhara, mantiveram contato com Roma e pode ser que te-
d.C.. O papel de Gandhara
na evolução das imagens nham começado a surgir em Gandhara as primeiras imagens budistas
budistas tem sido um ponto de
representadas à maneira grega, além de outras divindades comparáveis.
desacordo considerável entre
os estudiosos. Hoje parece Segundo a análise de Seiichi Mizuno, essa tese já é aceita: “Os olhos
mais claro que as escolas de
são graciosos, as linhas do nariz são claras, e uma linda boca. A veste
Gandhara e Mathura (Uttar
Pradesh, Índia) desenvolveram pesada é uma retratação realística e é ondulada ao redor do corpo à
independentemente suas
moda grega (...). O guerreiro Kong rikishi deriva de Hércules, os demô-
próprias características para
a representação de Buda em nios Yaksa dos demônios atlantes e o Rei Dragão de Tritão”5. Somam-se
torno do século I d. C., mas se
a isso o tamanho das estátuas, que tendem às dimensões colossais; as
influenciaram mutuamente.
vestes revestidas com lâminas de ouro; os ornamentos em ouro e pedras
4. THE BIRTH of Buddhist
preciosas; o pedestal; o trono; a coroa; os objetos pessoais e simbólicos
Images (“O Nascimento
das Imagens Budistas”). In: (símbolos de poder) nas mãos; e a expressão facial de majestade, que,
The East, v. 23, n. 5, Tóquio,
em conjunto com as características anteriores, expressaria a divindade
novembro, 1987, p.28-31.
suprema dos impérios que adotassem o budismo.
5. MIZUNO, Seiichi. Asuka
Gandhara conseguiu absorver as tradições antropomórficas perfec-
Buddhist Art: Hōryūji (“Arte
Budista de Nara: Hōryūji”). v. 4. cionistas da religião romana e representou Buda com uma jovem face apolí-
Nova York: Weatherhill – Visão
nea e vestes semelhantes àquelas das estátuas imperiais. A iconografia básica
da Arte Japonesa; Tóquio:
Heibonsha, 1974, p. 150-172. permaneceu sob o naturalismo indiano, com sua simbologia, considerada
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como uma das mais complexas e antigas do mundo; mas a estética greco- FERNANDO CHAMAS
-romana representou, inicialmente, um afastamento proposital da estética Origens das formas budistas

hindu e uma solução para os artistas que buscavam expressar uma perfeição
abstrata. Tudo isso, porém, seria repensado à medida que o budismo foi sen-
do empurrado para fora da Índia e foi se dirigindo para o extremo oriente.
A Índia e a China possuíam ciências muito antigas, cuja complexidade
ainda é estudase em suas consequências práticas relevantes. O budismo se
encontrou com a ioga e com o taoismo. Suas concepções foram fundamen-
tais para a criação artística, já que representavam as forças sutis da mente/
corpo e do homem/natureza. No taoismo, yin-yang são as forças opostas e
complementares da criação; na ioga, toda criação depende de uma postura
autoconsciente, pois a consciência precede o corpo. Naquela beleza apolínea
dos corpos dos deuses do Olimpo, a ação e a força estarão, segundo os artistas
orientais, para o yang, em oposição à beleza preocupada com a elevação da
mente, conforme a significação de yin. Se o corpo-yang está preocupado com
a perfeição e a imortalidade, o corpo-yin tem uma autoconsciência e se reco-
nhece efêmero, de uma natureza que não é perfeita, pois envelhece, adoece e
morre. Quanto à postura, cada gesto significará o movimento da energia sutil
a fim de mantê-la fluindo sem obstáculos. O budismo, pela sua ciência mental,
está sempre dialogando com essa constituição do ser. Mesmo em suas outras
formas, como na arquitetura e no design, o futuro estilo zen-budista se afas-
tará da crença na perfeição apolínea e tenderá para a perfeição isomórfica e
inacabada, o que para a arte greco-romana poderia ser vista como dionisíaca.
Houve, por parte da história da arte, desde o século XIX, uma grande
resistência cultural para analisar uma obra de arte oriental com tais perspecti-
vas. Existiu um meridiano de Greenwich virtual que também foi empurrando
6. “Until very recently, judged
para o oriente tudo que foi considerado pagão a partir da Índia. Este precon-
by western classical standards,
ceito parece mais diluído hoje, mas também toma o caráter de um modismo the many-armed Hindu gods
and goddesses were seen
sem profundidade. Trata-se “apenas” de meio mundo de influências diversas
as monsters, in other words,
que ainda carregam o estigma do paganismo e das suas monstruosidades irrational, contra naturam”
(MITTER, Partha. Western
demoníacas6.
misrepresentations of Indian
A arte oriental se desenvolveu dentro de um conceito de realidade que sacred art. Os equívocos
interpretativos do ocidente
o ocidente poderia chamar de fantástica e distante da sua visão de realismo.
sobre a arte sacra Indiana.
Algo do oriente que se aproxima disso é, por exemplo, o Buda do Paquistão, In: ALDROVANDI, Cibele Elisa
Viegas; OKANO, Michiko (org.).
esquelético, mas mesmo este sofre uma rejeição. Seria impossível dentro
Anais [eletrônico] / Encontro
de qualquer plano de poder dos clãs asiáticos aceitar um príncipe que virou Internacional de Pesquisado-
res em Arte Oriental: oriente-
mendigo asceta. O próprio Buda ensinou que as práticas de mortificação
-se: ampliando fronteiras. São
não levaram a lugar algum. Corpos saudáveis e quase obesos em tempos de Paulo: UNIFESP, 2014, p. 19).
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ARS pouco alimento poderiam melhor representar a estética financiada pelas aris-
ano 13 tocracias. São muito numerosas as imagens budistas em cavernas na China.
n. 25 O que acontece lá é uma identificação com a etnia amarela de seus deuses e
a observação fisiognômica baseada na energia sutil que percorre o corpo e a
natureza, prana no hinduísmo e chi no taoismo. “Buda vira chinês”.
No Japão, a aceitação dessas imagens estrangeiras dependeu muito
da crença de que seus deuses, os kami, estavam se manifestando na forma
de Budas. Por exemplo, o deus da guerra, Hachiman, foi representado como
um monge. As formas de deuses e guerreiros hindus sofreram poucas mo-
dificações simbólicas, e algumas formas assustadoras e sanhosas, prontas
para atacar, são comuns no panteão budista oriental, devido à ideologia de
proteção da nação por um exército sobrenatural.
Como se não bastassem todas as influências, o pesquisador Mori-
guchi Minoru7 diz que o Buda Miroku do templo Kōryūji, última imagem,
conhecida como o Buda Pensador, é uma referência clara ao budismo da Co-
reia, que teria sido, por sua vez, influenciado por hebreus do oriente médio,
que associaram o Buda Maitreya da Índia (japonês, Miroku) a um messias
que ainda estaria por vir.
Aconteceu que Buda foi realmente visto como um deus estrangeiro,
e, como a aristocracia se via como descendente dos deuses, também se viu
descendente não só de um Buda, mas também doutros milhares que foram
revelados pelo budismo esotérico. O panteão budista é especialmente nume-
roso, visto que também conta com entidades que se manifestam de várias
formas. Um tipo em especial na hierarquia desse panteão é aquele que vem
dos bodhisattvas e que representa todas as formas de compaixão. Para dife-
renciá-lo dos Budas8, ele é representado com muitos ornamentos e objetos
de poder espiritual.
A corrente mahayana arrastou, durante mil anos e por meio mundo
repleto de xamanismos locais mais ou menos conhecidos, suas concepções
7. MORIGUCHI, Minoru. The
Miroku Bosatsu of Kôryû-ji estéticas, até chegar ao Japão no século V. Não há como resumir todas as in-
and Shôtoku Taishi (“O Miroku
fluências exercidas sobre a arte budista. Em pesquisas específicas, caracterís-
Bosatsu de Kōryū-ji e Shōtoku
Taishi”). In: The East, v. 27, n. ticas diversas podem ser rastreadas até suas possíveis origens mais antigas,
3, Tóquio, setembro/outubro,
mas a elas também se somam as japonesas. Porém, pode-se fazer uma abor-
1991, p. 10-16.
dagem geral sobre um tipo de beleza oriental a partir de algumas mudanças
8. A diferença entre os dois é
que sofreram tais imagens desde o aparecimento dos Budas de Gandhara.
hierárquica. Há Budas Nyorai,
que passaram pelo nirvana, As estátuas iniciais eram feitas de barro e em altos e baixos-relevos
e os Budas bodhisattvas, que
nas paredes de montanhas. Depois, passou-se a utilizar o bronze, madeira e
adiam o nirvana e agem
como auxiliares. laca. Pode-se pensar tanto na disponibilidade da matéria-prima quanto no
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desenvolvimento técnico para a realização de um grande número de estátuas FERNANDO CHAMAS
e detalhes, mas se deve acrescentar um complexo sentido alquímico em rela- Origens das formas budistas

ção à hierarquia dos Budas e divindades, bem como no efeito da luminosida-


de natural sobre as imagens. Por exemplo, os Nyorai, que são os Budas mais
elevados, são mais idealizados, feitos de madeiras sacralizadas por rituais
específicos, folheados a ouro e quase sem cores. Outras divindades são mais
individualizadas e expressivas, e poderiam ser feitas de barro com aplicação
de cores. Tal tendência sofre poucas variações.
As proporções geométricas gerais de uma imagem do corpo de Buda
não são menos abstratas do que a dos deuses romanos. Uma delas é que as
mãos para baixo de um Buda em pé devem ultrapassar os joelhos.
Um corpo de Buda, humano ou estátua, deveria ter 32 características
básicas e 80 secundárias, nem todas representáveis em escultura ou pintura.
Além disso, compondo o cenário geral, há muitos objetos simbólicos com
suas formas e cores características. Essa riqueza plástica e simbólica em for-
mas e cores talvez seja mais presente nos tangkas do budismo tibetano. São
9. Sugerem um legado de
características que foram se solidificando como que para facilitar aos artistas
imaturidade da habilidade
o padrão de uma linguagem abstrata que deveria ser transmitida sem qual- dos artistas durante o estágio
de formação da arte de fazer
quer mudança e sem a interferência de qualquer traço individual do artista.
imagens. Em outras palavras,
Isso vem do princípio de que o esforço em copiar desenvolve não somente a os primeiros escultores
não teriam sido capazes de
técnica, mas faz o artista penetrar na mensagem oculta da obra inicial de um
representar dedos individuais,
mestre, fazendo dessa arte um caminho alternativo de devoção ao sentido posteriormente moldados
sobre fios de cobre.
criativo da arte, e não apenas à doutrina que ela transporta.
Dentre as características mais visíveis, os Budas devem ter braços, 10. Buda, seus ensinamentos
e a comunidade budista. São
pernas e dedos compridos. Entre os dedos pode haver membranas9. As três
chamadas de sandō, mas
linhas do pescoço representam as três joias do budismo10. Sua pele é doura- também podem ser duas ou
nenhuma.
da, e, para tanto, a estátua podia ser folheada a ouro. Todos os pelos e cabelos
são azuis e em formas espiraladas, uma referência ao tipo étnico de cabelo 11. O penteado sempre foi uma
preocupação na estratifica-
revelado depois que Gautama raspou o seu para se tornar monge11. Sua aura
ção social do leste asiático,
pode ser representada por halos feitos geralmente de metal martelado e re- sobretudo no Japão. Outro tipo
é o atado no alto da cabeça. Ca-
cortado. Pode ser um halo apenas atrás da cabeça ou do corpo inteiro, ou
belos frisados são comuns em
dois, um para a cabeça e outro para o corpo inteiro. Essa é única parte “invi- várias culturas: grega, etrusca,
romana, persa.
sível” representada plasticamente. Os punhos roliços, expressos por meio de
uma única dobra, são comuns durante a primeira metade do período Heian 12. HAYAKAWA, Monta. Expla-
nation of the cover illustration.
(794-1185)12. O peito do pé e as axilas são cheios, e na sola dos pés há com
Japan Review. In: Bulletin of
frequência a marca da Roda da Lei, como visto no bussoku-seki, entre ou- International Research Center
for Japanese Studies, Quioto,
tros sinais.Essas características são originalmente evidentes no corpo de
Nichibunken. v. 1, 1990 e v. 7,
um Rei Sagrado, chamado Cakravartin, da mitologia hindu, e já eram 1996, p. 199.
111
ARS aparentes nas imagens budistas de Gandhara. A proeminência no topo
ano 13 da cabeça é o nikkei13. Pode ser a estilização de um coque de cabelos
n. 25 grossos e ondulados, um penteado sacerdotal remoto. As proporções
de um quadrado imaginário do alto do nikkei até a linha dos ombros é
replicada desta linha até as pernas em posição de lótus, com cada peito
do pé sobre a coxa oposta, resultando em uma forma total triangular.
No centro do nikkei há uma joia mística. O sinal saliente e circular
acima do nariz, chamado byakugō, entre as sobrancelhas, encontra-
-se representado como três cabelos curvos e brancos e, às vezes, esses
cabelos são pintados ou feitos com pedaços de quartzo, um terceiro
olho para “aquele que tudo vê”. Alguns Budas têm finas linhas negras
para a barba e o bigode, já desbotadas em muitas imagens. Esse bigode
também é visto em Kannon, uma entidade “feminina”, uma caracterís-
tica de príncipes indianos como Gautama. Apesar dos longos lóbulos
das orelhas, que significam “aquele que tudo ouve”, nenhum deles usa
brincos pesados, como se deveria esperar de uma influência indiana14.
Todos os Budas e bodhisattvas são representados sobre flores de lótus
como assento ou como piso, em pé, ou uma flor para cada pé, pois é a flor que
lhes representa o potencial para pureza absoluta e a perfeição da sabedoria.
Na cosmologia budista, o universo e os Budas surgem de um lótus. Grandes
assentos de flor de lótus podem ter uma ou mais sílabas em sânscrito, que são
mantras para invocá-los.
Outras entidades podem montar em animais como cisnes, elefantes,
pavões, e até serem transportados em folhas, nuvens e animais mitológicos.
Cada animal representa também um aspecto do poder da entidade e o modo
de sua aparição no mundo.
A gestualidade está em todo corpo, e não apenas nas mãos. Posições
comuns como estar deitado, sentado ou em pé têm significados específicos,
13. É tida como a divinização
pois representam não apenas um hábito ou uma linguagem corporal incons-
da parte superior da cabeça
de Buda. É a representação ciente e universal, mas conhecimento psicofísico e hierárquico. O autoco-
do estado de Buda quando
nhecimento se revela de modo que no corpo circulam energias físicas sutis
alcançou a concentração da
mente e entrou em meditação, que devem fluir harmoniosamente, e que, portanto, manifestam-se de forma
e por isso, naquela hora houve
natural em seres iluminados. Além de ser um tipo de exercício, evoca mo-
uma grande quantidade de
energia no chakra (centro de mentos da vida de grandes iogues, e também de Buda. Comumente, os gestos
força) da cabeça.
das mãos parecem mais expressivos e são numerosos. São os mudras. Os
14. Essas orelhas grandes mais vistos são os da meditação, do apaziguamento ou saudação e da doação.
também têm relação com as
A ponta de cada dedo e cada falange, em se tocando, podem gerar subitens da
orelhas de elefantes, símbolos
de sabedoria. mensagem, além da altura do gesto em relação ao corpo.
112
Um sinal marcante que aparece no corpo de Buda, e que foi historica- FERNANDO CHAMAS
mente desvirtuado15, é o manji16. No budismo, este símbolo se chama Manji Origens das formas budistas

ou Tokuji e significa “as dez mil virtudes do estado de Buda”, por isso man
(“dez mil”) e ji (“letra”) ou toku (“virtude”), tornando-se um dos 32 sinais
auspiciosos mostrados nos pelos do peito, da perna e no cabelo de Buda.
Acredita-se que se baseia num cabelo espiralado do peito de Vishnu17.
No esforço artístico em representar deuses e Iluminados, os esculto-
res e pintores deveriam exibir seres cuja forma física significasse o equilíbrio
total da energia em seus corpos e em todos os detalhes. Não há indícios de
que esse conhecimento fazia parte das filosofias gregas e romanas quando
desejaram que os corpos de seus deuses fossem explicitamente perfeitos.
Noutro exemplo, os Budas do jainismo normalmente estão nus. Não com-
partilham a ideia de ocultação dos órgãos sexuais, próprio ao naturalismo da
Índia. Também, apesar de o Buda histórico ter morrido com 80 anos, ele é
sempre representado jovem ou adulto, nunca idoso.
Neste breve histórico da estética da arte budista, ressalto a comple-
xidade das ciências antigas do oriente e sua relação com a cultura judaico-
-cristã.
O entendimento dessas formas sagradas orientais exige, antes de tudo,
admitir que elas se basearam em uma “ciência mental” complexa, em que a
responsabilidade do ser consciente é sempre um requisito, pois só ele é o
“manipulador da forma”. Pode ser que os ocidentais não consigam ver o de-
senvolvimento de tão complexa concepção antes das filosofias estéticas oci-
dentais que o oriente só conheceria do final do século XIX. Enquanto isso, na
Europa, em resumo, a arte buscava mais expressividade. É interessante notar
que a recém-nascida psicanálise tenha ajudado a desvendar esse valor, sem
negar os ainda “estranhos” e despretensiosos sopros do pensamento oriental,
e, sem querer, revelando um “atraso” em relação às motivações mais subje-
tivas da arte ocidental até hoje. A “dimensão antropomórfica” não deveria
corresponder imediatamente à forma humana como se poderia pensar, mas
a uma forma apenas apta à emancipação espiritual. Supõe que noutras Eras,
foram comuns formas zoomórficas e zooantropomórficas, vistas como muito
distantes de qualquer concepção surrealista ou “demoníaca”. Eram formas
para a manifestação de uma consciência em evolução.
O Zen, com sua estética que podemos, com relativa ousadia,
chamar de “minimalista”, descartará qualquer idealização da forma,
aparência ou fisionomia para representar uma condição física de pureza
espiritual, praticamente rindo de tudo isso, da citada forma dionisíaca.
113
ARS Se toda a realidade é apenas uma ilusão, inclusive a personalidade,
ano 13 todo o conceito de beleza inventado para os seres iluminados também
n. 25 é uma máscara efêmera. No Zen ela se quebra totalmente, voltando-se
ao tempo da beleza irretratável do estado de Buda.

Bibliografia complementar
FACULDADE DE BELAS-ARTES DE TÓQUIO. Gandhara and Silk Road Arts:
Hirayama Ikuo Collection (“As Artes de Gandhara e da Rota da Seda”). Tóquio:
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(hākenkuroitsu) com os braços
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Símbolos”). Tóquio: Sanseidō,
1985, p. 238. 江川清青木隆  Fernando Carlos Chamas possui Graduação em Letras e Mestrado em Escultura
平田嘉男 「記号の事典」 東 Budista Japonesa pelo Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura
京 三省堂 1985. Japonesa do DLO-FFLCH-USP, com a orientação da Profa.. Dra.. Madalena Hashimoto, e
é Doutorando em Arte Zen-Budista pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
Artigo recebido em 29 de
Abril de 2015 e aprovado da ECA-USP, com a orientação do Prof. Dr. Marco Giannotti e coorientação de Profa..
em 11 de Maio de 2015. Dra.. Madalena Hashimoto.

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