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Budismo vajrayana

7.1. Shamata e vipassana

Por que a meditação é importante para a liberação,


como esse processo ocorre nos praticantes? O que é
shamata impura e pura?

A liberação é a ausência completa de aflições mentais, e


iluminação é a liberação mais o revelar completo das
qualidades naturais da mente.

Meditação é habituar-se, acostumar-se. Acostumamo-nos


com várias coisas, com a prática da virtude, por exemplo.
Percebemos que podemos querer ser virtuosos, mas não
temos poder sobre nossa mente. Ao criar um hábito mental de
virtude através da prática formal coerente, torna-se cada vez
mais fácil praticar a virtude. Ao percebermos que a raiz da
felicidade é a virtude, e a raiz da virtude é uma mente
cultivada, obediente, flexível — então percebemos a
necessidade da prática formal.

Também a sabedoria, se queremos ver as coisas como elas


são, precisamos refinar o instrumento epistêmico, que é a
nossa mente. Nesse caso a meditação é como colocar uma
câmera num tripé, regular o obturador, a exposição e a luz
para tirar uma boa foto.

Reconhecer que estamos aprisionados pelos nossos hábitos e


profundamente imersos em autoengano é a primeira etapa.
Daí nos engajamos na prática formal que doma a mente,
exatamente como se doma um animal selvagem — e também
na prática que depura e regula o instrumento epistêmico,
como alguém que regula uma câmera. Estas são as práticas de
shamata, que deixam a mente focada, flexível (obediente) e
nítida.

A prática de shamata começa com um objeto, o que é


chamado de shamata impura. Depois, para uma ainda maior
flexibilidade da mente, o objeto deve ser abandonado, e isto é
shamata pura. Na shamata pura podem, ocasionalmente,
naturalmente acontecer lampejos de reconhecimento do
estado natural. Nesse caso a pessoa passa a cultivar
diretamente o estado natural. Caso ela queira acelerar e
garantir esse reconhecimento, ela se engaja nas diversas
práticas de vipassana — que é como investigar ("tirar fotos"
de) determinados objetos relevantes, tais como os agregados
(forma, consciência etc.), ou a prática de koan, ou as práticas
do estágio do desenvolvimento e consumação do vajrayana,
ou certas práticas avançadas de mahamudra ou dzogchen.

De toda forma, o objetivo é o cultivo do próprio estado


natural, que é livre de aflições mentais e manifesta
naturalmente todas as qualidades. Quando o cultivo é
desnecessário, porque o estado natural simplesmente é
reconhecido como auto-ocorrente e incessante, atinge-se o
não atingir, o estado de não meditação, que é a prática dos
Budas.

É muito interessante perceber, logo nas primeiras meditações,


o quão longe e o quão perto estamos de um Buda. Basta a
pessoa começar a sentar, e se relacionar com um professor,
que ela começa a ver claramente e até com um tanto de ironia,
esse afastamento-proximidade. Sem cair nos extremos do
eternalismo e niilismo, "ah, isto não dá, é muito difícil" ou
"ah, isto não precisa, já está tudo pronto", ela simplesmente
continua na prática, e toda vez que ela estiver prestes a
desistir ou achar que está lá, ou bem próxima, é só ela
conversar com o professor e voltar ao caminho do meio, livre
dos extremos.

O que seria realizar ou atingir shamata?


Permanecer por pelo menos quatro horas ininterruptas sem
distração, sem torpor ou agitação sutis — que são coisas que
por si só levam alguns meses ou anos de prática para entender
e perceber. Quando começamos a fazer shamata, demoramos
normalmente algumas dezenas de sessões para reconhecer o
torpor e agitação grosseiros e entender que perdemos o foco
em alguns segundos. Ao praticar shamata, desenvolvemos
progressivamente a clareza, estabilidade e vigor desse foco.
Quando ele atinge um estado ideal, atingimos shamata, e
então a prática de vipassana se torna uma possibilidade bem
mais real.

Digamos que eu queira atingir o estado de shamata.


O que você sugere que eu faça? Um retiro longo?
Prática na vida cotidiana? Como, aqui no Brasil,
posso tornar isso possível?

Procure um professor qualificado. Em geral, não se busca


atingir shamata como um objetivo solto, mas sim como
coadjuvante no caminho budista. Com certeza a prática
começa com pouco tempo e prática regular e, essencialmente,
para realizar shamata, vai ser necessário um retiro
relativamente longo — mas isso após alguns anos
transformando a prática a ponto dela ser produtiva em retiro.

Apenas com prática na vida cotidiana não vai ser possível


realizar shamata, mas com certeza sem essa prática, não vai
ser possível sequer a prática que leva a shamata.

Qualquer item desses é possível no Brasil, mas para quem


quer realizar shamata, como alguém que quer ser vitorioso
numa olimpíada, viajar é o menor dos problemas — se for
necessário viajar.

Quantos anos demora pra uma pessoa realizar


shamata?

Isso depende muito do carma individual, a pessoa já pode ter


praticado muito em vidas passadas, por exemplo. Alguns
professores falam em 50.000 horas, em média, de prática.
Praticando 12 horas por dia, dá uns 12 anos de retiro. Ou duas
horas por dia, todos os dias, mais um retiro de um mês por
ano, todos os anos, de 11 horas de prática por dia, por 50
anos. Porém, é bom lembrar que Shamata não é uma prática
essencial para se atingir a iluminação.

É possível atingir shamata progressivamente? Ou


seja, através da pratica de 1 hora por dia, depois de
algum tempo, é possível atingir shamata sem
precisar ter ficado 4 horas sem perder o foco?

Você não entendeu. O resultado de shamata são as quatro


horas de foco. Você pode fazer uma hora por dia por algumas
décadas ou vidas e atingir isso, ou pode levar muito mais
tempo. Depende do volume de prática que você fez em outras
vidas e de quão ética é essa vida e suas vidas passadas.
Normalmente, pelo menos 50.000 horas de prática são
necessárias para atingir shamata. Atingir shamata significa
que você ficou quatro horas em foco, não que praticou por
quatro horas ininterruptas. Praticar por quatro horas é muito
fácil. Normalmente você vai precisar de muitos anos de
prática ininterrupta para progredir em shamata. Isso não
quer dizer que uma hora, ou 15 minutos, ou 5 minutos por dia
não ajudem. É higiene, é como fazer exercícios todos os dias,
ou 3 vezes por semana. Você não vai ser um atleta olímpico,
mas você vai ter uma vida mais feliz e saudável. Para realizar
shamata você, por outro lado, provavelmente precisará de
uma constituição cármica boa (como um atleta, que precisa
um físico razoavelmente bom para começar) e a dedicação
equivalente a de um atleta olímpico ou de um pianista de
concerto internacionalmente famoso: ou seja, você vai
precisar dedicar esse tipo de energia, tempo — dedicação
mesmo — à prática espiritual. São esses os praticantes que
chamamos de iogues, aqueles que tem uma dedicação
apaixonada e intensa a muitas horas de prática por dia, até 14
horas de prática, por vários anos consecutivos (50 anos, por
exemplo, como um professor que esteve no Brasil em 2009,
Wangdor Rinpoche). Isso não quer dizer que nossos esforços
sejam inúteis, pelo contrário, eles nos ajudam nessa vida e em
vidas futuras, e eventualmente realizaremos shamata. Mas,
nessa vida, sem uma dedicação de várias mil horas de prática,
é impossível, ou pelo menos extremamente raro. O próprio
Buda fez prática ininterruptamente por seis anos.

Alguns professores ocidentais se perguntam se algum


ocidental já realizou shamata. Eu seria otimista, talvez haja
uma meia dúzia de ocidentais que realizaram shamata até
hoje.

Qual a diferença entre shamata impura e shamata


pura?
Shamata impura é com foco em um objeto, shamata pura é o
mero repousar da mente em foco, sem objeto.

E Vipassana?

É como você usa esse foco, isto é, em certas investigações que


vão levar ao reconhecimento da vacuidade.

Qual a diferença entre shamata pura e vipassana?


Sempre que leio sobre vipassana me parece o
mesmo que shamata pura.

Não são a mesma prática. Há formas de vipassana, por


exemplo, o estado do desenvolvimento no vajrayana, que você
faz com base em shamata impura. O estado de consumação,
por outro lado, é uma prática vipassana que você faz com base
em shamata pura.

Shamata, pura ou impura, é apenas uma prática construída,


preliminar. Quando você obtém o estado de shamata, sendo
ele puro ou impuro, a partir dele você pratica o "insight
penetrante" na natureza das coisas. No caso da shamata
impura, na natureza de um fenômeno particular, no caso de
shamata pura, a natureza incondicionada da mente e da
realidade, que faz da shamata pura uma preliminar para
prajnaparamita, mahamudra e dzogchen. Há mais de um
método também para chegar em shamata (ao menos quatro
horas ininterruptas, a palavra se refere ao resultado da
prática, não à prática) pura ou impura. Nós em geral
chamamos o método para chegar em shamata de shamata
(seja ele impuro ou puro), mas deveríamos dizer "estou
praticando o método para atingir shamata", em vez de
"praticando shamata", que é o resultado da prática. Nesse
sentido, shamata impuro é muitas vezes uma preliminar para
shamata puro, embora algumas pessoas possam praticar a
forma pura para obter shamata, isto é, não necessariamente
usar a shamata impura como uma preliminar de shamata
pura. Algumas pessoas também não precisam usar nenhum
tipo de prática de alcançar shamata para penetrar em
vipassana, mas isso é bem raro. São pessoas que
possivelmente treinaram em shamata em vidas passadas, ou
que tem os canais abertos por questões cármicas (bom mérito
em excesso).

A prática de shamata é pré-budista em ambos os casos (pura,


impura). A prática de vipassana é propriamente budista, e é
ela que permite o reconhecimento da vacuidade. A prática de
shamata pura pode produzir, por exemplo, o mero
renascimento no reino dos deuses da não forma, ou até
mesmo no reino animal. Enquanto que a shamata impura
pode ser usada até mesmo para praticar desvirtude, como dar
um tiro certeiro na caça. Usar a realização em shamata (pura,
impura) na direção do darma do Buda é praticar as inúmeras
formas de práticas sabedoria (vipassana) com base nessa
estabilidade (com objeto, sem objeto particular). Mas, do
nosso ponto de vista, podemos considerar a realização de
shamata impura tão rara, mesmo ela, que é um objetivo
bastante nobre. Em torno de 50.000 horas de meditação são
necessárias, para a maioria das pessoas.

Ainda não ficou clara pra mim a diferença entre


shamata pura e vipassana.

Shamata pura é shamata sem objeto. Vipassana é a meditação


que produz sabedoria, reconhecimento da vacuidade. Uma
pessoa com luminosidade, clareza e estabilidade e sem um
foco específico não necessariamente reconhece a natureza da
realidade. Pode acontecer espontaneamente, em alguns
praticantes — e essa prática seria chamada vipassana, quando
houvesse o reconhecimento. Para a maioria de nós, com
luminosidade, claridade e estabilidade, sem um objeto, ainda
assim é preciso um método adicional, que abandona a fixação
nessas três qualidades — que podem levar a renascimento no
reino do desejo, forma e não forma — e leva ao
reconhecimento da natureza da mente. Praticar alguma
vipassana também não requer necessariamente shamata.
Uma pessoa que tenha mérito, sem nem mesmo praticar
shamata, quanto mais realizar, pode receber uma instrução
essencial e penetrar uma prática de vipassana diretamente.
Chama-se liberação sem meditação.

Uma pessoa pode praticar vipassana a partir de shamata


impura também. Por exemplo, se o objeto de sua shamata é o
seu corpo, ela pode vir a reconhecer a vacuidade do corpo
através da prática de vipassana com o objeto que se tornou
estável na prática de shamata. A maior parte das práticas de
vipassana ensinadas são embasadas num objeto — você
começa reconhecendo a vacuidade de um objeto. Depois você
pode vir a reconhecer a vacuidade de outro objeto, e assim por
diante. A vipassana no hinayana vai produzir o
reconhecimento da ausência de um eu, a vacuidade de uma
pessoa. É uma pequena vacuidade, uma pequena sabedoria.
Outras práticas de vipassana embasadas no mahayana vão
produzir sabedoria no sentido mahayana: vacuidade de todos
os fenômenos. Mas a pessoa não precisa começar a prática
com a ausência de objeto, ela pode fazer com o objeto e daí
abandonar o objeto e ficar só com o foco. Então quando ela se
engaja no reconhecimento da realidade, vacuidade, aí
chamamos essa prática de vipassana. Enquanto estamos
falando de manter a mente em paz, estável e acordada — com
grande nitidez — isso é apenas shamata.

Quais são os 10 estágios da meditação?

São 9 estágios para atingir shamata e um estágio de união de


shamata com vipassana. 1. colocar o foco no objeto, sem
continuidade; 2. foco com alguma continuidade; 3.
capacidade de retornar ao foco perdido imediatamente; 4.
estabilidade no foco com torpor e agitação sutis; 5. com
torpor extremamente sutil pela fixação no objeto; 6. com
agitação extremamente sutil, uma "coceira" para abandonar o
objeto; 7. esforço na estabilidade completa, sem nem mesmo
perturbação extremamente sutil; 8. estabilidade completa
com pouco esforço; 9. estabilidade completa sem esforço:
estado de shamata; 10. união com vipassana.

Sem um professor, as três primeiras etapas são bastante


difíceis de entender e aplicar, e as demais etapas são
basicamente impossíveis de se implementar.

Sobre vipassana: Como posso reconhecer a


vacuidade através de uma análise? A experiência de
vacuidade não é reconhecida somente em um estado
de não mente, de pura compenetração?

Muitas vezes começa-se estudando a vacuidade de um ponto


de vista intelectual, então a pessoa parte para a investigação
empírica, através da meditação. Existem métodos e
ensinamentos que são aplicados em prática, após a pessoa ter
alcançado shamata (um mente calma e focada sem distração
por algo como quatro horas ininterruptas). O reconhecimento
direto da vacuidade também é um cultivo.

No zen algumas vezes se usa a expressão "não mente", mas


não sei o que isso quer dizer, e nunca ouvi ensinamentos
sobre isso. Pode ser que seja algo como shamata pura, sem
foco particular. Pode ser que seja a experiência de não
dualidade do reconhecimento ininterrupto da vacuidade, o
resultado da prática de vipassana. "Pura compenetração" não
sei o que é. No zen a investigação intelectual não é o foco, mas
há métodos variados, e principalmente o relacionamento com
o professor. A prática de zazen pode ser uma forma de
vipassana, ou pode ser shamata pura ou impura. Isso vai da
capacidade da pessoa e do tipo de ensinamento. Koans são
uma prática vipassana também, mas nem todas as formas de
zen utilizam koans.

A meditação analítica é a mesma vipassana?


Pode ser forma de vipassana. Através de shamata, a pessoa
pode destrinchar um fenômeno qualquer (seu corpo, seu
sentido de gustação, um objeto no campo visual, algo assim)
e, não encontrando nenhuma base inerente no objeto, ele
reconhece a vacuidade. Se for um processo meramente
intelectual, com uma base epistêmica empírica muito instável
e sem muita nitidez, o resultado é um reconhecimento
intelectual da vacuidade — o que ajuda, mas é uma espécie de
remendo. Se há uma base através de shamata, e o
reconhecimento é totalmente empírico, sendo que por
"análise" se está referindo a observar o objeto diretamente em
todas as suas facetas, e reduzindo cada uma ao
reconhecimento da vacuidade, nesse caso pode haver uma
realização da vacuidade. A palavra "análise" é ambígua,
portanto. Pode-se chamar ambas as coisas de vipassana, no
entanto, sem realização de shamata, vipassana é, no final das
contas, um remendo temporário. Ou pode-se escolher chamar
de vipassana apenas a prática que produz a realização de
vipassana, a sabedoria, e portanto análise no sentido
empírico.

Qual a relação entre shamata e vipassana e o nobre


caminho óctuplo?

Shamata é uma prática ligada essencialmente ao sexto passo,


e vipassana ligada ao sétimo passo; o que não quer dizer que a
pessoa precise atingir perfeição nos cinco passos anteriores,
ela precisa ter uma prática suficiente dos passos anteriores de
forma a poder sustentar alguma prática de shamata.

Mantenho a ideia de que praticar as seis perfeições


ou o Nobre Caminho Óctuplo é por si só
"transformar a vida em uma prática de meditação".
O que você acha disso?

Sim, mas isso inclui, para a esmagadora maioria das pessoas,


prática formal. E prática formal intensa chama-se "retiro".
Então podem existir casos de pessoas que já fizeram muitos
retiros em vidas passadas e que não precisam tanta prática
formal nessa vida. Mas é comum a pessoa usar esse tipo de
conceptualização como desculpa para não fazer prática
formal.

Basicamente é correto chamar o sexto passo e a quinta


perfeição de "prática formal" mesmo, isto é, as várias práticas
de prostrações, montar altar, sentar para recitar sutras,
meditar etc., que tem um início, meio e um fim, e que são
feitas num ambiente protegido, artificial, como uma sala de
meditação. Se a pessoa não integra a prática formal com a
vida cotidiana, isso é um erro, e o oposto também é um erro.

Em geral, para iniciantes como eu, a prática acontece mais no


ambiente formal do que no ambiente cotidiano, e o ambiente
formal precisa ser bem protegido, por exemplo, é mais fácil,
no início, fazer prática em grupo. É possível até generalizar
que alguém que não faça prática em grupo por vários anos
antes de tentar a prática solitária está muito provavelmente se
autoenganando e não está praticando coisa alguma. Depois, a
pessoa sempre deve tentar fazer uma prática integral, isto é,
para iniciantes, nunca se separar do estado de meditação, 24h
por dia, e para praticantes avançados, nunca se separar de um
estado natural, o estado de não meditação (meditação sem
esforço), por 24h por dia. Porém, sem prática formal, muito
provavelmente a pessoa nem mesmo saiba o que é
"meditação", e a prática formal serve, sem dúvida para que a
pessoa consiga integrar, 24h por dia, aqueles resultados que
obteve num tempo protegido artificial (1h, 5h, 3 anos, retiros,
sessões de prática) na vida cotidiana. Pessoas que de cara
dizem "prática formal é desnecessária" estão apenas se
autoenganando.

Caso a pessoa se engage no Nobre Caminho Óctuplo,


ainda assim será necessário fazer um retiro longo
para atingir shamata? Ou naturalmente poderá
ocorrer realização do shamata, já que está se
praticando o caminho óctuplo?

O sexto passo no Nobre Caminho Óctuplo implica prática


formal. Se a pessoa quer avançar rápido (numa vida, por
exemplo) em prática formal, ela precisa fazer um retiro.
Do contrário a pessoa pode fazer prática formal ao longo de
muitas vidas. É um retiro mais espaçado.

Agora, sem prática formal, nesta vida, só para quem já fez


muita prática formal em outras vidas. O que é extremamente
raro. Nesse caso poderá ocorrer uma "realização espontânea",
sem muita prática formal. Mas em geral não podemos contar
com isso.

Seria possível alcançar shamata apenas fazendo um


retiro longo, sem se envolver com o resto da pratica
budista como a prática de perfeições ou o Nobre
Caminho Óctuplo?
Sim, mas isso não produz o resultado do caminho budista, só
a realização de shamata. Mesmo os hindus praticam shamata,
e atingem realização de shamata, isso não quer dizer que eles
pratiquem o nobre caminho (em todos os seus aspectos — já
que moralidade, por exemplo, e modo de vida correto, é uma
prática comum a muitas formas de hinduísmo).

Shamata não é o resultado do caminho budista. Shamata é um


resultado muito menor.

Alguns autores dizem que são necessárias cerca de 50.000


horas de prática para realizar shamata (que é muito menos
que a iluminação, o nirvana, ou mesmo a moksha hindu). Isso
em média, porque não se sabe o quanto de shamata já se
praticou em vidas passadas. Uma pessoa muito rara pode não
precisar, outra pessoa pode precisar muito mais. 50.000
horas podem ser realizadas em menos de 12 anos de prática, é
só o retiro ser mais intenso.

Por outro lado, é evidente que todo o resto do caminho


budista é coadjuvante na realização de qualquer parte desse
caminho. Então a sua prática de perfeições vai ajudar sua
prática de shamata. Em especial, a prática de moralidade
ajuda a prática de shamata — mas essa não é uma prática
particularmente budista, nem é todo o resto do caminho
budista (isto é apenas shamata e moralidade não vão produzir
iluminação).
Seria possível alcançar naturalmente o shamata,
sem um retiro, se a pessoa fizer correta e
completamente a pratica budista das 6 perfeições
ou do Nobre Caminho Óctuplo.

A quinta perfeição e o sexto passo do nobre caminho óctuplo


são a realização de shamata, sem a realização de shamata a
pessoa não atinge a sexta perfeição ou o sétimo e oitavo
passos.

É claro que, com alguma realização de shamata (não total), já


é possível fazer alguma prática (não total) dos passos a seguir.
A maioria dos praticantes está nesse caso, e eles, se tiverem
méritos, vão poder acumular mais horas de prática formal em
vidas futuras — mas é bom não pensar que se pode deixar
para depois, porque a impermanência pode interceder, e a
pessoa pode perder os méritos de práticas em vidas
passadas... um momento de raiva corta várias vidas de boas
ações, é o que Shantideva disse no Bodhicharyavatara.

O que é a Alayavijnana?

"Consciência-depósito" ou "consciência-armazen", uma das


oito consciências postuladas pelos cittamatrins e yogacharas.
Ela é a base na qual o carma "se acumula", é impermanente
(mutável, embora dure mais do que uma vida). Os
madhyamikas aceitam a noção meramente como um método
didático.

Na prática de meditação, quando se obtém certa estabilidade


próxima de shamata, se obtém acesso a este "substrato da
consciência", que é pessoal mas mais amplo do que a pessoa
nessa sua vida. Algumas pessoas erroneamente, quando
atingem esse estado, acreditam estar próximas da iluminação,
porém alaya é apenas um pouco mais antiga e espessa do que
nossa consciência cotidiana, não é um âmbito de sabedoria.

Quais são os seis superconhecimentos? Como


conseguí-los?
São poderes mágicos tais como a lembrança de vidas
passadas, ler a mente dos outros, poderes mágicos em geral,
ver e ouvir coisas distantes no tempo e no espaço, e dissipar
as contaminações da mente. Obtêm-se tais poderes através da
prática de shamata. Eles são úteis para se poder ensinar o
darma. Não é necessário acreditar neles para praticar o
budismo, e eles não são o objetivo principal da prática, então
não importam muito.

Não acredito que alguém possa levitar enquanto


medita (já me disseram isso em uma grupo
budista). Procede que os budistas tenham crenças
como esta?

Quando você sonha de noite você pode voar? Então seu


problema não é o ceticismo, mas acreditar demais nessa
realidade como sólida e nada mais do que um sonho.

Por outro lado, o objetivo da prática não é fazer um ato


extraordinário específico, mas o ato extraordinário que está
acima de todos: reconhecer o sonho como um sonho.

Se você tiver dificuldade de ver sob essa perspectiva, assuma


como algo metafórico: a meditação leva a uma sensação de
ausência de peso corporal, que a pessoa vivencia como se
estivesse “flutuando”, embora se as outras a veem flutuando,
isso é parte do sonho delas.

Com relação a atravessar paredes, a mesma coisa: como trata-


se de um sonho, nada é substancial. E o âmbito metafórico é
um estado mental que não encontra nenhuma obstrução para
a sabedoria, onde se existe na “forma” do próprio espaço.

xxxxx
O que é "realidade vajra"?

É natureza das coisas como elas são: luminosas e vazias. O


que é vajra possui sete qualidades: inseparativo, indestrutível,
verdadeiro, sólido, estável, totalmente inobstrutível,
totalmente invencível.

O que é deidade?

É uma expressão das qualidades da natureza de Buda, que


todos possuem.

Qual é o "nível de densidade" costumeiramente


dado às deidades no vajrayana?

Elas são, como todos os fenômenos, 100% livres de


substancialidade — como eu e você, elas são feitas de tecido
de sonho.

O budismo crê na existência de "divindades iradas"?


Ou elas são apenas representações?

Para uma coisa "existir" mesmo, ela não pode ser temporária.
Tudo que é temporário, é como um sonho. Existir como
sonhos, como nós e nossa realidade existem, sim. Na verdade
as deidades iradas (e as pacíficas, e os budas e bodisatvas) são
até um pouquinho mais existentes que nós, na medida em que
nós estamos embasados em circunstâncias ainda mais frágeis.
Nosso sono é um pouquinho mais leve, explode como uma
bolha a qualquer momento. A compaixão (irada e pacífica) é
um sonho mais estável.

Quantas entidades tem o budismo tibetano?

Não vejo usarem a palavra "entidade", porque são vazias e


não existem inerentemente. Entidades poderiam ser os seres
(entes) sencientes! Daí o número é grande.
Podemos meditar numa mandala de até em torno de 700
deidades. Mas cada detalhe de cada deidade é também uma
deidade. Existe um número infindável de mandalas. As
mandalas mais complexas não são necessariamente "mais
avançadas".

Outra maneira de dizer é que, para cada ignorância existe um


Buda, que é a sabedoria coemergente.

Eu posso me relacionar com a deidade, sem fazer


práticas vajrayana tradicionais?
Você só precisa seguir a instrução do seu guru. Sem guru, não
há nenhum contato possível com o yidam (deidade). Se ele
disser que sim, então sim. Caso contrário, é claro que não.

Qual é a importância da meditação silenciosa


(formal, na posição sentada) para o vajrayana?

Todas as práticas do vajrayana tem posturas (geralmente


sentado, e basicamente imóvel), e o vajrayana inteiro é
composto de práticas de vipassana. A prática em silêncio
ocorre em vários momentos da sadhana de um praticante,
particularmente após a dissolução, no estado de completude.
Uma pessoa, tradicionalmente, deveria ter realizado o estado
de shamata antes de praticar o vajrayana.

O que são exatamente as iniciações que os mestres


dão? Isso é só no vajrayana? São transmissões da
mente da deidade? Mas como se dá "de fato"?

Iniciações são estritamente do vajrayana. São transmissões do


corpo, fala e mente da deidade, e autorização para fazer a
prática que efetiva essa transmissão.

A transmissão se dá pela ressonância de nossa natureza de


buda com a realização espiritual do professor, exatamente
como ocorre com os sons (uma corda na mesma tensão vibra
junto com outra que foi puxada, mesmo sem ter sido tocada).
A inspiração dos mestres pode ser entendida pela metáfora da
ressonância.
Há cerimônias em vários níveis de elaboração (de vários dias
de duração a uns poucos instantes) acompanhando essa
ressonância, na presença do guru. Também a prática de
sadhana repete o processo de iniciação através de
visualizações.

As práticas de visualização de deidades implicam


algo parecido com o que comumente
experimentamos ao imaginar um maçã, por
exemplo, ou essas visualizações implicam enxergar
de forma "sólida" e "real" as deidades como
enxergamos os objetos durante a vigília?

Uma instrução chave da prática de visualização é exatamente


o oposto: é preciso vê-las translúcidas, diáfanas e não de
forma alguma sólidas, para evitar a reificação das aparências.
Além disto é preciso frisar que as deidades não são de forma
alguma reais, elas só são um pouco mais reais do que nós. Nós
somos uma ilusão impura, e para contrabalançar os hábitos
que produzem essa impureza, visualizamos uma ilusão pura.
É essencial dissolver a deidade, demonstrando sua
impermanência, ao final da sessão de prática (e algumas vezes
ela ressurge, para evitar a reificação niilista).

No entanto, não é o mesmo que visualizar uma maçã. As


deidades são visualizadas não como objetos inertes ou
inanimados. Elas são visualizadas com o elã de estarem vivas,
suas roupas balançam ao vento, por dizer assim, e suas
expressões são de uma presença efetiva, e não de uma estátua.
Esse é outro elemento crucial da visualização.

Além disso é preciso frisar: essa é uma prática do vajrayana, e


é absolutamente impossível sem a iniciação conferida por um
professor. É nessa cerimônia que o vínculo é criado com a
forma particular que vai ser visualizada, e com as instruções
específicas ligadas a prática particular que vai ser feita. Se a
pessoa visualiza a deidade sem esse requisito, ela está
praticando, no máximo, no melhor dos mundos, shamata com
um objeto visualizado. Isto é, shamata impura. E se é para
praticar shamata impura, que também deve ser praticada sob
a orientação de um professor, melhor usar o objeto designado
por ele.

Outra coisa importante: a visualização é no mais das vezes


uma etapa de uma sadhana, isto é, a prática tem um contexto,
e esse contexto tem uma explicação detalhada. Em particular
todo o processo de surgimento da deidade envolve 3 samadhis
meditativos que requerem instruções específicas. As inúmeras
práticas meditativas preliminares a essa visualização, e
posteriores a essa visualização, também são ensinadas em
detalhes. Em geral elas envolvem a visualização de oferendas,
tomada de votos, confissões, algumas vezes várias etapas e
diferentes visualizações de recitação de mantra, e
principalmente dedicação de méritos.

A recitação correta de um mantra que você não tem


ideia do que signifique tem eficácia?

Tem algum benefício, mesmo quando não completamente


correta, mas com boa motivação e pelo menos parcialmente
correta. É impossível entender completamente tudo que está
dito numa única sílaba de um mantra até a pessoa ser
completamente iluminada. Até lá a pessoa gera
interdependência com a fala dos praticantes do passado, em
linhagem até os Budas. Mesmo um animal que ouça alguém
recitando um mantra, numa vida humana futura ele pode, por
exemplo, se ouvir novamente, achar bonita a melodia,
evocativa de alguma forma estranha, e assim se conectar com
os ensinamentos que podem, no mínimo, levar ele a uma vida
virtuosa. Então há um mérito tremendo em criar essa
interdependência auspiciosa com algo que deixas marcas tão
profundas e benéficas como um mantra.

Há a história de um praticante que foi às lágrimas quando


lembrou que ouviu pela primeira vez o Sutra do Coração da
Sabedoria Transcendente enquanto era um escorpião
próximo de alguns monges, algumas vidas atrás. Quando
falamos assim, é fácil duvidar dessa história — mas quando
essa pessoa já deu tantos exemplos de bondade e honestidade
ao longo de trinta ou quarenta anos, e em vez de dizer "eu já
era um grande ser algumas vidas atrás" ela, que nunca fala
nada muito mágico, resolve dizer que foi apenas um inseto
com algum bom mérito... nesse contexto, aí sim, você acredita
e chora junto.

Como e porque os mantras são tão poderosos na


prática budista ao pronunciados, mesmo que não
entendamos nada?

Primeiro, há vários tipos de mantra. Os mantras que são


acumulados em grande quantidade normalmente se referem
ao ápice do estado do desenvolvimento — então eles não são
recitados sem nenhum entendimento. Eles são a parte da fala
ligada a uma prática que é feita em corpo e mente, e é descrita
em detalhes, logo antes da recitação. Eles também são muitas
vezes explicados em detalhe durante a cerimônia de iniciação
ou durante a explicação da prática que normalmente se segue
a essa cerimônia.

O benefício de alguém recitando um mantra fora do contexto


de uma prática (sem saber a visualização, sem estar na
postura, sem fazer dentro de uma prática completa, com
início, meio e fim) e sem entender o que se está fazendo, é
meramente o de criar uma interdependência com os
praticantes do passado que recitaram aquele mantra, e
porque não, com o próprio Buda representado por aquele
mantra específico. Esse tipo de recitação, uma "mera
recitação" não é totalmente sem valor por essa razão, mas
algumas vezes se diz que é 1% a 10% do mérito e sabedoria
gerados dentro do contexto de uma prática — e em geral esses
mantras fora de contexto não devem ser contados no contexto
de uma acumulação — a não ser que a pessoa tenha
autorização específica do seu professor para tanto.

Outro aspecto importante dos mantras é que eles são


"secretos", isto é, eles só são "entendidos" no contexto da
iniciação e do relacionamento com um professor. De fato, a
maioria dos mantras é secreta até no sentido de que ninguém
fora de uma iniciação deve saber sobre eles. O vajrayana, além
de tantrayana, é chamado também de yana do "mantra
secreto".

A palavra "secreto" indica principalmente que a nossa


natureza de Buda, totalmente presente desde o princípio, é
secreta para nós mesmos. Revelar essa natureza é o objetivo
do vajrayana, e o mantra não é uma afirmação ou uma
sentença que possa efetivamente ser traduzida (embora
explicações amplas possam ser dadas sobre cada sílaba), mas
a própria expressão do "segredo" (nossa natureza de buda),
em termos da fala. A mandala e os mudras são os segredos de
mente e corpo, e essas próprias palavras são muito pouco
entendidas — o nosso entendimento usual é um diagrama de
certa simetria e gestos com a mão, mas elas vão muito além
disso. Assim como "mantra".

Uma professora respeitadíssima da tradição vajrayana uma


vez confidenciou que praticou por 22 anos antes de entender
verdadeiramente o que o termo "mantra secreto" queria dizer.

No Mantra do Guru, cada sílaba corresponde a um


dos Budas das Cinco Famílias? Você pode dizer qual
sílaba está associada com cada Buda?

OM AH HUM é a essência do corpo, fala e mente iluminados.

VAJRA é a essência da família Vajra (Akshobya, azul).

GURU é a essência da família Ratna (Ratnasambava,


amarelo).

PADMA é a essência da família Padma (Amitaba, vermelho).

SIDDHI é a essência da família Karma (Amogasidi, verde).

HUNG é a essência da família Buddha (Vairochana, branco).

Qual é a função do mala, o colar de contas, no


budismo? Usa-se no pescoço ou no braço?
Contar o número de recitações, ou prostrações. Qualquer
lugar acima da cintura é ok para usar o mala.

O que são mudras e para que servem?

A palavra "mudra", como muitas outras no vajrayana,


aprende-se no contexto sagrado do samaya. Mudra é um
gesto, como o gesto de um Buda ao dar ensinamentos. A
prática do vajrayana consiste em mudra, mantra e samadhi,
isto é, o corpo, fala e mente do Buda. Sua postura (tanto física
como sua "postura", figurativo; sua energia, compaixão, o seu
"elã", sua "fala", sua expressividade; e sua mente, sua
realidade. Essas são as três mandalas. Ao reconhecermos
nossas próprias três mandalas como inseparáveis das do guru,
do deva e dakini, enfim, do Buda, efetuamos a prática do
vajrayana.

Mudra também é a consorte, ou o "selo" de vacuidade em


todos os fenômenos, isto é, qual é além da manifestação, a
aparência, a verdadeira natureza, a verdadeira postura do
fenômeno? O fato de que é "como um sonho", insubstancial,
isto é, a ausência de uma essência. A ausência de uma
essência na expressão, que ainda assim acontece, é o "mudra"
dessa expressão, isto é, seu "gesto", sua "intenção" última.
Enfim, sentidos vastos a se aprender ao longo de um
relacionamento profundo com a sanga vajra.

Existe algum mudra que beneficie a cura e a


cicatrização?

Os mudras são feitos no contexto da prática. A prática é feita


em corpo, fala e mente. Há práticas de cura, mas é preciso
executar toda a prática no contexto de uma sadhana, com
mudra, mantra e samadhi — o que corresponde as atividades
de corpo fala e mente. Você pode aprender uma prática assim
de um professor qualificado, ou você pode pedir a ele, ou a
todo um grupo de praticantes, que faça a prática em benefício
do doente.
Num centro de darma Vajraiana há estudos em
grupo de livros ou textos dos mestres ou há somente
os pujas?

Depende do centro. Mas em geral há estudo também.

O que são sadhanas?

Sadhana é o método para atingir a realização, isto é, as


instruções do guru. No vajrayana, ao nos relacionarmos com o
guru, transformamos nossa vida numa sadhana. São também
os textos em que roteiros de meditação vajrayana são
anotados.

O que é exatamente a "prática de sadhana"? É a


recitação das sadhanas em tibetano? É o estudo das
sadhanas (sutras?) em Português? São os pujas?
Podem ser pujas, ou podem ser práticas mais informais —
pujas podem ser ou não práticas com sadhanas — um puja é
uma recitação em grupo, com tomada de votos e oferendas.
Não é o estudo de sutras ou das próprias sadhanas, mas
a prática das últimas. Essa prática pode ser em qualquer
língua, desde que a pessoa entenda o que está fazendo, e em
geral se pode usar alguns elementos ou todos na língua
original, porque há bênçãos das outras pessoas que já
praticaram aquela sadhana naquela língua. Um dia as
sadhanas recitadas vão ter essas bênçãos em português, mas
isso pode levar algumas centenas de anos.

Sadhana significa um método para atingir a realização, isto é,


o roteiro que o seu professor prescreve. Muitas vezes esses
roteiros são anotados, e assim viram sadhanas-texto. Mas o
objetivo do vajrayana é fazer da vida do praticante uma
sadhana, isto é, tudo que ele faz deve ser na direção da
realização última. Por isso sadhana funciona tanto no sentido
do texto quanto no sentido das ações da vida do praticante de
acordo com o guru e a linhagem. A sadhana em formato de
texto é apenas um formato para nós que muitas vezes
precisamos desses roteiros devidamente anotados, e
precisamos de uma prática formal.
Normalmente a prática de sadhana só ocorre depois que a
pessoa recebeu a iniciação e a transmissão oral da prática.
Também instruções sobre o que cada sessão da prática
significa, e como lidar com dificuldades comuns. Então a
pessoa se engaja na prática, e em particular na acumulação de
mantra no contexto dessa sadhana, e enfim, vez que outra
procura o guru para sanar dúvidas.

O que muitas vezes ocorre é que as práticas em grupo se


tornam uma maneira de manter a linhagem, mas não são
fáceis para o praticante iniciante — são feitas muito
rapidamente, sem tempo para cada etapa ser efetivamente
meditada de acordo com a instrução (se é que estamos cientes
do que estamos recitando, de tão rápido que é!). Então o
praticante precisa, além de fazer a prática em grupo, fazer a
prática solitária, no seu tempo, de forma a entender o que está
fazendo. A crítica comum das pessoas que iniciam nos pujas
em centros de darma vajrayana é que vira uma "mera
recitação" ou um "mero ritual" — e de fato, na velocidade que
é feito, fica difícil praticar. Porém a prática em grupo tem essa
função de manter a linhagem, em particular a linhagem
externa do canto, dos instrumentos e assim por diante. Se não
for feito com certa velocidade, então fica mais difícil as
pessoas participarem, e várias práticas serem mantidas. A
linhagem interna é mantida na prática solitária, e
particularmente em retiro, porque o nível de dedicação
necessário para realizar uma sadhana é bastante elevado —
depende um pouco da sadhana. Mas há benefícios no mero
recitar, e há também benefícios na prática de sadhana sem
tanta intensidade, desde que regular.

No livro "Além do Materialismo Espiritual",


Trungpa Rinpoche associa os Budas às cores de
forma diferente (a sua é igual a de Thrangu
Rinpoche em "The Five Buddha Families"). Para
Trungpa, Vajra é branco e Buddha é azul. Porque há
essa diferença?
Isso realmente varia de acordo com a mandala específica a
qual se é apresentado. Você usa aquela em que seu guru o
iniciou.

O que é uma mandala, e qual a importância dela


para o budismo?

Mandala é um termo de difícil explicação. O mais comum é a


pessoa se referir aos diagramas, que são representações
simbólicas da mandala e também chamados de mandala. (Da
mesma forma que nos referimos ao cavalo de um tabuleiro de
xadrez com o nome "cavalo").

Uma forma de falar da mandala é como uma estratégia militar


para efetuar atividade iluminada. Há um general, há os
subalternos de todos os tipos, elementos com qualidades
diversas interagindo e se complementando. Isso funciona no
nível externo, da comunidade de praticantes, no nível interno,
do funcionamento do corpo, e no nível secreto, na operação
da mente.

Também podemos falar dela como um grupo de deidades,


com uma deidade central e o séquito, usufruindo do estado
desperto e efetivando atividade iluminada. Esse grupo de
deidades pode ser um grupo de seres, mas também um grupo
de fenômenos, tais como o sentidos físicos, que operam em
conjunto e complementam uns aos outros.

Ela pode ser simbolicamente representada de diversas


formas, como um desenho ou uma maquete, ou de outras
formas.

Também o sistema de mundos é visualizado, na sua pureza,


como uma mandala, e oferecido em sua totalidade para o
professor que confere os ensinamentos.

O que são sidis?

São realizações espirituais extraordinárias que podem servir


para ajudar os seres. Por exemplo, o fato de lembrar o lama
impede o aluno de roubar o biscoito. Esse é um sidi do lama.
A pessoa está indo roubar o biscoito, daí ela lembra o lama,
lembra da bondade dele, isso desperta vergonha nela, e ela
abandona a desvirtude. O lama fez muita prática, deu o
exemplo, impregnou sua presença desse exemplo, e toda vez
que ele é lembrado, ele possui benefício. Esse é o sidi de
beneficiar pela mera lembrança.

Quão maravilhoso seria alguém lembrar de você e se


direcionar para a virtude? A prática budista com certeza vai
num determinado momento produzir esse sidi.

Os sidis relativos são ações que fogem do convencional e


podem fazer alguém duvidar de sua reificação do que toma
como sendo realidade, percebendo melhor a natureza de
sonho de tudo que se apresenta. O sidi absoluto é a própria
iluminação. Os sidis são obtidos através da prática da
sadhana, e do refúgio no lama, yidam e khadro.

Sidis são poderes supranormais, sobrenaturais?

Sidis geral podem ser mais um obstáculo para a prática do


que algo a se esperar ou comemorar, e a maioria das tradições
budista desencoraja a busca de siddhis. Mesmo assim,
eventualmente, eles podem ser usados como meios hábeis
para beneficiar os outros.

Eles são como o oposto da mágica ou da magia, em que somos


iludidos por um mágico. O benefício último no budismo é
reconhecer a natureza da realidade: para o budismo vivemos
em um engano de massa com relação ao que tomamos como
real. Ao ver que isto que tomamos não passa de um sonho, ao
nos depararmos, por exemplo, com algo "miraculoso",
podemos passar a entender essa natureza onírica, e assim
deixar de tomar aquilo que é irreal como real. Se, por outro
lado, acabamos entendendo que o miraculoso ou o
sobrenatural são características da realidade como a
percebemos, nesse caso apenas aumentamos o nosso engano.
"A purificação da percepção dualista é a forma
clara porém vazia da deidade". Poderias falar sobre
esse ponto?

A forma mais elevada de prática de sadhana é a que combina


simultaneamente estágio de desenvolvimento com estágio de
completude. Assim, o reconhecimento da forma pura da
deidade como algo vazio é treinado desde o princípio através
de a visualizarmos numa forma "translúcida", e, da mesma
forma, a tendência habitual de operar através da dualidade é
purificada através da visualização concomitante de si mesmo
e dos fenômenos externos como a deidade.

Quando essa tendência está purificada, a deidade


naturalmente se manifesta com essas duas qualidades, clareza
(luminosidade, estabilidade e nitidez) e vacuidade (ausência
de qualquer noção de interno e externo).

Porém a internet não parece ser o local adequado para


esclarecimento sobre prática de sadhana. Em geral esse
esclarecimento só é adequadamente concedido pelo seu
próprio guru.

O que é tantra, afinal? É um conjunto de


ensinamentos budistas? Como fazer para praticar o
tantra?

Tantra significa continuo, ou tessitura, e significa que a


natureza essencial da mente nunca se perde. Também indica a
linhagem ininterrupta de ensinamentos de guru a aluno
dentro do tempo e também fora do tempo.

Também é o título que se dá a uma classe de textos que lida


com esses aspectos, tanto no budismo quanto no hinduísmo.

Tantrayana no budismo é o mesmo que vajrayana e


mantrayana. Para praticá-lo você precisa receber uma
iniciação de um professor qualificado, que você reconhece
como um Buda. Dessa forma você é apresentado a uma
mandala de deidades, e pode praticar o meio hábil ensinado
pelo lama, chamado “sadhana”. A iniciação é uma mistura de
bênção, autorização, compromisso no engajamento na
prática, e instrução sobre ela.

A característica principal do tantra, que o diferencia do


mahayana em geral (o tantra é uma forma de mahayana) é o
uso das aflições mentais como combustíveis para a prática
espiritual. Ou seja, raiva, apego, e assim por diante, são
reconhecidos, transformados e utilizados na sadhana. Isso
não significa que podemos nos deixar levar pelas aflições, o
que tem acontecido desde os tempos sem princípio, mas sim
que nos comprometemos com sua natureza pura, e usamos
esse reconhecimento para transformá-los.

Assim, reconhecer a natureza da raiva, por exemplo, é o


revelar de uma sabedoria. O tantra em geral se foca na
transmutação das aflições em sabedoria, e o caminho
essencial do tantra se foca no reconhecimento da sabedoria
auto-ocorrente através da prática de guru ioga.

O tantra é uma exclusividade do vajrayana?

No budismo as duas palavras, e mantrayana, são absolutos


sinônimos. É a mesmíssima coisa, com nomes diferentes.

Fora do budismo, acho que a maioria dos hindus que fala em


tantra não usa o termo vajrayana, que é uma forma exclusiva
dos budistas de nomearem o tantra.

Existe mesmo, dentro do tantrayana, o tal "sexo


tântrico"? Ou é apenas uma forma inventada para
ganhar dinheiro? Se existe, o que é o sexo tântrico?

No tantra existe o "lavar pratos" tântrico, que é reconhecer a


pureza inata em todos os fenômenos. Qualquer coisa, sublime
ou extremamente comum, não interessa, pode ser integrada
na prática tântrica. O que não existe é uma intensificação de
qualquer entretenimento do samsara.

De fato a palavra é muitas vezes diretamente associada com a


sexualidade por professores falsos, ou pelo menos é um
indício para duvidarmos e fazermos um exame mais
minucioso deste pretenso professor.

Em que livros posso ter acesso a leitura sobre como


lidar com a sexualidade no vajrayana?

Não creio que existam bons livros sobre o assunto. Mas, por
outro lado, qualquer ensinamento budista pode ser aplicado a
qualquer aspecto da existência. Portanto, se falta alguma
coisa na percepção da pessoa, ela precisa buscar isso com um
professor qualificado.

A peculiaridade do vajrayana diz respeito ao uso das aflições,


como a raiva e o desejo, como combustíveis da prática
espiritual. Este ensinamento está ausente no mahayana, que
aplica antídotos para as aflições.

Porém o vajrayana não é tópico de conversa, muito menos na


internet, e o ensinamento só é vajrayana e só diz respeito ao
vajrayana se acontece dentro da mandala, o compromisso
sagrado entre um Buda e seus alunos. Fora disso, existe
apenas a palavra "vajrayana", que não quer dizer nada.

Voltando para o mundo em geral, muitas pessoas têm dúvidas


sobre sexualidade e perguntam, em geral no contexto
mahayana dos ensinamentos do que se chamaria "linhagem
vajrayana". Isto é, em todos os grupos vajrayana ou mahayana
que já vi. E possivelmente isso ocorra com frequência também
no zen e no theravada (ocasionalmente eu mesmo vi
perguntas serem expostas e francamente respondidas sobre a
questão no zen e no theravada).

Vajrayana é um veículo, não uma linhagem. Mas entendo que


você está falando das tradições que contém ensinamentos
vajrayana. Estas contém todos os ensinamentos hinayana e
mahayana também, portanto em todos os aspectos os veículos
não se contradizem.

Mesmo se você encontrar livros sobre o assunto, eu não


recomendaria a leitura — leia somente o que seu professor
recomendar.
É possível que um mestre passe instruções de
prática tantrayana que não sejam através de
deidades e sadhanas?

No tantrayana sempre haverá a ilusão pura e o método para


atingir a realização, isto é yidam (deidade) e sadhana.

Se você quer dizer que a pessoa vai necessariamente ter um


texto ou desenvolver a visualização de uma deidade, nesse
caso, não.

Qual a diferença entre sonho lúcido e ioga dos


sonhos?

Ioga dos sonhos é um conjunto de métodos do budismo


vajrayana que busca facilitar a ocorrência de sonhos lúcidos e
que, com uma variedade de métodos, transforma o sonho
lúcido numa prática espiritual que pode ajudar no
reconhecimento da vacuidade e da natureza da mente.

Os sonhos lúcidos ocorrem naturalmente em muitas pessoas,


mas em geral a pessoa não sabe o que fazer com eles, ou eles
duram muito pouco, ou ocorrem tão raramente que não
passam de uma curiosidade na vida da pessoa. Os métodos do
vajrayana buscam intensificar, estabilizar e dar uso a essa
experiência no contexto da finalidade budista, que é a
liberação e o desenvolvimento de compaixão.

O sonho lúcido é aquele em que o sonhador tem consciência


de que está sonhando, mas segue no sonho.

A ioga dos sonhos é praticada necessariamente por


todos que seguem o vajrayana ou vai depender das
características do praticante e da formação do
professor?

Ela é essencial na maioria das linhagens, mas um professor ou


outro pode abrir uma exceção.
Os sonhos que temos quando estamos adormecidos
têm alguma importância no Budismo?

Podem ter, mas em geral não. Há sonhos basicamente


formados de carma, e perto desses, sonhos em que
ensinamentos são concedidos, em que há certa clarividência,
o equivalente a visões. Esses são pouco importantes. Depois
há os sonhos lúcidos, que são especialmente importantes, e
existe um treinamento para estabilizá-los, como uma forma
de prática de meditação durante o sono. Os grandes
praticantes já não sonham.

Os sonhos que temos enquanto dormimos são


ilusões dentro da ilusão da vida ou não são
diferentes?

Não são essencialmente diferentes, mas são diferentes.

Porque alguns Budas, como Samantabhadra,


aparecem nas imagens em união com uma mulher?

Isso é chamado de pai-mãe (yab-yum), e representa a união


de compaixão (aspecto masculino) com sabedoria (aspecto
feminino). O casal é visto como um Buda, não é um Buda e
uma mulher.

O que é a Tara Vermelha?

Tara é um Buda feminino, sua forma vermelha está vinculada


principalmente a atividade de magnetização.

Chagdud Rinpoche divulgou a sadhana dessa prática de forma


muito extensa por todas as partes por onde ele andou. Era sua
prática externa e evidente, e ele manifestava evidentemente as
características iluminadas dessa deidade, isto é, ele consumou
essa prática completamente.

Qual a diferença entre um buda normal e um


feminino?
Buda é um nome do gênero masculino. Portanto, quando se
trata de uma mulher que despertou, é preciso adicionar o
qualificativo. A diferença é que surge na forma de uma
mulher para dar ensinamentos, e não na forma de um
homem. Ambos são normais, e fora essa diferença, que surge
para lidar com inclinações dos seres a serem ensinados, e não
por vontade própria de um Buda, não há diferença.

Posso fazer a prática de Tara Vermelha em casa ou


necessitaria irrefutavelmente da presença de um
mestre? Como poderia proceder fazendo a prática
em casa?

Você pode fazer em casa, mas precisa aprender com uma


sanga. Depois que você aprender a fazer a prática e tirar suas
dúvidas, você pode fazer a sadhana curta em casa sozinho. A
sadhana longa só com a iniciação e com certeza não se
aprende fazer uma ou duas vezes, mas é necessário fazer
muitas vezes e receber instruções sobre, por exemplo, os
mudras, para depois ser possível e apropriado fazer sozinho.

Qual o sentido de existirem deidades iradas numa


religião que fala tanto em compaixão?

As deidades iradas são extremamente compassivas, elas não


têm nenhuma vontade de prejudicar ou destruir alguém, só a
negatividade. E destruir a negatividade é compaixão. Elas
pisoteiam o apego ao ego, elas levam as fixações à loucura,
elas pulverizam a reificação das aparências, cortam as aortas
das quebras de voto, empalam a distração. A mera presença
do Heruka faz os obstáculos desmaiarem. Isso é compaixão.

Por que a representação iconográfica dessas


deidades iradas às vezes parece tão assustadora?

Por nossa percepção dualista, falta de conexão, ausência de


méritos.

Nos tantras externos as deidades são geralmente pacíficas.


Nos tantras internos — mais avançados — as deidades são
iradas. Em particular os tantras internos da categoria
mahayoga envolvem mandalas de muitas deidades iradas, o
que se adequa a pessoas muito afortunadas com o defeito a
terem muita tendência à conceptualização. Ao se
autovisualizar com uma forma assustadora, muitos braços,
guirlandas de crânios secos e recém cortados, com cabelos
esvoaçantes, muitas cabeças, pisoteando cadáveres, e uma
gangue de seres semelhantes como séquito, todos, como
numa ação de exército, sobrepujando legiões de maras —
impedimentos e obstáculos internos, externos e secretos —
isto ocupa tanto a mente de conceptualização obsessiva que
essa própria mente se torna ação incessante de compaixão.

O tantra não descarta, mas sim faz uso, de nossas tendências


habituais — é um caminho de transmutação. O que nós temos,
nós transformamos na deidade — totalmente embasados no
refúgio e na bodicita, o desejo de levar todos os seres à
iluminação, e lhes trazer benefícios temporários como
prioridade secundária. A deidade é uma manifestação de
nossa visão pura, de nosso compromisso com nossa própria
natureza, exemplificado e corporificado pela linhagem.

Tradicionalmente receber uma iniciação de yogatantra


insuperável, de um tantra interno, e fazer prática se
autovisualizando como a deidade central de uma mandala de
compaixão irada, era reservado aos grandes tantrikas com
samaya, compromisso, muito puro — atestado após anos de
convívio com um mestre imaculado. Uma prática regular
desse tipo promove a iluminação na mesma vida ou no
máximo durante o bardo. Porém, se o compromisso é
quebrado, se as aparências são reificadas, ou se a pessoa
distorce a compaixão e passa a usar a prática como uma
desculpa para ser raivosa ou orgulhosa, a pessoa causa grande
negatividade e renasce no inferno. Então é um caminho muito
rápido para a liberação, mas com quebras de compromisso,
um caminho igualmente rápido para o inferno. O próprio
medo é um reflexo da raiva, então abandonar o medo é crucial
para a prática do tantra.
A face da deidade irada é como a da mãe que está vendo o
carro veloz indo na direção de seu filho único. Esse é o
atropelamento de todos os seres pelo apego ao eu, pela
reificação das aparências. Ela não vai permitir que seu filho
seja esmagado pelo samsara. Nós precisamos entender que
estamos sendo abraçados pela bondade da linhagem, e o
compromisso é levar essa bondade a todos os seres. Repousar
nessa bondade é descobrir a intensidade que permite a ação
iluminada irrestrita.

O oráculo, no budismo tibetano, é um mestre que


"recebe" alguma entidade? O que ele acessa para
entrar em transe e fazer previsões?

Sim, ele se comunica com um protetor do darma. Eles são


muito raros, mesmo no budismo tibetano. Uma meia dúzia ou
menos. Não é um fenômeno importante, o budismo existiria
muito bem sem ele — mas as considerações políticas,
principalmente, e a proteção com relação a instabilidades
sociais, isso faz a necessidade de oráculos — isto é, é para
gente em posição de poder, com muita fragilidade por causa
disso, como por exemplo o Dalai Lama. O grande iogue que
pratica solitário na montanha talvez nunca tenha visto um
oráculo na vida. Em todo caso, mesmo o Dalai Lama toma o
oráculo como um ministro, alguém que dá a opinião, mas
quem deve pensar em termos de sabedoria é ele mesmo, e
assim acatar ou não a opinião do oráculo. Isto é, o oráculo é
um mero servo do Dalai Lama e do governo tibetano.

Protetor do darma que você se refere é um ser que


não existe ao nosso alcance? Como se vivesse em
outra dimensão? Pode ser um ser iluminado ou não?

Está ao nosso alcance, ou pelo menos de qualquer um que


faça prática de protetores. Pode ser iluminado ou um
bodisatva. Alguns professores falam deles metaforicamente,
outros gostam de personificá-los como algo semelhante a
"espíritos". Todas as formas de budismo aceitam seres nos
cinco outros reinos que não o humano com que não temos
contato através dos sentidos. Há inclusive animais sutis.
O importante é entender que os pontos essenciais para o
budismo são a insatisfação do samsara (todos os seis reinos) e
a possibilidade da conquista do estado iluminado através do
caminho do bodisatva. Se não se opuserem a isso, e a
conceitos tais como impermanência e ausência do eu (além da
insatisfatoriedade), então outras disciplinas e práticas são
como matemática ou geografia — podem ser úteis em alguns
casos, mas não necessariamente para atingir a iluminação
como algo direto. A prática de protetores, portanto, existe no
contexto de meio hábil para propiciar as condições para a
prática espiritual — ela em si só não é a prática principal, não
é uma prática exatamente espiritual, mas uma espécie de
engenharia das circunstâncias. Se você souber matemática e
geografia, você vai posicionar melhor seu barco — mas o
objetivo é viajar, não ficar determinando posições.

Assim, a prática de protetores só é crucial no vajrayana — no


mahayana e no hinayana existe prática de protetores, mas ela
não é essencial, já que as grandes dificuldades surgem no
caminho vajrayana. É ali que, ao se trabalhar com as aflições
mentais diretamente, podemos ser tomados por elas, e virar
demônios, e não praticantes espirituais. Por isso no vajrayana
contratamos esses "secretários" para nos dar uns cutucões
quando nos desviamos da prática, e para garantirem
condições externas e internas adequadas para a prática. Mas
aí, é essencial fazer a prática. A prática de protetores só
ocorre quando o praticante consegue se autovisualizar como a
deidade central da mandala — enquanto ele faz isso, então
pode fazer oferendas e comandar as atividades dos protetores.

O que é Mahakala?

É um protetor do darma. Protetores são Budas e Bodisatvas


que defendem os ensinamentos de várias formas.
Sustentando as atividades, propiciando boas condições para
elas, e mesmo evitando que distorções ocorram.

(É possível que Mahakala seja praticado como um yidam em


certas linhagens e contextos, mas desconheço.)
O que é o "estado de dissolução e de consumação"?

Podem ser usados como sinônimos, de acordo com a


tradução, mas modo geral dissolução da mandala da deidade
é uma forma específica de estágio da consumação.

De forma geral, são dois os estágios da prática do vajrayana:


desenvolvimento (ou geração), que envolve a prática de
visualização, com todos os seus acessórios e etapas (recitação
de mantras, por exemplo) ou sem elas, e consumação (ou
perfeição, ou completude, ou dissolução) em que a
visualização é desfeita e repousa-se no estado natural. Ambos
os estágios podem ser mais elaborados ou mais simples, isto
é, podem ter mais etapas ou menos etapa. Nas diversas
formas de tantra, foca-se mais num ou noutro, ou em ambos
ao mesmo tempo, com diferença entre meditação e pós-
meditação, ou sem essa diferença no mais elevado deles.

Nesses procedimentos pode haver sadhanas mais ou menos


elaboradas. As sadhanas mais elaboradas, de forma geral, são
menos sofisticadas. A elaboração serve para aqueles com mais
conceptualização e que predominantemente trabalham com o
veneno da aversão. A forma menos elaborada é para aqueles
que têm mais bem-aventurança e trabalham com a aflição do
desejo, e a forma extremamente não elaborada é para aqueles
que possuem grande facilidade com a não conceptualidade e
cuja contaminação predominante a ser transformada é a
ignorância.

Em geral a primeira prática que envolve desenvolvimento e


consumação feita é o ngondro. Cada ngondro possui
peculiaridades próprias, mas eles em geral possuem formas
simples (mais ou menos demoradas, dependendo da prática)
desses dois estágios. Tendo treinado com o ngondro, a pessoa
passa a praticar uma sadhana “principal”.

A prática começa com uma enorme diversidade de atividades,


em particular se focando nos votos de refúgio e bodisatva e
em amealhar uma grande quantidade de méritos – com o
aspecto de sabedoria breve e coroando esse esforço. Depois,
com a naturalidade que deveria advir dessas repetições,
refúgio, voto de bodisatva e acumulação de méritos vão
ficando menos elaboradas e mais concisas, e a etapa de
sabedoria vai ganhando elaboração e demorando mais. É aqui
que o estágio do desenvolvimento passa a ser central, embora
a consumação também passe a cada vez mais ser focada.
Enfim, a consumação é focada muito mais do que os outros
estágios, e num determinado ponto se torna simultânea com
toda a prática, integralmente, e noutro ponto determinado,
também com toda atividade do praticante, formal ou
informal, dentro ou fora da sessão. Na verdade, quando
falamos em todos esses passos paulatinos, isso não
necessariamente ocorre nessa ordem: podemos começar com
a instrução de integrar tudo, e ao reparar que nem sempre
conseguimos, seguimos a instrução logo anterior que nos
pareça possível praticar.

Gradual e direto (o causal e o não causal) não são tidos como


opostos, mas na visão da imanência da sabedoria no tantra,
ocorrem simultaneamente. Toda a prática, desde o início,
repousa no reconhecimento da própria natureza, e a do lama
e da sanga, como sendo inseparável do corpo, fala e mente do
Buda. Com base nisso, a prática se desenvolve gradual ou
instantaneamente, com ou sem esforço, de acordo meramente
com o acúmen do praticante.

Ao que se referem os termos externo, interno e


secreto na nomenclatura budista ou budista
tibetana?

Muitas coisas, de formas diferentes. Um exemplo... externo:


mundo; interno: corpo; secreto: mente. Também corresponde
aos níveis de corpo, fala e mente. Mudra, mantra e samadhi.

Em termos de obstáculos, externo é o que está fora de nosso


controle nesta vida, as circunstâncias mais amplas, tais como
epidemias, terremotos, e as mais próximas, doenças, o atraso
do trem, ser assaltado. Interno é o que está fora de nosso
controle ao longo de várias vidas: hábitos e tendências,
aflições mentais. Secreto é o que nos prende desde o início, a
ignorância, o não reconhecimento do estado natural.

Também são as nossas falhas evidentes a todos, as que


sabemos mas os outros não conhecem bem, e as que nem nós
mesmos estamos cientes.

Enfim, eles utilizam esses três níveis para falar de tudo.


Refere-se a uma esfera global, impessoal, coletiva, o mundo; a
esfera pessoal, própria, particular; e a uma esfera essencial,
nem pessoal, nem impessoal — se é que se pode dizer isso.

7.4. Práticas avançadas


Uma forma de autoliberação das aflições mentais é
"olhando" para elas quando surgem e reconhecendo
a vacuidade? Esse observador que olha para as
aflições existe até que ponto da prática?

Ah, essas práticas avançadas eu não entendo. Você precisa


perguntar isso a um professor qualificado.

No veículo superior absolutamente tudo é acolhido


como prática? Qualquer conteúdo mental, seja ele
aflitivo ou não?

Sim. Nada, absolutamente nada, é desperdiçado. Mas isso não


significa se entregar a aflições mentais, bem pelo contrário.
Na medida que elas surgem, elas são autoliberadas. Isso
significa que a energia delas, por si só, as esgota. E é por isso
que se trata do veículo superior, que exige praticantes quase-
budas, de acúmen inigualável.

O que é dzogchen?

É a redução de "dzogpa chenpo", a "grande perfeição" ou


"grande completude", que é tanto o resultado do caminho
budista como um conjunto de métodos rápidos (diretos) de
reconhecer, estabilizar e expressar esse resultado. A essência
da prática é o guru ioga, como no vajrayana.

O dzogchen é para praticantes quase-budas, de


acúmen inigualável?

Isso, o vajrayana como um todo também. Imagine que mesmo


um praticante da forma mais externa e inferior de tantra está
no máximo a 17 vidas da iluminação, enquanto que um
praticante do mahayana vai levar 3 grandes kalpas, cada um
com centenas de renascimentos....

Por outro lado, você não precisa guardar nenhum tipo de


preconceito quanto a si mesmo. Se você tem o mérito, ele se
manifesta, aí você não precisa dizer “ah, eu não sou um quase-
buda, isso não é para mim”.

Onde reside a diferença entre mahamudra e


dzogchen? No método?

Em termos do fruto, a realização dos dois corpos, mahayana,


vajrayana, mahamudra e dzogchen são a mesma coisa. Em
termos do método é que se diferencia. E é um assunto
complicado, eu nem ouso tentar entender essas coisas.

O que é Rigpa?

Rigpa é a natureza essencial da mente: livre, criativa e


compassiva. É o que resta quando marigpa (avidia, delusão,
ignorância) se dissipa.

Poderia explicar o que é o corpo de arco íris?

Um tipo de realização na qual o corpo desaparece, se dissolve


em luz, no momento da morte.

Bom coração
O que é compaixão? Como praticar?
Compaixão é querer aliviar o sofrimento dos outros. Você
pratica aliviando o sofrimento dos outros, ou treinando para
ter mais empatia, atenção e meios para ajudar os outros.

O que é exatamente compaixão? Como exercê-la?

Compaixão é reconhecer o sofrimento do outro e ativamente


se engajar internamente (por uma solução) como se esse
sofrimento fosse de fato nosso.

A compaixão superior é indistinguível da vacuidade, que é a


capacidade de reconhecer que todos os sofrimentos surgem,
na sua raiz, de uma falta de reconhecimento da natureza livre
de uma essência (da realidade e de todos os fenômenos em
particular). Em outras palavras, sofremos porque reificamos
as aparências — a compaixão portanto é o que ativamente
busca dissipar essa reificação por quaisquer meios
disponíveis. No nosso caso, em que somos também seres sem
a sabedoria (o reconhecimento da vacuidade), nesse caso a
compaixão é a inferior, que é paliar o sofrimento do modo que
pudermos, ou até mesmo apenas aspirar um dia poder paliar
o sofrimento.

No budismo compaixão é um objeto de treinamento: ela tanto


é o fim por si próprio como um meio de atingir a sabedoria.
Todos os seres possuem um potencial compassivo, e a prática
budista em todas as suas formas busca treinar na compaixão,
ou, melhor dizendo, revelar o mais possível esse potencial
como ato.

Posso dizer que compaixão e vacuidade são a


mesma coisa?

Não só pode, como deve. Mas é importante entender por que.


Através da prática, você pode ter o objetivo da compaixão ou
da vacuidade, e começando com uma, você termina na outra.
Através da compaixão você reconhece a interdependência, e
portanto a vacuidade. Através da vacuidade você reconhece a
ausência de independência, e portanto a compaixão.
Vacuidade é liberdade de ausência de inclinações,
preconceitos, o que resulta em ver os seres como Budas em
essência, e disso surge uma ânsia perante aquela essência não
revelada — você vê todo aquele potencial e vê que ele não é
exercido, isso é compaixão. Ao reconhecer a aparência como
aparência, e a essência como essência, isto é sabedoria, que é
o reconhecimento das coisas como elas são, isto é, vacuidade.
Assim ao ver o ser-mãe-fenômeno como vazio, brota
compaixão, e ao desenvolver compaixão pelo ser-mãe-
fenômeno, necessariamente brota o reconhecimento da
vacuidade. É a mesmíssima coisa.

Se a compaixão é nosso estado natural, por que


tenho que meditar sobre ela?

Porque, segundo o budismo, só um Buda reconhece e revela


seu estado natural. Como estamos cheio de obscurecimentos e
marcas adventícias, que impedem, como nuvens que
bloqueiam a luz do sol, o revelar dessa natureza, precisamos
de práticas que efetuem essa purificação. Mas é importante
entender que a compaixão não é construída, mas revelada.
Isso faz muita diferença.

A compaixão, para o budismo, é um sentimento ou


um estado de consciência?

Quase não se usa a expressão "sentimento" no budismo. Fala-


se de emoções aflitivas. A compaixão não é uma emoção
aflitiva. Ela possui um aspecto cognitivo e um aspecto
"energético", que é talvez o que se queira dizer por "emoção"
— isto é, a base daquilo que algumas vezes sentimos
fisiologicamente como um aperto na garganta. Nós não
precisamos chegar a sentir fisiologicamente, mas esse é um
modo de explicar o que se quer dizer por "energético".

Ela é dinâmica e dotada de capacidade tanto racional, no caso


de uma compaixão que segue um raciocínio, quanto
puramente atencional, empática, no caso de uma compaixão
que seja não conceptual. Ambas são expressões do estado
natural da mente, que não é um estado propriamente, com
um início, meio e fim, mas propriamente natural e não
fabricado.

Para nós, que não revelamos nossa natureza ainda, a


compaixão pode se apresentar com início, meio e fim, e
podemos treinar em compaixão — podemos deliberadamente
desenvolver mais compaixão. A compaixão é boa para nós em
primeiro lugar, porque nos liberta, naturalmente da prisão do
eu, que é a fonte de todo sofrimento. Portanto a compaixão é
cheia de bem-aventurança. Além disso, a compaixão é boa
para os outros, já que invariavelmente seremos compelidos a
ajudar diretamente, de muitas formas possíveis, e
eventualmente essa ajuda será realmente benéfica aos outros.
Também o próprio fato de nos movermos nessa direção provê
um exemplo, que se for seguido, proporcionará felicidade aos
outros. Assim, existem muitos motivos pelos quais a
compaixão é tida com tanto apreço na prática budista.

E se eu tiver que abrir mão da minha felicidade pela


felicidade de outra pessoa. Qual seria a melhor
decisão?

A fonte mais confiável de felicidade é ajudar os outros. Todas


as outras formas de felicidade são inferiores. Portanto, para
quem sabe disso, e conscientemente traz felicidade a outro,
particularmente sob alguma dificuldade, sob algum pequeno
sofrimento, sob alguma perda de felicidades inferiores, não há
dúvida do que é melhor.

Agora, se a pessoa faz isso porque outra lhe diz, ou porque


está seguindo uma regra ou algo assim, nesse caso ela precisa
refletir melhor sobre as verdadeiras causas de felicidade mais
confiável e mais duradoura. Ao refletir sobre isso,
naturalmente ela fará o que é mais inteligente, isto é, a ação
altruísta.

Trazer benefício aos outros seres, no Budismo,


baseia-se na premissa de que essa é a única forma
de atingir felicidade, certo? Não se ajuda por
altruísmo, mas por constatação através da
experiência de que é a única forma de ser feliz
plenamente?
Quanto menos altruísta, mais instável essa felicidade. Então a
pessoa basicamente lida com sua honestidade vez após vez, e
isso se chama prática. Quando ela abandona a noção de obter
felicidade para si — abandona essa expectativa sem que isso
signifique autodestruição ou falta de amor próprio — , essa é a
felicidade definitiva de um bodisatva.

Começamos lidando com nosso egoísmo como ele já existe,


sem nos enganarmos a respeito dele. E então, paulatinamente
nós simplesmente largamos, pouco a pouco ou de uma vez,
essa atitude. Mas toda vez que o egoísmo surgir, tentamos ser
egoístas inteligentes, porque se queremos ser felizes,
precisamos abandonar essas expectativas todas — o mais
importante é que isso não significa simplesmente "se largar",
esse é o diferencial. É um grande ego o daquele que se negar
coisas, então simplesmente nos incluímos como mais um
qualquer no nosso campo de compaixão que se amplia prática
à prática.

Muitas pessoas quando começam a praticar o budismo


percebem que são grandes negociadoras, e se desanimam
muito por finalmente perceberem que não conseguem ser
honestas consigo mesmo e abandonar a negociação. Aqui
precisamos de bondade para conosco, e usar qualquer
compaixão artificial, negociada, que consigamos gerar como
um treinamento para compaixão cada vez maior, sem
negociação. Isto é, ao reconhecer nossa limitação e não
desanimar com ela, aceitamos alguma negociação, alguma
artificialidade, algum egoísmo inteligente, em nossa
compaixão — apenas aspirar que essas máculas não estejam
ali já é a prática. Reconhecê-las e olhar para elas com
estranhamento é prática suficiente. Aos poucos, quando
criamos intimidade com nossa própria natureza, ficamos
menos tensos e mais naturalmente honestos, e assim a
compaixão natural, sem esforço e sem negociação, desabrocha
sem maquinações.

Existe diferença entre compaixão e misericórdia?


O segundo termo nunca vi no discurso budista.

Compaixão tem um sentido técnico: é reconhecer o


sofrimento do outro e não querer que ele sofra — e, se
possível, agir como for necessário para aliviar o sofrimento.

Todos os seres são capazes de compaixão, isto é, possuem


potencial para a compaixão. É possível treinar em compaixão,
isto é uma das práticas essenciais do mahayana. Isto é,
reconhecemos que nossa compaixão é limitada, e que pode vir
a ser ilimitada — o reconhecimento da vacuidade permite que
a compaixão seja ilimitada, mas mesmo antes disso, podemos
incrementar vastamente a compaixão através de inumeráveis
métodos.

A compaixão por todos os seres não acaba levando à


indesejável tolerância com gente e entidades
perversas que causam muito sofrimento?

Compaixão significa não coadunar com o que está errado e


prejudica os seres. Não significa acatar visões ou ações
errôneas, ou não tomar atitudes duras.

Agir a partir de uma visão preconceituosa com


relação a pessoas seria desrespeitar uma das seis
perfeições (paramitas), a tolerância?

Não, as paramitas não precisam ser "respeitadas". Elas são


uma prática benéfica, mas não são uma obrigação. Elas são
um tipo de obrigação para aqueles que tomaram votos de
bodisatva, mas mesmo nesse caso, o critério de benefício aos
seres é seu, isto é, você pratica da melhor forma que consegue,
esta é sua obrigação, não alguma ação específica.

Nesse caso, agir de forma preconceituosa não está ligada a


shanti paramita (paciência ou tolerância). Nessa paramita, a
visão preconceituosa pode estar totalmente presente, mas
mesmo presente, você não deve prejudicar o ser.
A visão errônea é a principal das raízes de sofrimento, e é a
raiz do preconceito também. Mas ela não está
particularmente ligada com a paramita da paciência ou
tolerância. A vítima pode praticar a paramita, e o agressor
pode estar cometendo várias desvirtudes, uma delas com
certeza é ver os outros com má vontade, mas isso não se refere
a manter a paz no sentido da paramita.

Porém, ter uma mente conceptualizadora, que separa as


pessoas entre "aquelas de que gostamos" e "aquelas de que
não gostamos", é abandonar o bom coração e a sabedoria.
Normalmente, porém, a pessoa não consegue abandonar isso
só porque "quer", ela precisa desenvolver essa qualidade, com
esforço e deliberadamente, até que ela se revela natural. Antes
disso, a pessoa pode artificialmente tratar com igualdade e
cordialidade daqueles que ela não consegue deixar de não
gostar.

E como desenvolvemos a compaixão imparcial?

Há práticas específicas em que visualizamos a diversidade de


sofrimentos dos seres, e, por exemplo, os reconhecemos como
seres-mães, ou analiticamente destrinchamos porque surge
nossa aversão e apego por eles.

Também há uma prática chamada tonglen que nos ajuda


quanto a isso. A instrução sobre essa prática deve ser buscada
com um professor qualificado.

Agir com "compaixão irada" nada mais é do que


agir com mais energia e força em prol do bem-estar
de todos os seres? Um praticante inexperiente
consegue isso?

Praticantes inexperientes precisam agir duramente


principalmente quando veem a própria negatividade, e,
secundariamente, quando a negatividade de outros pode
causar malefício aos seres. Porém, um praticante inexperiente
deve evitar qualquer ação onde possa haver algum elemento,
por menor que seja, de agressividade. Portanto, um praticante
inexperiente deve provavelmente evitar coisas como gritar ou
violência física. Um praticante que tenha confiança em seu
compromisso para o bem-estar do outro, pode até mesmo
usar de meios desse tipo, quando seguro de que não há
agressividade.

A ação compassiva que corta a negatividade é a ação que


impede que a desvirtude seja cometida. Assim se evita o
sofrimento da vítima, mas também, e principalmente, o
sofrimento daquele que está agindo negativamente. Com essa
motivação precisamente clara, e com quaisquer meios que
estejam disponíveis, o praticante deve abandonar sua zona de
conforto e agir de forma antipática, impopular, não
compreendida pelos outros e facilmente criticável.

Quando a presença de algumas pessoas faz mal


para nós é melhor se afastar ou persistir no
convívio?

Depende do seu nível de prática. Se você consegue praticar, o


que é melhor, você não se afasta. Se não consegue praticar,
você humildemente reconhece a sua própria incapacidade, e
se afasta.

Difícil pensar no Marquês de Sade como "diamante


sujo de lama". Ele parece ser ontológica e
obstinadamente mau mesmo. O budismo vê alguma
chance para alguém como ele?

Dzongsar Khyentse Rinpoche disse numa ocasião que uma


pessoa que obstinadamente traz sofrimento aos seres tem,
inevitavelmente, pelo menos uma boa qualidade: ela entende
bem o sofrimento. Num caso assim, e em geral no caso dos
grandes vilões, basta girar algum tipo de chave, basta tocar
em algum tipo de ponto sutil, que a coisa vira 180 graus, e a
grande capacidade de causar mal se torna grande compaixão.

Milarepa, o maior santo tibetano, cometeu uma vingança em


que matou dezenas de pessoas, além de destruir plantações e
matar rebanhos de animais inteiros. Porém ele atingiu a
iluminação naquela mesma vida.

E não precisamos entrar no árido e selvagem Tibete. Um dos


alunos do Buda foi uma espécie de serial killer, tendo matado
ritualmente quase 1000 pessoas. Angulimala, colar de dedos,
ele colocava um dedo de cada pessoa que matava num colar.
Mas ele teve o mérito de tentar matar o Buda em vez de sua
própria mãe (que seria a 1000 vítima), e o Buda conseguiu, de
alguma forma, fazer essa mudança de 180 graus, e ele atingiu
o nirvana, se tornou um arhat.

Se uma pessoa estiver sendo assaltada na rua, por


exemplo, como ela pode praticar a compaixão?

Muito simples: ela pensa no sofrimento que o ladrão está


causando para si próprio no futuro — que é muito maior do
que o de um assalto.

Mas só pensar na compaixão é o suficiente? Por


quê? E se a pessoa deixar que o bandido leve suas
coisas, não estará contribuindo para o bandido
concretizar o carma?

Sim, mas se não houver meio hábil ou alternativa de evitar o


assalto, ela se deixa assaltar. É melhor ela só ser assaltada do
que agredida ou morta: isso causará mais carma ainda ao
assaltante, e mais sofrimento. Além disso, a pessoa, mesmo
enquanto praticante, raramente está preparada para morrer.
Então ela não tem compaixão por nenhum dos dois — quando
há uma arma envolvida, por exemplo.

Se houver meio hábil de evitar o assalto, até mesmo bater no


assaltante ou algo assim, essa é a ação compassiva. No
entanto, em geral sabemos que não é assim. Reagir é
extremamente desaconselhável. Me arrependo muito de um
assalto em que três indivíduos tentaram levar minha mochila
com o notebook e eu reagi. Por sorte eles não estavam
armados e eu consegui fazer os três correrem. Mas eu
simplesmente me arrisquei, isso não é bom.
Outra vez apontaram um revolver para a minha cabeça,
enquanto eu estava rezando, no ônibus. Dessa vez eu cheguei
a pedir meus documentos de volta — para não ter que fazê-los
de novo, mas percebi que o assaltante estava muito nervoso e
fui sensato de não ficar discutindo ou conversando muito.

Pensar no sofrimento do outro é a compaixão básica. É ela


que vai permitir a ação, quando a ação for possível para nós,
na nossa circunstância. Muitas vezes a ação não é possível,
por nossas próprias limitações, ou pelas limitações do objeto
da compaixão, ou mesmo pelas limitações de circunstâncias
fortuitas.

Nunca acontece de praticantes rezarem para que


uma injúria seja vingada ou corrigida? Budistas
tem sempre que tolerar injustiças? Não há nada
análogo aos Salmos que clamam pela justiça
divina?

Não existem injustiças, o que há é sofrimento. Reza-se para


mitigar sofrimento. Entender que os seres sofrem por sua
própria responsabilidade, e que aqueles que criam sofrimento
aos outros são dignos de maior compaixão, é o que impede
qualquer atitude diferente da tolerância. Tolerância aliás, é
uma péssima palavra — serve apenas para o contexto inter-
religioso, e talvez nem nesse — a palavra que se usa é
compaixão.

No vajrayana você pode liberar um ser através da atividade


iluminada. Isso significa que você consegue evitar que esse ser
cause mais desvirtude ao transferir sua consciência daquela
posição para outra, onde a ação negativa não faz sentido. Essa
atividade é para o bem do próprio ser e dos demais. Mas para
o ser pode parecer desagradável, porque ele tem apego a sua
posição atual. Isso é feito através de meios hábeis que operam
através da interdependência — como tudo mais.

Pedir reparação de que, a quem? A vingança não tem lugar


nos ensinamentos budistas. Não faria sentido, não é mesmo?
Já que o carma vai, impessoal e automaticamente, produzir
seus resultados. E de fato, há um outro ponto muito
importante. Se vemos aquele que nos prejudicou sofrendo,
devemos ter compaixão. Se sequer regozijamos — se sequer
agimos com indiferença — geramos carma para no futuro nós
mesmos sofrermos. Então é o nosso próprio melhor interesse,
egoísta mesmo, não regozijarmos com a vingança — nem
mesmo em filmes, nem mesmo de personagens. Isso cria um
hábito mental extremamente negativo.

No Sutra Lapidador de Diamantes o Buda conta um episódio


em que foi torturado até a morte por um motivo trivial. Ele
foi, numa vida passada, cortado em pedaços. Primeiro a
primeira falange do mindinho, depois a segunda falange,
depois o dedo todo, depois o outro, pedaço por pedaço, a mão
etc. Depois as outras falanges, dedos, mão, braços... depois as
falanges dos dedos do pé, o pé, a perna...

Isso porque o Buda, então um bodisatva, tinha conversado em


privado com a esposa desse sujeito — sem malícia da parte do
Buda.

Ele pergunta ao interlocutor desse sutra particular, Subhuti,


porque ele foi capaz de não sentir raiva do agressor. E o aluno
do Buda explica que, pela realização da vacuidade e o
entendimento do carma, o Buda não teve sequer um impulso
de sentir raiva, porque caso contrário eles passariam vidas
escalonando essa rixa — como num desenho animado em que
cada vez o outro vem com uma arma maior. Porque ele não
guardava para si a concepção de um, outro, muitos e nenhum,
ele sentiu compaixão.

O que seria então "trazer benefício" aos seres?

Trazer felicidade e bem-estar temporário e definitivo, ou


ajudar a criar as causas para felicidade e bem-estar
temporário e definitivo. O benefício definitivo é a iluminação,
isto é, ajudar um ser a revelar sua natureza
Conversar com as pessoas, tentar compreender as
mentes equivocadas etc., são maneiras de ajudar os
seres?

Não necessariamente, mas podem ser um treinamento, e a


aspiração pode eventualmente nos ajudar a agir efetivamente,
e não meramente ouvir e tentar entender.

Ouvir e tentar entender pode ser compaixão, ou ajudar no


desenvolvimento da compaixão.

É comum ter pensamentos horríveis, como de


machucar pessoas, por exemplo? E a meditação e o
estudo do budismo pode ajudar a entender esses
pensamentos?

Comum... não sei. Se você ampliar a compaixão, naturalmente


vai ser mais difícil ter tais pensamentos. Ampliar a compaixão
é possível, é um dos objetivos da prática budista. Você amplia
a compaixão ao refletir deliberadamente sobre o sofrimento
dos outros e se colocar no lugar deles. Entender porque esses
ou aqueles pensamentos surgem, daí já não sei — acho que
não é útil. A maioria das práticas não se ocupa de conteúdos
mentais, apenas os deixa onde estão.

A paz é a ausência do sofrimento? Ou a paz pode ser


a compaixão em meio ao sofrimento?

Paz é normalmente uma das traduções da terceira paramita,


shanti, "paciência". Significa estabilidade perante a
adversidade, o tédio, o assombro, o medo, o nojo, a confusão.
Ela é praticada por compaixão.

A paz da ausência de sofrimento, vamos chamar só de


ausência de sofrimento, é o objetivo da prática do veículo
estreito, o hinayana, que é considerado um objetivo egoísta
pelo grande veículo, o mahayana. Ainda assim, foi um
ensinamento que o Buda deu para as pessoas de pouca
capacidade.
Quando você sofre, você pode transformar esse sofrimento em
compaixão. Essa pode ser uma forma de praticar a terceira
paramita. Seja pelo reconhecimento do sofrimento do seu
"inimigo", quanto pelo reconhecimento de que outras pessoas
sofrem mais, ou do mesmo jeito que você.

Normalmente os budistas não buscam paz, essa é uma noção


muito frequente entre as pessoas, mas o budista pratica paz
com o objetivo de atingir a iluminação. A iluminação é um
estado de esclarecimento, e intensidade infinita de
compaixão.

Disse a uma amiga que meu desejo é gostar de todo


mundo igualmente e ela disse que isso é impossível.
O que você acha?

Depende do que se quer dizer com "igualmente", e "gostar"


não é uma boa palavra. Gostos e desgostos estão ligados a
hábitos mentais. No budismo praticamos compaixão, que vai
além de gostar e não gostar. No início pode parecer mais fácil
ter compaixão de quem gostamos, mas com o tempo é, de
fato, mais fácil ter compaixão por quem não gostamos.

Mas sim, é possível atingir imparcialidade em termos de


compaixão, basta para isso entender a raiz do sofrimento, que
todos os seres que possuem essa raiz, embora sejam
diferentes, se tornam alvo da mesma compaixão, do mesmo
tipo.

Por outro lado, olhar para as pessoas do mesmo jeito, isto é,


reconhecer o que nelas há de além das características, é
exatamente a prática da compaixão-sabedoria, além dos
julgamentos. Simultaneamente, porém, vemos os seres com
todas as suas características particulares, e com todas as suas
diferenças. Ver dessa forma duplamente o que há de comum a
todos os seres que sofrem, e o que há de único em cada um
deles é o que possibilita a ação compassiva de um Buda. A
ação e a compaixão portanto são a mesma, no sentido do
comprometimento completo com a situação de forma
imparcial e sem julgamentos, e são diferentes, no sentido do
respeito completo por qualquer particularidade.

Se um ser deixar de gostar ou não gostar, ele não se


tornaria apático? Porque seria bom ser alguém que
não gosta nem desgosta? O melhor não seria, pelo
menos, gostar de tudo?

O darma não usa a língua de forma frívola, porque ao estudar


a mente é necessário ser preciso e um bocado técnico com a
terminologia.

Gostar e não gostar são o que chama-se de "preferências",


vedanas, que estão vinculadas a hábitos. É claro que, se a
pessoa não é precisa com as palavras, ela vai igualar
compaixão por todos os seres com preferência por todos os
seres. A compaixão pode ser também um hábito, para quem
não a reconhece como uma qualidade natural — mas o que ela
é de fato é uma qualidade natural, não uma preferência. O
treinamento em compaixão pode começar com a formação de
hábitos, mas no fundo ele não é um desenvolvimento da
compaixão, e sim um revelar, um reconhecimento, uma
fruição de uma qualidade natural. Então existe uma diferença
muito grande entre preferência, que é algo artificial,
embasado em tendências e hábitos (adventícios e que surgem
da ignorância) e a compaixão, que em seu sentido mais real, é
uma qualidade espontânea da natureza de buda que todos
possuem.

As preferências são artificiais, parciais, duais, separativas,


temporárias, baseadas em causas e condições (muitas vezes
ao ponto de se poder apontar "porque se gosta", ou se vincular
ao eu, "isso é a minha cara"). Portanto, do jeito que
preferências são definidas no darma, não faz nenhum sentido
dizer "gostar de tudo", gostar é, necessariamente, gostar de
algumas coisas, de algum jeito, por algum tempo, por algum
motivo. As preferências são totalmente condicionadas
(tecnicamente, pelo "contato" dos órgãos dos sentidos com os
objetos, com os próprios órgãos dos sentidos, que são uma
interface com nome-e-forma, que são uma forma de
estabilizar a consciência, que é um surgimento natural das
marcas e hábitos mentais, que são fundados na ignorância: 7.
vedana, 6. spasha, 5. shadayatana, 4. nama-rupa, 3, vijnana,
2. samskara, 1. avidia — que são os 7 primeiros dos doze elos).

A apatia também é um hábito mental, e a pessoa pode


inclusive ter preferência, inclinação, gostar da apatia — o que
é causado pela ignorância. A psicologia define como
"deficiência do afeto", isto é, falta de empatia, compaixão.

A compaixão é natural, incondicional, não causal, atemporal,


criativa e cheia de bem-aventurança. Ela pode ser treinada
como um hábito, mas como ela é um hábito que se coaduna
com a realidade fundamental e não corruptível em cada um
de nós, o abandono do hábito (positivo) quando a compaixão
surge por si só é a espontânea manifestação das qualidades de
um Buda. Também é impossível compaixão completa
enquanto há preferências, gostar e não gostar. Compaixão
portanto não é gostar de tudo, e sim beneficiar e ter afeto por
todos independente das preferências, dos condicionamentos,
das questões temporárias. A total superação da apatia é ter
compaixão, afeto, empatia, até por aqueles que nos
desagradam, e principalmente por estes — porque com o
tempo e com a prática da virtude, o que nos desagrada é a
ação negativa — e seres envoltos em ações negativas são
desagradáveis. Mas é exatamente por eles que mais
abandonamos a apatia e geramos a empatia.

Se estamos falando com uma criança, podemos até dizer "é


gostar de todos, de tudo" — mas quando vamos criando um
vocabulário mais preciso e mais útil na comunicação com
outros budistas, então precisamos separar os termos de
acordo com suas definições técnicas.

Uma barata é um ser digno de compaixão no


Budismo? Há algum problema em eliminá-las?

Claro. Elas sofrem.

As virtudes são as seis perfeições?


Tecnicamente falando, não. As virtudes são o oposto das
desvirtudes, assim: salvar vidas, fazer doações, praticar
sexualidade benéfica a todos os envolvidos, falar a verdade,
falar mansamente, falar com propósito (e não inutilmente),
louvar e elogiar o que merece ser louvado e elogiado. Ter boa
vontade com os outros, ser desapegado e manter o darma
puro em mente.

Mas as seis perfeições e as quatro qualidades


incomensuráveis também são virtuosas, é claro.

Por favor, você poderia explicar um pouco sobre as


seis perfeições?

As seis perfeições são ao mesmo tempo práticas e qualidades


inatas da mente. Isto é, pratica-se as seis perfeições para
reconhecer a natureza da mente com suas qualidades. Elas
são praticadas em termos das três esferas, agente, paciente e
ação. No sentido último, reconhece-se a inseparatividade das
três esferas.

As seis paramitas são generosidade (material, de tempo e


atenção e de prática espiritual), ética (disciplina moral,
austeridade e engajamento no treinamento da mente),
paciência (consigo mesmo, com os outros e com a
profundidade dos ensinamentos), empenho (diligência,
perseverança, alegria no esforço que traz benefício aos outros,
em particular na divulgação e longa vida do puro darma),
concentração e sabedoria.

O que é bodicita?

É a aspiração e a ação de beneficiar os seres num sentido


último, isto é, a aspiração e o engajamento em ajudar os seres
a revelarem sua natureza de buda. Difere da compaixão em
que esta inclui o aspecto relativo, de apenas fazê-los deixar de
sofrer, temporária e definitivamente, e não contém o aspecto
de necessariamente desejar que suas qualidades floresçam.
Bodicita é desejar o fim do sofrimento definitivamente e, além
disso, a realização definitiva das qualidades de um Buda. E se
esforçar nessa direção.

É querer e fazer (aspiração e ação, dois tipos de bodicita) que


os outros sejam Budas.

Se tudo é sonho, o sofrimento também não é


ilusório? E não seria então a indiferença mais
razoável racionalmente? Se tudo é do jeito que é,
por que eu devo sofrer-com, ter compaixão por algo
que ultimamente não é real?

Essa é uma pergunta bastante comum. Qual é o objeto último


de compaixão? A ignorância de reificar o sonho. Segundo o
budismo, a base do sofrimento é exatamente essa, e não é
possível ser verdadeiramente compassivo sem essa noção —
todas as compaixões derivadas, sem isso, não são compaixão
de fato.

Então é exatamente o oposto, se a pessoa não tem noção de


que tudo é um sonho, ela apenas sofre junto, sem ter
possibilidade verdadeira de ajudar.

Todos os nossos sofrimentos comuns (exceto o sofrimento de


reificar) são como o sofrimento de uma criança que perdeu
um brinquedo. Você diz para ela "mas aqui tem outro", e não
adianta. É porque reificamos nosso corpo que a morte se
torna um sofrimento, e assim por diante.

Então reconhecer o sonho como sonho, sabedoria, vêm junto


com a compaixão por aqueles que reificam o sonho.

O Mahayana e os Aspectos Místicos


Transcrição da palestra realizada pelo Lama Padma Samten no CEBB Caminho do
Meio, Viamão (RS), em 13 de abril 2005.

Durante um longo tempo temos abordado os ensinamentos aqui no Caminho do Meio dentro da
perspectiva Mahayana, pensei em falar hoje os ensinamentos em uma abordagem
complementar. A abordagem Mahayana é toda lógica, estruturada, ligada à nossa vida
cotidiana, portanto, ela não tem nenhum aspecto místico. Todas as religiões têm algum ponto
místico, mas na abordagem Mahayana não encontraremos nenhum traço místico.

A abordagem Mahayana enfatiza especialmente as quatro qualidades incomensuráveis:


compaixão, amor, alegria, equanimidade; e as seis perfeições: generosidade, moralidade, paz,
energia constante, concentração e sabedoria. No ensinamento do Nobre Caminho Óctuplo
também não há nada místico. Em primeiro lugar vem a motivação e, a seguir, não trazer
sofrimento aos seres com a mente, não trazer sofrimento com a fala, não trazer sofrimento com
o corpo, as qualidades incomensuráveis e as seis perfeições, meditação em silêncio, perfeição
da sabedoria – que é uma forma de olharmos todas as coisas através de vacuidade e
luminosidade; e, finalmente, temos a sabedoria yeshe, sabedoria que localiza aquilo que é
incessante, luminoso, sempre presente em qualquer experiência. Localizamos através de um
processo direto, não há propriamente lugar para as deidades nessa abordagem, não há nem
mesmo lugar para falarmos do Buda ou qualquer ser extraordinário. Nessa abordagem da
perfeição da sabedoria não há lugares para qualquer aspecto místico.

Oráculo dos Dalai Lamas


Em nossa experiência cotidiana percebemos que há as experiências mediúnicas. No budismo
não enfatizamos isso, mas não negamos. Há na tradição budista tibetana a noção dos
oráculos, Sua Santidade Dalai Lama trabalha com o oráculo de Neshung. Na visão mística
tibetana havia um ser de grande poder, como se fosse de uma intenção negativa. Guru
Rinpoche atou por compromisso esse ser e ele se transformou em protetor do Darma, mais
adiante se transformou no protetor dos Dalai Lamas. Todos os Dalai Lamas são protegidos por
esse ser que se manifesta mediunicamente, os Dalai Lamas mudam, mas Neshung é sempre o
mesmo, manifestando-se desde uma posição de lucidez, manifestando uma sabedoria. Ele não
manifesta prajna, yeshe, ele manifesta uma sabedoria do mundo. Sua Santidade Dalai Lama
diz “Eu não obedeço Neshung, Neshung me obedece. Eu escuto Neshung como escuto um
ministro. Neshung fala, eu ouço e faço o que eu quiser.”
O oráculo não é completamente onisciente, não tem a visão de um Buda, é um ser com uma
visão diferente. Por exemplo, se quisermos saber do tempo ligamos a televisão em certo
horário e vemos um “oráculo” que diz: amanhã choverá. De um modo geral ele acerta, mas
nem sempre. Houve uma época na “linhagem” desses seres que preveem o tempo em que eles
erravam muito mais. Hoje eles têm olhos localizados a 100 quilômetros acima das nuvens e de
lá a visão transcendente deles vê tudo. Agora eles estão com esse sidhi de mostrar para nós o
que veem, eles fotografam e mostram na televisão. Assim, a partir da proteção deles
descobrimos se vai chover ou não. Mas isso são coisas do mundo. Lá de cima, daquele poder
todo, ele não diz “Você vai bater com o carro”, “Sua mulher vai sumir”. As coisas que mais
importam, ele não diz. Um Buda veria as coisas realmente importantes, mas os oráculos dizem
algumas coisas e não dizem outras. Esse ponto dos oráculos nos toca. De um lado, temos uma
postura de fazer meditação em silêncio, de lucidez. E por outro lado, pensamos  “agora me
aparece o oráculo…” Como vamos tratar disso?
Estou apenas introduzindo a questão mística. Mesmo que se tenha uma abordagem da
perfeição da sabedoria, pode-se pensar que há alguma coisa a mais. Na visão budista todas
essas dimensões são vacuidade. Curiosamente, dentro do prajnaparamita não se diz “todos
os encostos são vacuidade, vacuidade é todos os encostos. Encosto é vacuidade, vacuidade é
encosto. Santo é vacuidade, vacuidade é santo”. Não tem isso, mas poderia ter. De qualquer
maneira precisamos olhar essas questões e já vou fazer um atalho: os santos são vacuidade,
todas essas influências são vacuidade, se usarmos prajna ultrapassamos isso.

Seis Bardos
Os aspectos místicos se apresentam também em outra dimensão. Especialmente os tibetanos
vão dizer que temos os seis bardos. Temos não apenas essa experiência lúcida durante a vida,
como temos também o sonho. O sonho é uma região interessante porque dentro dele muitas
coisas acontecem. Várias tradições budistas e não budistas valorizam muito os sonhos. Os
jungianos e diversas tradições xamânicas, por exemplo, consideram os sonhos  muito
importante. No budismo há duas vertentes: uma que não valoriza o sonho, porque se a
realidade comum é vacuidade, o sonho seria supervacuidade, é um sonho dentro da própria
vacuidade. E há uma corrente que vai atribuir certo significado ao sonho. Um significado muito
hábil, muito interessante que está ligado à noção de vacuidade, porém, enquanto eu posso
criticar o sonho e dizer que se reduz a vacuidade, posso também reconhecer o sonho como
vacuidade não pela inexistência da forma, mas enquanto forma, ainda assim, ele é vacuidade.
Com isso podemos pensar: já que essa forma é vacuidade, como ela surge? Qual é a origem
dela?

Observo o conteúdo do sonho e vejo que ele corresponde a uma estrutura cármica que está
presente. Não preciso atribuir uma estrutura sólida ao sonho para considerar que tem valor a
análise de que ele está indicando uma determinada estrutura cármica. Não preciso negar que
todas as coisas surgem por vacuidade e luminosidade, mas ainda assim, vejo que tem uma
estrutura cármica que o sonho está revelando. Essa é uma forma mais profunda de examinar o
conteúdo do sonho. Mas para muitos de nós o sonho é algo importante, sonhamos com
pessoas falecidas, com situações que não vivemos ou aspiramos viver; encontramos pessoas
à distância e aquilo parece que diz alguma coisa. Se dissermos que o sonho simplesmente não
diz nada, isso não satisfaz porque sentimos que ele diz alguma coisa.

Também no nosso cotidiano temos uma dimensão mística que está ligada aos nossos próprios
pensamentos. Temos uma habilidade de sonharmos acordados, vemos situações futuras ou
sonhamos acordados com o futuro. Temos aspirações. Os quadros que sonhamos e aspiramos
nos tocam e surgem energias que nos deixam mais vivos, mais felizes, ou, por vezes,
assustados. Ainda que a gente passe por aquela situação de forma concreta, esse sobrevoo
nos leva a essas regiões. Se simplesmente dissermos “os sonhos são sonhos, as imaginações
são imaginações”, isso não satisfaz completamente. Sabemos que há regiões que nos tocam,
regiões que penetramos por sonhos, dormindo ou acordados.  Eventualmente, o fato de
penetrarmos nessas regiões, afeta a nossa direção no cotidiano. Deveríamos ter algum tipo de
lucidez para saber como aproveitar essas experiências, que significados podemos dar e como
lidamos com elas.

Depois temos a experiência da própria meditação. Em meditação podemos ter muitas


experiências diferentes. Algumas pessoas veem luzes, outras veem a parede e as formas
diante de si, ou veem a parede se abrir e a visão aparentemente atravessa, a pessoa vê coisas
atrás. Essas são situações que podem acontecer durante a meditação e não entendemos muito
bem. Ainda assim, guardamos essas experiências e elas vão povoando esse conjunto de
imagens que não conseguimos entender completamente, mas sentimos que há regiões que
podemos entrar e sair sem entender bem o que seja. Todas essas regiões povoam a nossa
imaginação, pensamos que há algo extraordinário, algo místico que a religião deveria acessar,
elucidar e entender. Volto a dizer que prajna entra em todas essas regiões. Com lucidez
podemos entrar, esclarecer e ter estabilidade nisso. Mas, por enquanto, estou nesse papel de
provocar o contato com essas áreas que temos falado pouco.
Também vocês vão ver a experiência do morrer. É comum durante a vida termos uma ou outra
proximidade com a morte, através de acidentes ou doenças podemos passar muito perto
dessas situações todas e elas nos trazem um tipo de experiência que não tivemos antes. Por
uma razão ou outra, podemos ter essa proximidade com a experiência da morte e podemos ter
dúvidas e sensibilidade com essa região. Podemos olhar e sentir que tem um mistério ali
dentro, algo extraordinário. Aqueles que já se sentiram afetados guardam de forma nítida essas
experiências. Eles sabem que o estado de saúde, de vida, é frágil. Podemos repentinamente
nos aproximarmos da morte e as experiências que teremos serão muito diferentes das
experiências ordinárias da vida. Guardamos essa sensação, eventualmente, de algo escuro,
temos dificuldade de conduzir a nossa mente.  A mente se acelera, adquire significados e
feições particulares e tentamos posicioná-la em outra direção. Porém, a nossa mente é
arrastada numa direção como se fosse um vento forte, tentamos assumir o controle e
percebemos que a nossa força é muito menor que a força das circunstâncias cármicas que nos
arrasta em meio a essa proximidade da morte. Diante disso, podemos nos sentir muito frágeis
e quando voltamos à situação onde temos controle aparente sobre tudo, guardamos essa
memória de que aquela etapa não foi interessante. Estamos frágeis, mas não sabemos o que é
essa etapa, não sabemos o que nos espera, temos novamente a sensação de que há regiões
que não entendemos bem e podemos vir a ter que nos defrontar com essas regiões.

Ouvimos também experiências sobre o pós morte. Talvez alguém tenha lembrança ou tenha
lido sobre isso.  Talvez vocês tenham passado por essa experiência, estiveram em coma ou
acidentaram-se, estiveram em situações muito próximos da morte e retornaram por alguma
razão. Essas regiões podem surgir como lembranças enevoadas, inexplicáveis, e enquanto
estamos vivos, lúcidos, tentamos acessar novamente a experiência e não conseguimos. De
novo, essas experiências povoam a sensação de que há algo que não acessamos
propriamente durante a vida, são regiões místicas. Através de regressões, de sonhos e outros
processos, talvez vocês tenham lembranças de terem chegado a sensações antes do
nascimento, de encontrarem os pais, ou de terem uma conexão com mestres em outras vidas.
Perguntamos “Isso significa o quê? Essas dimensões são reais ou estou apenas sonhando?”

Mesmo durante a vida podemos ter sensações místicas mais superficiais que estão ligadas às
pessoas com as quais convivemos e, eventualmente, podemos imaginar que já vimos aquela
pessoa que estamos encontrando pela primeira vez. Brota a sensação de que já vimos aquele
ser. Olhamos no rosto e pensamos “Nossa! Eu falo alguma coisa e o ser entende! É
extraordinário! Outras pessoas não entendem, mas ele entende. Não só entende como
concorda e diz: sim, vamos fazer juntos”. Pelo menos nos primeiros três meses ele concorda
com tudo… Temos essa sensação de uma identidade de outras vidas, tudo isso povoa esse
universo místico. Mesmo que se pratique o prajnaparamita, a compreensão da vacuidade de
todas as coisas, ficamos com certa dúvida: não haveria uma região em que
o prajnaparamita  não funciona tão bem?

Deidades do Budismo Tibetano


No caso do budismo tibetano vamos encontrar ainda outros elementos que não estamos
acostumados, eles não pertencem a esse universo comum. Por exemplo, vamos encontrar os
vários budas aqui nos  tankas, no altar. Começamos com essa figura extraordinária
de Manjushri, com uma espada na mão, uma flor de lótus e o prajnaparamita. 
Depois encontramos Arya Tara. Delicada, uma figura realmente encantadora; uma flor de lótus,
arco e flecha na flor de lótus. Uma figura encantadoramente linda, se vocês acham ou não, isso
não é o ponto, mas ela deveria ser.

Depois temos um ser com mil braços e um olho em cada braço, com onze cabeças, todas
pensando para o bem, o que é extraordinário. Os mil braços de Cherenzig simbolizam os mil
budas que virão, é a visão de mil budas. Estamos no quarto buda dessa era, é como se o Buda
Sakiamuni fosse a emanação do quarto desses braços.  Muitos budas ainda virão para nos dar
suporte e nos ajudar nesse processo todo, muitos “braços” virão.

A seguir temos o Buda Sakiamuni, que é o fundador do budismo nessa era, ele está sentado,
está com uma mão no chão e a outra segurando a tigela. Ao lado temos Guru Rinpoche que é
o Buda do Tibete: extraordinário, nascido do lótus, glorioso, poderoso. Ele se manifestou no
mundo de várias formas e isso é traduzido por diferentes roupas que ele usa, uma sobre a
outra.

Um pouco adiante vamos ver Vajrasatva. Olhamos e não percebemos que ele está abraçado
com a consorte. Se fixarmos o olho, vemos que tem uma figura apaixonada olhando para ele, é
a consorte. É um ensinamento muito importante sobre a inseparatividade do observador e do
mundo como ele vê. Consorte é o mundo. Estamos o tempo todo inseparável de consorte,
podemos não vê-la, mas estamos inseparáveis o tempo todo.
Depois tem outro ser poderoso, envolto em chamas e cores terríveis, que é o devorador de
demônios. Coisa pouca, um ser tranquilizador.

Isso é só uma gota do panteão tibetano. São todos do bem.

Vocês vão ver um pouco abaixo outras imagens tridimensionais. Existem muitas imagens,
todas elas significam também deidades, qualidades específicas. Acima, estão os cinco Diani
Budas, cada um com uma sabedoria e uma forma específica. Nos armários do altar podemos
ver imagens representando outras características, todas elas apelam para alguma coisa dentro
de nós. Surge algo místico: onde é que eles vivem? Quem são eles? O que fazem? No
budismo não há um único Buda? Há uma variedade de budas? O que isso significa? Dizemos
que prajnaparamita e vacuidade é tudo, mas se prajnaparamita e vacuidade é tudo por
que tantas imagens? Por que tantos mantras? Os tibetanos têm diferentes imagens e isso nos
permite perguntar onde eles residem. Eu mesmo perguntei para Chagdud Rinpoche:
“Rinpoche, em que lugar eles estão?”
Temos essa diversidade, logo, os tibetanos introduzem outros tantos elementos místicos.

Mundos sutis, sidhis, deidades mundanas


Os tibetanos vão falar também sobre a Roda da Vida, onde temos seis reinos. Um reino é
humano, outro é dos animais, os demais reinos são outros lugares. Vocês vão ouvir dos
mestres, como Trungpa Rinpoche, que diz: os seis reinos são aspectos da vida humana.
Outros mestres vão dizer isso também, mas todos eles põem uma vírgula num certo momento
e dizem “Há também os reinos específicos. Há mundos específicos, sutis”.

Existem os tertons, aqueles que são detentores da visão, eles voam por dentro de todos
esses reinos e encontram os seres. Há também os delogs, que abandonam a vida dentro do
corpo. O corpo enrijece, esfria, os batimentos cardíacos cessam e eles viajam por esses reinos
todos, encontram seres, ouvem o que eles dizem, trazem recados; depois eles retomam a vida,
o corpo se aquece, a respiração volta, o coração bate. Eles dizem: “olha, o pessoal lá mandou
uns recados para vocês…”.
A mãe de Chagdud Rinpoche era uma delog, ela fez uma viagem desse tipo. Ela dizia “Vou
abandonar o corpo em meditação e viajar pelos seis reinos.” E todos os lamas diziam “Não faça
isso, você vai morrer, não faça isso.” Ela insistiu e eles se convenceram. Os lamas ficaram em
volta dela por vários dias fazendo um único puja, dia e noite. Ela abandou o corpo, esfriou,
cessou o batimento cardíaco, cessou a respiração e foi… E os lamas seguiram rezando.
Depois ela voltou, o corpo se aqueceu, respirou, bateu o coração e ela contou o que viu. Ela
encontrou Arya Tara, encontrou Tara branca que a levou pelos vários mundos; encontrou com
pessoas, trouxe recados.
Há essa dimensão toda. Vocês também vão ouvir sobre as dimensões dos sidhis. Lamas
praticaram certas coisas e desenvolveram diferentes feições de corpo, desenvolveram
transformações extraordinárias, habilidades extraordinárias. Tudo isso está dentro dos sidhis e
do aspecto místico. Vocês vão ouvir de mestres que, ao abandonar o corpo, o corpo se
dissolveu, restaram cabelos e unhas. Vocês vão ver mestres que desapareceram no céu, se
transformaram em luminosidade, em arco íris, e não deixaram nenhum traço, sumiram. Vamos
encontrando todas essas categorias de coisas inexplicáveis.
Podemos ainda nos conectar com a noção das deidades mundanas. Temos um olho que
começa a ver as deidades todas. Esse olho é interessante, vocês vão começar a desenvolvê-lo
quando ao olhar os objetos perceberem a propriedade se manifestando dentro de vocês ao
invés de vir do objeto, como acontece com os meninos pré-adolescentes. Dizemos: “Agora é
hora do banho”. E está lá o menino diante do chuveiro, ele não tem a menor vontade de entrar
na água, especialmente se a água é fria. Ele poderá dizer “A água é fria, não quero entrar no
banho.” Mas se o menino for um praticante ele dirá “Tem algo profundo aqui. A água é apenas
a água, mas eu tenho dentro de mim uma dimensão energética de fuga, de sair correndo”.
Olhamos dessa forma em vez de olharmos o aspecto externo como o gerador do nosso
impulso. Não explicamos mais “A água está fria, assim, eu vou fugir”, dizemos “Há algo que
vejo surgir internamente porque a água está diante de mim”. Começo a examinar o surgimento
interno, pode haver aquilo ou não. A água, para algumas pessoas, não é uma grande coisa,
mas outras querem fugir. Começamos a olhar os objetos externos a partir desse olho e
passamos a entender, lentamente, que há uma dimensão dentro de nós, essa dimensão pode
ser repetitiva: diante de certas circunstâncias manifestamos as mesmas estruturas.

Cinco elementos, aspectos mágicos


Eventualmente, descobrimos que os cinco elementos são como cinco deidades. Todos nós
temos uma relação lúdica com a água, todos nós temos uma relação lúdica com o fogo, com a
matéria; ou temos uma relação lúdica com a rocha, com a pedra, com a madeira. Todos nós
temos uma relação lúdica com o vento, com o ar, com o espaço, com a vacuidade e com o
aspecto etéreo. Vemos que o éter nos diz alguma coisa, também a água, o vento, o fogo, a
terra e a madeira nos dizem alguma coisa. Algo surge dentro de nós no contato com esses
elementos. Vocês vão perceber, todas as tradições xamânicas vão fazer conexões. A águia
não é a águia no céu, é a águia dentro de nós, ela é inseparável de nós. Não é o urso lá fora, é
o urso que brota dentro de mim quando vejo o urso.   Quando vejo o urso, vejo que há alguma
coisa dentro de mim. Quando eu olho para o lobo, algo surge dentro de mim. Cada animal tem
um efeito. Quando surge o urso isso tem um efeito, uma energia dentro de mim, pode ser que
eu consiga lidar bem, assumir essa energia e o urso se torna um protetor. Se eu não trabalhar
bem com essa energia, eu tenho medo, não consigo me relacionar bem com a energia.

É natural, se eu estiver num espaço da natureza devo desenvolver uma capacidade de relação
com os vários elementos: água, terra, fogo, ar, éter, urso, lobo, cão, gato, tigre… É necessário
que eu desenvolva uma relação lúcida com todos os elementos. Cada um desses elementos e
animais vivem dentro de mim. Assim, na visão xamânica, todos esses processos são deidades.

Também os homens, por exemplo, ao olharem as mulheres surge uma energia dentro deles; as
mulheres olham os homens e surge uma energia dentro delas. Podemos olhar homens e
mulheres como deidades também.  Essas deidades ultrapassam o fato de que a mulher se
chama Maria ou o nome que ela tiver, vemos uma dimensão feminina. Do mesmo sentido que
eu posso ter uma chama no chão hoje, amanhã vou ter outra fogueira, outra chama, mas é o
fogo; posso ter uma água que encontro hoje, uma água que encontro amanhã, mas é água. 
Vou encontrando esses elementos que podemos chamar arquetípicos, mas é preferível não
usarmos essa noção, essa é uma noção psicológica. É mais que isso. Assim, podemos
encontrar vários ursos, mas todos  são ursos. Vários lobos, mas todos são lobos. Temos essa
dimensão. Do mesmo modo encontramos várias deidades, como Cherenzig, Arya Tara,
Manjushri, todos eles simbolizam estruturas dentro de nós, porém, a nossa linguagem agora é
diferente. Quando vejo os objetos, vejo essa linguagem dentro mim, é uma linguagem
particular, vamos nos relacionar com o mundo a partir dessa linguagem que é totalmente
mágica. É outra linguagem, outro processo. Não lido mais com processos externos, vejo em
todas as dimensões aspectos mágicos. Porque estou vendo essas deidades, vejo o objeto e a
energia do objeto, vejo a ação da energia dentro de mim. Dessa forma, sei que estou na
relação com tal deidade.
Isso é outra forma de inteligência, outra forma de dar conta de tudo, muito mais sofisticada do
que a usual, ainda assim, é menos sofisticada que o budismo. É uma forma xamânica. O
budismo também entra nisso, ele decompõe e ultrapassa com prajna, que é o
próprio prajnaparamita. Pode-se usar essa linguagem, mas o prajnaparamita olha essa
linguagem não no sentido do que o fogo faz sobre mim, do que o aspecto masculino/feminino,
ou o aspecto etéreo opera sobre nós, mas no sentido de que podemos olhar os aspectos
variados, entendemos como eles operam, utilizamos isso e, ainda assim, somos
completamente independentes, livres de todas as energias que atuam sobre nós através
desses próprios processos; enquanto esse mestre xamã vai compor os elementos como um
médico administra princípios ativos químicos para nos curar. O xamã usa isso e reequilibra o
nosso funcionamento porque ele pega um elemento, combina com o outro e nos ajuda a fazer
isso. O mestre Xamã é capaz de entrar no nosso sonho e transformar a base do conteúdo do
sonho. É capaz de nos levar a ter um sonho específico que resignifica as nossas estruturas e
nos deixa, por exemplo, imunes a elementos desse tipo. No budismo, ainda que isso seja visto
como muito favorável, não estamos aqui compondo elementos como se fosse uma medicina,
vamos nos tornar imunes pelo poder de prajna e não por uma combinação de elementos.
Vocês veem que todos esses universos são xamânicos, mágicos. Se pensarmos que não
existe, estamos nos enganando, porque isso opera o tempo todo. Dentro do mundo da
racionalidade convencional não percebemos, mas há essa presença incessante operando
dentro de nós, quer a gente entenda ou não. O mundo místico, extraordinário, está presente
onde estamos, o tempo todo.  Os xamãs entendem de observar os pássaros e os animais
todos, eles entendem como os vários elementos atuam dentro desses animais. Do mesmo
modo, ouvimos um cachorro latindo porque há algo sobre o qual o cachorro está sensível,
existe um mundo interno no cachorro que dá significado às aparências. Ao perceber o
comportamento das plantas, dos cursos d’água, dos animais, eles estão sempre olhando isso e
eles se tornam muito hábeis em perceber que em pequenas variações há uma teia de
respostas, de significados e de sonhos. A natureza inteira sonha e os xamãs veem os sonhos
da natureza. Quando eles veem os sonhos da natureza, eles entendem os sinais, as
transformações, entendem o que está acontecendo. Essa é uma visão muito mais profunda
que a do caçador. Ele não está olhando isso porque quer caçar os animais, quer enriquecer ou
quer poder. O xamã é um contemplador desses fatos todos. Essa contemplação do mestre
xamânico já tem uma compreensão de vacuidade que pode ser real ou parcial, mas há essa
dimensão toda que temos que admitir que exista.
Fontes de refúgio | Ensinamentos de Jamgon
Kongtrul Rinpoche
Iniciamos olhando esses aspectos místicos e, aparentemente, eles seriam poucos. Mas agora
já estamos vendo que há um universo místico enorme. Como o budismo lida com isso? Qual é
a abordagem do budismo nesse sentido? Como vamos olhar esses fatos todos tão complexos?

Jamgon Kongtrul Rinpoche foi o primeiro mestre que eu ouvi falar. Curiosamente, é uma
conexão interessante porque eu continuo vendo os ensinamentos dele, por uma razão ou outra
ocorre esse fato. Jamgon Kongtrul Rinpoche é Jamgon Kongtrul III. Encontrei-o em 1989 no
Rio de Janeiro, alguns amigos da tradição Shambala de Trungpa Rinpoche, que eram aqui do
sul, sabiam o que se fazia no Cebb e disseram “você tem que conhecer Jamgon Kongtrul”.
Jamgon Kongtrul veio ao Rio de Janeiro, eles pagaram a passagem e me levaram para assistir
o retiro com ele. Ele era um jovem, deveria ter em torno de 36 anos. Fiquei muito feliz com os
ensinamentos sobre a vacuidade, sobre a natureza da realidade, especialmente sobre a
compaixão. É muito bonito ver um grande mestre dizer “Não se sintam bobos ao praticar amor,
alegria, equanimidade, entendam que isso é lucidez.” É muito bom, porque temos poucas
oportunidades de ouvir sobre isso. Na nossa vida ouvimos muitas coisas, mas pouco sobre a
necessidade de praticarmos essas qualidades. Lembro da minha felicidade, voltando de ônibus
de uma longa viagem do Rio de Janeiro, olhando todos aqueles ensinamentos que
reafirmavam o que já estávamos fazendo. É maravilhoso poder ouvir os grandes mestres e
dizer: esta é a linhagem dos mestres budistas.

Na época eu estava conectado ao Zen, a palavra compaixão é muito pouco usada no Zen. 
Compaixão e amor, se vocês ouvirem alguma vez num centro Zen, realmente é alguma coisa
extraordinária, porque eles não falam sobre isso. Nesse retiro, lembro que Jamgon Kongtrul
falou sobre seis reinos e sobre refúgio. Falou sobre várias coisas, sobre a natureza da
realidade também, mas me chamou a atenção essa questão dos seis reinos e dos refúgios, ele
analisou as fontes de refúgio. Assim, vou iniciar a abordagem desse tema místico através das
fontes de refúgio, que é um critério especial que podemos imediatamente aproveitar.

Citei muitas diferentes deidades, muitos diferentes processos místicos. Jamgon Kongtrul
Rinpoche dizia: “O refúgio é alguma coisa que está além da impermanência. Vocês não tomem
refúgio em seres poderosos, forças da natureza, manifestações mediúnicas, pessoas famosas,
pessoas de poder, ou pessoas que tenham morrido. Não tomem refúgio em pedras,
montanhas, cursos d’água. Não percam tempo, todos esses aspectos são impermanentes, não
têm a lucidez da natureza última.” A natureza última não tem origem e não tem fim. Se
pensarmos assim: urso, lobo, cão, águia, fogo, água, terra, ar, todas essas coisas têm um
comportamento relacional, elas pertencem ao mundo, são forças reais, mas não são fontes de
refúgio.

Quando buscarmos apoio nos aspectos místicos que não representam a natureza ilimitada,
sem origem e sem fim, sem espaço e tempo, sem nome e forma, estaremos nos fixando a
fontes de refúgio que nos levam a perpetuar o comportamento de equilibristas. Se estiver
doente, eu tomo um remédio e esse remédio equilibra a minha febre, por exemplo. É muito
importante que eu saiba tomar um remédio e baixar a febre, isso é muito útil, mas esse remédio
que baixa a febre não é a saúde; ele é um remédio que baixa a febre, não podemos comparar
isso com a saúde.  Chegamos numa farmácia e temos milhares de substâncias a nossa
disposição, cada uma delas nos arrasta numa direção. Nenhuma delas é um frasco que eu
abro e digo “isso é saúde”. Todos eles são processos hábeis que nós, como se tivéssemos um
bambu, estamos equilibrando e em nenhum momento vamos poder parar, se parar o bambu
cai.  Todas as fontes de refúgio que vêm do movimento do meu braço são importantes, por isso
o bambu está equilibrado, mas tenho um movimento incessante. Ele está equilibrado, mas com
uma sucessão de movimentos desequilibrados, uma sucessão de posições em desequilíbrio. É
necessário que eu esteja constantemente focado para equilibrar isso.

Há uma única posição que, enfim, há o equilíbrio, chamamos essa posição de fonte de refúgio.
Essa fonte de refúgio é a origem de todas as manifestações, não é um movimento
desequilibrado. Essa origem de todas as manifestações é a própria natureza de Buda dentro de
nós, está fora da roda da vida. Quando estamos dentro da roda da vida oscilamos com isso.
Essa é a resposta parcial, isso não encerra a nossa conversa. Mas, dentro de toda essa
diversidade mística, ela nos oferece um elemento. Dentro dessa diversidade toda de influências
há uma fonte de refúgio que é a natureza ilimitada que não tem início e não tem fim, não tem
nome e forma. Nossa natureza é incessante, luminosa, onisciente, compassiva, amorosa. Ela
não é assim porque certo evento surge, é assim incessantemente. Começamos a comparar as
fontes de refúgio verdadeiras com as fontes de refúgio que são remédio, elas têm qualidades,
mas são remédios, são fontes de refúgio parciais. Por exemplo, a nossa conta bancária é uma
fonte de refúgio parcial. Não posso pensar que ela vai durar para sempre. A nossa conta
bancária pode ser roubada, podemos ter vários problemas. Mas se eu disser que ela não tem
nenhum valor, isso também não é verdade, ela tem um valor, a conta bancária é algo
extraordinário.

As fontes de refúgio comuns são muito importantes. Se adoecermos chamaremos um médico,


chamaremos um xamã. Vamos pedir  “Por favor, me ajude. Eu queria uma sobrevidazinha.” Ele
vai dizer “Isso é fácil: não coma tal coisa, abandone o açúcar branco, farinha branca e
provavelmente tudo vai melhorar. Faça uma dieta de dez dias de arroz integral bem cozido,
etc.” E a partir disso melhoramos e recobramos a saúde,  porque o arroz integral é um bom
protetor. Existem muitos bons protetores, mas nenhum desses protetores é não nascido,
ilimitado, incessante, nenhum deles cura a morte.  Esses protetores são úteis, mas eles não se
comparam com a natureza ilimitada, porque a natureza ilimitada nos protege da morte, nos leva
além de vida e morte, além de nome e forma. Essa natureza se manifesta incessantemente. Se
soubermos disso, ótimo, se não soubermos, estamos perdidos. Mas, de fato, mesmo não
sabendo, nos achando perdidos, não estamos perdidos. Nossa natureza é infalível, ela é ótima
no sentido de que mesmo que eu não saiba, eu não me perco. Todas as tradições vão dizer
isso, nós morremos e não termina. Até mesmo na tradição cristã não termina. Apenas na
tradição niilista, nós morremos e viramos um buraco negro.

Grande Perfeição | Aspectos místicos como


expressões da natureza ilimitada
Existem as fontes de refúgio que, na verdade, são uma única fonte de refúgio que representa a
natureza ilimitada. Esse é o grande diferencial. A natureza ilimitada está além de espaço e
tempo, nome e forma, vida e morte; somos inseparáveis disso, esse é o aspecto místico
budista máximo. Quando praticamos em silêncio não estamos olhando nada dos aspectos
místicos, estamos centrados diretamente em localizar isso que não tem início e não tem fim,
nem nome e nem forma. Essa é a nossa experiência fundamental, portanto, mesmo que a
gente não tenha focado a comparação com as tradições xamânicas, mediúnicas, ou seja qual
for a tradição, naturalmente estamos focando o ponto principal.  Se localizarmos essa natureza,
ultrapassamos todas as outras fontes num único salto sem precisar passar por dentro delas, e
isso o caminho Mahayana faz.

Assim, vem a pergunta: essa diversidade de budas, como fica? O que veremos agora já é algo
mais sofisticado ainda. Por exemplo, dentro desse olho extraordinário onde vemos todas as
coisas aparentes como inseparáveis da natureza de Buda, vamos reconhecer todas as coisas
como vacuidade, isso é o prajnaparamita. Todos os darmas são vacuidade, são surgidos,
são expressões dessa natureza luminosa e vazia. Os ursos são assim, os lobos são assim,
todas as formas são surgidas dessa manifestação.
Agora fizemos um up grade na nossa visão.  Não estamos dizendo: os lobos são lobos. Os
lobos são manifestação da natureza última, por isso são lobos. Olhamos os ursos, os animais
todos, olhamos cada vegetação. Ao olhar para uma roseira observe o que acontece dentro de
você, com a rosa e com a planta. Capture essa energia da roseira, ela está presente dentro de
você.  Ela está ali, mas tem uma presença luminosa que produz a aparência da roseira como
ela é. É uma manifestação da natureza ilimitada que se fez roseira, outra natureza ilimitada se
fez pinheiro, outra se fez pedra, se fez as várias coisas, tem uma energia correndo por dentro
dela, tem uma liberdade se manifestando assim. Todos esses seres são aquela aparência, mas
aquela aparência está em contínua mutação, portanto elas são essencialmente uma energia de
vacuidade e luminosidade em constante transformação, em constante busca de equilíbrio,
como nós também. As folhas vêm, as folhas caem, a seiva sobe, a seiva diminui, a chuva vem,
o sol vem e tem mudanças incessantes. Tem uma presença viva ali dentro, uma presença
cósmica, extraordinária, não há nada na natureza que não tenha essa energia circulando, essa
energia viva operando. Olhamos desse modo e vemos budas com diferentes faces, com todas
as manifestações. Vemos a energia de budas se manifestando e produzindo aquelas faces
todas. Desse modo, estamos contemplando a vacuidade e luminosidade, porque essa energia
de Buda é a própria vacuidade e luminosidade, incessantemente se manifestando em todas as
aparências.
Veremos que há aparências mais sutis, extraordinárias, como a bondade dentro de nós, por
exemplo. Vemos surgir bondade, compaixão, amor, alegria, mas não sabemos de onde
surgem. Surge amor, mas vem de onde mesmo? Com isso, começamos a intuir as deidades,
localizamos esse amor como manifestação dos budas, do mesmo modo que as pedras, as
plantas, os ursos, os lobos, as minhocas, os cachorros, os gatos, nós, os seres.  Há um nível
mais sutil, vamos chamar isso, nos níveis das deidades, de Buda. Veremos os grandes
meditantes em retiros, parados, sem piscar, eles localizam a natureza última. Eles vêm que
dessa natureza última surge a meditação, da meditação surgem os cinco Diani Budas, dos
cinco Diani Budas surgem outras expressões mais sutis que não são propriamente humanas ou
físicas, são manifestações que vão se traduzir dentro de nós e dos seres. A compaixão não é
uma qualidade apenas dos seres humanos, ela já é uma manifestação extraordinária porque a
compaixão não é uma manifestação de autoproteção, é um mecanismo de proteção mais
amplo. É uma deidade, isso é Buda se manifestando. E assim vamos ver diferenças que vão
ser representadas, enfim, por deidades, com corpo antropomórfico, com corpo com aparência
humana, humanóides.
Vocês olhem Dorje Drolo,  que pode ser mal interpretado, porque aquela aparência dele está
mais ou menos. Dorje Drolo significa o devorador de demônios, um nome também não muito
tranquilizador. Dorje Drolo representa a capacidade de nos defrontarmos com tudo aquilo que é
negativo e ultrapassarmos esse aspecto de negatividade. Quando entendemos a natureza da
vacuidade dentro de nós, imediatamente sabemos que nada resiste a essa vacuidade. Todas
as coisas ultrapassam as aparências, todas as aparências são transitórias. Quando nos
valemos dessa vacuidade, olhamos os aspectos atemorizadores diante de nós e dizemos “Isso
é construído.” A sua essência é vacuidade e luminosidade, não tenho porque temer.  Mas é
Dordje Drolo o protetor, porque é apenas o aspecto externo que é tocado,  a nossa essência
não pode ser tocada. Então, devorador de demônios é aquele que olha para os demônios, ele
não tem medo. Na verdade, revelando a natureza aparente do demônio como uma construção,
ele dissolve o demônio, todos os demônios se assustam.

Ao olharmos para Dorje Drolo o que é que treme dentro de nós? Quando vemos uma figura
assustadora, o que é que treme dentro de nós? Vocês acham que a nossa natureza ilimitada
treme? Ou é a nossa natureza de fragilidade, são as nossas construções que tremem? São
elas que tremem! Quando vocês olham uma figura assustadora e tremem, Dorje Drolo está
presente ali, por que ele fez tremer o que? Aquilo que não somos. Dorje Drolo apareceu e
olhou para nós e vimos que fomos olhados, a nossa fragilidade viu Dorje Drolo. Dorje Drolo
está ali. Tudo isso é o aspecto místico. Vemos uma imagem e trememos, porque dentro de nós
o aspecto de fragilidade, de engano que queremos sustentar de qualquer jeito tremeu. Dorje
Drolo está vivo e faz um contato direto com os demônios que acalentamos como se fossem nós
mesmos , carcereiros, que prendem a nossa mente. Dordje Drolo faz um contato direto, é a
habilidade dessa linguagem. Quando vocês olharem uma imagem desse tipo, que é um buda
irado, e vocês tremerem dentro ou sentirem respeito, vocês agradeçam, vocês receberam uma
transmissão, vocês foram tocados por esse Buda. Ofereçam pelo menos um incenso e
guardem isso porque é muito importante. Essa é uma linguagem não verbal, uma linguagem
extraordinária. Vocês não pensem que isso é por acaso, todos esses elementos foram
desenvolvidos pelos budas.
Qual foi a inteligência que gerou esse procedimento para nos ajudar a localizar isso? Quem foi
que gerou isso? É uma inteligência búdica, uma inteligência como Manjushri, como Cherenzig,
Avalokitesvara, que olha para os seres atrapalhados e tenta gerar um mecanismo de ajudá-los,
mesmo que não tenham capacidade de entender, com dificuldade de raciocínio, que não sejam
alfabetizados, eles olham para Dorje Drolo e entendem alguma coisa. Essa é uma linguagem
extraordinária, assim surgem as várias deidades. Vocês respeitem cada um dos protetores
porque eles estão trabalhando nessa dimensão.

Essa dimensão não é mais sutil que a dimensão do silêncio, da decomposição das aparências
e a compreensão da natureza ilimitada dentro do silêncio. Se pudermos avançar assim,
estamos andando num caminho direto muito rápido. Com essa forma do silêncio que usamos
aqui avançamos diretamente no ponto.  Não precisamos palmilhar todos os nossos medos. Nos
reforçamos no contato com a natureza última e quando encontramos os medos, nós sorrimos
para eles, é mais fácil. Se não temos essa compreensão, no início olhamos as várias deidades
e nos assustamos. Talvez não seja no início, durante um longo tempo nós desenvolvemos uma
relação de susto e de incompreensão. Vamos recitar muitas vezes os mantras, vamos ouvir
ensinamentos, receber iniciações para poder operar dentro disso, até que a gente tenha uma
realização. Mas se temos o caminho direto e olhamos de forma nua, direta, com a perfeição da
sabedoria avançamos mais rápido.

Há esse universo místico, essa linguagem maravilhosa. Espero com o tempo que a gente
também tenha templos aqui dentro para a água, para o ar, para o fogo, para as várias
deidades. Temos uma área aqui no Cebb Caminho do Meio onde podemos ter pequenos
templos, pequenos recantos, que nos permitirão ter contato com essas deidades, podemos
senti-las todas como representando a natureza ilimitada. Isso seria um avanço, algo
maravilhoso podermos nos relacionar a partir dessa noção de prajnaparamita. Temos a
noção de luminosidade e vacuidade, não precisamos virar os olhos, abandonar, podemos olhar
e ver que todas as deidades se curvam a Guru Rinpoche. Guru Rinpoche entra no Tibete,
todas as deidades fazem prostrações, todas as imagens, todos os yidans fazem prostrações
para Guru Rinpoche.  Dizemos que quando o Buda Sakiamuni entra na sala todas as deidades
se curvam ao Buda. Por mais poderosas e gigantescas, por mais maravilhosas que sejam, elas
se curvam a Cherenzig, se curvam a Buda Sakiamuni, a Guru Rinpoche. Quando Guru
Rinpoche entrou no Tibete, as montanhas se curvaram a Guru Rinpoche, os cursos d’água,
todas as deidades comuns se tornaram protetores do Darma.
A linguagem mística existe, existe o mundo místico, existe o olho místico, mas a primeira
transição que fazemos quando acessamos esse ponto místico é observar: as deidades são
permanentes ou não? Estão submetidas à roda da vida ou não? Vocês vão ver que todas as
deidades estão submetidas à roda da vida, exceto às manifestações dos budas. As
manifestações dos budas não têm origem e não têm fim, elas são a natureza ilimitada, são as
fontes verdadeiras de refúgio. Agora, quando vemos as fontes verdadeiras de refúgio, podemos
entender que todas as manifestações comuns, todas as aparências da roda da vida, têm por
essência a natureza ilimitada. Somos capazes de converter qualquer linguagem comum na
manifestação da sabedoria de todos os budas e desse modo podemos olhar os ursos, os lobos,
as plantas, os cursos d’água, os cinco elementos, podemos vê-los como expressões da
natureza última também. Assim, a visão xamânica se funde com a visão búdica. Esse é o
diálogo que aconteceu dentro do Tibete quando vêm os budas,  se defrontam com as tradições
xamânicas antigas e se fundem com o budismo tibetano, olhando tudo isso de forma mística e,
além disso, transcendo o aspecto místico, mas usando a própria linguagem.

Desse modo, vocês não tenham medo e procurem compreender as várias manifestações
dessa maneira. A forma como trabalhamos no Cebb é, especialmente, com essa dimensão do
silêncio e da lucidez, que é a dimensão que usei para explicar isso hoje. Passeamos por dentro
do universo místico, mas usamos uma linguagem Mahayana, uma linguagem que explica,
examina, vê exemplos, compreende e traz a perfeição da sabedoria;  linguagem pela qual
entendemos que todos os fenômenos, portanto, todas as deidades, fontes de refúgio, todo o
samsara, todos os seis reinos são expressões da mesma natureza ilimitada. E, assim, vamos
chamar tudo isso de Grande Perfeição, de Kadag. Tudo isso tem uma pureza natural. Quando
os budas olham as coisas eles não acham que estão erradas, eles olham e sorriem porque
veem a perfeição em todas as coisas.

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