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o Espaco

eaHistória
110 Mediterrâneo
o Espaço
eaHistória
noMediterrâneo

courcxo o HOMEM E A HISTÓRIA o Espaco
Url/udd , I - O Espaço e a tIlslória no Mediterrâneo
Braudeí, f . Os Humens e a Hera nçe no Meduerraneo eaHistória
Pr6xim os /ançamenlo J
no Mediterrâneo
Dubv. v. - A t..uropa nllldade Mtdia
" 'o/fi, P • Outono da Idade Media ou Primavera dos ModuIIOS
Braudel
Marfins Fontes
Inuto original
LA MLDITERRA NÚE, L' ESPACE ET L'H ISTOI RE
Hammanon. 1985
I" edição brasileiro: jane iro de 1988
Traduçêo: Manna Appenzeller
Rel'/sõo do traduç ão: Alexandre Soares Carneiro
Índice
Fcrnand Bra ud eJ
Prodll(CiO gráfwo: Gc:raldo vtedtterrãneo .
Composiçiio: Artesnlo . Compositora Grahce
t-crn and BraudeJ
1 ferra .• .•..•. .... 7
Projeto de copo: Alexandre Martins Fon tes Fcrnand Braudel
fft8lr(lfiio do cepo- Brueghel. P ., POr/O de Nápoles (de13lhe) O mar . 29
lcrnand BraudeJ
...1 alvorada 55
Filippo Coarelli
Roma ..•..... . .•... . 85
Fcruand Braudel
A historta 105
70<.10$ os direitos I)(HO O Brasil reservados à
I.IVRAIUA MARTINS fONTES I::OITQRA LTI)A .
Rua Conselheiro Ramalh o. 330/340 Muurice Ayrno rd
0132.5 - Silo Paulo - SP - Brasil Fspoços 129
• •
Mediterrâneo
Nesse livro, os barcos navegam; as ondas repetem
sua canção; os vinhatelros descem das colinas das Cinque
Terre, sobre a Riviera genovesa; as azeitonas são vare-
jadas na Provença e na Grécia; os pescadores atiram
suas redes na laguna imóvel de Veneza ou nos canais de
Djerba; os carpinteiros constroem hoje embarcações se-
melhantes às de outrora. .. E ainda desta vez, ao ob-
servá-los, estamos fora do Tempo.
Nossa intenção foi a de promover um encontro cons-
tante entre o passado e o presente. uma passagem repe-
tida de um a outro, um recital sem fim a duas vozes
genuínas. Se esse diálogo, com seus problemas que ecoam
uns nos outros, animar este livro, teremos alcançado
nosso propósito. A história nada mais é do que uma cons-
tante indagação dos tempos passados em nome dos pro-
blemas e curiosidades - ou mesmo das inquietações e
das angústias - do tempo presente que nos cerca e asse-
dia. Mais que qualquer outro universo humano, o Medi-
terrâneo é uma prova disso, ele não cessa de se contar,
de se reviver. Sem dúvida por prazer; não menos por ne-
cessidade. Ter sido é uma condição para ser.
2 o ESPAÇO E A lIlSTORTA NO MEDITERRÁNéO MBDITERRANEO 3
o que é o Mediterrâneo? Mil coisas ao mesmo tem- gueiras da Barbaria - mas nunca as havia visto quando
po. Não uma paisagem, mas inúmeras paisagens. Não era vivo. E claro! São americanas. Essas grandes árvores
um mar, mas urna sucessão de mares. Não uma civiliza- de folhagem pálida que, no entanto, têm um nome grego,
ção, mas civilizações sobrepostas umas às outras. Viaja r eucalipto: jamais vira algo semelhante. São australianas!
pelo Mediterrâneo é encontrar o mundo romano no Líba- E da mema forma os ciprestes, que são persas. Tudo
no, a pré-história na Sardenha, as cidades gregas na Sl- isso quanto ao cenário. Mas ainda quantas surpresas
cília, a presença árabe na Espanha, o islã turco na Iugos- diante da menor refeição: quer se trate do tomate, esse
lávia. E mergulhar nas profundezas dos séculos, até as peruano, da berinjela, essa indiana, da pimenta, vinda
construções megalíticas de Malta ou até as pirâmides do das Guianas, do milho, mexicano, do arroz, essa dádiva
Egito. .E encontrar coisas muito velhas ainda vivas, lade- • dos árabes, para não falar do feijão, da batata, do pesse-
ando o ultramoderno: ao lado de Veneza, falsamente gueiro, montanhês da China que se tornou iraniano, nem
imóvel, a pesada aglomeração industrial de Mestre. Ao t do tabaco." E, no entanto, tudo isso se tornou a própria
lado do barco do pescador, que é ainda o mesmo de Ulis- ' paisagem do Mediterrâneo: "Uma Riviera sem laranjeí-
ses, a traineira devastadora do fundo do mar, ou os enor- ras, uma Toscana sem ciprestes, cestos sem pimentas ...
mes petroleiros. B ao mesmo tempo imergir no arcaísmo Para nós, hoje, não seria isso inconcebível?" (Lucien
dos mundos insulares e surpreender-se diante da extrema Febvre, Annales, XII, 29).
juventude de cidades muito antigas, abertas a todos os E se fizéssemos um catálogo dos homens do Medi-
ventos da cultura e do lucro, e que, há séculos, vigiam e terrâneo, aqueles que nasceram em suas margens, ou des-
comem o mar. cendentes daqueles que, em tempos longínquos, navega-
...E0r9..ue o Mediterrâneo é uma encruzilhada ram em suas águas ou cultivaram suas terras e seus cam-
muito antiga . Há milênios tudo converge em sua direção, pos em terraços, e, em seguida, de todos os recém-chega-
cOJ:fundindo e enriquecendo sua história: homens. , anj- dos que pouco a pouco o invadiram, acaso não teríamos a
_mais de carga" veículos, mercadorias... navios, idéias, relí- mesma impressão que tivemos ao fazer a lista de suas
gíões, artes de viver. E até mesmo plantas. Vocês as con- plantas e de seus frutos?
sideram mediterrânicas. Ora, com exceção da oliveira, da Tanto em sua aisa em física corno em sua paisagem
vinha e do trigo - autóctones há muito no local _ humana, o Mediterrâneo encruz i a a, o Mealterr neo
quase todas nasceram longe do mar. Se Her6doto, o pai heter6clito em as como uma
da História, que viveu no século V antes de nossa era, imagem coerente, como um sistema on e tu o se mistura
voltasse, em meio aos turistas de hoje, não cessaria de se e se recompõê numã UnI a e orlgínàl. Como explícãrêssé"
surpreender. "Imagino-o", escreve Lucien Febvre, "refa- unidade evidente, esse ser profundo do Mediterrâneo? Re-
zendo seu périplo do Mediterrâneo oriental. Quantas sur- petidos esforços serão necessários. A explicação não é so-
presas! Esses frutos dourados nesses arbustos verde. mente a natureza, que, a esse respeito, terá colaborado bas-
escuros, laranjeiras, limoeiros, tangerineiras, mas ele não tante. Nem apenas o homem, que reuniu tudo com obsti-
lembra de tê-los visto quando era vivo. Mas é claro ! São nação. São ao mesmo tempo da ou..§!!as
plantas extremo-orientais, trazidas pelos árabes. Essas maldiǧes umas e outras numerosas e os múlti-
plantas estranhas, espinhosas, de silhuetas insólitas, has- plos esforços dos homens, ontem como hoje. Ou
tes floridas, nomes estrangeiros, cactus, agaves, alcé , fi- soma interminável de acasos" acidentes e
, o ESP AÇ O E A HI STÓRIA NO McD1TERRÁNEO
o objetivo desse livro é mostrar que essas experiên-
cias e esses êxitos 56 podem ser compreendidos se torna-
dos em seu conjunto; mais ainda, que eles devem ser
aproximados uns dos outros, que a luz do presente fre-
qüentemente lhes convém e que é a pa rtir do que vemos
hoje que julgamos e compreendemos o passado - e reci-
procamente . O Mediterrâneo é uma boa ocasião para apre-
sentar uma "outra" maneira de abordar a história. Pois
o mar, tal como podemos vê-lo e amá-lo, é, acerca de seu
passado mais surpreendente, o mais claro de todos os
testemu nhos.
FERNAND BRAUDEL
Fig. I
Ramo de oliveira, espiga de trigo, cacho de uva,
baixos-relevos do templo de Ramsés li, Hermópolis.
© Eric Leselng, Megnum.
A terra
No mapa-múndi, o Mediterrâneo é um simples corte
na crosta terrestre, um fuso estreito que se alonga de
Gibraltar ao istmo de Suez e ao mar Vermelho. Rupturas,
falhas, desmoronamentos e pregas terciárias criaram íos-
sas líquidas muito profundas, e, como conseqüência,
diante de seus abismos, intermináveis guirlandas de mon-
tanhas jovens , muito altas, de formas vivas. Uma fossa
de 4600 metros escava-se perto do cabo Matapan, a qual
submergiria com muita tranqüilidade o pico mais alto da
Grécia, os 2985 metros do monte Olimpo.
Essas montanhas penetram no mar e às vezes estran-
gulam-no a ponto de reduzi-lo a um simples corredor de
água salgada: é o que acontece em Gibraltar, no estreito
de Bonifácio (Bocche di Bonifacio), no estreito de Messí-
na, com os abismos turbilhonantes de Caribde e Cila, ao
longo dos Dardanelos e do Bósforo. Não é mais o mar,
são rios, ou mesmo simples portas marinhas.
Essas portas, esses estreitos e essas montanhas proje-
tam sua articulação sobre o espaço líquido, nele recortando
regiões autônomas: o mar Negro, o mar Egeu, o Adriá-
tico, que por muito tempo foi propriedade dos venezia-
nos, o bem mais vasto Tirreno. A esse recorte do mar
8 o /:.'SPAÇO f: A HlSTORfA NO MEDITf RRANEO A TERRA 9
em uma série de bacias corresponde, como sua imagem pedaços de continentes. alguns engolidos, outros esmiga-
invertida, o recorte das terras em continentes distintos: a lhados. O que explica que os relevos retalhados ainda
península dos Balcãs. a Ásia Menor, a Itália, o conjunto não tenham sido por demais atingidos pela erosão. O
ibérico e a Africa do Norte. que explica os terremotos e o fogo dos vulcões, que gru-
No entanto, desse esboço de conjunto destaca-se uma nhem com freqüência, adormecem e também acordam de
Unha principal, essencial para a compreensão do passado forma dramática.
do mar. desde a época das colonizações gregas e fenícias Sentinela no meio do mar. eis o Stromboli e sua
até os tempos modernos. A cumplicidade da geografia e fumaça, ao norte das ilhas Lípari. Toda noite ele ilumina
da história criou uma fronteir a mediana de ilhas e costas com seus projéteis incandescentes o céu e o mar circun-
que, de norte a sul, corta o mar em dois universos hostis. vizinhos. Eis o Vesüvio, sempre ameaçador, embora há
Tracem essa fronteira, de Corfu e do canal de Otranto, alguns anos tenha cessado de erguer seu penacho de fu-
que quase fecha o Adriático, até a Sicília e o litoral da maça por trás de Nápoles. Mas, após muitos séculos de
atual Tunísia: a leste, vocês estarão DO Oriente; a oeste, um silêncio semelhante, destruiu completamente Hercula-
no Ocidente. no sentido pleno e clássico dessas palavras. no e Pompéía, em 79 d.C, E eis o rei das usinas de fogo,
Alguém se surpreenderia com o fato de esse eixo cons- o Etna (3313 m), sempre ativo. dominando a maravilhosa
tituir, por excelência. a linha principal dos combates do planície de Catânia. O Etna, local de lendas: os ciclopes,
passado: Actium, Prevesa, Lepanto, Malta, Zama, Djer- fabricantes dos raios celestes. nele manejavam. nas for-
ba? Linha de ódios e. de guerras inexpiáveis, de cidades jas de Vulcano, seus enormes foles de couro de touro. O
e ilhas fortificadas que espreitam umas às outras, do alto filósofo Empédocles teria se precipitado em sua cratera
de suas muralhas e de suas torres de vigia. que. segundo o que se diz, só teria rejeitado uma de suas
Aí a Itália encontra o sentido de seu destino: ela é sandálias. "Quantas vezes", exclama Virgílio, "vimos o
o eixo mediano do mar e, muito mais do que se diz geral- Etna fervilhante transbordar, expelir bolas de fogo e ro-
mente, sempre se desdobrou entre uma Itália voltada para chas derretidas," A história conheceu uma centena de
o Poente e uma Itália que encara o Levante. Não foi nisso erupções do Etna, desde aquela assinalada por Píndaro e
que por muito tempo encontrou suas riquezas? Ela tem Esquilo em 475 antes de nossa era.
a possibilidade natu ral, o sonho natu ral de dominar todo No Egeu, a ilha de Santorini (antiga Thera) é uma
o mar. cratera vulcânica da qual s6 resta a metade, tendo sido
invadida pelo mar quando uma enorme explosão partiu-a
em duas por volta de 1450 a.C. De acordo com os espe-
Uma geologia ainda em ebulição cialistas. a explosão teria sido quatro vezes mais forte
do que a que destruiu a ilha de Krakatoa, no estreito da
No Mediterrâneo. o motor das rupturas, das dobras Sonda, em 1883, provocando fantásticos vagalhões, pro-
e da justaposição das profundezas marinhas e dos cumes jetando um navio e locomoti vas por cima de casas de vá-
montanhosos é uma geologia em ebulição, cuja obra rios andares e transportando por centenas de quilômetros
ainda não foi apagada pelo tempo, e que continua a cau- nuvens de cinzas opacas e incandescentes. Seria então
sar estragos diante de nossos olhos. O que explica que o absurdo acreditarem os historiadores poder contar, entre
mar seja semeado de ilhas e penínsulas, fragmentos ou os inúmeros estragos da explosão de Santorini, o desapa-
10 o ESPAÇO E A HISrORIA NO MEDITER10.NEO A TERRA 11
recimentc brutal da tão brilhante civilizaçâo de Creta, de recentes , altas, de formas movimentadas, e que, como um
súbito atingida mortalmente, e por volta da mesma época? esqueleto de pedra, irrompem na pele da região mediter-
Essa erupçao de Thera de fato sepultou Creta sob cinzas rânica: os Alpes, os Apeninos, os Balcãs, o Taurus, o
ardentes, que as escavações reencontram, e que por mui- Líbano, o Atlas, as cadeias da Espanha, os Pireneus, que
to tempo impediram o cultivo. Teriam suas nuvens pesti- cortejo! Picos abru ptos, cobertos de neve por muitos
lentas atingido a Síria e o Egito? O "Êxodo" fala de uma meses, que se erguem sobre o mar e sobre as planícies
noite aterrorizante de três dias, durante a qual os judeus, quentes onde florescem rosas e laranjeiras; inclinações
então prisioneiros do fara6, ap roveitaram para fugir. De. íngremes que caem muitas vezes diretamente na água -
ve-se ligar esse acontecimento ao vulcão de Thera? essas paisagens clássicas, que podem ser encontradas de
Em todo caso, da mesma forma que o vulcão da um lado ao outro do Mediterrâneo , são quase intercarn-
antiga ilha de Krakatoa, apesar de imerso, continua ati- biáveis. Quem poderia se vangloriar de reconhecer à pri-
vo, a cra tera de Santorini prosseguiu sua atividade. Des- meira vista a costa da Dalmácia, a costa da Sardenha ou
de o século I a.C. até nossos dias (1928), sucessivas erup- a costa da Espanha meridional perto de Gibraltar? Quem
ções fizeram surgir uma série de ilhas e ilho tas vulcâni- não se enganaria? E, no entanto, situam-se a centenas de
cas nas águas da antiga cratera, e o mar ainda hoje fer- quilômetros umas das outras .
vilha ao largo de Santorini, a ilha de cores estranhas. O A montanha, porém, não margeia todo o Mediterrâ-
fogo continua aceso, portanto, sob o caldeirão do diabo. neo. Já na costa norte há algumas interrupções: a costa
De resto, desde os primeiros momentos de sua his- do Languedoc, até o delta do Rô dano, ou a costa baixa
tória até nossos dias, não viveram os homens do Medi- do Vêneto junto ao Adriático. Mas a principal exceção
terrâneo sob a constante ameaça de erupções vulcânicas à regra é, ao sul, o longo litoral insolitamente plano,
e de terremotos? Na 'antiqüíssima cidade de Catai Hüyük, quase a perder de vista, que se estende por milhares de
na Asia Meno r, a pintura mura l de um santuário, datada quilômetros, do Sahel tu nisiano ao delta do Nilo e às
de 6200 a.C., representa, ao fundo das casas de vários montanhas do Líbano . Nessas costas intermináveis e mo-
andares da cidade, um vulcão em erupção, sem dúvida n õtonas, o Saara se encontra em contato direto com o
o Hasan Dag . E, na mesma Ásia Menor, as escavações Mar Interior. Vistas do avião, duas enormes superfícies
encontram hoje vestígios de monumentos aparentemente planas - o deserto e o mar - opõem-se margem contr a
destruídos por terremotos e mesmo, na zona mais sujeita margem: suas cores se confrontam, indo uma do azul ao
a sismos, o primeiro esforço de que temos conhecimento, violeta , às vezes ao negro, outra do branco ao ocre e ao
empreendido há alguns milhares de anos antes de Cristo,
alaranjado.
de uma arquitetura em materiais leves, provavelmente
O deserto é um universo estranho que faz com _qu_e
concebida para resistir a esses cataclismos.
as profundezas da Africa e as turbulências da vida nô-
made desemboquem nas próprias margens do mar. São
Montanhas que cercam o mar por quase todos os lados tipos de vida nada têm a ver com os das zonaª--m0I1;.....
tanhosas. E um outro Mediterrâneo gue se opõe ao Rri-
A geologia explica a superabundância de montanhas meiro e, incansavelmente, reivindica seu lugar. A natu-
através da espaço sólido do Mediterrâneo. Montanhas reza preparou de antemão essa dualidade, quem sabe essa
,. v I;J, -n ... V L 11 '''' '' ' V ' ' U I
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hostilidade inat a. Mas a hi stória misturou os ingredien- o sol C a chuva
tes diferentes, como o sal e a água se misturam no mar.
Conseqüentemente, no concerto do Med iterrâneo , o A unidade essenc ial do Medit errâneo é o clima, um
homem do Ocidente não deve escutar exclusivamente as clima muito particular , semelhante de um-
vozes qu e lhe são familiares. Sempre ex istem as outras outro do mar , unificador de paisagens e de gêneros de
vozes, as estrangeiras, e o teclado exige as du as mãos. vida. B, de fato, qu ase independente das condi ções físi cas
Naturez a, história e alma muda m de acordo com sua locais, constru ído de fora por uma dupla respiração, a do
localização ao norte ou ao sul do mar , con for me se olhe Oceano Atlântico, vizinho do oeste, e a do Saara, o vizi-
apenas para uma ou para outra dessas direções. Em dire- nho do sul. Cada um desses monstros sai com reg ularl-
ção à Europa e suas península s. ergue-se a tela das mon- da de de sua casa para conquistar ornar , qu e desempe-
tanhas. Para o sul, se excetuarmos os d jebels da África nha ap enas um papel pa ssivo: sua massa de água morna
do Norte, com suas árvor es confusas, é o deserto, um (11°) facilita a intrusão do primeiro e depoi s do segundo.
mar petri ficado ou arenoso; e, atrás do Saara, a imensi- Todo verão, o ar seco e ardente do Saara envolve
dão da Afr ica negra e, em seus prolongamentos, os deser- toda a extensão do mar, ultrapassando em muito seus
tos da Ásia. E nessas supe rfícies enormes, não mais na- lim ites em direção ao norte . Ele cria sobre o Mediterrâ-
vios ou comboios de navios, mas caravanas de camelos, neo aqueles "céus gloriosos" tão claros, aquelas esferas
com milhares de anim ais, carregam víveres ou riquezas de luz, aquelas noites consteladas de estrelas que não en-
preciosas: temperos, pim enta, drogas, seda, marfim , ouro contramos em nenhuma outra parte. Esse céu de ver ão
em pó ... s6 se emb aça qu ando, por alguns dias, desencadeia m-se
Imaginemos também a conqui sta len ta , século após os ventos do sul, carregados de areia , o kha msin, ou o
século, desse espaço árido onde o homem soube encontrar siro co, o plumbeus auster de Horácio , cinza e pesad o co-
a água escondid a nas profundezas, criar oás is, plantar mo o chumbo .
palmeir as de longas raízes, reconhecer pistas e nascentes Entregue ao Saara, o Medit errâneo será durante seis
de água junto às raras zonas de relva on de os rebanhos meses o paraíso do s turistas, dos esportes náuticos, da s
podem vi ver . Conqu ista lenta, gradual , magnífica! praias superpovoadas, da água azul , imóvel e reluzente
O Mediterrâneo segue assim da primeira oliveira ao sol. Mas então os animai s, as plantas, a terra resseca-
que alcançamos quando chegamos pelo norte aos primei- da, vivem à espera da chuva. Da água tão rara, que é en-
ros palmei rai s compactos que surgem com o deserto. Pa ra tão a riqueza das riquezas. De abr il a setembro, os ven tos
quem "d esce" do norte, a p rimeira olive ira se situa no dominantes do norde ste , os vent os etésios dos gregos,
ponto qu e segue o "ferro lho" de Donzêre, no R6d ano. O não trazem qualquer abrandamento , qualquer umidade
primeiro pa lmeiral compacto surge (não h á outra pala- real à fornal ha saa ria na.
vra) ao sul de Batna e de Timgad , quando transpomos o O deserto se apaga com a intervenção do oceano.
Atlas saariano pela porta de ouro de EI Kantara . Mas A partir de outubro, as depressões oceânicas, inchadas
locais deste tipo, qu e tod a vez nos fascinam e nos con- de umidade, iniciam suas viagens processionais de oeste
qu istam, organ izam-se em torn o do Mar In terior, onde para leste. Os ventos de todas as direções avançam sobre
oliveiras e palmeiras montam a guarda de honr a. elas e empu rram-nas, rechaçam-nas em direção ao Orien-
te. O mar escurece , assume as tonalidades cinzas do
14 o F.SPAÇO E A ll1Sí6R1A NO MED1TERRANfO A TERRA 15
Báltico, ou então, enterrado sob uma poeira de espuma Em suma, um clima estranho, hostil à vida das plan-
branca, parece cobrir-se de neve. E desencade iam-se as tas. A chuva é abundante demais durante o inverno,
tempestades, as terríveis tempestades. Ventos devastado- quando o frio impede a vegetação. Quando vem o calor,
res: o mistral, o borah , atormentam o mar, e, em terra. é não há mais água. Aliás, não é exclusivamente para nós
preciso abrigar-se contra seu furor e sua violência. As que as plantas do Mediterrâneo são odoríferas, que suas
linhas de ciprestes da Provença, os pára-ventos de jun- folhas são cobertas de penugem ou de cera, e suas hastes
cos da Mitidja e os feixes de palha que cercam as semen- de espinhos: são defesas contra a secura dos dias muito
teiras de legumes na Sicília são indispensáveis para a quentes, quando apenas as cigarras estão vivas. E se a
proteção das culturas. Ao mesmo tempo, todas as paisa- colheita de trigo na Andaluzia acontece tão cedo, em
gens desaparecem sob uma cortina de chuva torrencial e abril, é porque o trigo obedece ao meio e apressa-se em
de nuvens baixas. 11 o céu dramático de Toledo dos qua- amadurecer suas espigas.
dros de EI Greco. São as trombas de água dos invernos
de Argel que estupefazem os turistas. Secos há meses, os
rios incham, e as inundações são freqüentes, brutais, nas Uma terra a conquistar
planícies do Roussillon ou do Mítidja, na Toscana ou na
Andaluzia, ou ainda no campo de Salônica. Às vezes, as O prazer de olhar e a beleza das coisas dissimulam
chuvas absurdas transpõem os limites do deserto, submer- as traições da geologia e do clima medíterrânico. Fazem
gem as ruas de Meca e transformam em torrentes de lama com que nos esqueçamos muito facilmente que o Medi-
as trilhas do Norte saariano. Em Ain Sefra, ao sul de terrâneo não foi um paraíso oferecido gratuitamente ao
Orã, Isabelle Eberhard, a exilada russa seduzida pelo deleite dos homens. Ali foi preciso construir tudo, muitas
deserto, perecia, em 1904, levada por uma enchente im- vezes com mais dificuldades do que em qualquer outra
prevista do oued.
parte. O arado de madeira consegue apenas arranhar o
No entanto essas chuvas são benéficas. Os campone-
ses de Aristófanes divertem-se, tagarelam e bebem, pois solo friável e sem espessura. Quando o furor das chuvas
nada há a fazer lá fora enquanto Zeus fecunda a terra é excessivo, a terra m6vel escorrega como água para o
com grandes torrentes de água. O trabalho s6 recomeçará pé das encostas. A montanha corta o tráfego, ocupa es-
realmente com os últimos aguaceiros da primavera, com paço demais e limita as planícies e os campos, reduzidos
o brotar dos jacintos e dos lírios de areia, com a volta muitas vezes a algumas faixas estreitas, a alguns punhados
das andorinhas. Com sua chegada, as canções nascem nos de terra. Um pouco além, começam os caminhos íngre-
lábios. Em Rhodes, canta-se: mes, difíceis para os pés dos homens e para as patas dos
animais.
Andorinha, andorinha, E a planície, quando de boas dimensões, permaneceu
Tu trazes a primavera, por muito tempo o domínio das águas divagantes. Foi
Andorinha de ventre branco, necessário conquistá-la dos pântanos hostis, protegê-Ia
Andorinha de dorso negro. dos rios devastadores, engrossados pelo inverno impie-
doso, exorcizar a malária. Conquistar as planícies para
Ela chegou. Abre-se a porta das estações. a agricultura foi antes de tudo vencer a água insalubre.
16 o ":51'I1 ÇO E A IUSTÓ RIA NO MfDfTERRANEO A TERRA 17
Em seguida, foi preciso tr azer novament e água, mas dessa cap italistas, da ganância. A agri cultur a arcaica desa pa-
vez viva , para as irrigações necessárias. rece com a maior rapidez. Q ue ou tro destino pod eri a ter?
Essa conquis ta len ta, muito lenta, terminou há pou- Mas a longa e difícil do mest icação, o lento apare-
co, no nosso século. Hoje o difícil é encontrar as paisa- Ihamento das regiões baixas explica por que , po r um pa-
gens de águas estagnadas e insalubres de ontem. Perto radoxo aparente , a histó ria dos ho mens no Med iterrâ neo
de Sabaudia, essa nova cidade criada no meio dos pânte- começou, na maioria das vezes, pelas colinas e monta-
nos pontinos, eis um enorme charco de alguns hecta res nha s, onde a vida agrícola foi sempre difícil e precária,
que se insinua entre as árvo res. prese rvado no coração de mas ao abrigo da malária assassina e dos perigos assaz
um pa rque nacional surpreendente. Con templamo-Io como freqüentes da guerra. Daí tantas alde ias empoleiradas ,
a um testemu nho arq ueológico. Os animais selvagens, so- tantas pequenas cidades aga rradas à montanha, cujas
bretudo os pássaros aq uáticos, elegera m-no seu refúgio fort ificações se casam às rochas das inclinações. Assim
predileto. acontece nos Sahels da África do Norte, nas colinas da
A prova dos esforços realizados são os sistemas mui- To scana, na G récia , às margens do campo roma no, na
to antigos ou muito modernos de dr en agem e irri gação, Provença . .. No início do século XVI, Guicciardini di-
com sáb ias redistribuições de água. Em suma, um traba- zia: "A Itália está cultivada até o topo de suas mont a-
lho fabuloso, cujos iniciadores foram os árabes na Espa - nhas. " Mas não ainda até o fundo de seus vales e de suas
nh a, Na Huena de Val encia, no cerne de um êxito muito planícies.
antigo, O famoso T ribuna l das Águas continua, todos os
anos. repa rtindo o maná entre os comprado res atra vés de
um leilão, A paradi síaca Conca d'O ro que rode ia Paler- As sociedades tradicionais
mo. jardim de laranj eiras e vinhedos, é um milagre da
água domes ticada, q ue data apenas dos séculos XV e XVI . Ê portanto nas colinas e terras altas que se encon-
Basta reto mar no curso dos sécu los para encontra r tram melhor as imagens preservadas do passado, os ins-
toda a planície medite rrânica recoberta pelas águas, tan- trumentos, os costumes, os dialetos, os usos e as supersti-
to o baixo vale do Guadalquivir qua nto as planícies do ções da vida tradicional. Todas construções muito ent i-
PÓ, a baixa região de Florença e, na longínqua Grécia, gas, que se perpetuaram num espaço onde os velhos mé-
esta ou aquela planície, em que o tonel das Danaides todos agrícolas não podiam de forma alguma cede r espaço
evoca a irrigação perene. às técnicas modern as. A mon tanha é, por excelência, o
Para obte r a obediência e os capitais necessários a lugar da conservação do passado.
sua vida , a planíc ie exigiu numerosas sociedades, d isci- Na África do Nor te, a Cabíli a, assim como todas as
J?:l inadas.Jla suportou, no.decorrer dos séculos, classes ou tras montanh as de língua berbere, possui um folclore
consideráveis de grandes prop rietá rios... nobres e bu rgue- vivo, que o belo livro de Jean Servier (Les portes de
ses, e ainda o enra iza mento de gran des cidades e po de- í'ann ée, 196 2) evoca maravilhosa mente. São assim os ri-
rosas aldeias. Subm ete-se hoje às exp lorações e aos meios los do início do ano, a festa do " Ennayer" (no mês de ja-
mais modernos, qu er se trat e do trigo ou da vinha. Si- neiro), que têm como objetivo situar o ano novo sob bons
tua-se assim na zona dos grandes e maciços rendimentos auspícios. com suas máscaras. suas far tas refeições propi-
18 o ESPAÇO E A HI STú RI A NO MEDITE RfUNEO A TE RRA 19
ciatórias e com o varrer das casas. São assim os ritos da há séculos voltam a ser pasto para a criação , ou se des-
pr imavera. São assim, mais tarde , os fogos da "ainsara" guarnecem por completo ,
que, a 7 de julho, são acendidos, não somente na Cabíli a, O que desaparece sob nossos olhos é uma vida ar-
mas em toda (ou quase toda) extensão da África do No r- caica, tradicional, dura, difícil. Já difícil ou tror a. As
te . A explicação normalmente dada é a lenda da rainha montanhas, normalmente populosas demais, onde, em
judia incestuosa, queimada na fogueira por causa de seus condições mais saudá veis que em outros lugares, o ho-
pecados . Mas não será também a qu eima de Iérulas (um- mero crescia vigoroso, sempre foram colmeias de enxa-
belíferas resinosas), de tufos de louros-rosas e de mar- meações repetidas. O povo de Friuli, os furlani, iam para
rolos, uma ocasião de purificar pela fumaça as ár vores Veneza para exercer as ocupações mais baixas. Os alba-
dos pomares ou dos estábulos, "purificação mágica , mas neses se colocavam à disposição de todos, sobretudo dos
também processo rú stico de exterm inação dos parasitas"? turcos . O povo de Bérgamo, de que todos caçoavam , per-
Essa sabedoria autori tár ia é coman do, precaução, enco- corria toda a Itáli a à procu ra de trabalho e de ganhos.
rajamento ao trabalho. Os dos Pireneus povoavam a Espanha e as cidades de
Em todas as zonas altas do Medit errâneo, na It ália , Portugal. Os corsos tornavam-se soldados a ser viço da
na Espanha, na Provença, na Grécia, podemos encontrar França ou de Gênova, a Domin adora execrad a. Mas tam-
facilmente, ainda hoje, toda uma série de festas vivas que bém eram encontrados em Argel, marinheiros ou gente
mesclam ao trabal ho crenças cristãs e sobrevivências pa- das montanhas, Capocorsini ou forçados . Em julho de
gâs. Mas, tanto qua nto o folclore, a própri a palsagern é 1562, quan do da passagem de Sampiero Corso, são mio
lhares a aclam á-lo "seu rei", Enfim, todas as regiões
) uma testemunha - e que testemunh a ! - desses modos de
vida arcaicos. Uma pa isagem frágil, inteiramente criada montanhosas forneciam uma multidão de mercenários,
pela mão do homem : as culturas em terra ços, as cercas criados, mascates, artesãos itinera ntes - emolado res,
de pedras empilhadas, sempre por reconstruir; as p edr as limpadores de cha miné, empalhadores de cadeiras - dia-
que é preciso levar para cima em lombo de jumento ou ristas, ceifeiros, vindimadores complementares, qua ndo
de burro antes de ajustá-Ias e consolida-las, a terra que faltavam braços aos campos ricos na época de muit o tra-
é preciso carregar em cestos 'para acumulá-la atrás des- balho. Mas ainda hoje não são a Córsega, a Albânia, al-
sa mura lha . Acrescen te-se que nenhum a atrelagem ou gumas zonas dos Alpes ou dos Apeninos que fornecem
charrete consegue subir essas incli nações íngremes: a às cidades, às planícies ricas, aos longínq uos países da
colheita de azeitonas e a vindima se fazem à mão e são América, a mão-de-obra para os traba lhos mais rudes?
conduzidas nas costas dos homens, E verdade que, por vezes, a aventura dá certo, com
Tudo isso acarreta hoje o progressivo abandono des- vastas migra ções de mercantes. Esse foi, pelo menos, o ca-
se espaço agrícola de outros tempos. Muitas dificuldades so estranho e ruidoso dos armênios, que se tornar am os
pa ra poucos lucros. Mesmo as célebres colina s da Tos· mercado res favoritos dos xás do Irã, e que con quistaram,
cana perdem, pouco a pouco, urna a uma , suas caracte- a partir de Ispahê, um lugar de primeira linha na Índia,
rísticas distintivas. As cercas de pedra desap arecem. As na Turqui a, na Mosc óvia, estando presentes na Europa,
oliveiras mais do que centenár ias morrem uma após a no século XVII , nas grandes praças de Veneza, Marselha,
out ra. Não mais se semeia o trigo. As encostas cultivadas Leipzig ou Arnsterdarn. . .
20 o ESPAÇO E A HISTÓRIA NO MEDITERRÂNEO A TERRA. 21
Transumância e nomadismo sucessiva das pastagens das várias altitudes. Ainda on-
tem, em algumas regiões do Brasil, rebanhos semi-selva-
Um espetáculo que também desapa receu. mas apenas gens vagueavam por conta p rópria entre as terras baixas
há pouco tempo, é o da transumân cia, realidade multis- e altas ao redor do Itatiaia, o ponto culmina nte da região.
secular pela qual a montanha se ligava à planície e às Na It ália , na França meridional, na pen ínsula Ibérica,
cidades baixas, aí encontrando ao mesmo tempo lucros que são por excelência as regiões da transu mânc ia, a es-
e conflitos. pecialização dos pastores foi sua condição e sua marca
O vaivém dos rebanhos de ovelhas e cabras entre as distintiva .
pastagens de verão das regiões altas e a relva que per- Assim se constituiu uma categoria de homens à pa r-
manece nas planícies durante os meses de inverno fazia te, de homens fora das regras comuns, quase fora das
com que r ios de carneiros e pastores vagueassem entre os leis. O povo das regiões de baixo, agricultores ou arbc ri-
Alpes merid ionais e O Crau, entre os Abruzzi e o pla nal- cultores, observam-nos passar com temor e hostilidade.
to da Apúlia, entre a Castela do Norte e as pastagens Para eles e para a gente das cidades, são bárbaros, semi-
meridio nais da Estre madura e da Mancha de Don Oul- selvagens . Proprietários e alqu iladores ardilosos que os
xote. esperam no final de suas descidas entram em acordo para
Bastante reduzido em seu volume, esse mov imento engané-Ios. Torna-se escândalo, então, uma jovem apai-
existe ainda hoje. Mas é freqüen temente suplantado pelo xonar-se por um deles. "Nenna querida", diz a canção
transporte por caminhão ou ferro via. E uma alegria rara cruel, "teu pastor nada tem de bom, tem mau hálito, não
poder seguir ainda uma viagem de carneiros à moda an- sabe comer num prato. Nenna mia, mude de idéia, es-
tiga. Amanhã isso não será mais possível. Mas a recons- colha um camponês por marido, que é o homem adequa-
tituição contin ua ao nosso alca nce: as rotas de transu- do." Observem que a canção ainda é cantada na Itália.
mância continuam marcadas nas paisagens como linhas Todo esse vaivém de homens e animais é, de fato,
verdade iramente indeléveis, ou pelo menos difíceis de mais compli cado do que par ece à primeira vista. Deve-
apagar, como as cicatrizes que, durante toda uma vida, se distinguir , com efeito, as transumâncias "normais" das
marcam a pele dos homens. Com mais ou menos quinze trans umâncias "inversas"; no primeiro caso, os proprie-
met ros de largura, têm um nome particular em cada re- tários estão nas regiões baixas. No segundo, hab itam as
gião: cafiadas em Castela, camis ramaders nos Pireneus montanhas. Tra ta-se aq ui de situações provocadas por
orientais, drailles no Languedoc, carrdires na Provença, acidentes históricos ou por longas evoluções. Assim, os
tratturi na Itália , trazzere na Sicília, drumul oilor na reban hos que a cada inverno deixam os Alpes e desem-
Rumânia ... bocam nas magras pastagens do Crau são propriedade
Onde quer que a observemos retrospectivamente, a dos burgueses de Artes. Da mesma forma, os hab itantes
transumância foi o termo de uma longa evolução, o re- de Vicenza são os senhores da vida pastoril que, com a
sultado provável de uma divisão precoce do trabalho. chegada do verão, alivia as regiões baixas de seus reba-
Alguns homens, e apenas eles, com seus ajudantes e seus nhos em benefício dos Alpes. Há, evidentemente, casos
cães, tomavam conta dos reba nhos, e com eles iam, alter- mistos de tra nsumância normal e transurnância inversa e,
nadamente, às altas e às baixas pastagens. Existia uma para comp licar mais, o Estado intervém com fre qüência.
necessidade natural e inelutável para isso: a utili zação Ord inariamente, toma conta de todo o movimento sob o
22 o Ao TERRA
ESPAÇO C A HI STORI A NO MeDlTERRÁN I;Q 23
pretexto de controlã-lo. Estabelece pedágios nas rotas de está. à vontade na areia e não nas inclinações pedregosas
carneiros, outorga-se as pastagens baixas e aluga-as, regu- e fria s das montanhas, aclimatava-se na região que vai
lamenta o comércio de lãs e animai s. Desta forma o Es- da Síria ao Marrocos.
tado castelhano organizou o império de carneiros de Sobre a vida dos grandes nômades, convém reler os
Mesta que, abrigado pelos privi légios, alguns abusivos, admirá veis livros de Emile-Félix Gautier, pois nada lhes
devorou os planaltos e as montanhas de Castela em bene- supera a lição. O nomadismo, que hoje também tende a
fício, antes de mais nada , de alguns grandes proprietá- diminuir, senão a desaparecer, apresenta-se como uma
rios. Também o rei de Nápoles prend eu numa armadilha etapa inegavelmente anterior à transumância, sendo a úl-
a transumância enorme que corre dos Abru zzi em direção tima, como dissemos, um compromi sso ent re o movimen-
ao Tavogliere da Apúlia, impondo de forma autoritária to necessário dos rebanhos e o sedentarismo evidente das
a primazia exclusiva do mercado de Foggia, onde a lã aldeias agrícolas e das cidades. No outro Mediterrâneo,
deveria ser obrigatoriamente vendida. Ao menos no pa- o orienta l, onde o povoamen to sedentário foi menos den-
pel, regulamentou tudo em seu proveito. roas proprietá- so, a vida pastoril de grandes deslocamentos encontra, na
rios e pastores souberam se defender na ocas ião. maioria das vezes, apenas obstáculos insignificantes. Ela
A transum ância vale apenas para uma parte do Me- não teve de ser construída e, portanto, de ser modificada.
diterrâneo , sem dúv ida a mais populosa, talvez mesmo a O nomadismo é uma totalidade: rebanhos, homens,
mais evoluída, aquela em que a divisão do trabalho se mulheres e crianças deslocam-se juntos por enormes dis-
impôs de maneira irrefutável. Mas a explicação, lógica tâncias, transportando consigo todo o material de sua
em si, com certeza não é suficiente, pois a história teve vida cotid iana. Temos milhares de imagens a esse respei-
seu papel. Ao menos por duas vezes, um determinado to, de ontem e de hoje, qu e devemos aos viajantes e aos
Mediterrâneo - o outro Mediterrâneo - foi pego obli- ge6grafos. .E. preciso apenas resistir ao prazer de citá-los
quamente por duas poderosas marés de homens, os pri- em demasia. Na África do Norte, onde a intrusão dos
meiros vindos dos desertos quente s da Arábia, os segun- camelos contorna os maciços monta nhosos ocupados pe-
dos dos desertos frios da Ásia. São as invasões árab es e los camponeses berberes, os nômades, que são sobretudo
as invasões turcas, que prosseguiram por séculos, as pri- árabes, insinu am-se pelas portas natu rais que lhes são
meiras a partir do século VII , as segundas a partir do abertas pelos caminhos do Norte, principalmente em di-
século XI; ambas abriram essas "fendas escancaradas", reção à Tunísia e à Orânia. Esses nômades. com seus re-
das quais fala com razão Xa vier de Planhol. banhos de carnei ros, seus cavalos, seus dromedários, suas
São esses acontecimentos decisivos que mantiveram tendas negras erguidas a cada parada , iam, outrora, desde
e desenvolveram o nomadismo na península dos Balcãs, os confins saarianos do extremo sul até o próprio Medi-
na Ásia Menor e, obviamente, no Saara mediterrânico, terrâneo, à procura de pastagens. Diego Suárez, o solda-
finalmente em toda a Africa do Norte. Essas marés de do cronista da fortaleza de Orã (ocupada pelos espanhóis
homens do deserto implan taram na Ásia Menor , e mesmo em 1509) , observa-os, no final do século XV I, atravessar
nos Balcãs (onde reina o cavalo ), o camelo, animal saído planícies que rodeiam o "presídio", alcançar o mar,
dos países frios e apto a escalar montanh as, enquanto o Instalarem-se por lá por algum tempo, e arriscar alguns
dromedário, anima l friorento que surgiu no Mediterrâneo cultivos . Um dia, chega a vê-los atacar loucamente as fi-
a partir do século I de nossa era, vindo da Arábia, e que leiras de arcabuzeiros espanh óis, Todo verão os traz de
24 o r:SPAÇO E A II1SrOR1A NO MEDI rf.HRÂNI:.U -I n :RRA
2S
volta, numa data quase fixa. Em 1270, quando São Luís por existê ncias a fio. O historiador e o turista não devem
acampa no sítio de Cartago diante de Túnis, estão ali e se deixa r impressionar pelos grandes fenômenos urbanos ,
contribuem para a derrota do rei santo. Em agosto de I1S maravilh osas cidades antigas do Mediterrâneo. As ci-
J 574, quando 0 5 turcos retomam La Goulette e o forte dades são acumuladoras de riqu ezas e. po r isso mesmo,
de Túni s aos espanhóis, 05 nômades do Sul que estão no exceções, C2S0S pri vilegiados. Tanto que cerca de 80 a 90
local ajudam os assaltant es no combate às fortalezas cris- por cen to dos homens ainda viviam nos ca mpos antes da
tãs, deslocando os gablôes de terra e as fa xinas dos en- revolução indu stri al.
trinch eiramentos . Part icipam de uma vitória em que con- De um modo geral. O Mediterrâneo equilibra sua
tribuíram de forma singular . O acaso dos acontecimentos vida a partir da tr íade olive ira , vinha e trigo. "Ossos de.
esclarece desta forma , à di stância de séculos, estranhas mais" , graceja Pierre Gourou , "e ca rne insuficiente."
repetições . Até ontem (l940), a África do Norte, privada Ape nas a criaçã o crescente de porcos na região cristã , a
de meios de tran sporte , apelava para os serviços dos nô- part ir do século XV, e II generalização da s conservas de
mades. Voltaram a ser vistos nas estradas qu e haviam carne, a carne sala/a, troux eram paliativos importantes,
substitu ído as antigas pista s, com as albardas de seus ca- CIO menos para um dos Mediterrâneos; mas não para o
melos abarrotadas de enormes sacos repletos de grãos. outro, qu e se priva voluntariamente de carne de porco e
Chegaram mesmo a propagar uma brusca epidemia de de vinho. As responsabilidades alimentares do Islã não
tifo entre as populações indígenas e européias do Norte. foram pequenas . Além disso, não esqueçamos que a cozi-
Desta forma , mai s uma vez, dois Mediterrâneos: o nha muçulmana concede pouco espaço aos fruto s do mar.
nosso e o outro. A transumância em um, o nomadismo Da s três culturas fundamentais, o azeit e e o vinho
em outro. (que são exportados para fora do Mediterrâneo) foram
quase continuamente bem-sucedidos. Apenas o trigo co-
loca um problema, mas que problema! E além do trigo ,
Os equilíbrios de vida O pão e seu consumo necessário. Com que farinha será
fcito? .Q ual será a sua cor? Qu al será seu peso, já qu e
Toda vida se equilibra, deve se equilibrar. Senão é vendido por toda parte a um preço fixo , mas variando
desaparece. ão é o caso da vida rnediterrânica, vivaz, no peso ? O trigo e o pão são os tormentos sempiternos
inextirpável. e:ainda cedo demais (já que ainda não dis- do Med iterr âneo, os person agens decisivos de sua hrsté-
cutimos os recursos do mar) para fazermos um balanço ria, preocu pando continuamente os grandes daquele mun-
geral da região medit errânica . No entanto, algumas cons- do. Como será a próxima colheita? E a qu estão colocada
tatações, que, aliás, nad a têm de excepcional ou de sur- de forma insistent e por toda s as correspondências, inclu-
preendente, podem ser deduzidas de sua vida agrícola e sive as diplomáticas , durante todo o ano. Se for ruim , o
pastoril, nos diversos tipos de suas regiões . campo sofrerá tanto , ou até mais do que as cidades; os
Estamos diante de uma vida difícil e muitas vezes pobres , como de costume. muito mais do que os ricos,
precária, cujo equilíbrio se estabelece definitivamente pois os últimos, todos , têm seu celeiro particular, onde
contra o homem. condenando-o incessantemente à sobrie- acumulam sacos de trigo. Até o século XVI , as grandes
dade. Para alguma s hora s ou alguns dias de banquetes casas mo em seus grãos, amas sam sua farinha e fazem seu
(c isso já é muito). a porção côngrua impõe-se por anos. pão, tanto em Gênova como em Veneza. As grandes cida-
26 o ESPAÇO E A HISTóRIA NO MEDlTERHÁNEO A TER RA 27
des tamb ém acumulam reservas e, em caso de escassez de queijo para que eu possa banquetear qua ndo tiver von-
ou fome locais, seus mercadores , patrocin ados pelos go- tade ." Muitos séculos mais tarde, quando Bandel lo (1485-
vernos urbanos, equipam nav ios, percorrem mercados e 1561) escreve suas No velíe, o mais pobre dos pobres, um
fazem chega r até a cidade o trigo do mar Negro, do Egi- migran te de Bérgamo, por exemplo, terá como sua refei-
to, da Tessá lia, da Sicília , da Albânia , da Apúlia, da ção ma is excepcional - e contenta r-se-á com ela - um
Sardenha, do Languedoc, e até de Aragão ou da Anda- salsichão de Bolonha. E, ao se casa r, escolhe com todo
luzia. .. São regiões p rivilegiadas ou pouco povoadas cuidado, diz o contis ta com maldade, uma daquelas mo-
que , umas ou outras. de acordo com o sucesso das co- ças que, atrás do Domo de Milão, faze m amor por uma
lheitas, fazem circular através do mar mais ou menos um moeda.
milhão de qui ntais de trigo por ano, O suficiente para Ainda hoje, observem no que consiste uma refeição
sat isfazer a demanda quando há carência em Veneza. Ná- de operários, à somb ra de uma árvore ou ao pé de um
poles. Roma, Florença ou Gênova, comprado ras habi- muro, na hora de descanso, em Nápoles ou Palerma : con-
tuais do "trigo do mar". tentam-se com o companatico, um molho de cebolas ou
O resultado não surpreende: a cidade sobrevive à tomates sobre um pão regado a azeite, acompanhado de
penúria e mesmo à escassez . São os camponeses que, nos um pouco de vinho. A trindade mediterrânica pode ser
anos ruins, sucumbem por falta de pão. Esqueléticos, claramente encontrada aqui : o azeite das oliveiras, o pão
mendigando, precipitam-se em vão sobre as cidades, vêm do trigo, o vinho dos vinhedos próxi mos. Tudo isso, ou
morrer em Veneza, sob as pontes ou nos cais, os íonâa- pouco mais.
menta dos canais. Além disso, as fomes recorrentes abrem Não deveria então ser considerado um paradoxo a
caminho às doenças, tanto à malária quanto à peste que, riqueza muito precoce e prolongada, os luxos muito anti-
no Mediterrâneo, são o flagelo de Deus. gos do Mediterrâneo? Por que, como esses luxos ao lado
Essa é a trama da vida mediterrânica. Sem dúvida, os de tantas dificuldades, ou mesmo de tant a miséria ? A
festins e os grandes banquetes, considerados escandalosos frustração de uns não pode, por si só, explicar o brilho
pelos sáb ios do século XV I, e que as cidades prudentes dos outros. O destino do Mediterrâneo não pode ser ex-
proíbem, aliás em vão (como em Veneza), esses excessos plicado apenas pelo trab alho obstinado, que deve ser
de fato existem, mas para um pequeno número de pes- sempre refeito, de copulações que se contentavam com
soas. A ma ior parte do Mediterrâneo ignora-os. Mesmo muito pouco. E também um presente da história, que o
quando se trata dos banquetes campo neses, as famosas Mediterrâneo desfrutou por muito tempo e que, finalmen-
refeições de festa que, em todas as regiões rurais do mun - te, foi-lhe arrancado, fato que os historiadores tentam ex-
do, faze m esquecer de vez em quando a mediocridade plicar há anos.
cotid iana, não se pode comparar os banquetes da Holan-
da ou da Alemanha, po r exemplo, aos da Itália. E uma
verdade irrefu tável que se estabelece ao longo de uma
história veríd ica do Mediterrâneo , sob o signo, repitamos,
da sobriedade, isto é, do racionamento voluntário. Epicuro
(34 1·270 a.Ci), que dizia ser o prazer a finalidade do
homem. pedia a um de seus amigos: "E nvie-me um pote
o mar
o mar. E preciso tentar imaginá-lo, vê-lo com os
olhos de um homem de outrora: como um limite, uma
bar reira estendida até o horizonte, como uma imensidão
obsedante, onipresente, maravilhosa, enigmática. Até on-
tem, até o vapor, cujos primeiros recordes de velocidade
hoje parecem irrisórios - nove dias de travessia, em
fevereiro de 1852, entre Marselha e o Pireu - , o mar
permanecia imenso, pelo padrão antigo das embarcações
a vela e dos navios eternamente à mercê dos caprichos
do vento, aos quais era necessário dois meses para ir de
Gibraltar a Istambul e uma semana ao menos, freqüen-
temente duas, para ir de Marselha a Argel.
Desde então, o Mediterrâneo vem se encolhendo,
cada dia um pouco mais, estranha pele de asno! E nos
dias de hoje o avião atravessa-o de norte a sul em menos
de uma hora. Em trinta minutos vamos de Túnis a Pa-
lermo: mal partimos já ultrapassamos a orla branca das
Flg.2 salinas de Trapani. Partamos de Chipre e eis Rhodes, mas-
Pescador carregando fieiras de peixes, sa negra e violeta, e, quase imediatamente, o Egeu e as
Thcre, pintura mural, primeira metade do 2,· milênio antes de nossa era, Cíclades, de uma cor que, por volta da metade do dia,
Atenas, museu arqueológico,
tende ao alaranjado : mal temos tempo de distingui-los e
e ARTEPHOT, Nlmatalleh. chegamos a Atenas,
30 o ESPAÇO E A II / S T O R JA NO M EDITERRÂNEO o MAR 31
o historiador deve se desfazer, a qualquer preço, brevívência de um imenso anel marítimo que, a milênios
dessa visão que transforma o Mediterrâneo atual em um atrás, na era secundária, a par tir das Antilhas, quase fa-
lago. Como se trata de superfícies. esqueçamos que zia a volta ao mundo no sentido dos paralelos - a Tétis
o Mediterrâneo de Augusto e de Antônio, ou o das Cru- dos geólogos. O mar atual não passa de um resíduo me-
zadas ou mesmo o das frotas de Filipe H, tinha cem, díocre seu. Pode ser, então, que sua pobreza biológica
mil vezes as dimensões que hoje nos são reveladas pelas seja a compensação dessa fabulosa longevidade. Além de
nossas viagens através do espaço aéreo ou maritim.o. ... tudo, pelo estreito de Gibraltar, ele não pode renovar
lar do Mediterrâneo da história é, portanto - p rlme!!9 suficientemente suas águas, misturando-as com as do
cuidado e preocupação constante -r--, oceano.
dimensões verdadeiras, imaginá-lo numa vestimenta Em todo caso, a pobreza da fauna mediter rânica é
mesurada. Ele sozinho era, outrora, um universo, um evidente. Ver as pescas do Oceano Atlântico e as redes
planeta . inchadas das traineiras descarregando nas pontes uma
massa de peixes de grosso calibre é assistir a um espe-
táculo jamais oferecido pelo Mediterrâneo, salvo algumas
Uma modesta fonte de viveres exceções. Como conseqüência, os pescadores do Mediter-
râneo preferem transpor GibraIta r e alcançar o oceano
o mar aumenta em muito os recursos da região me- e seus fundos que nunca decepcionam.
dit errânica, mas não lhe assegura abundância cotidiana. Embora as espécies de peixes sejam normalmente nu-
Sem dúvida desde o momento em que apareceram ho- merosas no Mediterrâneo, nunca estão representadas em
mens em suas margens, isto é, desde o início da pré-his- abundância. E, apesar de quantitativamente insuficientes,
tória, passando pelo Velho Mundo, a as pescarias ameaçam o mar de esgotamento. Tanto que,
contribuição de frutti di mare; é um OfiCIO tao antigo como diz o especialista Nino Cafflero, "um dia será ne-
quanto o mundo. Mas, no Mediterrâneo, esses frutos nao cessário proibir qualquer pesca e transformá-lo num par-
sobejam. Lá não existem as riquezas do Dogger Bank, que zoológico selvagem para tentar preservar as espé-
no mar do Norte, nem das pescarias fabulosas da Terra cies". Não são palavras delirantes, sonhos de um ecolo-
Nova ou de Yeso, ao norte do Japão, nem das costas gista exaltado. O peixe-espada, admirá vel peixe de cinco
atlânticas da Mauri tânia. . metros de comprimento, com uma nadadeira dorsal se-
Na verdade o Mediterrâneo sofre de uma especte melhante a urna .vela e um focinho bastante prolongado
de insuficiência biológica. Profundo já mar- por um "espadão" (daí o nome de xiphias gladius, peixe-
gens, não possui as plataformas pouco Imersas indispen- espada), era outrora pescado no estreito de Messina, com
sáveis à reprodução e à proliferação da.fauna .submarm? arpão, numa pescaria pitoresca. Era uma pesca praticada
Além disso o Mediterrâneo, mar muito antigo. estana desde a Antigüidade, em curiosos barcos, nos quais havia
como que desgastado em seus princípios vitais p:la sua uma espécie de passarela mal apru mada sobre o mar,
longevidade. Seria, por iss.o, POUC? rICO em plancton, onde alguém ficava de sentinela. E: realmente muito difí-
esses animais e plantas microscópicos_que na cil localizar um peixe-espada. Ele raramente abandona as
superfície das águas marinhas e oue sao o de profundezas, talvez apenas uma vez por ano, na época
base das espécies. E verdade que o Mar Interior e a so- da desova. Há alguns anos, os pescadores japoneses co-
o ESPAÇO f; A flJ ST ô Rf A NO ·\ I EDI Tl-.RRÂNEO o MAR 33
meçaram a pescá-los em grandes profundidades e duran te mas o princípio continua o mesmo. Os pescadores pira-
lodo o ano. A part ir de então foi possível encontrar pei- tas das costas gregas, e, sem dúvida , de outros lugares,
xes-espadas nos mercados em qualquer estação do ano, utilizam a dinamite, apesar da vigilância dos guarda-
mas esse peixe magnífico corre o risco de desaparecer costas: é um artifício desleal. mas já antigo. Viver sem
em breve. se preocupar com o futuro ao lado desses pescadores é
Agora que os Estados mediter rânicos preocu pam-se ainda uma alegria possível para aqueles que não temem
seriamente em proteger o Mar In terior contra a poluição o sol, as chico tadas de água, o balanço contínuo do bar-
e as destruições q ue o ameaçam tão perigosamente, o pro- co imobilizado sobre a água, nem as surpresas quan do se
jeto de um "parque" marítimo torna-se um pouco menos suspende a talha onde, fur iosa, uma moréia inesperada
utópico. E: evidente que nem as salinas, nem a extração foi pega.
de esponjas nas costas da Tunís ia, nem a pesca do coral Mas esse pescador artesão não vive apenas em seu
nas costas da Sardenha ou da Afr ica do Norte seriam barco, entre suas linhas e redes . E também um camponês
proibidas. Explorado há séculos. o coral, ainda hoje tra- experiente. atento, que cultiva sua horta e seu campo .
balhado em ateliês, principalmente no de Torre dei Greco, Desta forma, exerce uma dupla profissão. Do contrário,
sempre foi uma mercadoria cobiçada. outrora expo rtada conseguiria viver, ele e sua família? Deve aproveitar tanto
até à China e à Africa negra. Continua, aliás, a correr o a terra quanto o mar. Transferidos de forma autoritária
mundo. Ainda hoje, não desempenha ele um papel mo- para as cidades, pescadores gregos, privados do comple-
netário importante em certas regiões centrais da África? mento dos campos de sua aldeia, hoje não conseguem
Manter-se-ia. com licenças especiais, a pesca artesa- equilibrar o orçamento. Podemos nos reportar àquela de-
nal, ainda praticada em todos os portos do Mar Interior? zena de famílias de pescado res bretões que o governo
Sim, sem dúvida. Essa pesca elementar, tradicional, pouco francês tentou em vão instalar, em 1872, na península
devastado ra, faz-se com um barco, um, dois ou três pes- de Sidi Ferruch, bem próxima a Argel. Desertaram. Pes-
cado res, dificilmente com uma emba rcação muito moder- cadores corsos, instalados da mesma forma e na mesma
na. O pescador conhece o mar diante de seu porto como época nas proximidades de Bône e em Herbillon, conse-
o camponês conhece o terreno de sua aldeia. Conhece to- guiram se manter, mas "tornaram-se agricultores, e a al-
dos os pontos onde é natural encontrar o mero, o doura- deia tornou-se um centro de cultura hortelã .. . muito
do, o linguado ou mesmo o rodovalho, o salmonete, o próspera".
mugem. a pesca da; conhece a época em que se pega à Em todo caso, qualquer que seja sua forma , a pesca
vontade sardinhas ou anchovas (que servirão como iscas do Mediterrâneo não alimenta os mercados, por mais pi-
para os atuns) . Explora o mar como o camponês explora torescos que estes sejam. A orata ai ierrí ou in cartoccio,
seu campo. Raramente se afasta do porto ou da enseada O dourado grelhado ou assado no papel, que comemos
de sua aldeia. Se levantar os olhos, verá sua própria casa. num restau rante de Veneza. pode talvez vir da Laguna,
Além disso, afastar-se por demais da costa seria abando-- mais raramente do Adriático. Contudo, o linguado ou a
nar as águas piscos as. Esse artesão pesca como sempre se lagosta foram provavelmente trazidos do Atlântico. Os
pescou, com redes, nassas, talhas ou com o lamparo, "on- salmonetes de rocha da costa da Dalmácia e 05 camarões
tem, uma tocha resinosa, hoje, uma lâmpada de acetileno rosados de Argel ainda podem ser Já encontrados pelo
ou pilha" que se acende à noite: a fonte de luz mudou , gourmet. Mas 0& habitantes do Mar Interior não os co-
34 o ESPAÇO E A HIS TÓR IA NO MEDITERR,J,NEO o MAR 35
mem todos os dias. No menu popul ar , o pr imeiro lugar junho. Procuram, então , as águas mais quentes e mais
cabe, indiscu tivelmente, 80 bacalhau importado do Norte. salgadas para pô r seus ovos, e é ali que os pescadores
fazem suas armadilhas. Mas os desmatamentos do litoral
aqu i e ali, ao favorecer a afluência direta das águas do-
No entanto, algumas pescarias abundantes ces ao mar, e as cidad es modernas, que derramam enor-
mes quantidades de águas usadas, destruíram muitas ve-
Contudo, há lugares privilegiados. As pescarias no zes essas armadilhas naturais que eram dev idas às águas
Bósforo ou na desembocadura do lago de Bizerta, na la- de urna salinidade anormal.
guna de Comacchio , ou ainda na entrada do lago de Hoje o tropi smo sazonal, que reagrupa os atuns de
Berre, onde os bourdigues (cercado de vime à be ira-mar) lodo o mar , dirige-os principalmente para as águas entre
permitiam ca ptura r até ontem muge ns e engu ias em gran- a Sardenha, a Sicília e a Tunísia, local de sua pesca. As
de número , não correspondem à nossa descrição desilu- redes , a armadilha para atu ns, a tonnara, cae m até o fun-
dida . Olh ar do alto da ponte qu e vai a Ga iata o mercado do do mar, sustentadas por dua s séries de embarcações.
de peixes de Istambul , abunda nte, cheio de cores , é fas- Elas formam um cor redor Que conduz os atuns até essas
cinante . Mas, se o espetáculo deixa uma lem br ança tão nassas da almadraba chamadas câmaras da morte. Pois é
viva, não é por ser ele raríssimo? preciso matar a pancadas cada atum , e a matança vira
A única pesca no Mediterrâneo que merece o quali- car nificina . Das águas vermelhas de seu sangu e, iça-se
ficativo de abundante é a do atum, apesar de brev e (três os peixes enormes, "parecidos com bois, do mesmo tama-
ou quatro semanas por ano), e possível apenas em zonas nho, e, como eles, pend urados em ganchos e puxados
privilegiadas q ue tendem hoje a se tornar raras, ou a com guindastes".
desaparecer. No século XV I, po r exemplo, era muito mais A pesca do atum é uma "indústria" muito antiga do
importante do que hoje no Alga rve português (mas este mar . Não se diz que foram os fenícios que a invent aram ?
é fora do Mar In terior), na Andaluzia (onde era ocasião Os gregos conheciam-na . Esquilo evoca a imagem da ar-
de uma verdadeira mobilização dos camponeses da costa, madilha de átuns para descrever a batalha de SaJamina:
ao som dos tamborins dos recru tadores) , ou nas costas "O mar desaparece sob um amontoad o de corpos ensan-
da Provença. o fim do século XVI, um provençal , lou- güentados, os gregos bat em nos persas como nos atuns
vando sua região, afirma: "Sei que, outrora, no porto de pegos na rede, partem- lhes as costas com pedaços de remo
Marselha, pescava-se, num s6 dia, oito mil atuns." Hoje e fragmentos de destroços." Diz-se que os sistemas de
não se pesca mais atuns diante de Marselha, da mesma captura teriam sido esta belecidos definitivamente pelos
forma que não se encontra mais esturjões na subida do árabes. De qualquer , forma , o vocab ulário atualmente em
R6dano , onde eram, outro ra, numerosos. uso vem de les: almadraba é, em árabe, almazraba, o
Qu an to aos atuns, a explicação científica é bastante cercado; o can to que saúda a entrada dos atu ns é a cha-
clara desde qu e o cruzeiro do Pourquoi-pasr, em 1923, lema, isto é, salam, o cumprimento . Quanto ao chefe da
dirigido pelo dout or Cha rcot, esclareceu o pro blema. Os pescar ia, é o ra ís, nome que designa no Islã , como sabe-
atuns não vêm, corno se pensava anti gamente, do Atlân- mos, os capitães do mar.
tico. Vivem dispersos no Mediterrâneo, numa zona semi- A pesca do atum con ti nua a ser uma grande aventura
profunda, até o momento da desova, a parti r de maio- da qua l part icipa toda a população local , e seu butim
36 o ESPAÇO E A HI5TORIA NO MEDITERRÂNEO DMAR
37
ainda é impressionante. Mas a exceção confirma a regra: nova, ou de Gênova a Provença, ou do Languedoc a Bar-
o Mediterrâneo líquido é pobre; toda sua pesca represen- celona. etc. Os pequenos vapores gregos que se esbaforem
ta apenas um terço da pesca norueguesa. hoje entre as ilhas do Egeu falam, a seu modo. daqueles
tempos muito antigos. A viagem a curta distância domi-
na entre eles. Como o Medite rrâneo é uma sucessão, um
Navegar contra a distância complexo de mares, dividindo-se em superfícies autôno-
mas de horizontes limitados, em bacias compartimenta-
Mas o mar é mais do que uma reserva alimentar; é das, pode-se acomodar particularmente bem a essa nave-
também, e antes de mais nada, uma "superfície de trans- gação caseira. Para os marinheiros sensatos, ou seja, para
porte". uma superfície útil, senão perfeita. O navio, a a maioria deles, raramente seria o caso de deixar o seu
rota marinha, o porto há muito equipado, a cidade co- mar familiar, o comércio conhecido, o "Mediterrâneo"
mercial, são instrumentos a serviço das cidades importan- particular do qual conheciam os contornos, as correntes.
tes, dos Estados e das economias mediterrânicas - os os litorais, os abrigos, as regularidades e as mudanças de
instrumentos de seus intercâmbios e, conseqüentemente, vento. Não diz o provérbio grego: "Aquele que ultrapas-
de sua riqueza. sa o cabo Maleu abandona sua pátria"? O cabo Maleu,
E evidente que, antes de se tornar um elo, o mar foi ou seja, o sul do Peloponeso em sua porta ocidentaI, é a
por muito tempo, um obstáculo. Uma navegação digna última referência antes dos espaços ilimitados do Oeste.
desse nome só começou depois da segunda metade do Se o marinheiro se contenta com esse universo res-
terceiro milênio, com as navegações egípcias em direção trito é sem dúvida porque ele basta às necessidades de
a Biblos, ou melhor, com o desenvolvimento, no segundo intercâmbios limitados. Mas é também porque o mar
milênio, dos veleiros das Cíclades, munidos de velas, re- assusta, porque representa perigo, surpresa, riscos brus-
mos, talha-mares e sobretudo quilhas, para enraizá-los de cos, mesmo nos caminhos familiares. As cerimônias reli-
alguma forma na água do mar (ao contrário dos navios giosas que se mantiveram até nossos dias em tantos portos
com fundo plano que acompanhavam a costa entre Bi- do Mediterrâneo são ritos mágicos incessantemente repe-
blos e o Egito) . tidos contra os caprichos das tormentas e tempestades.
Por muito tempo, a navegação permaneceu prudente, Os ex-votos dos marinheiros salvos do perigo falam a res-
indo apenas de um ponto 8 outro próximo. o alvo a ser peito desse temor no coração de homens que nunca se
atingido sendo visível desde a partida. Uma navegação abandonam voluntariamente à perfídia das ondas. Os
colada à margem, fio condutor por excelência e que, a
carregamentos e. mais ainda. seus corpos e suas almas,
princípio, s6 é tentada de dia: ia-se de uma praia a outra
são recomendados à Virgem Maria, Maris Steíía. Estrela
praia p-õxíma, quando a noite caía, o barco era arras-
do Mar, pelos marinheiros do Ocidente.
tado para a areia.
O essencial das atividades marítimas de transporte O que melhor revela esse temor no coração dos ho-
será representado por muito tempo por essa cabotagem, mens é sua antiga repulsa de ganhar o mar alto, de na-
que lentamente aperfeiçoe-se, desenvolve-se e aumenta em vegar em linha reta. Irão se habituar gradual e excepcio-
seus efetivos. Cortejos de barcos garantem ligações úteis nalmente apenas em itinerários reconhecidos previamente
ainda no século XVIII, por exemplo, de Nápoles a Gê- e atravessados com uma certa regularidade. Lançar-se
38 o ESPA ÇO E A HISTORIA. vo MEDITERRANEO o MAR
39
para o desconhecido era um problema completamente comprar ali, sendo que, por vezes, o próprio dono
diferente. V8.1 anunciar sua mercadoria, gritando pelas ruas de Li-
Parece que os cretenses (oram os primeiros a ousa- vamo e. Gênova. Jean Giono e Gabriel Audisio imagt-
rem alcançar, pelo alto-mar, o sul do delta do Nilo. Quan- aSSIm, cada um a sua maneira , que a Odisséia con-
do chega a Itaca e se faz passar por um mercador cre- tmua a ser desta forma contada de um porto ao outro,
tense, Ulisses explica: "Assaltou-me a vontade ( ... ) de de uma taverna à outra; que Ulisses continua a viver en-
fazer um cruzeiro ( ... ) para o Egito. Armo nove naus e tre os marinheiros do Mediterrâneo, e que a gênese e a
os homens afluem. Durante- seis dias esses bravos feste- eterna juventude da Odisséia deve ser compreendida pelo
jam em minha casa ( ... ). No sétimo, embarcamos e, das presente, pelas fábu las que podemos escutar com nossos
planícies de Crera, um belo e bom Bóreas nos leva sem- próprios ouvidos. Confesso que gosto dessas hipóteses
pre em frente, como na corrente de um rio ( ... ). Bastou poéticas e verossímeis. '
sentarmo-nos e deixarmo-nos levar pelo vento e pelos pi- Finalmente, a curiosidade, a aventura, o lucro e as
lotos. Em cinco dias alcançamos o belo rio Egyptos." políticas ambiciosas e desmedidas concluíram, impuse-
Parece também que os fenícios, excelentes marinheiros, essa conquista. Pois, com os Estados e as civilizações
tinham o hábito de viajar em linha reta de Creta até a belicosas, a grande história insistirá em atravessar o mar
Sicília e as Baleares. Bem mais tarde, na época helenís- em sub jugá-lo e em apoderar-se de suas rotas para que
tica, os navios iam às vezes em quatro dias, com bom o adversário não possa explorá-Ias e dominá- las. Em sua
vento, de Rhodes à Alexandria do Egito. luta pela hegemonia, Gênova e Veneza esquadrinham
todo o mar. Cristandade e Islamismo disputam-no. Qual
No século XVI as viagens em alto-mar multiplicam- terá sido o de todos os esforços das expedições
se, conduzindo navios apressados das Baleares à Sarde- militares, a reunião custosa, trabalhosa, de galeras, na-
nha e à Sicília. O comércio do Levante, as ligações por "redondos", munições, cavalos e homens, que um
Gibraltar entre o Mar Interior e o mar do Norte (em era?, lançados para Jonge! Contudo, tais operações
J297, as naves genovesas inauguraram relações regula- sao arriscadas, o menor incidente pode inutilizá-las. Em
res com Bruges) multiplicaram as navegações mais ou 1540, quando Carlos V chega diante de Argel, os vaga-
menos desligadas da linha condutora das costas e consu- lhões fazem com que seus navios se entrechoquem, e a
maram a conquista das águas do mar. Mas, mesmo no desistência é preferível ao desastre. Em 1565, os turcos
século XVI, navegar em alto-mar, "engolfar-se", como fracassam diante de Malta, defendida por um punhado
dizem os franceses, é ainda uma proeza , e arrisca-se ape- d.e cavaleiros. Na batalha de Lepanto, no golfo de Co-
nas quando são proezas úteis . Se nesta época a bússola nnto, a 7 de outubro de 1571, quase 100.000 pessoas se
não é muito utilizada, muito pelo contrário, apesar de confrontam. o recorde, então fantástico, que permitem
Ê
conhecida desde o século XIl, é simplesmente porque a os meios (c as paixões) do tempo.
maioria dos serviços marítimos no Mediterrâneo é reali-
zada por pequenas viagens ao longo da costa: comprar Navegar contra o mau tempo
seu toucinho em Toulon, seu azeite em Hyêres, sua faiança
em Savana; parar em cada porto , como o fazem com Raramente o Mediterrâneo é um mar tranqüilo, dis-
tanta freqüência os barcos-bazar de Marselha, vender poníveL E, por excelência, um mar de tempestades. Du-
o ":5"A(0 E A HiST ÓRI A NO MEDITE RRÀNE O o M AR 41
40
rente O verão , tudo vai bem , muito bem até. E. a época Dar num port o de Creta. Mas. malfad adamente, a tem-
dos mares azuis, calmos, lumin osos e como que reluzentes pestad e afasta-o da costa e arrasta-o para o alto-mar du -
de azeite, época em que até os barcos de guer ra, as gale- rante quinze dias, até qu e encalham dian te de Malta. A
ras estreitas, baixas na água , particularm ente frágeis, po· tripulação e os passageiros, felizes por terem consegui do
dem sai r impunes. O verão é o tempo de casamento da ao menos salvar suas vidas, passarão três meses na ilha
guerra com as viagens. O velho príncipe Doria (1 468- antes de poderem partir, na primavera, num "nav io ale-
1560) dizia que havia três portos seguros: "Cartagena, xandríno , com a bande ira de Dioscúri as", que também
junho e julho." naquele local, não sendo, bem provavelmente ,
Tudo seria fácil se, antes da chegada do mau tempo, o UOI CO a fazê-lo .
antes do equinócio de outono, o sal, a lã da s últimas tos- A invern agem é, po rtanto, regra normal, e uma regra
quias, o trigo do ano, os tonéis de vinho novo e tantas tão boa que por muito tempo as cida des e os Estados .
outras mercadorias tivessem sido trans portadas a tempo . preocupados com a o rdem, proibiam pura e simplesmen-
Ora, mesmo se apressando nas eiras ou nos lagares, nem te as viagens invernais. Ainda em 1569, em Veneza,
sempre esses transport es podi am ser feitos por mar a era m as viagens proibid as su'l c UOr dell'inv ernata, de 15
tempo. Com o outono e o invern o, abre-se a porta ao de novembro a 20 de janeiro . Os Jevant inos, por sua vez,
mau tempo persistent e. Galeras e veleiro s de carga , na- só navegavam de São Jorge a São Dimitri (5 de maio a
vios longos e navios red ondos deverão todo s permanece r 26 de outubro , de acordo com as datas do calend ár io
no porto; é a sabedoria, a lição da experiência . Já He- grego). Para vencer o obs táculo do mau tempo, será ne-
síodo (no início do século VII antes da era cristã) acon- cessá ria a inte rvenção das modificações técnicas, que
selha seu irmã o Perseu , camponês como ele, mas tam- demorarão a chegar, como veremos, na cons-
bém marinheiro ocasional, em Os Trabalhos e os Dias, a. tru çao dos cascos e na acomodação do leme.
"quando chega o invern o e os sopros de tod os os vent os
fervilham , não mais dirigir naus no mar vinh oso (cor de
vinho), ma s traba lhar a terra . Arraste 8 nau para a Os barcos do fundo do mar
gem , cerque-a de pedras por todos os lados . . . e retire
o batoque para que a chuva de Zeus nada apodreça".Ar- Os barcos são semp re instrum entos complicados e
rum e bem em sua casa toda a enxá rcia, do bre com CUIda- que evoluem, mas muito lenta mente. E espantoso ver
do as asas da nave marinha, pendure o leme sobre a fuma- ainda hoj e, num a ru a de Messina ou nos arredo res de
ça e espere você também o retorno da tem porada de na- uma pequ ena cidade grega, nas ilhas de Chio , Lesbos ,
vegação". em Samoa, na Turqu ia, ou ainda em Djerba, barcos em
Oito séculos mais tar de nada mudara . O barco no construção que são surpreendentemente semelhantes aos
qual o apóstolo Paulo foi enviado para a Itália ju nto ba rcos gregos e roman os tal como nos são reconstitu ídos
com um grupo de pri sioneiros atrasa -se mui to devido aos pela iconografi a antiga e pela arqueologia submarina.
ventos contrários nas paragens de Ch ipr e. Como "a na-
Tu do é semelhante: a bordagem . o cavernarne, a pop a,
vegação era a partir de então perigosa, pois mesmo o
II proa, a quil ha (coluna vertebral do conjunto), o madei-
Jejum (a festa da Expiação, por volta do equinócio de ou-
tono) já h avia passado", o capi tão prepar a-se par a inver- ramento do mastro ou dos mastros. Se há diferenças ,
42 o ESPAÇO E A HI STORfA N O MEDrTERRÁNEO o MAR 43
como na ordem sucess iva das fases da construção ou na a vela quadrada é usada na Antigüi dade. Podemos encon-
forma do leme, as semelhanças dominam, trar muitas vezes uma pequen a vela superior tr iangu lar
Além disso existem os destroços greco-romanos para acima da vela quadrada (e, neste caso, nunca uma segun-
comprová-lo indontestavelmente: os des troços de Antici- da vela quadrada). Mas a enxá rcia do barco de vela tr ian-
tera, na Gréc ia (p rimeira metade do século I a.C.), de gular, conh ecida como latina, ainda seria desconhecida, e
uma embarcação que transportava um carregamento de seu aparecimento e ulterior difu são no Mediterrâneo es-
mármore, hoje no museu de Atenas; os destroços de tão ainda por serem explicados. As teses a esse respeito
Mahd ia na Tunísia , do início do mesmo século, uma atualmente se opõem com um certo vigor , embora os pe -
embarc ação que carregava a bordo du zentas e trmta to- quenos barcos árabes a vela possam apontar para um
neladas de colunas de mármore e de estátuas de bronze , certo pioneirismo do Leste.
hoje no museu de Bardo; ou aque les destroços de Mar- Em comp ensação , tudo fica claro qu ando se trata
zame nni na Sicília do século V I d .C., onde encontramos da ordem sucessiva da construção. Pode-se distin guir três
todos os elemento; de uma "igreja bizantina pré-fabrica- operações: a qu ilha, o cavern ame , as pran chas da "bor-
da" escu lpidos em mármore e pórfiro ; ou ainda os des- dagern". " O cavername constitui, por assim dizer , as coso
troços romanos recém-descobertos em Plani er, perto de tela s do esqueleto , cuja pele é a bordagem . Nos temp os
Marse lha' destroços qu e permitem imaginar o que era um de Roma, por ma is estranho que pareça . montava-se ano
nav io de 'comé rcio romano, com vinte a trinta tes a bordagem e depo is inseria-se o cavername: primeiro
comprimento, cinco a sete de largura , .um.: dOI S ou tres construía-se a pele, e dep ois punha-se o esqueleto,"
mastros capaz de transportar cento e cinqüe nta a duz en- Assim são os bar cos comerciais dos gregos e do s
tas toneladas. Enco nt rar am-se assim carregament os de romanos, aqueles que , por exemplo, freqüentavam o por-
três a dez mil ânforas de vinho ou de azeite, dispostas to hexagona l de Ostia. Ao lado deles , devemos evocar os
em quincôncio. de forma a que o .. de fileira navios de guerra a remo , remos longos e estreitos, ass im
se assen tasse entre os gargalos da fi leira Inferior . ç>s ba r- como os trírremes aten ienses que venceram a resistência
cos de Djerba ainda hoje dispõem deste modo as da frota persa em Salamina, em 480 a.C. Trirremes ou
de azeite que tr ans po rtam, e que se assemelham, mcon- qüinqüerrernes, com três ou cinco file iras sobrepostas de
testavelmenre às ânforas da Anti güidade. remadores, semelhantes às galeras dos séculos XV e XVI,
Quanto ao leme dos barcos romanos, é ainda hoje os navio s de guerr a do Medit errân eo da época - com a
como no tempo dos gregos e d?s feníc ios, feito doi s d iferença, é claro, de que os primeiros não possuíam
remos laterais dispostos dos dois lados da " E. um artilharia a bord o . Send o assim menos pesados do qu e as.
sistema mais eficaz do qu e geralmente se acred!ta , asse- galeras , podiam andar bem mais rápido que elas,
gura Patrice Pomey, especialista em arqueología
ti na , "e que os roma nos aperfeiçoaram para tran sformá-
lo em verdadeiros lemes de eixo que podem, quando ne- Até p,s navios de linha
cessár io, ser empare lhados, e que, a partir de então,
mais têm a ver com remos, a não ser seu aspecto gera l. Três transformações marcam a evolução gera l dos
Evidentemente, é a iconografia que sobre navios do Mediterrâneo antes da navegação a vapor e
as velas e vergas, e as manobras que permi tem. Apenas dos cascos de ferro : o leme de cadaste aparece por volta
o o M AR 45
44 ESPAÇO F. A IIISfÓR IA NO MEDfTFRR ,J,NEO
do século XII ; o casco, de tábua trincada, mais ou me- terior e levam tudo o que é pesado ou esto rvante: grãos,
nos nos séculos X IV e XV; e os nav ios de linha, a partir sacos de lã, couros de boi ou búfalo, dos quais o
do sécu lo XV I I. OCidente é um cons umidor fantástico, e que vão ser bus-
O cadaste é a lona intermed iári a entre as p artes cados em Rodosto, no mar de Mármara , ou em Va ma ,
côncava e convexa da parte traseira da embarcação . O no mar Negro .
leme de cadaste, invenção oceâ nica, é o leme que conhe- A fortuna singular dos veleiros de Ragusa deve-se
cemos : uma haste qu e atravessa o casco permite mano- ao mesmo tempo à capacidade de seus porões e aos baixos
br ã-lo de dentro do barco. Já no século XVI , essa haste salários com os quais a tr ipulação se contenta. Desta for-
se toma uma roda que permite que o timoneiro coman- ma, impuseram-se em todo espaço mediterrânico, atin-
de seu movimen to do interior da embarcação: nas gran- gindo ainda Inglaterra e Flandres, assim como os geno-
des cat racas portuguesas que vão às Índias, muitas vezes veses e .os venezianos. A pro priedade de um desses gran·
cerca de doze homens se unem para manter ou virar O des navios é semp re d ividida em par tes, em geral em vin -
leme. E. claro que continuam as discussões para se esta- te e qua tro "qu ila tes", que não estão forçosamen te a penas
belecer as vantagens do novo leme sobre o antigo. O nas mãos dos ragusianos, Ta mbém o genovês e o Iloren-
novo parece ter dado ao navio mais facilidade no borde. lino, proprietários de um ou vários deles, vigiam os
jar e no navegar contra o vento. mov imentos de seu navio. Mal chega a Livorno ou a Gê-
A segunda transformação concerne à bordagem de nova , o chefe do navio , em geral ragusiano, é intimado
tá bua trincada. Mu ito provavelmen te, veio dos mares se- a pres tar conta s e paga r o que deve aos proprietários dos
tentrionais. jun to com o kogge, qu e será no rma lmente "quilates", ou seja, aos acion ários.
chama do no Medit errâneo de "nave". I! uma emba rcação As querelas e processos deixaram , nos arquivos dos
gran de, de muitas centenas de toneladas, e que portos, vestígios suficientes para forn ecer LOS historiado-
ainda aumentará ma is. Sua ca racteríst ica? Ser construída res muitos deta lhes sobre a vida e as mudanças desses
com tábuas tr incadas, ou seja, ao invés de as pranchas grandes carg ueiros. T riunfantes nos séculos XV e XV I,
do casco serem bem unidas, elas recobrem umas às ou- declinam e qua se desaparecem no século XV II. Mas não
como as ardósias de um telhado. Sendo por isso ma is é esta a regra geral no Mediterrâneo e, sem dúvida, em
res istentes que os barcos redondos do Mediterrâneo, de toda parte? O duríss imo ofício de mar inheiro não se im-
pranchas uni das, as " naves" podem enfrentar as ondas p rovisa. Ele recrut a seus homens em setores estreitos do
fortes e vencer o meu tempo invernal. litoral. Quando um desses setores faz fortuna, se é qu e
Desta form a estabelece-se um tráfego mais regu lar, se pode dizer isso, ele povoa O mar de seus na vios, mas
um a verdadeira revolução nos transportes. Certos portos logo desgasta -se nesse difícil jogo . A regra vale tanto para
não assistirão a recordes de tráfego em dezembro, janeiro os cala ngues provençais quanto para as ilhas gregas , a
ou fevereiro? O Mediterrâneo povoa- se de grandes cor- Riviera genovesa, as costas da Dalmácia e as aldeias e
pos flutua ntes. As carracas genovesas do século XV atin- aldeiazinhas da costa catalã. Mas há rena scimentos. e o
gem às vezes mil, até mil e quinhen tas tone ladas: são os jogo recomeça.
gigantes do Mar Int erior. No século XV I , os veleiros de A última tran sform ação foi a su bstituição da galera
carga de Ragusa aproximam-se por vezes do milhar de pelo navio de linha. A estrepitosa batalha de Lepant o (7
toneladas. Estão ent re os grandes cargueiros do Mar In- de outub ro de 1571) foi o encontro monst ruoso de qui-
46 o ESPAÇO E A Hi ST ó RIA NO MEDITE RRÂNEO o MA R 47
nhentas galeras turcas e cristãs, du zentas e cinqüenta de dos forçados, e. mais ainda, os naufrágios, nos quai s em
cada Jado. Mas já na época de Dom João d'Áustria, sua uma ou duas hor as toda uma esquadra desaparece. E o
sorte estava ameaçada. Sua última forma vitoriosa foi sem que acontece em outubro de 1562 com as galeras espa-
dúvida a galera refor çada , com qu atro ou cinco remado- nholas na baía da Herradura . Restava, então, apenas um
res 80 mesmo tempo em cada remo, conseguindo com consolo: tentar, se possível, resgata r os canhões!
isso ganhar em velocidade das galeras comuns, alcan ça- Finalmente. q uando as naus comerciais começam a
las ou, se necessário, delas fugir com rapidez. se equipar, contra os corsários, com uma artilharia nu-
As galeras têm muitos defeitos. Em prime iro lugar , merosa, as galeras sobrecarregadas de homens tornam-se
um motor oneroso: os forçados, que é preciso comprar, para elas alvos ideais. Em 160 7, os navios "redondos"
alimentar, cuidar e vestir. Em Veneza, até a metade do dos holandeses fulminam as galeras espanholas que que-
século XVI, havia remadores-cidadãos, como na Atenas rem barrar-lhes o estreito de G ibra ltar. Daí a fabricar
de Pérlcles. E em todas as mari nhas existem forçados navios redondos , a vela, que fossem verdadeiros navios
voluntários os buonv oglie como eram chamados na Itâ- de guerra, parecia haver apenas um passo, mas ele demo-
lia , miseráveis que se alugavam por um tempo determi- rou a ser dado . A tal nau redo nda não triunfará de uma
nado para fugir da penúria . "Creio que é s6 vez, pois tamb ém tinha suas fraq uezas. Se uma nave
impossível", escreve o de XIV bem armada for imobilizada em um mar muito calmo,
Malta (26 de fevereiro de 1664) , consegui r buonvoglles quando o vento cessa, as galeras aproximar-se-ão do cor-
na França ou nos países estrangeiros; é mais fácil tomar po imobilizado do inimigo, escolherão as regiões fora de
tur cos (através do corso) ou comprá-los", evidentemente sua linha de tiro, e, rodando em torno dela, poderão ata-
no mercado de Malta, onde os piratas vendiam livre e
ca-la à vontade, ince ndiando-a ou obrigando-a a se render.
regularmente seus prisioneiros. Francan;'ente
Apesar de tudo, por volta de 1620, a galera passava
época de Luís XIV, o sistema não teria podido subsistir
se não houvessem os condenados às galeras. Talvez tenha para segundo plano. Os renegados nórdicos qu e então
até se prolongado em virtude desses c0J.Tl povoam Argel lá aclimatam o veleiro de corso, de gran-
efeito onde poderiam ser aprisionados de maneira mais de raio de ação. Todo o Mediterrâneo passa a ser o seu
cômoda? As galeras são trabalhos forçados ideais, o cam- terreno de caça. E esses "barbarescos" de olhos azuis e
po de concentração por excelência, mais eficientes do que cabelos louros passam pelo estreito de Gibraltar, esprei-
os piombi de Veneza. tam os arredores de Cadiz e Lisboa, navegam até a Islân-
As galeras ainda tinham outros defeitos: o seu custo dia e pirateiam pelo mar do Nor te, com a cump licidade
líquido, o acúmulo de a bordo, a pe9ue.na área dos portos ingleses e dos mercadores holandeses. Contu-
disponível para uma artilharia cada vez mars indlspensá - do, ainda existem galeras em Tou lon e em Veneza, ou
vel e que requer cada vez mais espaço; além disso, as mesmo em Argel. Em 1798 , quando a frota que leva Bo-
galeras são navios feitos para os mares calmos de verão . naparte ao Egito domina de passagem Malta, galeras de
Quando se tenta util izá-las no inve rno (o que é, de certa remos vermelhos encontram-se no porto de La Valette.
forma, a tática das frotas menos fortes, o tempo rui m e Mas não passam de sobrev iventes: nem em Abu kir ( t ."
o mar revolto protegendo-as contra O ataque do inimigo), de agosto de 1798), nem em Tr afalgar, próximo de Gi-
catástrofes podem acontecer: o desgaste, o esgotamento braltar, as galeras estarão presentes no combate.
o ES PA ÇO E. A HI ST ôR1A NO MEDJT ERR ANE O
o MAR
48 49
Nessa época, o navio D. vela j á domina há tempos. das e na manutenção de indústrias; ou ainda da
Dividiu-se claramente em duas família s, navios mercan- destruiç ão de para a cultura, explorada por um
tes de um lado e navios de linha do outro: os últimos tempo e depois abandonada, pois a terra não era sufici-
constitue m uma mistura entre o casco redondo e o casco entemen te fér til.
alongado. O ancestral desses maravilhosos navios de li- O um dos grandes responsáve is pelo desmata-
nha pode, p rovavel mente, ser procurado entre as gaIea- mento. nao acabou sendo. finalmente, uma vítima desse
ças venezianas, grandes galeras finas e alongadas como processo? Chegou o dia em que as florestas da Calábria
os navios de linha do futuro, mas bem maiores do que e os ca:valhos do Monte Garga no deixaram de ser ex-
as frágeis galeras. Excessivamente pesadas e sobrecarre- plor éveis pelos estaleiros de Ragusa ou pelas paragens
gadas de artilharia para serem manobradas, tinham o p0- de Nápoles. . . Carmelo Tras selli, admirável
der de fogo de forta lezas flutu an tes. A linha de galeras de .da Sicília. acha que essa rarefação e a sua
Dom João d'Austria em Lepanto era precedida por esses con: equêncl8, a alta dos preços da madeira, foi uma das
mastodontes que fulminaram as galeras turcas assim que razoes, entre mui tas outras, da decadência do Mediterrâ-
as frotas se encontraram. Mas esse sucesso. em si sensa- neo no sécu!o XV] , e ma is ainda no século XVI I.
cional, não teve conseqüências imediatas. Pois. como nos mo_os venezianos, mesmo os cava leiros de Malta, passam
outros mares do mundo. nada foi precipitado na evolu- entao a comp rar os navios na Holanda.
ção dos barcos do Mediterrâneo. De fato, foram necessá- Mais do que verossímil. essa explicação lembra-nos
rios a riqueza. a ambição e o delírio dos Estados mode r- as .reflexões de Maurice Lomba rd sobre a crise da ma-
nos para se construir. no fina l do século XVI II, navios no Mediterrâneo islâmico do século XI. O Islã do-
de linha atravessados por ma is de cem canhões, com cas- todo o mar; quando lhe faltou a madeira. este
cos de madeira fartamen te guarnecidos de placas prote- de SUbIto lhe Como as mesmas causas produ-
toras de cobre. obras-primas da arquitetura naval. sem mesmos efeitos. alguns séculos mai s tarde o Me-
dúvida, mas fabulosamente onerosas. dn errs.oeo cristão do Poente iria. por sua vez. perder o
domínio do Mar Interior. onde. desde então ingleses e
holandeses iriam impor suas vontades . '
Embarcações e florestas
Ter iam as embarcações de madeira destruído pouco o Mediterrâneo são rotas
a pouco as flore stas do Mediterrâneo? Em todo caso. elas
cederam lugar a formas degradadas, maquis e charnecas, O Mediterrâneo são rota s por mar e por terra . uni.
a massas de arbustos odoríferos, feitos sob medida para das; quem diz rotas diz claades, as modestas, as médias
alimentar grandes chamas nos fogões ou para aquecer e as grandes, dando-se as mãos. Rotas e mais rotas ísto
fomo s de pão. Arbu stos que, no primeiro caso (maquis), é, todo .um sistema de circu lação. .- - '-
-recobrem inteiramente o solo e, no segundo (charnecas), A compreensão do Mediterrâneo, que é, em toda a
desnudam-no em grandes área s. Os maqui s e as charne- força do termo, um espaço-movimento. torna-s e para nós
cas são também o resultado da exploração desorganizada C?mpleta através deste sistema. Àquilo que lhe é forne-
para o uso da madeira na construção, no aquecimento cido pelo espaço próximo, terrestre ou marinho, e que
50 o ESPAÇO E A. HISfóR IA NO MEDITERRANED o MAR
é a base de sua sobrevivência, o movimento acrescenta alemãs. Nuremberg, Vim, Frankfurt-aro-Maio, Augsburg,
"
seus dons . Quando este se esta biliza, os dons se multi- e sobretudo esta, são alunas, êmulas da Itália. A partir
plicam, manifestam-se em conseqüências visíveis. Por do século X IV, em Bruges e em Londres , domina o ban-
muitos séculos, a Toscana é, sem dúvida, o mais belo qu.eiro italiano e, com ele, triunfa o mar longínquo e
campo do mundo. Não será porque Florença alimenta-se exigente.
do trigo siciliano, de maneira a deixar que a Toscana ru- Um Med iterrâneo maio r cerca e envolve. portanto,
ral possa se especializar na cu ltura da vinha e da oltvei- o Mediterrâneo stricto sen.su servindo-lhe de calxa.de
ra? Do século X IV ao século XVI, Veneza é a cidade mais I s, não _ ape nas a vida econômica do Mar
rica da Itália e da Europa, com certeza de todo o Medi- Inte rIor que se repercute ass im ao longe. Suas civilizações,
terrâ neo. h po rque está no centro do sistema de circula- seus movimentos cufturais de colorido cambiante tam-
ção mais vas to da época, que se estende por todo o mar; bém repercutem. A Renascen ça expande-se a partir de
porq ue assegura para si a maior parte das compras de fl.õrença . O'Barroco, ongúlárTo de Roma e da Espa;ilia
pimenta e temperos do Levante, ou ao menos vindos do triun ante . recobre tóda a "Europa, inclusive os Qalses
Oceano Indi co pelas escalas do Levante; e sobretudo por- protestantes do Norte. Do mesmo modo, as mesquitas de
que é, por excelência, a revendedora desses gêneros pre- Istambulyp rincipa fmente a Süleymaniye, serão imitadas
ciosos ao Ocidente, principalmente à Alemanha, o maior até na Pérsia e na Indía. -
consumidor da Europa. Veneza aprisionou, por assim . xrste aSSim, Vis1vel nas margens do Mediterrâneo
dizer, os mercadores alemães no grande edifício do Fon- MaIOr, uma espécie de registro da grandeza e do brilho
daco dei Tedeschi, assim como os países do Islã aprisio- próp rios do mar. A partir daí, muitos problemas do pas-
naram os próprios venezianos nos {onduks do Levante. O sado medirerrânico, quas e insolúve is à primeira vista ,
problema de Veneza é imped ir que os alemães participem resolvem-se por si mesmos.
diretamente de seu comércio marítimo. E. um território . Esse luxo que revivemos hoje, em espírito e na
guardado com ciúmes, reservado a seus cidadãos de ple- realidade, ao longo do Grande Canal , a rua mais bela
no direito, que têm a cidadan ia "de dentro e de fora" (de do mundo, ou na praça San Marco, a praça mais bela do
intus e de extra). mundo, s6 pode ser explicado pela exploração distante
Podemos observar assim quão desmesuradamente o de outrem. Com efeito, a exploração dos campos próxi-
espaço explorado pelas cidades e pelos mercado res do mos e das atividades dos pequenos portos satélites do
Mediterrâneo foi aumentado pelas rotas do Mar Interior. não seria suficiente para explicá-lo. E. preciso
É um medire rrânico que descobre para os seus contem- considerar as contribuições de um comérc io à distância,
porâneos a longínqua China : Marco Pólo volta a Veneza do posto avançado que. por intermédio do Islã o Medi-
em 1296 . ainda um med iterrânico, Cristóvão Colombo,
É
terrâneo lança até o Extremo Oriente. Quando', durante
a festa da Sensa, o dia da Ascensão, o Doge de Veneza
que descobre a América em 1492 . São os mercadores ita-
esposa o mar diante da igreja de San Nicoló dei Mendí-
lianos que controlam as fei ras de Champagne no século coli, a cerimônia não é apenas um grande e belo espe-
XII I e, duzento s anos depois, controlam também as fei- !áculo, apenas um símbolo, mas uma realidade: por
ras de Lyon, em tomo das quais, por um instante, toda Intermédio do mar, ele esposa o Mediterrâneo Maior ,
a fortuna da Europa prudentemente girava. As cidades fonte perene de riquezas.
52 o ESPAÇO E A. HI STORI A NO M EDITERR),NEO
A decadência. as crises e períodos de penúria do
Mediterrâneo são justamente as panes. as insuficiências,
as rupturas do sistema circulatório que o atravessa. o
ultrapassa e o contorna, e que , por muitos séculos, colo-
cou-o acima de si mesmo. Em 1498, o périplo de Vasco
da Gama é o pr imeiro golpe rude em seu destino. No en-
tanto, sobreviverá à provação. A decadência só se afiro
mará a partir de 1620. quando os ingleses e os holande-
ses tiverem se apoderado de mercados longínquos do
Mediterrâneo e invadido seu próprio espaço . Há então
uma interrupção que dura muit o tempo. Definitiva? Mes-
mo muito depois, após séculos de recolhimento. a aber-
tura do canal de Suez ( 1869), sobre a qu al falaremos
mais tarde, não restabelecerá completamente a prosperi-
dade, e sobretudo a preemin ência do Mediterrâneo. Por-
que, então, a Inglaterra reinava soberana sobre o mundo
inteiro. Tomad o pelos estrangeiros no século XV I, o Me-
diterrâneo não podia mais ser devolvido à população de
suas costas.
Fil . .3
Cabeça de Zeus proveniente do Olimpo. Atenu, Museu Nacional.
@ ART EPHOT. Nimatanah.
A alvorada
Todo mundo diz, todo mundo sabe que "as primei -
ras civilizações" nasceram no Mediterrâneo orienta l do
Oriente Próximo. Mas não foi o mar o primeiro respon-
sável por elas. Durante milênios permaneceu vazio, mais
deserto do que os próprios desertos , obstáculo e não liga-
ção entre os homens que, contu do. já viviam em suas
margens há muito tempo.
No entan to, também muito cedo circularam as jan-
gadas e as pirogas primitivas, sem as quai s os transpor-
tes de que temos provas não teriam sido possíveis. Desta
forma , Chipre, que sempre foi uma ilha desde o surgi.
mento do homem na Ásia Menor, e cuja data dos primei-
ros povoamentos não é exatamente conhecida, importava ,
no sexto milênio, a obsidiana da Anatólia para fabricar
seus instrumentos. Esse exemplo não é o único: ocupada
pelo homem pela pri meira vez por volta de 5000 a.C. ,
Malta obtia na Sicília pedras desconhecidas em suas ter-
ras, entre as quai s a obsidiana . Mas nada indica contatos
regulares ou relações seguidas. Embora o homem tenha
superado cedo o obstáculo do mar nas distâncias curtas.
fazia-o ainda de forma apenas esporádica . A extensão
marítima, enquanto criadora de grandes intercâmbios,
o ESPAÇO E A III ST O R/ A NO Mt:DlTfR RANEO A A LVORADA 57
56
permaneceu inutil izad a por muito tempo . Os primeiros têncía, a partir do oitavo milênio, não somente de aldeias
passos da civilização do Mediterrâneo fora m dados à ou de cabanas, mas de grandes aglomerações que podemos
margem e fora dele. chamar de cidades, apesar de nada terem da organização
de uma cidade mesopotâmica ou egípcia. Daí a argumen-
tação tão revolucionária quanto convincente de [an e Ia-
As revoluções do Oriente Próximo cobs (The Economy 01 Cíties, 1969): ela sustenta qu e nas
regiões vazias, na pré-história, ou em algumas partes do
A alvorada da hi stóri a é a invenção da agricultura. No vo Mundo após a conquista européia, é normal e até
a revolução neolítica que, soubemos (gra- lógico que as cidades comecem a viver ao mesmo temp o,
ças aos métodos de datação pelo radiocarbonc) , mesmo antes do qu e as aldeias, [eric ó e Çatal Hü yük são
çou por volta de 9000 a.C. e estendeu-se por dois exemplos dessas aglomerações "neolíticas": no oita-
nios. Essa grande cesu ra d? hist6:ia da humanid ade neo vo m ilênio antes de nossa era, Jeric6 abrigava pelo me-
se instau rou, portanto, mu ito Desenvolveu- nos dois mil habi tantes, e as casas de Çatal Hü yük esten-
se, contudo. a partir de vár ios mais ou m.eoas mte r- diam-se, unidas umas às outras, po r quinze hectares; nas
ligados. impulsionando diante, de SI seus cereais - plan- casas, as pessoas circulavam po r abertu ras ovais nas pa-
tas selvagens já utilizadas muito tempo de. aos pou- redes e, entre elas, por meio de terraços .
cos começ.arem a ser cult ivadas - , seu s amrnats As "cidades primitivas" já são centros organizado-
ticos, suas árvores frutíferas. seus instrumentos e seus ha- res. Provocam e mantêm uma circulação de grande raio.
bitas sedentários. . Ieri c õ exporta sal e betume e recebe, entre outras coisas,
Isso explica o fato de n,ã o nasc,ido nas a obsidiana da Anat6lia, as turquesas do Sinai, os cauris
cies, que imaginaríamos a prIOrl mais fáceis de do mar Vermelho. Çatal Hüyük troca sua obsidiana por
mas nas montanha s que margeiam o dese rto da sílex da Síria, importa do Mediterrâneo conchas em
nos pla na ltos montanhosos da Anat? lia e do Ira : c, quantidade, todas as espécies de pedras , alabastro e már-
de fat o . o habita t natural dos ca rne iros , cabras, mo re. Tem inúmeras atividades ar tesa nais, jóias de pe-
e porcos, e também das gramíneas selvagens, a alti tudes dra , de madrepérola ou de cobre, tecidos finos, cerâmica,
de 600 a 900 metros. Ali, enfim, as águas correm etc. , enquanto que, na mesma época, a planície de Pan-
abundância relativa, ao pé dos relevos do norte, em 10- fília , bem próxima, ainda está mu ito atrasada cultural-
c1inações adequadamente dispostas, para o sul mente. E. em Çatal H üyük, a invenção criadora, sinal
ou par a o oeste, f. nessa zona, de afluência econômica, afirma-se logo de início como
mada pelos historiadores de Crescente Fértil, 9ue a agr...1- muito poderosa.
cultura começou seu lon go percurso , a partir ?e tn:s No entanto, é a planície. a baixa Mesopotâmia, que,
regiões privilegiadas: os vales e as vertentc:s ?Cldentals com o Egito, irá se tomar a acumuladora essencial da
do Zagros, a região montanh.osa da Mesopotaml a turca e civilização em gesta ção . Afina l, uma gran de civilização
o sul do planalto da Anatólia. . _ não pod e viver sem uma grande circulação, e a água dos
Q uem fala de agricu ltura, fala de sedenta.n zaçao , rios - o Eufrates, o T igre e o Nilo - permite rapida-
enraizamento em grupos. Porém, a surpresa, mente o desenvolvimento de uma indústria de trans porte
lada pelo radiocarbon o . veio quando se descobri u 8 exts- fluvial. Quando esses barcos aventuram-se fina lmente
58 o ESPAÇO E Ao H/ STORI A NO M EDITf.RR},NEO A Al.VORADA
59
pela s águas salgadas do golfo P érsico ou do Oceano In- . progresso bastante rápido fará com que os juncos
dico, ou ainda do mar Vermelho e do Mediterrâneo, dão pnrmnvos sejam substituídos por pranchas de madeira.
um passo decisivo. E o início de um milagre. Bens, mero blocos de sicôrnoro ou de acácia vindos do alto Egito. ou
cadorias, técnicas, 80S poucos tudo transitará pelas rotas de .cedro do As pranchas curtas e maciças são
do mar. O Mediterrâneo vai começar a viver. unid as umas às outras. Exceto pelo material.
esses na vios de mad eira. sem quilha. de extremidades er-
guidas por um cabo transver sal, assemelham-se. com toda
Primeiros barcos, primeiras civilizações evidência. às barcas primitivas. Povoam as cenas de caça
e pesca tão freqüentemente representadas nas paredes dos
o transporte fluvial no Eufrates e no Tigre (efetuado túmulos. e servem para transportar os mortos para sua
por jangadas feitas de odres inflados ligados uns 80S ou- última morada.
tro s, que, muito carregadas, desciam o curso dos Tios - A indústria de transportes do Nilo é tão poderosa
depois do que os odres vazios eram transportados no quanto a do Eufrates. sobre a qual, além disso, goza de
lombo de asnos) com certeza desempenhou um papel uma vantagem certa: o sistema regular de ventos no Egi-
muito importante no desenvolvimento e prosperidade da to perrrute que os barcos subam o rio facilmente à vela.
Mesopotâmia. Ele permitiu a divisão econômica dos di- No sentido contrário, basta que se deixem levar pela cor-
versos recursos da montanha e das regiões baixas e. ao renteza. Raramente são necessários remos e su gas. Assim,
mesmo tempo, a integração de cidades independentes de- por esta e outras razões. o Nilo é a condição da unidade
sejosas de permanecê-lo. Basta observar ainda hoje ° e da riqueza do Egito. No século XXV a.C.; o rio per-
rnite tran sportar o granito das pedreiras do alto Egito até
movimento das barcas no Eufrates, suas vastas extensões
de água, suas margens planas. por muito tempo pauta- Mênfis e dominar de longe a Núbia, grande fornecedora
nosas, para fazer reviver os magníficos baixos-relevos de de marfim, ébano. penas de avestruz, metais preciosos e
Nín ive, com suas barcas de caniço deslizando entre os sobretudo ouro. Logo permitirá, pela rota de Coptos a
hipop6tamos, sobre os pântanos piscosos. Mas a Mesopo- Ooeir, atingir o mar Vermelho e, por ali, ter acesso ao
incenso e à mirra da região de Punt, ao cobre, às turque-
tâmia está distante das margens do Mediterrâneo e. em-
sas e outras pedras preciosas do Sínai, E todas essas ri-
bora pareça ter se aventurado no mar Vermelho e no
quezas se acumulam no baixo Egito, sede do poder Ia-
golfo Pérsico, pouco sabemos a esse respeito . Ela é o raõníco. O que permite comprar ou conseguir para o
pano de fundo da primeira hist ória do Mediterrâneo. Egito tudo o que ali falta ou que por ele é cobiçado: os
Já os barcos do Egito desembocam na hist6ria do cedros do Líbano. o betume do mar Morto, o azeite e,
Mar Interior. Os baixos-relevos das primeiras pirâmides mais tarde, o vinho da Síria.
no-los mostram muitas vezes, construídos de feixes de assim que começam as viagens entre o Egito e as
papiro amarrados. um pouco assemelhados às barcas da cidades da costa sírio-libanesa. quase na alvorada da his-
Mesopotâmia. popa e proa erguidas, fundo quase plano t6ria egípcia. Provavelmente. no começo, como expedi.
para evitar o choque contra os bancos de areia submer- ções lançadas pelos Iara ós. Mas, em meados do terce iro
sos a pouca profundidade e permit ir que atravessassem milênio, uma verdadeira frota mercante liga Bibtos aos
sem danos os inúmeros pântanos. po rtos do delta. Os barcos são do tipo egípcio e sem
60 o HPA('O t: A IIISTúRIA '10 MFVI1TRRANfO A Ai.VORADA 6.
dúvida são fina nciados pelo Egito, mas talvez já sejam Egeu e da Ásia Menor quanto o seriam seus sucessores,
construídos e sobretudo montados pelos cananeus (é o são, incontestave lmente , os principais responsáve is pelo
nome que se dava aos sírio-libaneses) , Esses ancestrais nasc imento do primeiro Mediterrâneo de intercâmbios,
dos fenícios já eram um povo de marinheiros: ao contrã- um Mediterrâneo ainda reduzido a uma das metades do
rio , o Egito sempre tenderá a ficar em casa, e sua riq ue- mar (os espaços do Levante), mas que já é como que um
za, aliás, permitir-lhe-á um comércio passivo, como se dirá espaço econômico unitário , onde logo tudo se troca, obje-
mais tarde, na direção do Mediterr âneo. Em todo caso, tos, técnicas, modas, gostos, homens. é claro , e mesmo
mil anos depois, não há mais dúvidas: uma pintura de correspondênc ia diplomática .
Teb as, do século XV a.C., most ra barcos mon tados por Cria-se assim um fenômeno ext rao rdinariamente
cana neus que, em seus trajes típicos, descarregam no novo, estabelece-se uma cultura cosmopolita, na qual as
Egito as mercadorias de seu país. Os barcos, contudo, contribuições das diversas civilizações construídas à mar-
permaneceram análogos: veleiros do tipo egípcio, com gem ou no me io do mar podem ser reconhecidas. Dessas
as mesmas extremidades erguidas quase em ângulo reto, civilizações , umas permanecem nos domí nios dos impé-
ap arentemente sem qui lha. Barcos que convêm a um tra- rios : O Egito, a Mesopotâmia , a Ásia Menor dos hititas;
jeto tranqüilo e rotineiro em águas pouco profundas e ou tras lançam-se ao mar e são suste ntadas por cidades: a
sujeitas a enchentes periódicas qu e fazem do caminho cos ta sírio-Iibancsa, Creta c mais tard e Micenas. Mas to-
navegável do Nilo nad a mais do que uma trilha. Mas da s comun icam-se ent re si a partir de então. Tod as, até
bem pouco convenientes para os pe rigos do alto-mar , o Egito . normal mente tão fechado, voltam-se p ar a fora
Ora, já no início do segundo milênio. com certeza com uma cur iosidade apaixonada. E a época das viagens,
mai s cedo, su rgiu um outro tipo de barco, nascido de das trocas de presentes, das correspondências d iplomáti-
uma outra aventura, a dos povos do Egeu. Esses navios cas e das pr incesas que são dadas a reis estrangeiros co-
leves navegam a vela ou a remo, e são mun idos de uma mo caução dessas novas relaçôes "inte rnacionais". Época
qu erena e de uma qu ilha, O que não somente reforça seu em que se vê surgir nos afrescos dos túmulos egípc ios,
casco contra o choque das ondas, mas também fixa-os na em seus trajes originais, min uciosamente reproduzidos,
água , dando-lhes maior estabilidade e melhor resistência todos os povos do Or iente Próx imo e do Egeu: cretenses,
ao vento. Ancestral direto dos barcos fen ícios, gregos e mlcênicos, palestinos, núbios, cananeus; em que as mag-
rom anos, o bar co egeu é, de fato, o primeiro barco de níficas cerâmicas crete nses inva dem todo o Levante (pra-
transporte realmen te adaptado ao mar. Ele acelera a bis- ticame nte todas as escavaçôes descobrem algum vaso ou
tóri a do Medit errâneo. restos de cerâmica cretenses}; em que as porcela nas azuis
do Egito, exportadas para todos os cantos e copiadas sem
escrúpulos em Ugarit. acompanham os mor tos nos túmu-
o primeiro Mediterrâneo mercante da hist6ria los micênicos; em que o culto das divindades cananéias,
sem dúvida in troduzido pelos come rciantes, espalha-se
No início do segundo milênio emergem portanto dois pelo delta, enq uan to as esfinges aladas ou os deuses do
setores marítim os, onde se fabr icam navios e marinheiros: Egito florescem na Síria ou na região hit ita; em que a
a costa libanesa e as ilhas do Egeu. Já existem proto-fe- fantasia da pintura cretense nas paredes dos túmulos de
n ícios, já existem preto-gregos. Tão ativos nas costas do Te bas aba la a a uste ra tradição egípcia, enquanto as flores
62 o ESPAÇO E A HISTORIA NO MEDITERRÁNEO A ALVORADA 63
de lótus e os pássaros aquáticos do Nilo longínquo inspi- Duas gerações de cidades-palácios nela surgem, a
ram os ceramistas cretenses ou micênícos, que retomam primeira de 2000 a 1700, a segunda de 1700 a \400.
por conta própria - e com que força na disposição e Como estas datas dizem por si mesmas, a ilha se desenvol-
no tratamento das formas - s.eu universo ambíguo e ma- ve com o próprio progresso das navegações do Levante.
rinho, recusando, além do mais, ao contrário do Egito, as Devemos ver nessa multiplicidade de palácios-cida-
referências espaciais e os horizontes figurados; em que a des - entre os quais Cnossos é o mais belo. mas não o
moda egípcia. até então devotada ao linho branco, apai- único exemplo - cidades independentes, cidades-Estados
xona-se pelos bordados sírios e pelos tecidos de várias já segundo o modelo grego, como afirma E. van Effenter?
cores dos cretenses. Os palácios são tanto o apanágio de uma divindade quan-
Nessa extraordinária miscelânea do segundo milênio, to o de um príncipe, o Mines de Cnossos. Talvez sejam
a palma do cosmopolitismo cabe sem dúvida aos sírio- também uma forma de economia, o lugar onde se reúne
libaneses, que se inspiram em tudo e em todos, recambio e a partir do qual se redistribui a produção, o centro on-
nando tudo à sua moda. Creia. ao contrário, apesar da de os artesãos e comerciantes da cidade próxima apa-
atividade de seus comerciantes e marinheiros, cujos ves- nham suas encomendas, onde se concebe uma participa-
tígios encontramos por toda parte, deu mais do que re- ção cada vez mais consciente nos intercâmbios externos.
cebeu. Talvez protegida por sua insularidade, continuou Afinal. esse florescimento, principalmente o mais brllhan-
a ser a mais original e a mais insólita das primeiras civí- te, de 1700 a 1450 , é contemporâneo de um desenvolvi-
lizações antigas. Tão misteriosa quando se desenvolve mento econômico geral do Oriente Próximo. O brilho dos
como um fenômeno à parte como quando desaparece de grandes impérios reflete-se no espelho da civilização cre-
uma morte brutal e inexplicada. tense que, por sua vez, remete ao longe suas luzes. Cnos-
50S, o palácio-cidade por excelência, brilharia ao longe,
graças aos navios cretenses que esquadrinham os mares.
De Cnossos a Micenas Tudo desabará, como já dissemos, em Cnosses e na
Creta oriental (a única parte da ilha iluminada pela civi-
Creta é uma ilha perdida no alto-mar, por muito tem- lização) por volta de 1450. Teria sido em virtude da ex-
po subpovoada e subdesenvolvida. Curiosamente prote - plosão vulcânica de Thera, hoje Santorini? A hipótese é
gida: nela não existem animais selvagens autóctones, ra- aceitável, e freqüentemente aceita. Ou em virtude de uma
posas, lobos, águias ou corujas, nenhum animal nocivo descida vitoriosa dos micênicos? B. a hipótese clássica.
além do escorpião, das serpentes e de uma aranha vene- Ou em virtude de violentas perturbações sociais? Oual-
quer que seja a explicação, a civilização cretense extín-
nosa (aliás desconhecida no continente). Por mui to tempo, gue-se em meados do século XV.
mal fez eco às correntes civilizadoras vindas das Cíclades E uma civilização que não conhecemos perfeitamen-
e do Egeu. Enquanto Tróia, perto do Helesponto, já bri- te. Sua religião continua a ser-nos pouco compreensível.
lha, ereta ainda permanece na obscuridade. Apenas por No máximo. reconhecemos alguns de seus símbolos: a
volta de 2500 a.C. chega-lhe alguma luz. A ienda de Eu- árvore, o pilar, o machado duplo, os chifres de touro,
ropa raptada por Zeus das costas da Fenícia e levada para os lenços amarrados ritual mente; alguns animais sagra-
Creta conteria uma porção de verdade. dos: a serpente, a pomba, o touro. Finalmente, a Deusa
64 o ESPAÇO E A HI STORfA NO MED ITERRÂN EO A ALVORA DA 65
Mãe, saída das pro fundezas da pré-história e da s menta- A civilização dita micênica (a pa rtir do nome da ci-
lidades primitivas, parece ter dominad o. Mas que dite- dade de Micenas, na Arg6lida) , que sucede a civilização
rença entre essa jovem deu sa elegante que brande em cretense, já era há muito tempo sua discíp ula. Os alunos
sua uma serpente como se segurasse uma bug iganga, tornados perigosos ter iam destruído o mestre? E. possível.
e as adiposas estátuas da abundância que foram encon- Ou talvez tenham ocupado um espaço vazio . Em todo
trad as às centenas por todas as margens do Egeu! Qual caso, é certo que as cidades micênicas, Tirinto, Piles, Ar-
a relação entre a dança sagrada das sacerdot isas que faz gos, Tebas, Atena s e Micenas, continuaram a se desenvol-
girar as saias esvoaçantes de jovens com longos corpos ver após o brusco apagar de Creta. Nelas foram construí-
de bailarina e a cena dos afrescos de Mari, ond e o rei dos grandes palácios à maneira de e reta. E, correndo
recebe da deusa Ishtar os emb lemas sagrados, com a so- pelos mares como os cretenses, os mercadores micênicos
lenidade hierâtica da Mesopotâmia? O que nos fascina assumem um lugar preponderante no Egeu . Instalam-se
em Creta é a idéia que dela fazemos, com ou sem razão, em grande número em Chipre. no Egito, na Ásia Menor,
de uma civili zação "especial ", onde tudo visaria à beleza na Síria, no Líbano. e as nau s micênicas podem ser en-
e à alegria de viver, onde nem mesmo a guerra encon- contradas em toda parte no Oriente Próximo, como outro-
traria espaço (de qualqu er forma , não se encontram fortl- ra o eram as de Creta . Mas o clima mudou: as cidades
Hcações ao redor das cidade s cretenses). Nos afre scos de micênicas, belicosas e expanstonistas, e por vezes rivais.
Cnossos, o rei-sacerdote caminha entre os lírios, e mu- cercam-se de muralhas. Acabarão finalme nte por conhe-
lheres de vest idos claros, amarelos, azuis e brancos, os cer um desti no trágico, e quase todas desapa recerão no
seios nus, dançam d iante de um públi co sentado sob oli- decorrer de um drama ainda mais obscuro do que aquele
veiras azuis. Acrobatas esguios apresentam -se entre os que pôs fim a Cnossos.
chifres de um touro. Domin a um naturalismo simples e
forte: um raminho, um tufo de açafrão ou de íris, um As catást rofes pouco explicáveis do obscuro século XII
botão de lírio branco sobre o acre de um vaso ou a púr-
pura de um estuque mural , juncos que se combinam num O século XI[ é o mais obscuro dos séculos obscuros.
motivo contínuo, quase abstrato, um ramo de oliveira Seriam suas catástrofes em cadeia comparáveis à queda
florido, os tentáculos torcido s de um polvo, delfins, uma de Roma no século V? [ é se defendeu esta hipó tese. Seja
estrele-do-mar, um peixe azu l alado, temas normais em como for , an tes dessas catás trofes brilhava a luz desde o
si, mas que são tratados com uma grand e lib erdade in- mar I ônio até o Egito e o restante do Oriente Próximo.
ventiva . Na fantasia de um mundo alegremente irreal , um Com o século XlI, instala-se a noite, aproximadamente por
macaco azul colhe açafrões, um pássaro de turquesa em- meio milêni o. Desta forma , não há nenhu ma comparação
poleira-se em roch edos vermelhos, amarelos, azuis, mati- razoável entre o fim de Roma, simples rup tura. e essa
zados de branco, nos quais flores cem roseira s-bra vas; um escuridão de muitos séculos que invadiu tudo.
gato selvagem espreita através dos ramos de uma trepa- O que desaparece entã o é o império hiti ta da Ásia
deira um pássaro inocente que lhe volta as costas; um Menor , o Hatti, os palácios micênicos, todos incendiados
cavalo verde arrasta a carruagem de duas deu sas sorri- e destruídos (em Tlrinto, os esqueletos dos defensores fo-
dentes . ram encontrados ao pé das muralhas. sob uma massa de
66 o F.SI'AÇO F. A HISTÓRIA NO MEDITERRÂNEO A ALVORA DA 67
destroços calc inados). Caberia a responsabilidade aos mis- Teria havi do, como diz Rhys Carpenter num livro
teriosos "povos do mar". que fazem pensa r nos norman- recente, uma mudança b rutal no clima, que ter ia se des-
dos da Idade Média? Esses povos - quem eram, de onde regulado no sentido de uma seca persistente, calamitosa
vinham? - rea lmente existiram, já que mu itos textos Ia- e, fin alm ente, destruidora? A duração dos ventos etés ios,
Iam deles. Eles seguira m até o Egito onde foram duas que excluem a chuva, teria se pro longa do, transformando
vezes derrot ados, em 1225 e 1180 a,C.: um baixo-relevo em desertos vastas regiões já secas, mas até então culti-
comemora essa vitória do Iar a ó. Mas nem por isso o Egi- váveis. Só te riam escapado ao sinistro inimigo as regiões
to escapa rá do desastre, po is o que desaparece, principal. altas. próximas ao mar, e além disso totalmente expostas
mente na sua múltipla ave ntura, e por muito tempo. é o aos ventos do oeste : o golfo de Corinto (que as Instruções
Mediterrâneo dos intercâ mbios. Estes diminuem, desa pa- Náuticas assinalam como uma zona suscetível de atrair
recem: não resistiram aos incêndios, às carnificinas, às as depressões tempestuosas de maio a julho e de setem-
fortalezas derrubadas, às cidades arruinadas como que bro a outubro), Ãrica, Rhcdes, Chipre, Tessâ lia e Épiro.
sem motivo , tomadas de assalto e saqueadas. Nas outras regiões, os habi tantes expu lsos de suas terras
Há pouco tempo, tentava -se explica r tai s transtornos por várias colheitas nu las ter iam alcançado o mar, inva-
pela chegada dos indo-eur opeus, os dõrios. Bárb aros, cer- dido maciçamente os territórios relativamente protegidos
tamente, mas qu e possu íam armas de ferro , Teriam ven- e provoca do as destru ições em cade ia que conhecemos.
cido os micên icos que s6 conheci am as armas de bronze. Q uanto aos palácios de Mi cenas, não teriam sido destruí-
Os recém-chegados teriam afugentado as populações en- dos pelos invasores, mas pe las populações locais de cem-
louquecida s. Os povos do ma r seriam essa horda de fu- po neses esfomeados, po is sempre foram grandes entrepos-
gitivos que, por sua vez, pilharam, saq uearam e mata ram tos de gêneros alimen tíc ios.
desde a região hitita até o Egito. In felizmente, essa expli- Essas exp licações provocam 8 imaginação, sendo esse
cação não co nvence mais, pois os dôrios, últimos invaso- seu mé rito e sua utilidade. Mas o problema cont inuará
res indo-euro peus da Grécia a ntiga, só chegaram ao final obsc uro en quanto não existir um conjunto maior e mais
do século XII, pelo menos cem anos mais tarde, e não preciso de fatos. Serão necessár ias mais escavações bem-
tro uxeram o ferro, que veio de outro ' lugar. 11 o que hoje sucedidas, cacos de cerâmica mais convincentes e sobre-
afirmam os arqueólogos. tudo precisões cro nológicas. E pedir mu ito, mesmo con-
Mas, por enquanto, nenhuma explicação impõe-se side ran do que as possibilidades novas de datação ofereci-
ou resiste às exigências da crítica. Só dispomos de hipó- das pelo rad iocarbono podem esclarecer muitas coisas.
teses ainda a serem averiguadas, Deus sabe como! Em todo caso, um fato é certo: no século X II a.C.;
Clau de A. Schae ffer sustentou qu e o impéri o dos hí- o Med iterrâ neo orien ta l volta à estaca zero, ou quase, da
titas teria sido destrufdo por terremotos ext remamente história . Os intercâmbi os se esgotam. Cada um vai viver
violentos. F. poss ível e até provável , pois sem pre houve por si mesmo , e com dificuldades. Os dois impérios que
inúmeros sismos naquela região da Ásia Men or. Isso não subs istem perderam todo o brilho : o Egito volta-se para
basta, porém , para explica r o conj unto do fen ômeno, qu e si mesmo, para suas dissensões inte rnas, e sua históri a
ultrapassa os limites da Anatóli a, nem p ara explicar o perd e-se nas invasões contínuas. mais ou menos medío-
papel dos povos do mar ou as destrui ções da s cidades cres, qu e o arruinam o A Mesopotâmia enterra-se em suas
micênicas. turbulência s pouco com pree nsí veis; mas não é seu desti-
b8 o ESPAÇO t: A HI ST ÓRIA NO M EDIT ERRÂNEO A A LVORADA 69
no ser aberta por natureza aos mund os ci rcundantes - o uso dos príncipes, exigiam homens entendidos na sua
e terríveis - do deserto e da montanha ? A costa cana- arte, escribas, nós diríamos "mandaríns ". Foi na Síria,
néia - digamos agora fenícia - continua a encontrar- lato sensu, que se elaborou a revolução simplificad?ra do
se na encruzilhada da vida desses dois mon stros que têm alfabeto entre os séculos XIV e X a.C . Uma revoluçao qu e
necessidade um do outro; c esse cr uzamento cria , por an- já estava no ar; substituir a
tecedência, a vida marítim a da estreita cost a do Líbano . vada aos escribas e aos prmctpe s por outra mais acessível
Aqui, mais do que em qua lquer ou tro lugar , o uni verso aos comerciantes apressados e capaz de transcrever as
do O rie nte Próximo continua rá a viver, embo ra esfacele- várias línguas. Não é surpreendente qu e esse esforço te-
se, "balca nize-se", poderíamos dizer . Sem qu e se saiba nha sido feito ao mesmo tempo em duas cida des, ambas
suficientemente por q ue, brotam Estados minú sculos, que comerciantes excepcionais: Ugarit inventou um alfa beto
depois se desorganizam c desaparecem. Assim, por volta de 3 t letras utili zando caracteres cuneiform es; Biblos,
de 9 50 , brilha um Estad o judeu que, em seguida, decorn- um alfabeto linear de 22 letras, que finalment e será o do s
põe-se em dois: Iudã ao sul e Israel 8 0 norte. Na verdade, fenícios . Os fení cios en sinaram-no 80S gregos que o adap-
é necessá rio uma lupa para seguir essas cu rtas trajetórias taram à sua língua, certamente no século VIU a.C.
políticas . Na costa cana néia desaparece Ugarit , Biblos de- O alfabeto não terá percorrido as rotas do mundo
clina, Sidon a substitu í c, por volta do ano mil , Tiro tor- com maior rapidez do qu e a moeda , que, nascida no sé-
na-se a cidade dominante . Voltada para O mar, a Fenícia culo VII a.C ., demorará para revolucionar os intercâm-
começa a viver, enquanto que por toda part e a guerra bios. Mas quem ousaria recusar ?o primeiro
continua a provocar estragos . à primeira moeda o nome merecido de revoluci on án o .
Como não se su rpreen de r com o fat o de duas pode-
rosas revo luções terem se desenvolvido em meio a essa
história ob scura ? o rar-west mediterrânico
Em primeiro lugar, a difusão da me ta lurgia do fer-
ro . O riginário do Cáucaso ou da Cilícia, o fe rro acerado, o século VIII o Oriente Próx imo conhece um novo
endurec ido pela incorporação do carbono, foi , por muito período de prosperidade. O mar revi ve com os portos ati-
tempo , mo nopólio dos hititas . Terá a queda de seu im- vos da Fenícia e das cid ades gregas. Graça s a esses portos,
pério favorecido a dispersão de grupos de ferre iros, per- a essas cidades a seus nav ios e a seus marinheiros, será
sonagens diabólicos aos olhos dos outros homens? Mas realizada uma verdadeira conquista do Mediterrâneo oci-
a dispersão e a difusão foram lentas . Foi ape nas a partir dental. Terminada essa colonização, o Mediterrâneo da
do séc ulo X que O fe rro tornou-se de uso corre nte . visto história estender-se-á sem intervalos do Leva nte às Colu-
que seu preço baix a na Mesopotâmia . nas de Hércules .
A segun da revolu ção foi o surgimento da escrita al- Comparou-se esse movim ento em ao a
fabét ica . O Orient e Próximo havia conhecido a escrita na partir do século VIII antes da era cnsta , a colonização
idade do bron ze: os hieróg lifos no Egito, a escrit a cunci- do continente americano a partir da Europa após 1492 .
form e na Ásia Menor, O lin ear A e o linear B (o único E uma comparação ba stante esclarecedora . nos
decifrado e que revelou uma língua aparentada ao grego) dois casos, de uma colonização a longa distância, qu e
em Creta. Essas escritas siláb icas complica das . feitas para vai ao encontro de terra s novas não habitad as. A Arn é-
70 o ESPAÇO E: A 1lJSTO RIA NO ME DlTE R RÂ.NEO A A LVORA DA 71
rica "pré-colombiana" tem seus aut ócton es o iar-west mo de noite, orientan do-se pela Ursa Menor, os fenícios
medi terrânico suas populações já sedentarizadas pela agri- for am precursores. Foram eles os vencedores da corrida
cultura. Pacificamente ou não, foram fundad as novas ci- para o Oeste.
dades nos litorais de vastas regiões, curiosas e interessa-
das ou hostis e perigosas, conforme o caso e 8 época. Mas
se fala mos da América é pri ncipalmente porqu e os colo- Fa laremos apenas dos fenícios
"?s encontraram nessas terras longínquas condições de
vida bem melhores do que na Grécia ou na Fenícia. No Em outros tempos a hist6ria antiga situava -se sob o
C?este, tudo é maior e mais rico. Observem a guirlanda de da grecomania. Negava-se com obst inação a possi-
cidades gregas da Sicília, Agrigento, Selinonte, com seus bilidade de qualquer primazia da Fenícia. Ora o admi-
monumentos grandiosos; Cartago, " 8 cidade nova", no rá vel Victor Béra rd (1864-1931) , acusado toda
tempo de seu esplendor , será dez vezes maior do qu e Tiro, a sua vida pelos par tidários da hist6ria oficial de feni-
sua met rópole. ciomania, tinha razão, e bem mais do que supunha. Três
Três rotas marítimas at ravessam o Medit errâneo de peq uenos fatos estabelecem por si só uma cronologia que
um lado a outro no sentido dos paralelos. parece pouco discutível: em primeiro Jugar, a descoberta.
A primeira, colada aos lito rais do Norte, à Grécia e no museu de Chipre (1939) de uma inscrição danificada,
às suas ilhas, vai até a altura de Corc ire (Corfu). De lá, e que passou despercebida, dat ãvel do século IX antes
com bom vento, um veleiro leve atravessa o canal de de nossa era . Sua escrita pode ser aproximada - e é o
?tr.anto em me.nos de um dia. Depois, a linha da costa segundo fato - de uma inscrição fenícia insólita , encon-
Italiana conduzirá até o estreito de Messina, de onde se e atualmente no museu de Cagliari,
pode alcançar tanto o mar Tirreno quanto o litoral sici- ESCrIta idênti ca e portanto da ta idêntica, diz um arqueó-
hano. E essa a rota das navegações gregas, reconhec ida logo (194 1); desde então, fragmentos de inscrições aná-
desde a época micênica. logas foram encontradas na Sardenha - e é O terceiro
A rota meridional cos teia o li tor al da África desde gru po de novos argum entos.
o Egito até a Líbia e a África Menor. No fin al do itinerá- De modo qu e a tese de Sabatino Moschati (1966)
rio, abre-se o estreito de Gibralta r - as Colunas de gan ha em verossimilha nça. Ao menos três séculos , o XI .
Hércules. o X. e o IX, separam a queda de Micenas do pri meiro
A tercei ra rota corre pelo meio do ma r, apoiando-se moviment o grego de expansão para o oeste. natura l"
numa cadeia de ilhas: Chipre, Creta, Malta , a Sicília , a afirma Moschati , "q ue a expa nsão fenícia se insira nesse
Sarden ha , as Baleares. Embora essa rota mediana obrí- vazio histórico ," A f en ícia ter ia ap rove itado a redução
gue R enfrentar o alto-mar, os fenícios u tilizavam-na tan- de ativid ade da navegação "grega" pa ra explorar os ma-
to qu anto o itinerário meridional, fato comprovado pelas res dista ntes . Teria havido então, antes dos gregos, no
escavações nessas ilhas , que aí encontraram vestígios de tempo dos "séculos obscuros", uma primeira conquista
suas feit ori as. Não eram os fenícios pilotos excepcionais? do Oes te em ben efício dos "orientais" . Aliás, po r natu-
"Teus sábios, ó Tiro " , diz Ezequiel, "estavam a bordo reza, não está a Fenícia condenada a utilizar o mar, custe
como ( . .. ) Em alto-mar [o grifo é nosso] , o que custar?
tu foste conduzida por teus remadores." Viajando mes-
72 o ESPAÇ O E A HI STÚRIA NO MEDITERR ÂNEO A ALVORADA n
Um pais empurrado em direção 80 mar Mas, segundo P . Cintas, a técnica tamb ém teve sua
participação, principalmente o emp rego do betu me do
A Fenícia é uma guirlanda de pequenos portos en- mar Morto para calafetar os cascos dos navios. Aliás, o
costados na montanha , situados em penínsu las, ilhotas, betume era utili zado em Carta go para alcatroar po r fora
como se quisessem ignorar o continente. freqüentemente as paredes de argila das casas, e Plíni o mencion a os
hostil. Hoje ligada à terra firme pelos aluviões, Tiro IDea- tos de piche " da cidade . Isso explicaria o terrív el incên-
lizava-se numa ilha estreita, onde encontrava o essencial: dio de 146 a.C. Poderiam os romanos ter arrasado pelo
uma defesa eficaz; doi s port os, um ao nort e, que liga a fogo a vasta cidade sem o betume, combustível de primei-
cidad e a Sidon , outro 80 sul para o tráfego em direção ra ordem, hoje encontrado pelos esca vadores em "peque-
ao' Egito; finalmente, no mar, uma fonte borbulhante de nas lâmina s" da camada de cinzas sob a qual está ente r-
água potável, ca ptada no meio da água marinha . Todo o rada a cidad e púnica?
resto - vívere s, azeite , vinho e matéria s-primas - cabia
aos marinheiros traz ê-lo.
Cidades desse tipo só podem viver do comércio e da Cartago ou a Fenícia do segundo fôlego
indústr ia. Para comprar no estrangeiro os víveres de que
não dispõem, para compensar o desequilíbrio perrnanen - Por muito tempo, Cartago foi apenas uma escala na
te que disso decorre, as cidade s fenícia s são obrigadas a rota entre Tiro e a Espa nha. O papel de metrópo le conri-
faze r comércio e a exportar os produtos de sua própria nuava cabendo à Fenícia. Mas , no século VII , o sistema
indús tria. Possui artesãos, ferreiros, ourives e cc nstru to- desorganiza-se.
res de navios. Seus tecid os de lã, e não menos suas tin o Os fenícios não encontram mais o vazio medit errâ-
turas , que iam do rosa ao púrpura e ao violeta , extraídas nico como no tempo de seus pr imeiros sucessos, mas a
de um a concha, o mu rex, eram famosos. Além disso, si· conco rrência dos etru scos e dos gregos. Além disso, a
tuados em uma encruzilhada, os fenícios estão em boa Fenícia está sujeita à violência dos assíri os, instalad os em
situação para imitar tod os os estilos, todas as técnic as Ch ipre desde 709 . Arados, Biblos, Sidon e Ti ro resistem,
alheias, as porcelanas azuis ou os vidros policromos do mas tud o está perdido com a ocupação do Egito pelos as-
Egito, por exemplo. O qu e não os imp ede de vender po r sírios (671) . A par tir de então, os "reis" das cidades fenf-
toda parte, indiferentemen te, os produtos estr angeiros. cias submetem-se, "Yakimlu, rei de Arados, que está no
Seu comércio prende em suas malhas todo o Levante, meio do mar (com efeito , Arados ocupa uma ilha), que
não se submeteu aos reis meus ancestrais" , diz um texto
alcança o mar Vermelh o e penetra em direção ao Oceano
de Assurb an ipal , "coloquei-o sob meu jugo . Sua fil ha ,
Indico . Assim que acaba sua prospecção no Oeste, esten-
com um rico dote, ele mesmo ma tro uxe a Nínive para
de-se até Gibraltar e aventura-se no Atlântico . Uma passa- me serv ir de concubina, e ele beijou meus pés," O "Baal"
gem da Bíblia parece indi car que um certo navio equ ipa - de Tiro também teve de ceder uma de suas filhas e suas
do pelo rei Salomão e misturado à frota feníci a irá até a sobrinhas, e até seu filho, qu e Assurbanipal manda de
longínqua Espan ha, até Tart essos, voltando depoi s de três volt a . Em 574 , qu and o o Império Assírio já tin ha sido
anos . Os fatores decisivos para esses sucessos marítimo s derrotado há mais de trinta anos e todos podiam voltar
for am a coragem e a ha bilid ade dos homens. a respir ar , o babil ôni o Nabucodo noso r submete Tiro .

o ESPAÇO E A Hl5TORIA NO MEDfTERR.4NEO A AI.VORADA 75
As guerras, as perturbações nas cidades e as inter- amendoeiras, romãzeiras), técnicas de cultura, de culti-
rupções nas ligações comerciais vão incentivar Cartago a vo de vinho e numerosas técnicas de artesanato. Cartago
engrandecer-se. A sede da vida fenícia finalmente passa- foi a educadora, tendo impregnado profundamente a re-
rá para ela, situada no encontro quase exato dos dois Me- gião. No tempo de Santo Agostinho, quando o Império
diterrâneos. E a civilização fenícia Já terá continuidade, Romano desaba, os camponeses da África ainda falam o
parecida e diferente, como a civilização européia, mais púnico e dizem-se cananeus : Unâe interrogati rustici nos-
tarde, na América . tri quid sint punice respondentes Chanani . . .
Contribuíram para esta diferenciação tanto a distân-
cia como as etnias miscigenadas da cidade. Cartago, ci-
dade nova, que surgiu "à americana", foi um local privi- Entre a troca e a moeda
legiado de misturas. Também é "americana" pela sua civi-
lização terra-a-terra , que prefere o sólido ao refinado. Seu Situada na articulação dos dois Mediterrâneos, o
dinamismo. aliás, atraiu marinheiros, artesãos e mercená- ocidental e o oriental, Cartago pôde tirar partido de um
rios de todos os horizontes. Cartago foi francamente cos- enorme desnivelamento econômico. O Oeste é bárbaro e
mopolita. subdesenvolvido; lá Cartago consegue tudo a bom preço,
Nem por isso deixa de viver à fenícia. Em primeiro inclusive os metais: o estanho das Cassitérides e da Es-
lugar, porque continua a viver à beira-mar, e do mar. panha do noroeste; o chumbo, o cobre e sobretudo a pra-
Perpetua mesmo a tradição das descobertas marítimas de ta da Andaluzia e da Sardenha; o ouro em pó da África
Tiro. Por ordem do fara6 Necao, navegantes de Tiro te- negra - e também escravos, por toda parte onde possam
rão sem dúvida realizado, por volta de 600, o périplo da ser capturados, até mesmo em pleno mar. O mercador
África pelo mar Vermelho. Comandados por Himilcon, cartaginês leva para o Oeste seus produtos manufatura-
navios cartagineses à procura de estanho reconheceram, dos e os de outras regiões, além das especiarias e das dro-
por volta de 450, as costas atlânticas da Europa até as gas vindas das Indías pelo mar Vermelho. Os imercâm-
ilhas britânicas (as ilhas Cassitérides) . Um quarto de sé- bios se fazem pela troca. essas condições, a moeda apa-
culo mais tarde. à procura de ouro, Hannon reconhecia, rece tarde, não antes do século V na Sicília púnica, ape-
indo desta vez em direção ao sul, as costas atlânticas da nas no século IV na própria Cartago . Seria isso por de-
África até os atuais Gabão e Camarões. mais espantoso? ão, pois não pode se tratar de ignorân-
A diferença é que Cartago, ao contrário das cidades
cía. Sidon e Tiro tinham suas moedas. Apenas uma ex-
da Fenícia, não tinha atrás de si impérios monstruosos a
plicação é possível: Cartago não sentia a necessidade de
ameaçá-la. As escalas da costa africana, que gradualmen-
te controlou, Collo, Djidjelli, Argel, Cherchell, Guraia, ter moedas. E o que aconteceu, mutatis mutandís, com a
Tenes, a princípio simples feitorias, tomaram-se vilas ou China: tão inventiva nesse campo (conheceu muito cedo
cidades que mantinham relações com o interior. Há por- o artifício da moeda, e mesmo do papel moeda), levou
tanto uma simbiose crescente entre Cartago e outras ci- muito tempo para empregá-la. Assim como Cartago, não
dades marítimas com a Africa do Norte. A última. mal tinha ela em seu redor, no Japão, na Indochina, na Insu -
saída da idade da pedra, receberá quase tudo de seus línd ia, economias balbuciantes. fáceis de domina r e que
mestres: árvores frutíferas (oliveira. vinha, figueiras, viviam da troca?
76 o li A HISTORIA NO Mf.01TERR ANEO A A LVORADA 77
Isso não significa, afinal, que a ausência de moeda elefantes cobertos de tecidos multicores. terror do solda-
não tenha sido uma fraqueza em relação às economias do romano, é de inspiração helenística.
concorrentes. Se, a partir do século V, a "escalada " eco-
nômica dos gregos é evidente. mesmo em Cartago. con-
quistada pelos bazares de seus concorrentes, a superiori- Adivinhar a cidade
dade monetária dos primeiros é uma das explicações pos-
síveis. A morte de Cartago, destruída em 146 a.C. pelos
Do mesmo modo, cet ros autores se surpreendem com romanos, não foi uma morte comum. A cidade incendi á-
o fraco desenvolvimento da meta lurgia cartaginese, quan- da foi arrasada até as suas fundações. Em seguida, cons-
do a cidade controla tantas minas. Envolvida no vaivém truiu -se uma cidade romana sobre ela. De modo que a
prodigioso de sua navegação, Cartago teria errado ao es- arqueologia não permite reconstituir muita coisa da vida
colh er as soluções oferecidas pelas facilidades de sua vida da sociedade cartaginense.
comercial e. muitas vezes, ao vender produ tos manufatu- Mal se consegue imaginar a própria cidade sobre a
rados pelos outros. Será isso realmente uma fraqueza? colina de Byrsa (atual colina de São Luís), com seus tem-
Os holandeses, também carreteiros do mar, senho res da plos, suas casas altas, de vários and ares, como em quase
Europa no século XVII, não agirão de outra forma, ven- todas as cidades fenícias. com suas cisternas e a fonte
dendo aqui e comprando ali . Como eles, os cartagineses canalizada, chamada das Mil Ânforas, cujas belas abó-
foram transportadores, intermediários, comprando com bodas, apesar da grand e adaptação romana , são os únicos
uma mão e vendendo com a outra . Como eles, souberam vestígios da autênti ca arquitetura de Cartago .
defender suas posições, em particular seu monopólio No entanto, escavações recentes descobriram, a três
sobre as minas da Espanha (interditadas aos etruscos, aos ou quatro metros abaixo da cidade romana , um bairro
gregos, e depois aos romanos). suas escalas marítimas, da cidade púnica. Provou-se que Cartago possuía ruas
suas indústrias de luxo e um pode roso comércio ataca- retilíneas. não muito estreitas, com escadas de ligação e
dista de trigo. um sistema de esgotos análogos ao das cidades sicilianas.
Seguramente, nem a vida nem a arte da grande cidade Na praia de Salarnmbô, dois portos - semelhant es
souberam se proteger contra a imensa contaminação cul- aos tão numerosos portos duplos da Antigüidade (Cuide,
tural que heleniza todo o Mediterrâneo. Não era uma Delas e dez outros): o retangular, onde atra cam os na-
tradição fenícia adotar o estilo dominante (outrora o vias de comércio, e o circular , onde muitas vezes as em-
egípcio)? A influ ência das formas helênicas pode ser re- barcações de guerra eram arrastadas para a terra, sob
conhecida tanto na costa da Fenícia quanto em Cartago . as abóbodas do Arsenal.
A última importou sem hesitar a casa grega, com pátio Enormes muralhas duplas ou triplas, do lado da terra,
central, vasos ornados, cimento hidráulico, sarcófagos e, cercam a cidade fortificada estabelecida na Byrsa; seus
naturalmente, deuses (Deméter e Korê, por volta de 396), bairros populosos agrupam-se ao redor do porto. A meio
além das idéias pitag6ricas. o exemplo de Alexandre, o
É caminho entre o porto e a Byrsa, uma praça púb lica evoca
Grande, que inspira Amílcar, o pai de Aníbal, quando uma espécie de âgora. Para o norte, estende-se o bairro
empreende a conquis ta da Espanha . O pr6prio Aníbal de Megera. com seus jardins, poma res e mansões aristo-
tinha uma formação cultural grega. E até o emprego dos cráticas. A população é enorme, talvez cem mil pessoas.
78 o fS f>AÇO E A f-IISTORIA NO ME DI 7'EHRÃNf,'O A AtY ORADA 79
Ao lado de algun s ricos e governantes, amontoa-se uma r uma religião que mergulha no universo extremament e
plebe de art esãos, pedreiros, escravos, marinheiros e, antigo da imaginação semita, pró ximo da terra, das mono
quando é o caso, soldados mercenários. tanhas, da s águ as ; seus ritos cruéis e simples são os que
Ao redor da cidade , ca mpos admiráveis. Entre os um povo de nômad es celebrava outrora ao a r livre.
ricos, certamente, existe o gosto pela terra bem cultivada , Originariamente, a vida religiosa de Cartago segue
pelos belos jardins, pelas árvores enxertadas e pelos ani- mais ou men os o modelo tiri ano . O deu s do minante é
mais selecionados. Algumas passagens de um agrônomo Baal Hammon ; a deusa-m ãe, irmã de Astarté ou da
ca rtaginês, Magon, que chegaram indiretamente at é nós, Ishtar mesopot ârnica, logo se toma Tanit , cujo nome
dão cem receitas sobre a man eira de plantar a vinha de qua se desconhecido em outras partes coloca um proble-
mod o a protegê-la de uma seca muit o fort e, de fabri car ma insolúvel; o deus jo vem, deus do disco selar ou da
vinhos de qualidade, sobre a cultura das amendoeiras , vegetação, ou é Melqart , o deus tiriano, ou Eshmun, o
sobre a conservação de romãs na argila , sobre as quali- deus que cura , confundido ao mesmo tempo com Asclépios
dades que devem ser procuradas nas raças de boi s, etc . e Apolo, da mesma forma que. posteriorme nte, Melqart
Acrescenta um conselho, bastante sintomático, aos pro- será confundido com Herakl es . A concorrência entre esses
prietários rurais: "Aquele que comprou terras deve ven- dois cultos não provoca rá a exclusão nem de um nem de
der sua casa , para não arri scar-se a preferir sua residên- outro. Melqart será por exce lência o deu s da grande fa-
cia urbana à do campo ." mília dos Barcides, ond e os nomes freqüente s de Bomtl-
C8r e Amílcar inspiram-se no do deus. O templ o de
Eshmun , o mai s belo de Car tago, sobre a acrópole de Byr-
Sob o signo de Tanit sa, será o últ imo bastião dos defensores de 146 .
A grande pa rticul arid ade da religião ca rtaginesa foi
A única coisa encontrada aos milhares pelas esca- a ascensão invasora do culto de Tanit q ue, a part ir do
vações no sítio de Cartago foram mortos, incinerados ou século V, afasta o velho deus Baal Hammon . Car tago
inumados, e os objetos que os acompanharam no túmulo. vive então sob o "signo de Tanit": um triângulo sob um
Cent enas ou até milh ares de cipos e de estelas funerárias disco e, entre os dois, uma lin ha horizontal. O conjunto
enumeram, de forma monótona, os nomes dos deus es. r evoca facilmente urna silhue ta humana , sob retudo quando
muit o pouco para chegar ao â mago de uma reli gião cuja a linha hori zon tal ergue-se nas extr emidades como dois
estranheza horrori zou os romanos (horror que não era braços levantados.
apenas simulado) e da qual não conhecemos nem a mito-- O qu e é evidente é o peso obsedar ne da religião
logia , nem a teologia nem a "v isão do mundo " . Tanto cartaginesa , religião terr ível. dominadora. O s sac rifícios
mais porque conhecemos igualmente mal a religião fen í- humanos - acusação freqüentement e repetida pelos lati-
eia da qual deri va a cartaginesa. nos - são de fato bem verdade iros: o topher, o santuá-
Em geral , o panteão fenício é dominado por uma rio de Salammbô, revelou milhares de cerâmi cas que con-
trfade que, com nomes variáveis conforme a cidade, reú- têm ossos calcinados de cr ianças. Quando qu eria conju-
ne um rei dos deuses, uma deusa-mãe da fecundidade e rar um perigo, Cart ago imolava aos seus deu ses os filhos
um deus jovem, cujo destino, a cada ano, é nascer, mor- dos cidadã os mai s importantes . Foi o que aco nteceu quan-
rer e renascer, como a vegetação ao longo das estações. do Agátocles, a serviço de Siracusa , trou xe a guerra para
80 o ESPAÇO E A HiSTóRIA NO MfDfTERRANEO A ALVORADA 81
o próprio solo de Cartago. Como os cidadãos ilustres ha- râneo dos gregos e dos romanos, aque le que se tornará o
viam cometido o sacrilégio de substitui r seus filhos por Ocidente, o nosso Mediterrâneo. Ao tomarem o Egito em
crianças compradas, decidiu-se fazer um sacrifício expia- 671 a.C., os assírios assinalam a primeira tentativa bem-
tório de duzentas crianças. sucedida de unificação do espaço "oriental". A segunda
O sangue das vítimas macula o nome de Cartago? tentativa, mais ampla, e que durará mais tempo, é a con-
Na verdade, todas as religiões primitivas praticavam esse quista persa do Egito em 525 e.C. Ora, se acrescentarmos
tipo de sacrifício. Neste ponto, Cartago segue os cana- à "imensidão persa" o espaço carreginês, teremos com
neus de Biblos ou os semitas de Israel: Abraão não se bastante exatidão o universo que será e que ainda hoje é
dispôs a imolar Isaae? No entanto, o surpreendente é o do Islã. O espaço fenício é o posto avançado marítimo
que, em Cartago, a vida econômica corre para o futuro da expansão do Oriente Próximo.
enquanto a vida religiosa retarda-se em séculos e séculos. Num certo momento, teria sido possível para as for-
e mesmo suas "revoluções" - a do culto de Tanlr no ças unidas do Or iente dominarem todo o Mediterrâneo.
século V - não a desligam, de forma alguma, dessa de- Rivais diretas dos fenícios em toda a extensão do mar, as
voção desumana e aterrorizante. O contraste é flagrante cidades gregas lutaram incansavelmente con tra o perigo
com a abertura grega, que harmoniza o homem com o desta conquista. No entanto, apenas os romanos, em 146
mundo exterior. Aqui, uma intensa vida de negócios, ou a.C., tiveram a força necessária para frustrar a tentativa.
mesmo um espírito "capitalista", diz sem hesitar um his- esmagar Cartago, e mesmo, finalmente, voltarem-se em
toriador, acomoda-se a uma mentalidade religiosa retró- conquistas sobre o Oriente Próximo.
grada. Que pensaria disto Max Weber? Mas Roma não nasceu no vazio. Freqüentemente a
partir de dentro, submeteu um a um os povos que os co-
lonizadores gregos e fenícios apenas observaram um pouco
Já dois Mediterrâneos de longe nas costas ítalianas, gaulesas e ibé ricas. Povos
que conhecemos mal: em parte porque a cultura romana
já mencionamos nossas razões para esclarecer a ex- recobriu-os rapidamente; em parte porque, durante muito
pansão fenícia, para destacá-Ia antes de nos entregarmos, tempo, a história se interessou bastante de longe por
nos próximos capítulos, à colonização melhor conhecida esses "bárbaros" que com certeza conheciam a agricultu-
das cidades gregas. Um outro motivo para isso é que a ra, mas que, na época da Mesopotâmia, do Egito, de
história fenícia é também testemunha de algo que vai Tróia, de Creta, dos cananeus, dos hititas, ainda não ha-
além dela própria, viam realizado sua própria revolução urbana, nem a
Ela não passa, com efeito, de um capítulo da histó- grande revolução dos intercâmbios marítimos do Oriente
ria daquele "outro" Mediterrâneo, o Mediterrâneo que se Próximo, nem a da escrita,
articula ao longo das margens saarianas do Mar Interior, Daí a considerar que tudo o que deixaram de relevan-
do' Oriente Médio às Colunas de Hércules. Uma história te fora apenas um empréstimo do Oriente "civilizado" bas-
nem, semprecaptada em seu Boder singular e em sua uni- tava um passo, dado bem incorretamente, como o prova
dade, pelas narrativas comuns, e que envolve outras"jiai- a nova cronologia baseada na análise do radiocarbono.
sagens e outras realidades humanas além das palsageris e Assim, os extraordinários templos de Malta, os nuragues
realfdadeshumenasdo.Med i cfáSslcõ, da Sardenha e das Baleares, as muralhas e as grandes
82 o ESPAÇO F. A HI STORI A NO M EIJfT E,RR ÃNEO A ALVO RA DA 83
sepult uras megalíticas da Espanha meridional - para não talvez nas técnicas metalúrgicas dos feníci os e cartagine-
falar dos megalitos semeados ao longo de toda a costa ses. Mas eles a transform aram em uma coisa sua, em uma
atlântica a té a Dinam arca e a Noruega - , tudo o que arte que, longe de imitar , tradu z em sua própri a lín gua-
considerá vamos como o reflexo de uma "influê ncia micê- gem uma cultura vigorosa e independente.
nica" , ou como resultado de uma primeira colonização
esporád ica por parte do O riente Próximo no segundo mi-
tênia , tudo isso hoje se revela bem mais antigo do que
Micenas, talvez mesmo do que os monumentos do pro.
prio Egito. O esti mulante livro de Colin Renfrew sobre
essa pré-civilização européia demonstra-o de maneira con-
vincente .
A presença concreta desses povos foi ilustr ada de
forma exemplar pelas escavações que vêm sendo feitas
na Sardenha há uma dezena de anos, nessa ilha que.
ainda hoje, pe rmanece tão à parte, e cuja ar te surpreen-
dente , do primeiro milênio a .C. (par ticul arm ent e algumas
estatuetas de bronze mui to expressivas), sempre colocou
probl emas aos arqueólogos, justamente pela sua singula-
ridade. Em Th arr os, onde os fenícios possuíam uma base
importante, foram descober tos, recentemente, um tophet,
o santuário ond e eram efetuados os sacrifícios de crian-
ças, e muros grandiosos, ciclópicos, que prot egem a cida-
de não do lado do mar , onde nada tinha a temer, mas
do lado da terra . Melhor ainda, foi encont rada uma série
de fortalezas inter iores, que mostram que os fenícios qui.
seram controlar o interior da Sardenha e suas minas de
prata, e que só consegui ram fazê-lo construindo uma es-
pécie de fronteira fortificada contra os autóctones. Do
outro lado da linha das for talezas encontrava-se, de fato,
um povo de cultura muito an tiga, que outro ra constru iu
os famosos nuragues, estas torres do alto da s quai s se
podia vigiar o horizonte.
As populações sardas defend eram, por tan to, sua in-
dependência material e cult ura l. As recentes descobertas
de uma série de pequenos bronzes fenícios na Sarden ha
ind icam de forma evidente que a célebre arte dos fundi-
dores de bronze sardas teve sua or igem na inspiração e
Roma
Os fatores geográficos, que devem ser levados em
conta pela história, s6 ganham importância decisiva quan-
do postos em relação com outros dados, econômicos, so-
ciais e culturais. Uma estrada revestindo o fundo de um
vale ou o vau de um rio no Alasca, do século VI antes
de nossa era, não terão o mesmo valor de seus homólogos
da Átiea ou da Campânia do mesmo período. E é tam-
bém evidente que, no mundo contemporâneo, tal relação
pode se inverter. Essa consideração, banal. é necessária se
quisermos evitar qualquer equívoco determinista fácil. A
situação geográfica de Roma é ex.cepcional, mas somente
se revela como uma situação privilegiada depois de uma
série de acontecimentos históricos; entre eles, a fundação
das colônias gregas da Itália meridional e o desabrochar
da civilização etrusca são os fatores dominantes. I! em
relação a eles que o Lácio e Roma irão se encontrar, gra-
dualmente, numa posição central. Mas por que a coloni-
zação grega, por que na Itália e por que a predominân-
Fig. 4
cia da Etrúria?
Só podemos responder a esta questão reportando-nos
Cobe((J do imperador Caroço/a. Mármore. Roma, Palluzzo dei Ccnservatc rf
à situação histórica do Lácio no período que precede
© ARTEPHOT. Nimetalleh imediatamente a data trad icional da fundação de Roma.
8ó o ESPAÇO ê A HISTÓRIA NO MEDlTERRÁNEO ROMA 87
As descobertas destes últimos anos permitem re- Aperfeiçoamento do instrumental agrícola, aumento
construir um quadro suficientemente completo e coerente da produção, crescimento demográfico, criação de centros
da proto-hlstória do Lácio entre o fim da Idade do Bron- de habitação permanentes são, visivelmente, fenômenos
ze e a Idade do Ferro: as estruturas sócio-econômicas que estreitamente solidários. A integração dos antigos clãs
estão na sua base, as transformações profundas que mar- familiares em estruturas mais amplas deve ter provocado.
cam a passagem de uma sociedade pré-urbana a uma so- por sua vez, consideráveis transformações. Um reflexo
ciedade preto-urbana, as relações com as regiões vizinhas manifesto disto é a acentuada divisão do trabalho. conse-
da Etrúria e da Campânia. O momento decisivo dessa qüência do surgimento de novos instrumentos: o torno do
evolução parece ter sido a passagem da primeira Idade ceramista, por exemplo. inegavelmente ligado a uma pro-
do Ferro do Lácio (fases I-lI: 1000·770 a.C .) à segunda dução em massa e aos novos mercados que se constituí-
(fases IlI-IV: 770-580 a.C.). Podemos lixar essa data em ramo Essa dupla ação arranca o artesanato de seu contexto
cerca de 770 a.C. ; ela coincide. aproximadamente, com familiar, orientado para o consumo imediato, e cria as
a fundação de Roma (754 a.C.) e com a data da insta- condições necessárias para o surgimento de ofícios espe-
lação das primeiras colônias gregas do Ocidente: Ischia cializados. Um novo fator interfere nessas novas estrutu-
(por volta de 780-770) e Cumes (por volta de 750). Te- ras: as relações com o elemento grego, cuja presença é
mos, portanto, a possibilidade de averiguar. a parti r das observada desde o período micênico, acentua-se desd e
descobertas arqueol6gicas, a natureza de um momento então até vir a dar na fundação de colônias nas costas da
histórico cuja importância nos é revelada pelas fontes li- Itália meridional. E precisamente destes anos (terceiro
terárias. A partir das décadas precedentes (fim do século quartel do século VllI) que datam as primeiras importa-
IX - começo do século VIII), constata-se uma transfor- ções de cerâmica grega para Roma. Ao mesmo tempo ,
mação gradual das necrópoles que, de dimensões muito artesãos gregos devem ter chegado no Lácio, trazendo o
reduzidas (da ordem de algumas dezenas de indivíduos , novo instrumento, o torno: foi nesse instante, ou pouco
como as necrópoles do Fórum e dos montes Albanos : mais tarde, que começou a produção indígena de cerâmi-
correspondem portanto a comunidades extremamente res- ca executada no torno.
tritas, compostas por um pequeno número de famílias) . A fundação grega mais antiga , Pithecusa (hoje 15-
assumem proporções bem mais vastas (em Roma , a ne- chia) , não é uma simples colônia de povoamento. como
crópole do Esquilino). Este crescimento demográfico será o caso para outros estabelecimentos posteriores. A
coincide visivelmente com um aumento da produção agrí- fundação de Ischia situa -se no momento da transição en-
cola, ligado ao aperfeiçoamento das ferramentas. No mes- tre a mais antiga freqüentaçâo dos gregos, provavelmente
mo momento, assistimos a uma fixação cada vez maior interessados nas mina s da Etrúria e da Sardenha, e a co-
das populações, que, abandonando seu antigo habitat lonização de implantação. mais tardia . O desenvolvim en-
disperso, concentram-se em algumas localidades. O fato to da civilização prato-urbana tornava impossível o acesso
é particularmente importante na Etrúria, quando, por vol- direto aos produtos das minas da Itália central, daí o esta-
ta do início do século IX , os centros mais antigos vão belecimento na ilha de Ischia. Este é sem dúvida o mo-
sendo progressivamente abandonados e os sítios das ci- tivo pelo qual a colônia mais antiga da Magna Grécia é
dades históricas etru scas - Veies, Cerveteri , Tarqu lnla . ao mesmo tempo a que está mais afastada da mãe pátria:
Vulci, etc. - são definitivamente ocupados. descobertas recentes mostraram que , desde o século Vi l I,
88 o ESPAÇO nA H /STO RTA NO MF.DITE RRANf.O RO MA 89
trab alha va-se em lschi a o ferr o provenient e da Etrúria a extraord inária riqueza de certos túmulos: o túmulo Re-
e da ilha de Elba. gclini-Galassl em Cer veteri , os túmulos Bernardin i e Bar-
Ju ntamente com esses fenômenos econôm icos, acon - berin i em Palestrina . Deles literalmen te trans bordavam
tecem tran sform ações sociais de gra nde importância. As ce ntenas de objetos preciosos, de ouro, marfim, âmbar ,
necrópoles das prim eiras fases da civ ilização do Láci o em parte importados, em parte fabricad os na Itália. Tra-
eram compostas de túmulos nos qua is se observa um a ta-se, certamente , de casos excepcio nais, que cont rasta m
uniformidade absoluta de nível e de cultura: esta mos com as outras sepulturas bem mais modes tas. A fisiono-
diante de uma sociedade igualitá ria sem distinção marca- mia geral desse período pode ser ago ra reconstruída gra-
da de classes socia is ou de níveis econô micos. Nas fases ças à necrópole de Caste! di Decim a . Essa escavação re-
mais recen tes da proto- história do Lácio, passamos a um centíssima revelou um imenso núcleo de túmu los do
tipo de soc iedade onde apa recem as pri meir as d istinções século VII , no interior do qu al podemos d istinguir bem
econômicas e sociais. Estas transformações são percep tí- claramente um materi al mais rico de um material bem
veis nas necrópoles. onde, ao lado de uma maioria de mai s humilde. que form a a maior parte dos depósitos.
túmulos "pobres", co meçamos a encontrar algumas sepul- Assim, pou co a pouco, recons tituímos a imagem de uma
turas dotadas de um material extremamente rico, seja sociedade divid ida e m classes. ainda embrionárias, com-
pela qual idade dos objetos fabricados, seja pelo valor do postas essencialmen te de uma aristocracia dominante e
material empregado (ouro. âmbar), mas principalmente de "cl ientes", ao lad o das qua is devemos supor a existên-
pela quantidade de peças nelas depositadas. Percebe-se cia de uma form a qualq uer de servidão.
claramente que não se pode separar este fenômeno daqu e- O salto cultural qu e se ma nifesta nesse período de-
les descritos mais acima. isto é. o crescimento demogrã- ve-se a um outro acont ecimento revol ucionário : a intro-
fico e o surgimento da divisão do trabalho, ligado às no- du ção da escrita . O s exemplos mais ant igos na Etrúria e
vas técnicas e à constituição de um "mercado". O elemen- no Lácio pert encem às prime iras décadas do século VI I.
tO domi nan te, contudo, está nas novas relações de pro- A primeira inscri ção latina enco ntra-se numa fíbula de
priedade da terra, antes indivisa e posse coletiva da al- ouro de Palestrina. O alf abeto adotado para O latim (co-
deia: dito de outra Icrma , a prepo nderâ ncia das relações mo também para O etrusco) é o alfabeto grego calcídico,
de pro priedade privada é o postu lado necessá rio para a importado da colônia grega de Cumes, cidade com a qual
formação de a ristoc rac ias autê nticas, cuja existênc ia é
os contatos devem ter sido bastan te estreitos. A introdu-
ates tada. tanto no plano econômico qu an to no ideológico .
ção da escrita explica-se pelas pro fundas transformações
pelas necrópoles da Idade do Ferro ava nçada.
Essa concent ração da riqueza e essa emergência de sociais descrit as a nteriormente: num primeiro momento,
um a ar istocracia man ifestam-se clara mente durante a úl- trata- se somente de uma prática esporádica, ao alcance
tima fase da cultur a do Lácio (por volta de 700-5 80 a.C.), de um número muit o reduzido de pessoas, um luxo aris-
chamada normalmente de "o rien taliza nte". O nome pro- tocrático; a cultura, mesmo a das elites, deve permanecer
vém da freqüência part icular dos obje tos import ados do em gra nde parte oral As bases de um emprego público
O riente Próximo as iático (Fenícia, Chipre, Síria, Urartu , da escrita são fixadas apenas no final do período orie n-
etc. ) e da criação de um a arte local qu e se inspira nessa taliza nte, com a con sti tuição das estru turas urb a nas. A
mesma cultura. Em re lação a essa fase. irnpressio na-nos primei ra inscrição pública monumen tal é o cipa do Fó·
o f-SPACO E A HISrORJA NO MEDJTERRANEO ROMA 91
rum romano (descoberto sob o Niger Lapis), que pode ser reinado se situou entre os anos 640 e 616. Segundo a
datada do segundo quartel do século VI a.C. tradição, esse rei teria conquistado e destruído todos os
Uma vez esclarecidas bem sumariamente as premis- centros habitados da margem esquerda do Tibre entre
sas sócio-econômicas que determinaram o surgimento da Roma e o mar, transferindo sua população para o Aven-
cidade, estamos melhor preparados para examinar a si- tino, onde teria fundado o porto de Ostia, Além disso,
tuação geográfica de Roma e para captar todas as suas teria fortificado o [anículo, na margem direita do rio.
virtualidades. Um primeiro elemento fundamental é a Todas essas operações mostram uma ocupação racional
presença do rio: O Tibre constitui a principal via de e coordenada do nó de comunicações do fórum Boarium:
netração natural da Itália central, quando as condições o vau, a partir de então substituído por uma ponte, é
primitivas tornavam muito penosos os percursos por ter- dotado de uma cabeça-de-ponte sobre a margem direita,
ra. A partir do Orte, o rio é navegável até o mar. A par- o Ianfculo, enquanto que, na outra extremidade, a estra-
tir dali era utilizado para o transporte de produtos agrt- da que se dirige para o sul através do Vallis Murcia vai
colas e minerais e da madeira da Etrúria interior. Temos passar por duas colinas fortificadas, o Palatino e o Aven-
provas do emprego de transporte por água até a época tino. Por outro lado, obtém-se progressivamente o domi-
imperial. Não é portanto surpreendente que as primeiras nic da via fluvial, graças à ocupação da embocadura do
importações de cerâmica grega para Roma sejam as do Tibre; as comunicações com Roma são efetuadas pela
f6rum Boarium, onde se encontrava o porto fluvial mais destruição dos centros habitados da margem esquerda.
antigo. Estamos assim melhor capacitados para compreen-
Essa via natural cruzava um outro importante eixo der o significado da posição de Roma, principal nódulo
de rotas, que ligava a Etrúria meridional (através de de comunicações da rota que une a Etrúria à Magna Gré-
Vu1ci, Tarquinia e Cerveteri) ao Lácio meridional e à cia: de fato, a cidade nada mais é do que o resultado da
Campânia; ele dividia-se na altura dos montes Albanos estruturação progressiva desse entrelaçamento de estradas
em dois traçados: um passava pelo vale do Sacco (futura que se estabelece, pouco a pouco, dentro de um quadro
via Latina) e o outro pela planície Pontina (futura via sócio-econômico preciso. Todos esses elementos amadure-
Appia), O Tíbre só podia ser atravessado em alguns pou- cem ao mesmo tempo, durante o período orientalizante
cos vaus: um deles, situado imediatamente abaixo da recente (últimas décadas do século VII e primeiras déca-
ilha Tiberina, correspondia exatamente ao fórum Boa- das do século VI a.C.). A "fundação" definitiva da cidade
rium. f; provável que este vau tenha sido utilizado desde histórica, cujas bases já estão estabelecidas, será obra dos
uma época muito remota, especialmente para a transu- soberanos etruscos, os Tarqufnios.
mâncía de rebanhos: mas sua importância deveria se Já podemos, então, fixar em cerca de 600 a.C. o
afirmar principalmente no período final da era proto-his- nascimento da cidade, compreendida como organização
tórlca, quando as aldeias primitivas estenderam-se pouco econômico-socíal fundada sobre uma divisão do trabalho
a pouco de forma a constituir uma estrutura, a partir de relativamente desenvolvida e sobre a subordinação do
então, urbana. Não nos parece possível considerar um campo; como organização social que ultrapassa as rela-
acaso o fato de a primeira ponte construída no local do ções originais baseadas nos laços de parentesco no inte-
vau, a ponte Sublicius, ser atribuída pela tradição ao úl- rior de unidades territoriais, No caso específico de Roma,
timo dos soberanos latinos de Roma, Ancus Marcius, cujo podemos seguir o processo através de uma série de dados
92 o ESPAÇO E A H fSTORI A NO MEDITE RRÂNEO ROMA 93
arqueológicos, enriquecidos cons ideravelmente pelas des- sucederam imediatamente tam bém correspon dem àquelas
cobertas recentes. Além do fórum Boarium, é preciso de- apurad as em outros pontos do Fórum.
dicar uma análi se especial ao Fórum . As sondagens efe- O emprego da escrita em documentos públicos desta
tuadas mostraram qu e o vale situ ado entre o Capitólio e época confirm a inqu estion avelmente a delimita ção efeti-
o Palatino conheceu urna tran sformação total e uma oro va, no plano jurídico-religioso, de um espaço urb ano re-
ganiza ção coerente por volta do fim do século VII. Os servado às funções públicas . As etapas da rees truturação
primeiros lajeamentos do Fórum e do Cornitium, que as- completa do espaço e do tempo, que aparece como uma
sumem peja p rimeira vez sua função de centro político, manifestação formal incontestável do nasci mento da ci-
religioso e econômico da cidade, fora m reálizados ao lon- dade, concentram-se nu m período cur to, entre o final do
go desses anos. Devemos relaciona r esses dados às indi- século VII e a primeira metade do século VI, durante
cações a respeito da construção da cloaca maxima pele o período "etrusco" da cidade.
p rimeiro rei etrusco de Roma, Tarq uínio, o Velho : é evi- Nas sociedades proto-hist óricas, agrupadas em al-
dente que a utili zação do Fórum como praça pública a pós deias, o espaço é sentido como uma entidade indetermi-
seu primeiro lajea mento teria sido impossível se nã o ti- nada, sem limites precisos, virtua lmente hostil , perigoso.
vesse sido cana lizado o riacho qu e atravessava o vale e Opõe-se ao pólo positivo, fechado , que é a aldeia e seus
tomava-o pa ntanoso e impraticável. Mais uma vez, os arredores imed iatos. Entre duas aldeias estende-se um es-
dados literários enco ntram confirmação nos dad os ar- paço vazio terreno de atritos e de guerras potenciais. Já
qu eológicos. O utr os elementos corroboram esta primeira assinalamo; que a passagem à rase urbana significava
impressão: a recente escavação de Regia revelou qu e o també m, no pl ano espacial, a integração e a estru turação
primeiro edifício de uma certa extensão (certamen te uma de uma parte dessa no man's land e sua transformação em
parte da residênc ia real) foi cons truído no último quartel lugar de enco ntro, de luta rituali zada e de comum acordo
do século VIl , no lugar de um gru po de cabanas . Mas, estabelecida. Em outras pa lavras, a guerra sangrenta cede
originalmente, devem ter sido parte da domus Regia a espaço a uma "guerra de palav ras": nasceu a política e,
vizinha domus pub lica, habitação do pontiiex maximus com ela, a "polís". A tra dição referente ao nascimento do
(e tamb ém do rex sacrorum, sacerdote que, na época re- Fórum e do Comitium enquanto centros polí ticos da ci-
publicana, substit uía o rei exclus ivame nte em suas fun- dade tem atrás de si, com efeito, uma pse udo-histór ia
ções religiosas), bem como o atrium Vestae, com o tem- mítica : os vários lugares cruciais da praça, do laeus Cur-
plo de Vesta, subs tituição manifesta da sede da morada tius ao sacellum Ciocinae, do Niger Lapis ao templo de
rea l. O mate rial mais antigo descob erto nos poços pró- Jupiter Stator , estão ligados à luta tradicion al ent re lati-
ximos desse templo tam bém remo nta aos últ imos anos do nos c sabinos, entre Romu lus e Titus Tatiu s, e permitem
século VJ1. reconstru ir uma verdadei ra topografia mítica das origens.
Se nos deslocamos para a out ra extremidade do Fó- A criação do centro polít ico da cidade d á-se com a ratífi-
rum, em direção às inclinações do Arx, descob rimos a cação da paz entre os dois povos em luta, precisamente
praça destinada às reun iões políticas, o Comitium . Estu- no Comitium. O Comiti um (cu jo significado etimológico
dos muito recentes fixaram no final do século VII a pri- é transparente: cum ire) é explicado pela tr adição antiga
mei ra fase de ocupação do Comitium, data à qu al deve como sendo o resul tado do encontro entre Rômulo e Ti-
remon tar o pr imeiro lajeamento do sítio. As fases qu e a tus Tatius que, ao colocar fim às hostilidades, dá or igem
94 o ESPAÇO f. A HI STORI A NO MEDI1'ERR ÁNEO ROMA. 95
à nova comunidade romano-sabina, mais ampla. Encon- didas que consolidam definitivamente as estruturas da ci-
tramas aqui O traço visível de um mito de fundação que dade arcaica num período que corresponde às décadas
corresponde à verdadeira elaboração histórica de um intermed iárias do século VJ .
"espaço político"; pode-se fixar sua realização por volta A delimitação de uma zona "no interior" da cidade
de 600 a.C . O ritual de Iundação da cidade (ritual etrus- tom a marginais out ras áre as, por vezes importantes, que
co que, muito provavelmente, corresponde àquele histo- são pouco a pouco postas à modo, a
ricamente ocorrido) foi-nos transmitido em sua forma mais existência de um conjunto de cidadãos exclui ngorosa-
completa oa Vida de R ômulo de Plutarco, que provém mente aquele que não é cidadão, que, anteri?r.
de uma fonte anterior, provavelmente Varron. Duas fases mente, o agrupamento de entidades gent ílicas era muito
sucessivas caracterizam a fundação ritual da cidade: a mais fluido e aberto . Desta forma, permanece fora da
primeira, bem conhecida, é a realização do pomerium cidade a própria região que deu origem sua constitui-
(lioha que delimita o espaço sagrado da cidade) por ção: a do fórum Boarium e do Aventmo , justamente por
meio de um sulco traçado a arado; a segunda é a indica- causa de sua natureza de porto, de lugar de passagem,
ção do centro ideal da cidade: este é justamente o Mun- aberto par a o mundo exterior. Este contn-
dus, fossa cavada artificialmente, na qual os futuros cida- buirá par a a pola rização social entre P?tr!clos e ptebt;us
dãos jogam, com um simbolismo transparente. as primí- que se manifestará no iníc io da República, mas cujos
cias da colheita e um torrão de sua terra de origem. O embriões começam a se formar já no século VI. Um de
local do Mundus é com certeza aquele indicado por Plu- seus traços característicos é a concentração d:_cultos
tarco, perto do Comitium (a hipótese moderna que o co- regrínos e de natureza não gentílica nesta regieo a partir
loca no Palatino não tem fundam ento) ; uma indicação de deste período: desde o culto de Fortuna até o de Ceres,
Macr6bio permite precisar sua localização na zona que Líber e Libera de origem provavelmente grega, e o de
se estende diante do templo de Saturno: a presença nes- Flora e Mercú;io . A escavação da "área sagrada" de S.
sas paragens do Umbilicus Urbís, conservado sob sua for- Omobono permite-nos conhecer com uma certa precisão
ma restaurada da época severiana, permite explicar o um desses santuários, o de Fortuna c de Mater
problema; o monumento é, como seu nome indica, o cen- cuja construção por Servius ser confirma-
tro da cidade, devendo portanto ser identificado ao Mun- da pela cronologia das fases mais antigas -dos templos.
dus. A criação de um espaço urbano faz-se através de Aquilo que sabemos sobre o dinástic? da Fortuna
duas operações coerentes e estrei tamente solidá rias: a de- auto riza-nos a reconhecer nessa divindade diversos aspec-
terminação de um ponto central, onde serão desenvolvi- tos da Astarte fenícia que se reuniram na
das as atividad es coletivas e políticas, e a realização de e na Vênus romana; as frutíferas escavaçoes de Pyrgi,
um limite em relação ao exterior, de cará ter simultanea- com suas inscrições em fenício e etrusco, oferecem-nos
mente sagrado (o pomerium) e profano (os muros). Cer- hoje a possibilidade de provar a presença dessas formas
tamente , não será por acaso que a tr adição atribui a cons- de culto no solo itálico desd e o fim do século VI a.C.
trução dos muros da cidade ao penúltimo rei de Roma , Ao lado da delimitação do espaço urbano, desenvol-
Servius TuIJius. Deste rei partiriam também outras reali- ve-se uma organização paralela e simultânea do tempo. O
zações essenciais, tais como os tribos territoriai s. a divi- conservadorismo jurídi co e relig!oso dos
são do corpo de cidadãos em classes ccnsit érles. etc ., me- vou-nos um documento de con sider ável importância his-
96 o ESI'AÇ'O f. A H ISTÓRIA NO ROMA 97
tórica: aqu ilo que chamamos de Fasti Numaní, ou seja, ca, e à conquista efêmera da cidade pelos gauleses (de
o calendário de festas arcaicas, conservado nos calend ã- importância superestimada pela tradição romana), con-
rios mais recentes do fim da Repúbli ca e da época impe- cluiu com a ascensão dos plebeus ao poder, a longa luta
rial que chegaram até n6s. Podemos estabelecer com uma que caracterizara O século precedente. Com as leis Lici-
relativa precisão a cronologia desse calendário de festas, niae-Sextiae (367 a.C.), constitui-se uma nova classe di-
baseando-nos na ausência de alguns cultos bem datados, rigente mais ampla, a nobiJitas patrício-plebéia. Esse fe-
como os da tríade capitolina, os da tríade plebéia do nômeno de alargamento do corpo cívico deve ser reco-
Aventino, e sobre tudo os de Fortuna, cuja introdução no locado no contexto das transformações sociais que abalam
decorrer da primeira metade do século VI parece hoje a Itália do século IV: tud o O que sabemos sobre este pe-
provada: podemos portanto excluir qualquer data poste- ríodo, na área compreendida entre a Etrú ria e a Magna
rior a esta última. Por outro lado, a presença de cultos Grécia , confirma a impressão de que se produziu uma
onde já se man ifesta a influência etrusca (o de "Voltur- transformação radical da situação sócio-econômica e cul-
nus", por exemplo, DO qual se reconheceu recentemente tural. Os antigos equilíbrios, baseados num corpo de ci-
o nome do Ti bre em etrusco) torna prat icamente impos- dadãos bastante limitado, ruem com a ascensão de vastas
sível uma datação anterior ao último quartel do século camadas da população que, tendo conquistado a inde-
VII. Assim, podemos concluir que o calendário romano pendência econômica graça s à difusão da pequen a e mé-
é prat icamente contemporâneo da criação da cidade. A dia propriedade fundiária. fazem pressão para obter
presença no interior desse [e riale (calendário de festas) uma parte do poder político. Naturalmente, o fenômeno
de vestígios de calendários mais antigos (como o ano de apresenta-se sob formas diferentes e com conseqüências
dez meses, os vár ios "dias de ano novo" em meses dife- e resultados diversos, conforme as situações locais. Por
rentes, alguns sincretismos evidentes) confirma que a ci- exemplo, no quadro das relações entre gregos e autócto-
dade foi o resultado histórico da aglomeração de várias nes da Magna Grécia, ele se revestirá do aspecto de uma
aldeias. fusão mais ou menos acentuada entre estes dois compo-
O século V a .C. represen tou uma fase muito obscura, nentes étnicos; ou ainda, trat ar-se-á de uma nova che-
de introspecção e fechamento, se comparada à rápida ex- gada de colonos da G récia (na Magna Grécia e na Sicília
pansão do período precedente. Esse aspecto não se mani- de Timoleonte). Essas múltiplas pressões dão origem a
festa apenas em Roma, mas em todo o restante da Itália, estruturas cívicas cuja base social é consideravelmente
da Etrúr ia à Magna Grécia . As lutas externas contra os alargada , atingindo dimensões até então desconhecidas
povos da montanha que descem em direção às planícies na Itália . Novas formas políticas se constituem, e pode-
ocidentais, como os volscos, acontecem durante o perío- mos defini-Ias com bastant e aproximação de "d emocr ãri-
do de lutas internas entre patrícios e plebeus, que pro- cas" em suas tendências, que vão da democracia rad ical
gressivamente levaram os últimos a terem acesso à esfera oligarquia moderad a . No plano ideológico, vemos seus
do poder. Se fosse melhor conhecida. essa fase obscura reflexos na enorme homogeneidade cultural que define
perm itiria compree nder melhor o penado seguinte, mar- esse períod o e que convencionou-se chamar koine m édio-
cado por urn a nova expansão cívica e econômica. itálica; seu momento mais intenso e mais fecundo não
Nas décadas que se seguiram ao resultado vitorioso ultrapassa duas gerações (aproximadamente de 330 a
da luta contra Veios (396 a.C.), a poderosa vizinha etrus- 270), para entrar rapid amente em crise nas décadas se-
98 o ESPAÇO E A H IS7'QRf A NO M IW ITF-RRÁNEO ROMA 99
guintes. No final da República , esse período será consi- mais nad a econômica e demográfica) j á podem ser nota-
derado um modelo: as facções políticas de Roma, dos dos na Magna Gréc ia e na Sicília duran te e depois da
aptímates aos populares, concordarão neste ponto. exped ição de Pirro (280-275) e de man eira ai nda mais
Foi também ao longo desses anos que, pouco a po u- acentuada na Etrúria. Os gravíssimos golpes sofridos pe-
co, foram assentadas as bases da supremacia de Roma la Sicília com a primeira guer ra púnica e pelo resto da
sobre a Itália, cujo primeiro motor terá sido, certamente, Itália meridional com a segunda provocaram a sua ruína
a expansão demográfica e o apetite de terras que se se- definitiva. Não obstante, seria incorreto at ribuir apenas
guiu. Mesmo se, por outro lado, começa a se esboçar uma às devastações das guerras do século III a responsabili-
certa prefig uração do "imperialismo" futuro, principal-
mente no meio de algumas famílias domina ntes dentro da , dade total dessas mudanças: trata-se tão-somente de um
golpe de misericórdia em situações já falidas. Isto é ma-
nova aristocracia, trata-se precisamente das famílias mais nifesto, po r exemplo, na Campânia, uma das regiões mais
profundamente impregnadas de cultura helenística e. por at ingidas pela guerra de Aníbal, que pôde se reerguer
isso mesmo, capazes de interpretar as inúm eras sugestões rapi damente precisament e porque enco ntrava-se inserida,
provenientes dos reinos do Medit errâneo oriental, forma- ao contrário do resto da Magna Grécia, no novo modelo
dos após a conquista de Alexandre. de desenvolvimento que se impôs no início do sécu lo Il
O aume nto demográ fico já se revela com clareza no e qu e caracterizar á O período do fim da Repú blica.
número de colônias latin as que são fundad as, em quan- A discussão atu al sobre a incidência dos fatores eco-
tidade cada vez maior e em regiões cada vez mais distan- nômicos no nascimen to do imper ialismo roma no no fina l
tes, a partir de 338 a.C. As plan ícies férteis da Campânia, da República pa rece ser o típico p roblema maJ colocado.
da Etrúria interior e da região de Pádua parecem part i- Deve-se principalmente a prá ticas metodológicas defin i-
cularmente at raentes, enq uanto as regiões do O riente itá- das po r uma investigação demasiadamente fragmentada e
lico, do outro lado dos Ape ninos, são deixadas, dur ante especializa da, que p retendem resolver um dos problemas
um certo tempo, praticamente intactas: os choques inevi- mais complexos da h istória a partir de uma única técnica
táveis que disso resultarão, primeiro com os samnitas e de abordagem, sem considerar o problema globalmente e
etruscos, depois com gregos e celtas, assinalam as fases em todas as suas implicações. E o que freqüentemente
desta expansão. Que, po r outro lado, houve, ao menos acontece com as pesquisas baseadas no método prosopo-
em estado embrionário, um móvel econômico diferente, gráfico, que tendem a considerar a teoria das elites (e até
menos ligado ao valor de uso do que ao valor de troca, mesmo, às vezes, a simples justificação ideo lógica da ação
e relacionado às primeiras manifestações do "imperia- das elites que elas próprias nos deixa ram, levianamente
lismo" romano, tal pode ser visto cla ramente j amb ém no tomad as como verdadei ras) como o úni co método válido
pr imeiro su rg imento da moeda em Roma (cuja data é para explicar toda a histó ria polít ica do fim da Repúb lica.
controve rsa, devendo em lodo caso ser esta belecida den- O fato de as motivações de ordem econômica destacarem-
Iro dos limites do século IH ) . se de forma apenas fragment ária do testemunho fornec ido
Essa tend ência à expa nsão, já mui to nítida no século por tudo o que restou da literatur a ro mana da época nã o
Iv, acentua-se ao longo do século UI. Ao mesmo tempo, justifica de forma algum a tal ati tude. Com efeito, não h á
produz-se uma crise do mode lo de sociedade que podería- dúvida de que , no pl ano ideológico , tais motivações econô-
mos chamar médio-itálico . Os sinto mas da crise (antes de micas, consideradas como inferiores por qu alquer classe
100 o ES PAÇO E A HI STeRIA NO M L'VlTEH.H. AN t 'O ROMA 101
dirigente aristocrática. serão sistematicamente rechaça- precedente com soluções que englobavam uma parte mui-
das; só poderemos esperar resultados mais próximos da to importan te do corpo cívico. Assistimos assim a um
realidade, não exclusivamente "facruais" , da sociedade "estreitamento" da oligarquia sena tor ial, a part ir de en-
antiga, levan do em conta uma documentação d iferente, tão redu zida a um número bastant e limitado de famílias
em particular a arqueológica e epigráfica. Os estudos ba- que detêm o monopól io do poder e opõem-se a qualquer
seados nessa documentação mostram cada vez mais ela- tent ativ a de renovação vinda de ba ixo.
ramente que, na base da s transformações internas e da As tensões socia is da í decorrentes man ifestam-se, na
expansão de Roma em direção ao exterio r, devemos re- cida de, por agitações da plebe urba na, grupo social desa-
conhecer alte rações econômicas que modificaram a estru- gregado, engrossado por pequenos prop rietários arru ina-
tura da It ália antiga. dos e por ex-escravos, disponível enq uan to massa de ma-
Na raiz da grave crise que afeta a totalidade do Es- nobra para a classe dominante. A luta política red uz-se
tado romano no século 11 a.C. está a dissolução da socie- en tão ao embate entre grupos pertencentes à nobreza , os
dade itálica, provocada, em última análise, pe la conquista únicos capazes, econôm ica e ideologicamente. de assumi r
romana. Uma vez englobados num conjunto político mais a di reção de uma situação social profundamente transtor-
amplo, os pequenos Estados independentes que formavam nada. Por tanto, não é por acaso que os tribunos revolu-
o esqueleto dessa sociedade desagregam -se ra pidamente. cioná rios do século li , particularmente os Gracos, per-
As terríveis guerras do século IH acentuam, naturalmente, tencem eles próprios à classe dominante. Eles tentaram
esta desagregação. Mas a próp ria cidade con qu istadora, restabelecer uma situação um pouco parec ida com a pre-
com suas estruturas polí ticas adequadas às d imensões de cedente, redistribuindo ao proletariado urbano e rural as
uma peq uena "pclis", cada vez mais inadaptadas ao go- terras do ager publicus, usurpadas por algumas famílias
verno de um império em constan te expansão, encon tra-se da classe dominante; mas sua tentativa estava destinada
dian te da obrigação de resolver enormes prob lemas. O ao fracasso. a não ser que se revertesse a tendência à ex-
abandono dos campos pelos pequenos proprietários fun- pansão " imper ialista" que estava na ra iz do fenôme no, o
diários, qu e vão engrossa r o p roletariado ur ba no, coinci- q ue não se pôde nem se qu is fazer. O projeto dos dois
de com a concentração de uma part e considerável das irmãos, mesmo aque le. politicamente mais maduro, de
terras nas mãos de um pequeno grupo e com a exploração Ca io, que tentou reu nir forças disparatadas, como os ca-
baseada não mais no tra balho livre, mas em massas de valeiros romanos, os itálicos e a plebe ur bana, em torn o
escravos importadas especia lmente do Ori ente medlterrâ- de um plano antino bíliá rio, fracassou de maneira lamen-
nico. Nessa nova situação, a produção destin ada à subsis- táve l. Simult aneamente, as gra ndes revoltas de escra vos
tência tende a diminuir e a ser substituída pela plantação nos campos do sul, desprovidas de um programa coeren-
especializada de dimensões méd ias. cujos produtos des- te e de perspectiv as políticas, també m terminavam em
tinam-se à venda ou à exportação, ou, ainda, pelo grande fracasso. Mas estas vitórias aparen tes da nobilitas acaba-
latííundium voltado par a o cultivo do tri go ou para a ram , na realidade, por provoca r sua ruína . Finalmente, o
criação de carneiros (sobretudo na Sicília e na Itália me- result ado que preva leceu foi determina do por dois fato s
ridional) . novos que se processaram gradualmen te nas décadas que
Essa situação se traduz polit icamente pelo desapare- se seguiram à derrota dos tribunos revolucioná rios: a
cimento dos equilíbrios que caracterizaram o per íodo criação de um e xérc ito profissiona l corno escoadou ro
102 o ES PAÇO E A HJSTQR IA NO MEDl T ER RÀ N EO
para a massa do proleta riado romano e itálico que, em
conformidade com sua vocação - a de ser clientela - ,
terminará ao serviço dos "senhores da guerra" (primór-
dios das guerras civis do século T a .C., que destruí ram a
República); e, ao mesmo tempo, a revolta dos aliados itá-
licos, ao termo da qual a cidadan ia romana será conce-
dida a todos os itálicos: extensão que provoca a queda
definitiva das estrut uras vacilantes da cidade-Estado pri-
mitiva . Assim se cumprem todas as condiçõe s que con-
duzirão ao que se conveio chamar, com uma certa impro-
priedade, a "Revolução Romana" ; ou seja, a substituição
da antiga classe dirigente republicana , a "nobili tas", por
uma nova classe dirigente e, simultaneamente, a trans-
formação das instituições do Estado (o Princi pado) . Apa-
rentemente um comprom isso entre a anti ga constituição
e a nova situação progressivam ente criada, como conse-
qüência das guerras civis do século I a.C., O novo poder,
na realidade, repousa essencialmente sobre o apoio de
um exército profissional e das "classes médias" itálicas:
são as mesmas forças que depositam o poder nas mãos
de Augusto.
Fig. S
Alexandre mata Nícolau, manusc rito armê nio. 1536. Jerusalém,
Biblioteca do patriarcado armênio.
© F. WALCH, Par ia,
A história
Toda a histó ria do Medit errâneo: seis a dez milê-
nios de história de um mund o enorme pelos parâmetros
humanos, deslocado, contraditório, abundantemente estu-
dado pelos arqu eólogos e historiad ores, uma massa de
conhecimentos que desafia qualquer síntese razoável. Na
verdade, o passado mediterrânico é uma história acumu -
lada em camadas tão espessas quanto as da históri a da
longínqua China.
Prioridade às civilizações.
Se quisermos, custe o que custar, fornecer uma rápi-
da visão de conjunto, será preciso escolher um fio condu-
tor . E, para escolhê-lo, o melhor seria interrogar com aten-
ção, antes de mais nada, o próprio Mediterrâneo. o Medi-
terrâneo de hoje, procurando aquilo que seria o essencial
de sua vida presente , de seu equilíbrio visível e . prova-
velmente, de seus equi líbrios antigos. A partir de então,
a resposta será rápida e precisa. O Mediterrâneo, para
além de suas divi sões políticas atuai s, são três cornuntda-
des culturais, três civilizações enormes e vigorosas, três
formas cardeai s de pensar , de crer, de comer, de beber,
de viver . . . Na verdade, três monstros sempre pront os a
exibir os dentes , três personagens de destino intermin é-
106 o ESPAÇO E A HISTÓR IA NO MEDlTERRANED A HISTORIA0 107
vel, sempre a postos, desde há pelo menos séculos e sé- Pelo menos toda a atual península dos Balcãs, a Romê-
culos. Seus limites transgridem os limites dos Estados, nia, a Bulgária, quase toda a Iugoslávia, a própria Gré-
que para eles são apenas vestes (tão leves!) de Arlequim. cia, cheia de lembranças, onde a antiga Hélade é evocada,
Essas civilizações são, de fato, os únicos destinos de parecendo revi ver, além destes, inequivocamen te, a enor-
longo fôlego que podemos seguir sem interrupção atra- me Rússia ortodoxa. Mas qual seria seu centro? Cons-
vés das peripécias e dos acidentes da hist6ria mediter- tantinopla, vocês diriam, a segunda Roma, com Santa
râ nica. Sofia em seu centro. Mas, desde 1453, Constant inopla é
Três civilizações: em primeiro lugar, o Ociden te. Istambul, capital da Turquia. O Islã turco conservou seu
talvez seja melhor dizer a Cristandade, velho termo re- pedaço da Europa, depois de ter possuído toda a penín-
pleto de significados; talvez fosse ainda melhor d izer a sula dos Balcãs em seus tempos de grandeza. Um outro
Romanidade: Roma foi e continua a ser o centro desse centro teve, sem dúvida, sua importância, Moscou, a ter-
velho universo latino, depois católico, que se estende até ceira Roma. " Mas também ela deixou de ser um bri-
o mundo protestant e, até o Oceano e ao mar do Norte, lhante pólo da ortodoxia . Será o mundo ortodoxo de hoje
ao Reno e ao Danúbio, ao longo dos q uais a Contra-Re- um mundo sem pai?
forma plantou suas igrejas barrocas como sentinelas vigi-
lantes; e até os mundos de além-Atlântico, como se o
dest ino moderno de Roma fosse conservar nos seus domí- Retorn ando no curso dos séculos
nios o império de Carlos V, onde o sol jamais se punha.
O segundo universo é o Islã , outra imensidão, que De fato, como não seriam as civilizações guias exce-
começa no Marrocos e ultrapassa o Oceano Indico, che- lentes? Atravessam as épocas, triunfam sobre o passa r do
ga ndo até a 1nsulín dia, que ele em parte conquistou e tempo. Enquanto passa o filme da história, elas perma-
converteu no século XlI I da era cristã. Diante do Oci- necem no mesmo lugar, imperturbáveis. De certa forma,
dente, o Islã é como o gato diante do cão. Poderíamos igualmente imperturbáveis, elas permanecem senhoras de
falar em um Contra-Ocidente, com as ambigüidades que seu espaço, pois o território que elas ocupam pode variar
comporta toda oposição profunda, ao mesmo tempo riva- em suas margens, mas no âmago, na zona central, seu
lidade, hostilidade e empréstimo. Ger maine Till ion diria domínio e sua residência permanecem os mesmos . No lu-
"inimigos complementares". Mas que inimigos, qu e ri- gar em que estavam no tempo de César e de Augusto,
vais! O que um faz, faz também o outro. O Ocidente in- ainda estão no de Mustafá Kemal ou do coronel Nasser.
ventou e viveu as Cruzadas; O Islã inventou e viveu a Imóveis no espaço e no tempo - ou quase.
djihad, a guerra santa. A Crista ndade conduz a Roma ; A imobilid ade enraíza as civilizações num passado
o Islã conduz, ao longe, à Meca e ao túmulo do Profe ta, bem mais an tigo do que pode parecer à primeira vista, e
um centro de forma alguma aberrante, já que o Islã per- essa longa permanência incorpora-se forçosamente à sua
corre os desertos até as profundezas da Ásia, já que é, natureza. A Romanidade não começa com Cristo. O Islã
sozinho, O "outro" Mediterrâneo, o Contra-Mediterrâneo n30 começa no século VII com Maomé. E o mundo orto-
prolongado pelo deserto. doxo não começa com a funda ção de Constantinopla, em
Hoje, o terceiro personagem não revela imediata- 330. Pois uma civilização é uma contin uidade que, quan-
mente seu rosto: é o universo grego, o universo ortodox o. do muda (mesmo quando esta mudança é tão profunda a
108 o ESPAÇO r 11 H/STONIA NO M F.mTFRRÀNF,O A fIISTõR I A 109
pon to de implica r uma nova religião), incorpora valores com um longo passado atrás de si; mas é sobretudo a re-
antigos que sobrevivem através dela e continuam a ser a gião que a conqu ista dos cava leiros c cameleiros ára bes
sua substância. As civilizações não são mortais, ai nda que recobrirá bem facilm ente : a Síria, o Egito. o Irã, a África
o diga Valéry. Sobrevivem 80S avatares, às catástrofes. do Norte. O Islã afirma-se, antes de mais nada , como o
Ren ascem de suas cinzas. Destru ídas, ou pelo menos de- herdeiro do O riente Próximo , de toda uma série de cul-
ter ioradas, voltam a brota r como a relva. turas, economias e ciência s antigas. O coração do Islã é
Examinemos a civilização grega. Ela nasce , começa o espaço estreito que vai de Meca ao Cairo, de Dam asco
a se esboçar, por volta do século Vl l1 a.C., após destrui- a Bagdá. Muitas vezes se diz: o Islã é o desert o, e a
ções e invasões qu e fizeram com que o espaço grego vol- fórmu la é boa . Dever-se-ia dizer também: o Islã é o
tasse ao ponto zero da históri a, Ora, hoje está ainda de Or iente Próximo; o que lhe acrescenta uma quantidade
pé. Pelo menos, três milênios de du ração ... Nesse longo fabul osa de heranças e, pcratnto. de séculos.
percurso, quantos acidentes, catástrofes, desastres! A
G récia e o mundo helenístico sucumbi ram diante das le-
giões romanas . Mas os vencidos saem desta longa sub- Tele-histórias
missão, desta pr isão de qu atro ou cinco séculos, quando
Consta ntino funda Constantinopl a em 330 d.C. Inicia-se, Sem dúvi da alguma, o Mar Interior é feito de renas-
então, um Império Cr istão com a extensão do Império cimentos históricos, de tele-histórias, de luzes qu e lhe
Roman o. E quando este se par te em dois, em 39 5, em chegam de mundos aparentemente defuntos mas qu e, no
um a pars orieniis, qu e irá se tor nar o Império grego de entanto, ainda vivem. Gosto daqueles histor iadores que
Bizâncio, e em um a pars occidentis, que irá soçobrar sob sustentam, a despeito de tud o , que Roma não desapare-
os golpes bárbaros, a Grécia renasce todo-poderosa . Com ceu no século V, sob o golpe da invasão dos bárbaros .
este impulso, sobreviverá por q uase um milênio, até a O Império Romano não renasce com Carlos Magno, com
conquista tur ca em 1453, que pa rece, uma vez mais, fa- os O tos, com aquilo que chamamos de Monarquia Uni-
zer com qu e tudo volte à situação anterior. No entanto, versal de Carlos V, ensiada por tantos human istas do
no século XIX , ajudada pelos ortodoxos russos e pela Ocidente? E estes homens de hoje que sonham com uma
Europa , uma verda deira cruzada libertará, um a um , os Europa de povos e culturas, não aspira m eles, conscien-
povos cristãos dos Balcãs. temente ou não, a uma "p ax ro mana"? Qu e Roma tenha
O que aca ba de ser dito sobre o universo ortodoxo marca do profundamente a Europa, é evidente; mas há
pode ser repetido, mutatis mutandis, a respeito dos dois certas continuidades que mesmo assim sur preendem. No
outros personagens: Roma e Meca. Para Roma, em prin- momento em qu e a Cristan da de se divide em du as no sé-
cípi o, o marco zero é o nascimento de Cristo. Para O Islã, culo XVI, é po r acaso que a separação das áreas se faz
O marco zero é a fu ga de Maomé de Meca para Med ina,
exatamente de um lado e de outro do Reno e do Danú-
bio , a dupla fronteira do Impér io Roma no?
em 16 de julho de 622 . Mas o Ocidente apenas continua
Da mesma forma, é gratu ito que a conquista fulmi-
o mund o latino , do qual recebeu sua língua, seu espírito,
nante do Islã seja facilmente aceita tanto pelo O riente
seu direito , e diversas outras coisas. E o Islã é or igina ria.
Médio qua nto pelo duplo domínio de Cartago, a África
ment e. sem dúvida . uma Aráb ia de deser tos e caravanas, do Norte e uma parte da Espanha? Dissemos que o mundo
110 o ES PAÇO E A HISTORIA NO MEDITERRÂNEO A HISTORIA 111
púnico estava melhor preparado. em sua essência, para Weber (irmão do grande Max Weber), é uma "civiliza-
receber a civilização islâmica do que para assimilar a lei ção derivada", de segundo grau - poderíamos dizer en-
romana, pois a civilização do Islã não é somente um xertada. Seria a civilização chinesa a única de primeiro
acréscimo, é também uma continuidade. Ela assimilou grau?
não apenas o judaísmo e a tradição de Abraão, mas urna Em suma, qualquer estudo das mentalidades atuais
cultura. costumes e hábitos estabelecidos há muito tem- volta-se obrigatoriamente para o interminável passado
po. Uma civilização, com efeito, não é apenas uma reli- das civilizações. Formou-se ao longo dos séculos duas
gião, ainda que seja esta o âmago de qualquer sistema Cristandades que, na realidade, são retomadas de realida-
cultural: é uma arte de viver. milhares de atitudes que se des anteriores, ambas de longa duração: uma centrada em
repetem. Em As mil e uma noites, saudar o soberano é Roma e no Ocidente, a outra na nova Roma, Constanti-
"beijar diante dele a terra entre as mãos". Ora, este já é nopla, mas também numa Grécia que, certamente, não
o gesto habitual na corte do rei parto, Cosroé (531-579). é nova.
E ainda nos séculos XVI e XVII , e mesmo mais tarde, o Em que se diferem estas duas Cristandades? Essen-
gesto que os embaixadores europeus em Istambul, Ispah.ã cialmente, uma sobrepõe-se ao mundo grego que Roma
ou Delhi tentado evitar, pois consideram-no por demais subjugou, mas não assimilou; outra, à zona ocidental, que
humilhante para si mesmos e para o príncipe que repre- foi precisamente a das conquistas romanas.
sentam. Mas já Heródoto indignava-se com os costumes O cristianismo não conseguiu abolir essa diferença
egípcios: "Em plena rua, para se saudarem, prosternam- inicial e visceraI. Sem nos lançarmos em explicações de
se um diante do outro; fazem-se de cães, abaixando as querelas teológicas que fundamentariam a separação das
mãos até os joelhos." Pensemos também no traje tradi- duas Igrejas, podemos interpelar o presente, o que é, de
cional dos muçulmanos, que tão lentamente evoluirá. qualquer modo, mais cômodo. Logo percebemos que as
J'. já reconhecível nos trajes dos velhos babilônios, tal duas religiões irmãs divergem apesar de estarem ambas
como os descrevia o mesmo Heródoto há vinte e cinco envolvidas no amor por Cristo, e que certas palavras-cha-
séculos: "Os babilônios vestem, primeiro, uma túnica de ve não têm o mesmo sentido em uma e outra. Em grego,
linho até os pés (diríamos um "gandurah", observa E. F. e ainda mais claramente nas línguas eslavas, verdade de-
Gautier) e, por cima, uma outra túnica de lã (diríamos signa o que é constante , eterno, o que existe verdadeira-
um "djeballa"); enrolam-se em seguida com um pequeno mente, externamente ao mundo criado tal como este é
manto branco (diríamos um pequeno albornoz branco) e captado por nossa razão. A palavra pravda significa,
cobrem a cabeça com um barrete (diríamos um "fez" ou ao mesmo tempo, verdade e justiça. Em latim, ao con-
um "tarbuch")." E poderíamos continuar, em relação à trário, verdade sempre significa uma certeza, uma reali-
dade para nossa razão. No Ocidente, o sacramento im-
casa (que é pré-islâmica), à alimentação, às supersti-
plica uma hierarquia religiosa, ela apenas sendo capaz de
ções: a mão de Fatma, que corresponde a nossas "meda-
lhe conferir seu caráter sagrado; no Oriente é, antes de
lhas e escapulários", já orna as estelas funerárias carta- mais nada, "mistério", aquilo que ultrapassa nossos sen-
ginesas. O Islã está claramente ligado ao espesso solo his- tidos e vem diretamente de Deus. Vocês dirão que são
tórico do Oriente Próximo. Assim como a civilização oci- apenas nuances. No entanto, o pr6prio Cristo assume
dental, a islâmica, para usar a terminologia de Alfred aparências diversas num e noutro mundo . No Ocidente,
112 o ESPAÇO E A JlfSTCJ RJA NO MtDJ1'CHRAN CO A HISTÓRIA 113
a Semana Santa, que precede a Páscoa, situa-se sob o Entre as civilizações adu ltas estruturad as (e o Medi-
signo do luto , da paixão, dos sofrimentos, da morte do terrâneo é o lugar de eleição das civilizações adultas, re-
Cristo-Homem. No Or iente, ela está sob o signo da ale- sultantes de longas preparações), a regra é a derrota regu-
gria, dos cantos que glorificam a ressurreição do Cristo- lar, apesar de, repitamos , freqüentemente muit o lenta a
Deus. Os cru cifixos russos, ao contrár io dos primeiros se completar. Na realidade , uma civilização consolidada
crucifixos italianos (os de Cimabue), representam um submete-se apenas aparentemen te, e geralmente toma en-
Cristo tranqüilo na morte, e não o Salvador sofredor do tão maior consciência de si mesma, exaspere-se e desen-
Ocidente . . . E poderíamos prosseguir enumera ndo todos volve um nacio nalismo cultural intransigente . Entre ]453
esses contrastes, nascidos há muito tempo. e 154 1, os turcos conqu istam completamente a península
Em seus cursos na Sorbonne, Ier ôme Car copino Ia- dos Balcãs, onde a civilização grega ou ortodoxa ocupa
mentava, deplorava mesmo, que Roma não tivesse ultra- subalternamente o essencial do terr itório. O recuo turco,
passado o Reno atingindo ao menos, em direção ao leste, e com ele o do Islamismo, só acontecerá em 1918, depois
o Elba. O destin o de Roma - e porta nto o nosso - te- de mais de quatro séculos. Mas não devemos nos esque-
ria sido outro. Mas tivesse a Igreja de Roma convertido cer que no início das vitórias turcas houve cumplicidade
a Moscóvia ao cristianismo, e não a grega, e o destino da dos gregos, em virtude de seu ódio contra os latinos. A
Europa e do mundo, com certeza, teria sido completamen- conquista muçulmana submerge a Espanha em 711 e só
te diverso. Assim, as grandes par tidas do presente foram a libera depois da tornada de Gra nada , sete séculos mais
muitas vezes jogadas, ganhas ou perdid as, nos tempos de tarde. Também aaui devemos considerar as cumplicida-
outrora. des iniciais. Mas, em ambos os casos, o surpreendente é
que uma civilização reencontre-se a si mesma, intacta ,
após um aprisionamento mult issecutar - um pouco como
Civilizações se recobrem se nada tivesse acontecido. E observem, mais a leste, o
destino do Islã em terras iranian as.
Primeir a característica 'portanto: as civilizações são F. o que provaria ainda, se necessário, a hist6ria do
realidades .fie Iongprss íma duração. Segunda caractcrfsti- Oriente greco-romano, fundado pela conquista do Ori en-
ce: estão solidamente enra izadas em seu espaço geográ- te Próximo por Alexandre, de 334 a 329 a.C. Essa longa
fico. Evidentemente, a mais forte, a vitoriosa, penetra história, escrevia Émile-Félix Gautier. "durou uma de-
muitas vezes a mais fraca, coloniza-a, nela instala seus zena de séculos (até as conquis tas ára bes de 634, 636 ou
quartéis, seus postos de comando. Mas, a longo prazo , a mesmo 641) : um prazo formidavelmente longo - quase
aventura acaba mal. As exceções confirmam a regra: que toda a história da França caberia nele. Ao final destes
Roma tenha vencido na Gália, que Cartago tenha sub- dez séculos, de um dia para o outro, ao primeiro avanço
repticiament e vencido na Africa, e a Europ a na América, árabe tudo desmorona pa ra sempre, a língua e o pensa-
é sempre uma civilização mal estruturada que se abando- mento gregos, o quadro de referências ocidentais; tudo
nou ao intruso. Eis o que nos obriga, quanto à Gália pr é- se desvanece em fumaça; esses mil anos de história pare-
romana, a não exagerar demais o nível cultural por ela cem nunca ter existido".
atingido, ou, ao menos, a não nos deixar levar pelo entu- Em termos comparati vos, as sobreposições de um
siasmo contagiante de Camille [u llian . século parecem episódicas: Ierusalém tomada pelos cruza-
114 o ESPAÇO E A HIST()R IA NO MFD1TERRJ.NEO A HISTÓRIA 115
dos em 1099 deixa de ser cristã em 1187: a Africa do Iam os choques surdos, violentos e repetidos que se pro-
Norte francesa. dominada em 1830, não mais existe em duzem entre os poderosos an imais que são as civilizações.
1962. De modo que essas e outras guerras e batalhas, cujos epi-
Mais ou menos longos, lod os esses processos pare- sódios significativos podemos recordar (a batalha de Xe-
cem pertencer a uma só família de problemas. Em suma, res, em 711, quando Tarik esmaga os visigodos, ou a de
eles provam o valor explicativo do conceito de civiliza- Poitiers em 735, ou ainda a tomada de Constantinopla em
ção, por mais frágiJ e complicado que este possa parecer. 1453 ... ), ultrapassam os atores e as localidades que mais
Tal conceito abre, no espesso passado do mar, os únicos diretamente lhes concernern. E todo o Ocidente de um
caminhos livres que um viajante apressado pode trilhar. lado (gregos e latinos ) e todo O Orient e do outro. As
• gra ndes dimensões do conflito amplificam e tornam mais
dramático o choque. Em Maratona, os gregos salvam um
Reter apenas os conflitos de civilizações Ociden te ameaçado de subversão. Roma golpeia o Orien-
te ao matar Cartago. As Cruzadas vão na mesma d ireção
Sustentamos, portanto, que basta reter os conflitos obstinada. A tomada de Constantinopla, em 1453, é um
de civilização, que tais seriam as batizas de qualquer na r- enorme revide do Islã . uma data tardia 057», Lepanto
rativa concisa . A batalha de Maratona (490) : de um lado, coloca novamente em risco roda a salvação do Mediterrâ-
o mundo grego dividido contra si mesmo. disperso das neo, maltratado no mar pelas frotas tu rcas e pelos cor-
costas da Ásia Menor à Sicília; do out ro, o Império Persa , sários barbarescos.
"essa imen sidão que vai do Mar Egeu até a Índia". A T udo isso é mais que compreensível: há muito tem-
luta de Roma contra Cartago até 146 a.C. a luta "entre po estabelecidas, como deixar iam as civilizações de se
um povo essencialmente marítimo e comerciante e outro confrontar? Encontra m no combate sua razão de ser.
essencialmente terrestre, guerreiro e camponês", Eviden- Roma, cujo triun fo corresponde aos únicos séculos de uni-
temente, imaginaremos semp re o que teria se tornado o dade do mar, não fez desaparecer as comunidades hos tis
Mediterrâneo caso Cartago tivesse vencido, propaga ndo estabelecidas antes dela; manteve o respeito a elas, ao
sua civilização por todo o mar e revelando com isso seu mesmo tempo que valorizava e impu lsionava sua própria
ser prof undo, sem dúvida cheio de ab ismos. Mas Cartago civilização, sua língua, sua arte, Mas as lutas continua-
não venceu . " As Cruzadas: em Lepanto. a 7 de outu - ram, encobertas pela paz romana que as dissimulava pre-
bro de 157 1, a frota da Santa Liga (Veneza , O papado, a cariamente.
Espanha), sob o comando de Dom João d'Ãusrria, esma- As civilizações são, portanto, a guerra, o ódio, uma
gava a "armada" turca na entrada do golfo de Corinto, imensa região sombria as devora quase pela metade. Fa-
mais exa tamente no golfo de Naupacta, a maior batalha bricam o ódio, alimentam-se dele, dele vivem, A Grécia
de galeras que a história co nheceu; combate gigantesco, detesta ainda mais a Pérsia do que esta (que sabemos ser
mas breve: "Começa ao raiar do dia e termina an tes do tolerant e) detesta a Grécia. O romano tem ódio mortal
meio-dia" (Robert Mantran). do pún ico, que não o ode ia menos. A Cristandade e o Is-
Esses conflitos, uns breves (Maratona, Lepanto), ou- lamismo nada têm par a se invejar. No tribuna l da Histó-
tros longos (as três guerras púnicas, as Cruzadas), reve- ria. os dois culpados seriam condenados, e não se da ria
11& o F:SPAÇO t: A /IISTOR IA NO Ml'./)/TERRMVEO A HIS TORIA 117
razào a nenhum deles. Mas semp re iremos sabe r quem contém sozinha toda a história dos homens e , no nosso
é culpado c quem é inocente? Para Sabatino Moschati, caso, toda a história do Mar Interior.
os púnicos seriam povos pacíficos por excelência e se de- Que a política tem sempre que ser considerada, é
fendiam certamente com coragem, mas apenas para fazer algo patente. Quantas vezes não impôs sua vontad e, rele-
frente ao ataque. Out ros historiadores pretendem que gando ao segundo plano todas as outras forças e forma s
Bizâncio, que sobreviveu ao Império Roma no até a terna- da história? E: o que acontece durante muitos séculos , en-
da de Cons tant inopla, não foi capaz de fab ricar uma gue r- quanto se ma nteve a preponderância de Roma, que, por
ra santa a sua altura (uma cruzada, se qu isermos). Se a muito tempo, foi a violênc ia a serviço da polít ica: seu im-
observação for verdade ira, seríamos tentados a nos ale- per ialismo s6 se abranda depois de ter subjugado todo o
grar com essa deficiência. Mas, enfim, um belo dia, não mu ndo medit errâni co. Até chegar aí, Roma arrasou sem
pagou Bizâncio por essa ausência de ódio construtivo? piedade: naquele ano de 146 (a.C.) , destru iu tanto Carta-
Isto signi fica que O futuro pertence apenas àque les que go como Corinto. .. Lembremos também da conquista
sabem od iar. De fato , na maioria das vezes, as civiliza- sangrenta da Gália, ao longo de quase dez anos, de 59 a
ções não passam de ingratidão, desprezo e ódio ao outro. 53 (a.C.). Os europeus não farão nada melhor na Am é-
Mas não são apena s isso. São também sacrifício, brilho, rica. Antes de ser a artífice da "pax romana", Roma
acúmulo de bens culturais, heranças de inteligência. Se impôs a guerra contínua.
às suas civili zações o mar deve suas guerras, deve-lhes As civilizações tiveram de se curvar junto com os
também seus múltiplos intercâmbios (de técnicas, idéias povo s vencidos. Com a grande batalha de Actium (2 de
e mesmo de crença s), a variedade, a mescla de espetá. setembro de 3 1 a.C .), grande porque teve imensas conse-
culos que ele hoje nos oferece. O Mediterrâneo é um mo- qüências, é selado por séculos o destino do "outro" Me-
saico de todas as cores . E: por isso que, tendo passado os dit errâneo. Essa ba talha, que acontece quase exatamente
séculos, podemos ver sem nos indignar (mu ito pelo con- no mesmo local da batalha de Prebeaa (vit ória dos turcos
trário) tantos monumentos que antes eram sacrílegos, sob re as frotas de uma primeira San ta Liga cristã em
marcos que indicam os ava nços e recuos de outrora: San- 1538), vê a fuga dos navios de Cleópatra , a derrota de
ta Sofia com sua guarda de altos minaretes: San Giovanni Antôn io e do Egito , e o tr iunfo de Otávio. F. de fato ali
degli Eremiti, em Palerma, que abr iga seu claustro entre que começa o Império Romano.
as cúpulas vermelhas ou quase vermelhas de uma antiga Mas mesmo impondo sua vontade e a unidade poli-
mesquita; em Córdoba, em meio à Iloresta de arcos e pio tica ao conjunto do mundo mediterrânico. Roma não su-
lares da mais bela mesquita do mundo, a encantadora primiu as diferenças, as divergências, as desordens e os
igrejinha gótica de Santa Cru z, construída por ordem de confl itos culturais. Tanto que ela própria será atingida e
Carlos V. trabalhada por essas culturas, mais sofisticadas do que a
sua; pela Grf ela, que será sua educadora (os meios cultos
da capital falarão grego), e pelas religiões e cultos inva-
A civilização não constitui toda a história sares do Oriente Próximo. Contudo, impôs a todo o Me-
dite rrâ neo a linguagem superior de sua política e de suas
Mas, enfim, por mais amp los que seja m seus domí- instituições.
nios, suas repercussões e sua duração, a civilização não
118 o ESPACO E A HISTOR IA NO MF.DlTERRJ.NF..O A HI Sr ORJA 119
o lugar da economia lar das cidades - os Estados territoriais, por um momen-
to bem definidos, deterioram-se com a crise profunda do
A economia també m teve seu pa pel, muitas vezes século X IV.
determinante, no concerto da história med iterrân ica. A Entretanto, essas cidades disp utam entre si os lucros
sociedade nada seria sem a exploração econômica que a do Mediterrâneo. As incessantes querelas entre Gênova
equilibra, C, sem ela, os Estados seriam cor pos inert es. e Veneza são uma inverossímil sucessão de peripécias. E
As civilizações 56 duram e florescem graças a ela. As flo- ap enas a parti r da guerra de Chioggia (1378-1381) que
rações são despesas, desperdícios. Se surgem crises eco- Veneza irá levar a melhor, tornando-se. até o início das
nômicas mais ou menos graves, o cante iro de Santa Ma- chamadas guerras da Itá lia (1494), o centro dos inter-
ria dei Fiare em Florença inte rrompe seus trab alhos, e a câmbios mediterrânlcos. Com o fim do século XV, os Es-
catedral de Bolonha e a de Siena permanecem inacabadas. tados territoriais recuperam seu vigor ou adquirem novas
E o mar - superfície de transpo rtes - que traz a forças. Os turcos instalem-se em Otranto (1480-1482).
riqueza das riquezas. O senhor do mar é o senhor das Carlos VIU at ravessa os Alpes em setembro de 1494 , os
riquezas. Ora, por mais vasto que seja, mais cedo ou mais aragoneses irão participar da guerra que se inicia. Certa-
tarde, o mar sõ admitirá um único senhor, não obrigato- mente, as cidades, mesmo Veneza, não têm mais peso
riamente um senhor político, tal como na prim eira ima- frente a esses enormes adversários. A política vinga-se.
gem que lhe deu Roma , mas um senhor dos intercâm-
bios, das desigualdades e dos desníveis da vida comercial.
Pouco ruidosos, esses reinos não se cons troem de A conquista do Mediterrâneo pelos nórd icos
um dia para o outro. São preced idos e acompa nhados por
lutas . Nos séculos IX e X, no esplendor de sua civiliza- No entanto, não foram as armadas turcas, os exérci-
ção, o Islã dominou incontestavelmente o Mar Interior. tos franceses ou os tercíos espanhóis, por maior que fosse
O cristão "mal consegue fazer flutuar uma prancha" . seu peso sobre o destino da Itália e de suas cidades, os
Mas, a pa rtir do século XI , e depois, aprovci tando-se do transformadores dos fundamentos econôm icos da prima-
movimento contínuo das cruza das, a situação começa a zia mediterrâni ca . A ascensão agressiva dos grandes Es-
se inverter. Os navios das cidades italianas tornar-se-ão tado s comprometeu ou destruiu o equil íbrio da penínsu-
os senhores incontestes de toda a superfície marítima. Os la mas, em 1559, logo após o tratado de Cateau-Cambré-
navios bizantinos serão eliminados, os islâmicos rechaça- sis, que a entrega em parte à Espanha, a Itália reencontra
dos. O mar , no sentido estrito do termo, a água marinh a, a paz e dela consegue tirar vantagens. Entretanto, nunca
é conquistado pelo cristão, por seus navios de guerra, mais se recuperará, mas por out ros motivos .
seus navios piratas, suas expedições guerreiras, e, por O processo que ameaça o Mediterrâneo e que final-
trás desses movimentos p roteto res, por seus nav ios de co- mente o vencerá nada mais é do que o deslocamento do
mércio cada vez mais numerosos. Com este frutífero jogo, centro do mundo do Mar Jnterior para o Ocea no Atlân-
longamente repetido, a It ália ao norte da linha Florença- tico . No início deste processo estão a descoberta da Amé-
Ancona torna-se a zona mais ati va e rica de todo o Me- rica em 1492 e o péri plo do cabo da Boa Esperança em
diterrâneo. Entre os séculos Xl e XVI, qu ase poderíamos 1497·1498. Todavia, esses acontecimentos não ganham
dizer : economia em primei ro lugar, e em beneffcio regu- toda sua impor tância de um dia para o outro. A pimen ta
120 o !:Il PA<,.'O t: A HI ST ÓRIA N O M H J/nRR ÁNf: O A H/ 5rOR IA
121
e as especiarias chegam a Lisboa, indo de lá para a An- mo europeu aumenta consideravelmente (q uase dobra).
íuérpla . Mas a rota de Suez ou do golfo Pérsico não está restabelece, enfim, as bases de seu anti go com ér-
morta e pode rivalizar com a longa circunavegação da CIO. Sera prematuro, port ant o , falar de uma dec adência
África. Cogita-se até um canal de Suez. A pimenta e as do Mar Inter ior, da Itália e de suas cidades-pilotos até o
especiarias s6 chegam na Europa , aliás, em troca da prata. do século XVI. Devemos renunciar à explicação an-
Que m tem dinheiro ou prata pode telecomandar produ- tiga, que apresentava o Mar Interior imediatamente des-
tores, comerciantes e transportadores de pimenta e espe- classificado pelas descobert as dos portugueses, que , no
ciarias. A pra ta, que a partir dos anos 1530 provém qua- Oceano Indico, aliás, não bloq uearam nem as rotas do
se que exclusivamente da América através de Sevilha , golfo Pérsico nem as do mar Vermelho.
pertence certamente à Espanha . Mas, a parti r de 1550, O que acontece então? Pois é certo que hou ve uma
em virtude das guerras de Carlos V e dos empréstimos redu ção dos tráficos e intercâmbios distantes do Mediter-
feitos pelo governo espanhol, onde logo participam os râneo nos primeiros anos do século XVII. Recen temente,
mercadores e banqueiros italianos, sobretudo genoveses, um Jovem historiador , Richard Rapp, deu a melhor expli-
a prata espanhola começa a se dir igir para a Itá lia. Caixas caçao. Para ele houve uma conqu ista do Mar Jnt erior pe-
de " ré is", de "moedas de oito", são regu larmente trans- los nórdicos, principalmente ingleses e holandeses, e mais
portadas pelas galeras de Barcelona a Gê nova. Em 1568, os primeiros do que os segundos, através da malícia, da
qu and o a pirataria inglesa e depo is a holandesa arr eba- força , da violência e do jogo da s diferenças econ ôm icas.
tam à Espanha o cam inho direto do Atlântico e do mar Os ingleses já haviam ampliad o sua intromi ssão comer-
do Norte até os Países Baixos revoltados , as remessas de cia l no Mediterrâneo , desde as últ imas década s do século
prata a partir da Espa nha seguem quase que exclusiva - XV até os an os 1530 , 1550 ; essa prim eira invasão cessa
mente a via mediterrânica, de Barcelona a Gênov a: a ci- bru scamente en tre J 550 e 1570. Nos anos 1570 houve
dade de São Jorge torna-se o centro financei ro de toda a uma segunda vaga , que será bem mais ampla e durável
Europa - uma bela revanche do Mediterrâneo! Esse pri- do que a primeira .
vilégio dos genoveses decorre da obrigação qu e pesa so- Os navios dos países protestantes irão se impondo
bre o governo do Rei Católico de pagar regularmente o gradualmente em um Mediter râneo onde Islami smo e
soldo e as despesas aos so ldados do exército espanhol qu e Cristandade arrefeceram após os fabulosos esforços de
combate nos Países Baixos. E essa necessidade se mant e- pan to em 157 1. Estes navios são melhor armados melhor
rá. E estabelecido um sistema genovês de pagamentos com equipad.os, melhores em termos de carga e mais regula-
as feiras de Piacenza , cr iadas a partir de 1579 . Os histo- res, aceitando fretes mais modes tos do que os veleiros do
riadores habituaram-se até a falar de um "século dos ge- Apoderam-se po uco a pouco dos tráficos
noveses", que teria com eçad o em 1557 e terminado por Import ante s: os na vios holan deses transport am da Espa-
volta de 1622-1627 . nha pa ra Livorn c os sacos de lã qu e depois, por via ter-
Tendo reorgani zad o seu abastecimento de prata, a restre, chegam a Veneza e a bastece m sua arte delta /ana
Itália restabelece ao mesmo tempo, por volta de 1560, entã o em plena expansão. Alguns desses navi os chegam
seu abas tecimento de pimenta e especiarias através da s a ir diretamen te da Espanh a a Veneza . Outras ca pturas se
antiga s rotas do Levante. O fluxo dessas rotas equ ivalerá operam , n? , comércio da uva -passa, do azeite de Ojerba
a proximadamente ao da rota do Cabo , e, como o consu- ou da Apu lJa, bem como no prestigioso comércio do Le-
122 o ESPAÇO E A HISTÓ R IA NO MEDITERR).NEO A HJSTóRIA 123
vante. Os nórdicos trazem madeira, alcatrão, pran chas. doso; durante a Guerra de Sucessão da Espanha, o almi-
táb uas, trigo, centeio, tonéis de arenque, de estanho, rante inglês Geo rge Rooke, a 25 de agosto de 1704, cap-
chumbo e. logo em seguida, seus pr odutos manufatura- tura Gibraltar de surpresa; os franceses e espanhóis ten-
dos, em geral simples imitações dos produtos de Veneza tarão em vão recuperar seu lugar em 1704, 1727, 1779 e
ou de outras cidades italianas, bugigangas com falsas mar- 1782. No curso da última tentativa, os assaltantes utili-
cas italianas, mas de aparência autêntica . Acrescentem zam, mas sem sucesso decisivo, as balas incandescentes e
o cc rso, os acordos com Argel e com os turcos. Donde as baterias flutuantes inventadas por d'Arçon. Sela-se um
uma série de indelicadezas e de cumplicidades (principal- destino: os ingleses estão ainda hoje em Gibraltar. São
mente em Livorno). E. assim que o comérc io e a indústria assim, há dois séculos, os porteiros do Mar Interior, que
da Inglaterra e dos Países Baixos alimentam-se d,as se toma, no século XVII I, um lago vigiado a oeste e.
jos e das riquezas acumuladas do velho desde o século XVll, sem saída fácil do lado do Levante.
Houve conquistas, pilhagens, roubo. E até bloqueio a dis- Mas é justamente no lado do Levante, bem mais do
tâ ncia, quando os holandeses substitu íram os portu gueses que no de Gibraltar, que se encontra a zona perigosa e
na l nsulíndia e no Oceano Indico. Os últimos deixavam cobiçada do Mar Interior. Nos séculos XVII e XVIII , o
as mercadorias passarem para o Mediterr âneo, os primei- Levante é O Império Turco, que se estende pelos Balcãs,
ros controlarão, senão a seda, que sempre chegará ao Le- pela Ásia Menor no sentido amplo e pela Africa do Nor-
vante, ao menos a pimenta e as especiarias. De acordo te, do Egito à front eira oriental do Marrocos; um vasto
com o testemunho dos marselheses, por volta de 1620, mercado, visto que permanece ligado à Pérsia e às sedas
as especiarias e a pimenta não mais chegarão ao Medi- que transitam até Smyrna, transformada na maior das
terrâneo pelas antigas rotas do mar Vermelho,_ mas pelo "escalas". E de fato O trunfo do comércio do Levante. on-
Atlântico e GibraItar, a bordo das embarcações holan- de a França, meio mediterrânica, passa a ser, a partir do
desas. Por um lado, o Mediterrâneo foi assaltado em sua século XVIII , a atriz privilegiada.
própria casa; por outro, se vê levado a roubar da popu- Mas, acima do comércio e dos países do Levante, o
lação de suas margens os tráficos mais frutíferos. E, des- foco da dispu ta é a Índia longínqua, onde a Inglaterra
de então, nunca mais o mar lhe foi devolvido. ocupou o pr imeiro lugar, que ninguém conseguirá arre-
batar, logo após a batalha de Plassey (1757) . O Levante
é a rota mais curta entre a Euro pa e as Indias, a rota
Antes e depois da abertura do canal de Sue. (1869) por excelência das notícias rápidas, das decisões e das
ordens. Além disso. com o comércio do café, o mar Ver-
Depois de 1620 ou 1650, o Mediterrâneo não é mais melho se rean ima, e Alexand ria torna-se novamente um
o centro do mundo. Nele penetram o comércio e a guer- porto movimentado, como no tempo das especiarias e da
ra dos outros. Nesses intercâmbios e nessas guerras, os pimenta. Às vésperas da Revolução, a política francesa
medíterrân icos desempenham apenas papéis menores. ocupa-se insistentemente com a rota do istmo de Suez,
Peões em um tabuleiro de xadrez, seus movimentos en- inquietando a Companhia inglesa das Índias Orientais. A
contra m-se à mercê de poderios e vontades distantes. Da Inglaterra teme que o Mediterrâneo se abra, na direção
Holanda no século XVII. No início do século XVII I, a do Oceano Ind ico, aos seus rivais e concorrentes, dos
primazia' da Inglaterra anuncia-se por um golpe habili- maiores (encabeç ados pela França) aos mais modestos (Gê-
124 o ES PAÇO E A HI ST ÓRI A NO ME lJITE R RÁNEO A HI5TORIA 125
nova ou Veneza), ou aos mais mal posicionados, como a Ferdinand de Lesseps. Também foi preciso apostar na
Rússia, ela também atraída pela miragem e pela realida- navegação a vapor, que eslava modificando as condições
de das Índias. E nesse COntexto que se insere a expedição gerais de circulação através dos mares e oceanos do pla-
do Egito, conduzida em 1798 por Bonaparte. Se esta ex- neta. Em todo o caso, era o fim do lago mediterrânico, a
pedição tivesse sido bem-sucedida, o Império Turco teria transformação do Mar Interior numa rota voltada essen-
se partido em dois: ao norte, a Anatólia e os Balcãs; a cialmente para o Oceano Indico. Pouco depois, os via-
oeste, as indóceis Regências de T rípoli , de Túnis e de jantes que se dirigem à Índia não deixarão de anotar suas
Argel, mantendo-se o caminho totalmente aberto em di- impressões: o canal, o tórrido mar Vermelho, o balanço e
reção ao Oceano Indi co. Sempre prontos a refazer a his- o marulho do Oceano Indico; o Mediterrâneo não é mais
tória, os historiadores acham que, se Bonaparte tivesse to- do que a primeira, a breve e quase imperceptível etapa
mado São João de Acre, teria conseguido refazer seu de um longuíssimo percurso.
exército nas colinas e montanhas do Líbano e destruído Este êxito Crancês foi ocasião para uma inauguração
o Império Britânico ainda em seu início. solene, que contou com a presença de todas as cabeças
Mas a grandiosa operação fra cassou c, em 1800, a coroadas da Europa, sob a presidência - a cada um o
Inglaterra tomava Malta, ocupada dois anos antes pela lugar que lhe cabe - da imperatriz Eugênia. Mas esses
frota francesa a caminho do Egito. A ilha deveria ser de- faustos não devem nos iludir. O centro político não é
volvida de acordo com o tratado de Amiens (1801), mas Paris, e não se trata de uma compensação à expedição do
permaneceu sob o controle inglês até há pouco. Apesar Egito. De fato, embora independente a partir de 1811,
de sua ínfima dimen são, ela garantia (um segundo Gibral- o Egito não passa, por si só, de um peão no tabuleiro de
tar) o domínio inglês no centro exato do mar . Mais tarde, xadrez do Mediterrâneo. O governo inglês, que ergueu
a instalação dos ingleses em Chipre (1 878) e no Egito toda uma série de obstáculos à construção do canal, com-
(1882) completa a dominação de Londres; a rota das 10- pra , em 1875, as 117.000 ações do quediva endividado;
dias estava inteiramente sob seu poder, e a "pax bri tan- em 1882, o Egito é ocupado; em 1888, um acordo assi-
nica" impunha-se pesadamente sobre o Mediterrâneo. nado com a França em Londres toma neutro o canal.
Mais uma vez, a ordem política reinava sobre o mar. Em Enfim, a Inglaterra foi a grande beneficiária do empre-
caso de problemas, bastava uma palavra do gabinete de endimento de Ferdinand de Lesseps. Quanto à tentativa
Saint-James: os navios alcançavam Malta e tudo voltava de Fachoda no Nilo branco, onde, a 10 de iulho de 1898,
à ordem . chega a pequena coluna do comandante Marchand, não
A França, porém, agitava-se: começa a se instalar na passa de um incidente dramático, sem conseqüências para
África do Norte, ocuoa Argel em J 830; mas a África do a partilha da encruzilhada do Levante.
Norte não é um Mediterrâneo qu e ameace os interesses A França não foi a única a levar a pior com esses
de Londres. O galo gaulês, ciscando as areias do Saara, acordos. E Maurice Aymard tem razão em dizer que "o
acaba provocando apenas sorrisos. O único golpe inci- canal de Suez simbolizou o enfraquecimento político do
sivo dos franceses foi a ahertura do canal de Suez, con- mundo medíterrâníco". Feito pelos franceses, que eram
cluída em 1869. apenas pela metade mediterr ânicos, o canal tomou-se,
Para o sucesso do empreendimento foram necessá- juntamente com o Mediterrâneo, uma rota inglesa. O
rios dez anos de trabalho e a obstinação de um homem, Mar Interior continua, assim, a ser alienado de seus do-
126 o ESPAÇO E A HISTóRIA NO MfDITERRANEO
nos. E, desde então, prossegue a mesma história, a histô-
ria de um constante despojar. Em 26 de julho de 1956,
Nasser nacionalizava o canal. A Fra nça e a Inglaterra
unem-se e, para elas, é o fracasso da "guerra dos seis
dias", No entanto, mesmo antes desta data, nem a Fran-
ça, nem a Ing laterra dominavam mais o Mar In teri or ou
os países às suas margens. "A presença visível dos porta-
aviões americanos e dos porta-helicópteros soviéticos as-
sinala as dominações conflituosas das duas grandes po-
tências mundiais!' O Mediterrâneo é, quando muito, seu
quintal. Ou melhor, seu circo, onde, para seu prazer ou
desprazer, batem-se gladiado res; eles não lutariam com
tão cruel encarniçamento se os gra ndes desse mundo não
tivessem interesses em suas matanças.
Sem dúvida, o Mediterrâneo continua a viver sob
nossos olhos, a man ter seus próprios comba tes, a perse-
guir sua industrialização, a melho rar seu nível de vida, a
livrar-se das seqüelas das colonizações finalmen te inter-
rompidas . Ao sul do mar, o outro Mediterrâneo, do Mar-
rocos à Turquia e ao Iraque, esforça-se em recuperar o
tempo perdido, que também se acumula.
Fig. 6
Vignole, escadaria da Villa Farnese em Caprarole.
© M. DE5JARDINS. Agence Top .
Espaços
1)0 Mediterrâ neo, tendemos hoje a ver apenas o ce-
nãrio, a aliança do mar e do sol, do relevo e da vegeta.
ção, o dom gracioso de uma natureza generosa e suntuosa,
e no entanto ingrata. Pois. sob as flores, logo aparece a
pedra. Se o homem distrai-se e descuida-se por um mo-
mento, os terraços pacientemente edificados no flanco
das montanhas desabam invadidos pelo mato, o rnaqui
rebrota sobre a floresta incendiada, e as planícies voltam
a ser pântanos. Desfaz-se um equilibrio frágil , que levará
por vezes séculos para ser recomposto. Do fim do impé-
rio até os nossos dias, o campo romano permaneceu uma
espécie de deserto, e a drenagem dos pân tanos Pontinos
• simbolizou para O fascismo o reencont ro da grandeza de
Roma. Mas Veneza só combateu as águas divagantes do
PÓ e do Adige a partir do sécuio xv r, q uando começou
a perde r seu monopólio comercial.
T odas as orlas do mar conheceram espetaculares al-
ternâncias de valorização e abandono. Como se o homem
controlasse mal um espaço que lhe escapava, e sobre o
qual seu domínio per manece ainda parcial e desigual.
Como se, a cada época, tivesse de fazer escolhas, abando-
nando a costa para ir ao interior ou, como hoje em dia,
130 o ESPAÇO E A HJST ú RI A NO M EDITERRÁNEO ESPAÇOS 131
fazendo o inverso; ou ainda sendo obrigado a ceder seus necer lá , enquanto eram severamente excluídos das hor-
campos aos rebanhos dos nômades antes de poder recha- tas e das vinhas. Além disso, a fronteira entre ager e sal-
çé-los. Da Síria à Espanha ontem, do Baixo Ródano ao tus permanece sempre singularmente indefinida e móvel:
Neguev e a Assuã hoje, os gra ndes sucessos da agricultu- menos clara, pelo menos, do que a que separa a zona de
ra mediterrânica encontram-se sob o signo da domestica- horticultura intensiva que rodeia a cidade do resto das
ção da água e do trab alho minucioso de todo um povo de terras, ager e saftus reunidos, e que opõe a "região cheia"
horticultores atentos. Mas continuam sendo exceção: mes- à " região vazia" , Ela traduz a fragilidade de um equilíbrio
mo carregando a marca de sua intervenção, tão freqüen- ecológico ameaçado por qualqu er aumento de população,
temente destruidora quanto benéfica, o homem está au- Ameaçada antigamente - e ainda hoje a cada verão -
sente da paisagem. Está ausente dos campos de trigo e pela destrui ção cata strófica de um manto florestal, em
carneiros de CasteIa, do Tavoliere, da Apúlia e da Tes- parte fóssil, que fixava uma fina camada de húmus, logo
sália. Das grandes extensões florestais ou cascalhentas, arrastada pela erosão. E, diante dos nossos olhos, pelo
das montanhas e das altas pastagens de verão, onde só se desenvolvimen to das aglomerações do litoral, pela polui-
encontra como nômade. Se conseguiu, bem recentemente, ção industrial e pelo esgotamento das reservas de água,
arreba tar da malária as planícies litorâneas, não lhe Rapidam ente, o homem atinge os limites de uma ter-
da de forma alguma insta lar-se naquela região, e deixa ra à qual se habituou a pedir pouco. Para ele, o importan-
suas pra ias para outros . Con tinua a residir em outros lu- te é certamente sobreviver ali; mas. antes de tudo, é ali
gares, em suas cidades e grandes burgos de casas com- poder viver em sociedade e comunicar-se com outros ho-
primidas, com seus cinturões de vinhas, pomares e hor- mens. Muito mais do que ao clima , à geologia ou ao
tas (o ruedo, a roda, diz-se na Andaluzia). A pa rtir do relevo, o Mediterrâneo deve sua unidade a uma rede de
momento em que se afasta, seu domínio sobre os campos cidades e vilarejos precocemente constituída e notavel-
afrouxa-se: evitará passar lá mais do que o tempo neces- mente tenaz: é em redor dela que se constrói o espaço
sário para os tra balhos agríco las e, mais ainda, evitará mediterrânico, é ela que o anima e o faz viver. As cida-
viver ali. Camponês por necessidade, mas camponês ape- des não nascem do campo, mas o campo das cidades , às
sar de si próprio, o medi terrânico é urbano. quais ele mal consegue alimentar . At ravés delas proj eta-
Os cont rastes da paisage m exprimem essa hierarquia se sobre o solo um modelo de organização social, cujo
concêntrica de interesses, a desigualdade da ocupação do esquema todos os mlgrantes. forçados ou voluntár ios, ten-
solo, as oscilações da exploração. De um modo geral, a tam reproduzir em toda parte. Nômades, estabelecerão
mesma divisão do terreno permaneceu válida desde Roma seus acampamentos de acordo com regras imutáveis. Se-
até nossos dias. De um lado, a zona dos campos cultiva- dentários, fundarão uma cidade, sempre a mesma. Assim
dos, o ager. De outro, a terra inculta, mistura de árvo- fez a Grécia em seu domínio colonial, e depois no mundo
res e erva fina, de matas e pedras, domínio dos carvoei- helenístico. Assim fez Roma, que repetiu monotonamente,
ros, dos pastores e dos animais domésticos ou selvagens, o de uma extremidade à outra de seu império, um plano
saftus. Mas o próprio ager exigia longos períodos de repou- esteriotipado de campo militar, com as mesmas ruas que
so e voltava a pertencer, um em cada dois, ou dois em se cruzavam em ângulo reto, o mesmo fóru m, os mes-
cada três anos, aos carneiros que, mal acabava a colheita, mos monumentos que, a seus olhos, constituíam uma ci-
invadiam os restolhos , e tudo o que queriam era perma- dad e. Assim foi também com o Islã, nada exprimindo
132 o ESPAÇO E A HISTORIA NO MEDITERRANEO ESPAÇOS 133
melhor esse poder criador e organizador da cidade que uma hierarquia aliás bem complexa, já que leva em conta
estes oásis, estas huertas que a rodeiam e que sem ela não não somente o número da população, a atividade econô-
existiriam. mica, o capital acumulado, mas também a história, o con-
De Damasco a Valença, do Iêmen a Elche e Alicante, junto de monumentos, o prestígio, o papel político e ad-
podemos seguir, por trás da semelhança de técnicas de ministrativo (que estabelece as elites), a vida intelectual
irrigação, o caminho de duas tradições que organizam a e um não-sei-quê que toma uma cidade mais cidade do
partilha das águas e fundam dois tipos de sociedade, uma que a outra. E as grandes cidades adoram desprezar as
aristocrática, outra mais igualitária. Numa, a proprie- menores, considerando-as simples aldeias, e a seus ha-
dade da água, distinta da propriedade da terra, garante bitantes grosseirões pouco esclarecidos. No entanto, o
o domínio sobre os agricultores daqueles que a detêm e vilarejo mais modesto apresenta-se como um microcosmo
vendem seu uso. Noutra, ao contrário, a água é um direi- urbano: ali, toda vida social organiza-se em função do
to gratuito dos proprietários das terras irrigadas. que se grupo. No Mediterrâneo, falar da cidade é, portanto, falar
agrupam em comunidades capazes de assegurar a conser- de todas essas etapas da vida urbana, originadas todas
vação das barragens e dos canais, e de arbitrarem seus elas do mesmo modelo.
próprios conflitos: toda quinta-feira. os juízes do Tribu- Historiadores e geógrafos deram centenas de expli-
nal das águas fazem valer, diante do portal dos Apósto- cações para essa permanência da organização grupal e
los da Catedral de Valença, uma justiça rápida e eficaz. para a escolha dos sítios - por vezes privilegiados, mas
Toda conquista, toda diáspora tende a repetir em de- na maioria das vezes ainda inóspitos - onde aquela se
zenas de exemplares um modelo de sociedade urbana, e fixou: a água e o sol, as vias terrestres ou marítimas, a
ao mesmo tempo a explicitar o que era, no início, implí- qualidade de um porto ou de um vau, mas também a
cito. Grande ou pequena, a cidade é bem mais do que a falta de segurança das costas e a insalubridade das pla-
soma de suas casas, de seus monumentos e de suas ruas, nícies pantanosas. De fato, cada uma dessas razões con-
bem mais também do que um centro econômico. comer- tribuiu, mas num sentido oposto.
cial ou industrial. Projeção espacial das relações sociais, Invasores vindos pelo mar, os gregos expulsaram
ela é, ao mesmo tempo, atravessada e estruturada pelo para o interior as populações locais da Itália meridional
feixe de linhas limítrofes que separam o profano do sa- e da Sicília, que solidamente ocuparam e colonizaram sem
grado, o trabalho do lazer, o público do privado, os ho- jamais se afastar; mas, sempre que puderam, escolheram
mens das mulheres, a família de tudo o que lhe é estra- sítios fáceis de defender, como os de Siracusa e 'Tarento
nho. E oferece um admirável quadro de leitura. _ uma ilhota separada do continente por um estreito
Onde viver? Nunca só, mas em grupo, quaisquer canal. Segura de si e de sua paz, Roma só muito tarde
que sejam o tamanho e a riqueza deste. Mil homens vi- descobriu que era preciso cercar de muros as suas cida-
vendo pobremente da terra e da troca dos produtos do des para enfrentar um invasor que ela não previra. Em
solo são suficientes, no Mediterrâneo, para formar uma terras islâmicas, a conquista árabe fez a fortuna das gran-
cidade, para reconstituir as solidariedades e as des escalas de 'caravanas, abertas a todo o tráfego terres-
essenciais: em outras partes, mesmo duas vezes mais nu- tre, mas afugentou para as montanhas, promovidas à
merosos, mal formariam uma aldeia. Dos simples burgos tegoria de refúgio, os berberes do Maghreb e os marom-
às metrópoles, percebemos claramente todas as escalas de tas do Líbano, e, para os picos rochosos, a uma distância
134 o ESPAÇO F. A HISTóRIA NO MEDlTERR),NF.O ES PAÇOS 135
prudente das margens, as populações cristãs do litoral rlada, no momento da colheita. Estacionados nas gran-
mediterrâníco. A conquista turca irá fazer a mesma coisa, des vilas do íati íondo, ou estabelecidos nas colinas e
alguns séculos mais tarde, nos Balcãs. Há cerca de cem montanhas, complementam desta forma O rendimento
anos, o desenvolvimento econômico e a colonização 5U· sempre insuficiente de suas terras, onde desenvolvem
perpuscram ao antigo núcleo de aspecto ainda medieval, culturas destinadas à venda: vinha, oliveira, amoreira, âr-
com suas ruelas estreitas e tortuosas, uma cidade nova vores frutífe ras. Seu gado: no máximo, alguns carne iros
com avenidas largas e planta regular. confiados ao pastor da comunidade, um animal de tração,
Desta forma, cada civilização deixou sua herança jumento ou mula, preciosamente abrigado em casa junto
urbana, contribuindo para a definição do contexto em com as galinhas - que na cidade são criadas nos terra-
que os homens continuam a viver ainda hoje, em meio ços, ou, como em Nápoles, no bairro de Monte di Dia,
às restrições do passado, mesmo quando as condições que na rua, a pata amarrada com uma corda. O material agrí-
presidiram a sua criação deixaram de interfer ir. A evo- cola: o arado e a enxada, a pá e o alvião, alguns tonéis,
lução recente privilegiou as aglomerações do litoral em alguns potes para armazenar o azeite e os grãos, nada que
detrimento do interior, vítima de seu isolamento, e inchou atravanque tant o a ponto de não se poder guarda r tam-
de forma espetacular as grandes concentrações portuá- bém sob o mesmo teto.
rias, testemunhas tanto do êxito econômico como da mi- A vila ou cidade é o lugar onde se trocam os produ.
séria dos campos, ou de ambos: Beirute, Alexandria, tos e onde se vende o trabalho, antes do amanhecer, ao
Atenas-Pireu, Nápoles, Palerma ... Mas as aldeias de co- capataz da grande propriedade, vindo especialmente para
Ionização, criadas no centro da Sicilia pela reforma agrá- contratar a mão-de-obra de que necessita. Part e-se pela
ria para arrancar os camponeses de suas agrovilas, sím- manhã, volta-se à noite para dormir. Tanto na Espanha
bolo da força de inércia do laujondo, e aprox imá-los das quanto na Itália do sul, a lei medieval que estabelecia a
terras que acabavam de ser distribuídas entre eles, per- duração da jornada de trabalho "do amanhecer ao pôr-
maneceram desesperadoramente vazias. Aliás. desde o do-sol" precisava muitas vezes que o bracciante deve-
século XVllI, o rápido desenvolvimento das plantações ria estar em seu local de traba lho desde o nascer do sol
de cítricos nas planícies da costa calabresa ou siciliana, - deveria portanto ter percorrido o trajeto de ida du-
que voltaram a ser seguras, pôde fazer com que a popu- rante a noite - , mas estar de volta no crepúsculo - logo,
lação das colinas descesse em direção à marine, mas sem deveria fazer o trajeto de volta du rante o dia, às custas
provoca r a menor desagregação do habitat : um desdobra- do patrão. Quando, na época das safras, das vindimas ou
menta do lugarejo empoleirado inicial que, freqüente- da colheita de azeitonas, a urgência dos trabal hos e a
mente, continua a existir. distância do domicílio impedem a volta dessas legiões de
O peso das estruturas sociais e das técnicas agríco- migrantes temporários, geralmente vindos de muito longe,
las explicam o vazio persiste nte dos campos. Excetuando eles dormirão até no chão, em pleno campo, ou abrigados
as hortas, vinhas e hue rtas, as terras ricas, os campos de nos pátios e galpões das grandes fazendas: é o que vemos
trigo das planícies e dos planaltos, pertencem 80S grandes no romance de E. Vittorini, La Garíbaldína, O pequeno
prop rietários que delas expulsaram, diversas vezes, os prop rietário terá sua cabana num canto da vinh a ou da
camponeses, quando estes pretenderam nelas se instalar. horta para ai guardar algumas ferramentas ou para poder
Os camponeses s6 apa recem. como mão-de-obra assala- repousar à sombra na hora da sesta. Os mais favorecidos
136 o ESPAÇO E A HISTOR IA NO MEDfTERR),N EO ES PAÇOS 137
possuirão moa segunda residência, ond e virão se instalar de búfalos, qu eria começar a trabalhar às sete e parar às
du rante o verão - uma campagne, como se diz na Pro- cinco e depois ficar Iivrc ... De noite, queri a estar no
vença para indicar que não passa de uma habitação oca- burgo (aI paese): lá, mesmo se a gente não tem d inheiro,
sional - , um pouco como os ricos, que se reservam o basta olhar ao redor da gente para se instruir," Seu de-
direito a urna casa de campo em seus mas ou que cons- sejo nos parece par adoxal, vindo de um homem que se
troem um "castelo" em suas terras para fiscalizar seus beneficia de um trabalho anual, enqua nto a regra é o
empregados. Mas a casa principal, aquela que fundamen- emprego temporário ou a d ísoccupo zíone: tomar-se um
ta o prestígio social, continua sendo a da cidade, onde simples diarista e "levar seu pagamento para casa todo
se passa a maior parte do ano e os períodos de recesso nos sábado à noit e ... Ter um pouco de dinheiro para ccns-
trabalhos dos campos. truir uma casa". da qua l, em caso de conflito, o proprie-
Entretanto, o campo nunca está completamente va- tário não poderá expulsá-lo. E "um pouco de terra para
zio. Mas aqueles que nele vivem durante todo o ano pas- plantar uma horta", Enfim, já que é necessário trabalhar
sam por excluídos, senão por párias. São os pastores que para um patrão, cavar, plantar, mas não mais ter que
vivem à margem da regra comum. O pessoal permanen te cuidar de animais que não dão nenhum descanso.
das grandes fazendas, mas e bastides da Provença ou do São sonhos simbólicos e não simples reivindicações
Languedoc, cortijos e haciendas da Andaluzia, massaríe materiais. Uma casa própria : a independência. Uma hor-
do sul da Itália ou da Sicília: as últimas são, aliás, os ta: um lugar onde traba lhar para si e não para um patrão,
refúg ios tradicionais dos bandidos e da máfia, o suporte um certo grau de autonomia. Um salário em dinhe iro -
material de uma contra-sociedade. Ra ras ou mesmo ex- e não em espéc ie, como o é parcialmente o do boiadeiro :
cepciona is são as regiões onde o êxito recente da reforma poder gasta r, ou mesmo comprar o supérfluo antes do
agrária ou O fracionamento antigo da terra estabiliza ram necessário. Sem dúvida trabalhar: mas um trabalho que
em suas explorações um campesinato livre dos gran des e não dê à terra e ao patrão mais tempo do que eles me-
pequenos prop rietários. Rendeiros, meeiros, empregados recem. e que conceda tempo livre para a participação na
rurais, até há pouco escravos: residir fora da cidade é vida do gru po. "Instru ir-se" : não ser mais um grosseirão,
servir a um senhor, sendo portanto sina l inegável de um catone. E sobre tudo viver no meio de homens e
dependência. não de anima is: é a única maneira de ser um homem e
Nada resume melhor as resistências que seria preci- de se sentir como tal. Cond ição necessár ia, mas não su-
50 - ou que teria sido preciso - superar do que as ficiente.
confidências de um pastor de búfalos de uma massarie Pois se a cidade, lugar das trocas, do lazer e de toda
da planície de Paestum , recolhidas por volta da 1950 por a vida social, opõe-se nitidamente ao campo, lugar do tra-
Rocco Scotellaro : "Quan do estou cuida ndo dos búfalos, balho, da vida animal e da produção de bens materiais,
fico pensando em todas aquelas pessoas que estão pas- ela não constitui um espaço simples, homogêneo, onde
seando ... Em todos aque les que estão no bar, tornando bastaria entrar para se tornar um cidad ão, mas sim uma
uma laranjada, um café e ainda tant as outras coisas, e imbricação estreita de espaços organizados segundo re-
naqueles que vão ao cinema todas as noites . .. Ou an- gras não escritas, e ainda mais rigorosamente respeit adas.
to a mi m, queria tantas coisas, não queria mais ter que Essas regras, legíveis em cada etapa da vida urbana, de-
cavar, não mais me matar de cansaço, não mais cuida r finem a complexidade de uma cultura,
138 o ES PAÇO E A HI STÓR IA NO M EDl TERR ),NEO ES PAÇOS Ilq
o urbanismo moderno nasceu no Mediterrâneo, na à sua construção. Daí também o valor sagrado da soleira.
Grécia do século V. com Hippodamos de Mileto, inven- fronteira entre o interior e o exterior. barreira contra as
tor das plantas "em tabuleiro". Ali triunfou em todas as forças inimigas. Não é qualquer estranho que a transpõe,
épocas de estandartização cultural. onde a reprodução nem de qualquer maneira: a nova esposa trazida por um
sistemática de um modelo estabelecido e considerado su- parente, após ter recebido as ofe rendas costumeiras, ga·
pe rior de uma certa forma vinga-se do desenvolvimento rantias de sua fecundidade ; o hóspede , somente se é
espontâneo: a Grécia helenística, Roma , o Renascimento convidado pelo chefe da família e ap6s ter entregue uma
e a época barroca, nosso mundo con temporâneo. Mais oferenda.
do que as necessidades funciona is. haussmanianas avant Mas, mal se transpõe o umbral, outras oposições apa-
la lettre, tal mode lo p roclama ali a plena transparência recem imediatamente. Pois, radicalmente separada do
do espaço habitado pelos homens: a vit6ria da ordem mundo exte rior . a casa organ iza-se e divide-se por dentro
sobre a sombra . em uma cidade ideal estabelecida sob de acordo com regras que são iguais às dele. Só é domí-
o signo do espírito. Contudo, mesmo nessa situação nio da família e do pr ivado porque o é da mulher, ali-
limite. o esforço de esclarecime nto vem se choca r com as mentadora e reprodutora, e lugar das atividades biológi-
paredes exteriores da célula de base: a casa. Ali parecem cas essenciais, a alimentação, o sono, a procriação. Con-
se refugiar oposições fundamen tais: aquela , essencial, que seqüentemente, a presença do homem aí é estritamente
separ a o públi co do privado; mas também todas as outras, limitada. Dela está excluíd o durant e todo o dia : seu lugar
que fixam o lugar de cada um, homem, mulher ou crian- é outro, no trabalh o nos campos ou na cidade, na praça ,
ça , em relação aos outros e ao mundo. no bar, reun ido com os outros homens: no verão , to-
Casa às vezes muito simples, elementar: bas ta uma dos acharão normal que ele às vezes durma fora . Quando
peça de três por três, com uma porta como única aber- a residência, mais rica, torna-se suficientemente grande
tura, como nas cidades gregas arca icas, como em todo o para aco lher h óspedes, ela divide- se então em duas partes,
Maghreb, na Sicília ou nos bassi de Nápoles. eassim, uma ded icada à recepção, outra reservada às mulheres:
ain da hoje, a casa do pobre. Contudo, assim que é pos- o gincceu da Grécia clássica - o espaço feminino, sepa-
sível, a casa aumenta, multiplica-se, anexa um espaço rado do espaço dos homen s, o andron; o harém - o
fecha do - a zariba ára be -t-, desenvolve-se ao redor de sagrado, o interdito - no mundo muçulma no. Divisão
um pátio interno - atrium ou cortile das residências pa- fundamenta l que se encontra até nas tendas dos nôma-
trfcias -r-, protegido de olhares indiscretos. Crescem mais des, onde uma armação sepa ra os dois espaços. Funcio-
em superfície do que em altura: desde as insulae romanas, nai na medida em que exprime rígida divisão das tarefas
a construção em altura, como em nossos edifícios mode r- masculinas e feminina s. essa barreira também contém
nos, sobrepõe espaços distintos . Pois a casa responde sem- símbolos.
pre à mesma necessidade: não somente reunir sob o mes- Ao analisar a casa cabila como um texto car regado
mo teto a família e seus bens materiais, inclusive os ani- de sentido, em que cada palavra remete a uma outra e
mais, mas separ á-la nit idamente da região exterior e as- s6 existe através dela , P. Bourdieu mostrou a complexi-
sim defender esse bem essencial, superior a todos os dade do sistema de opos ições e homologias que fazem
outros, que é a honra do grupo famili ar e de seu chefe. dela um microcosmo, mas um microcosmo invertido:
Está aí a motivação dos ritos propiciat6rios que presidem pois. se a casa é normalmen te voltada para leste, a IU 1
140 o hSPAÇO P. A HI STORr A NO MCDfTF:RR Â NF.O ESPAÇOS 141
que entra pela porta vem iluminar a parede do fundo a divisão de tarefas e o papel da mulh er , a família e a
que, exteriormente, volta-se para oeste , e a parede da honra , a hierarquia das solidariedades.
porta torn a-se, interiormente, a parede da escuridão - Divisão de tarefas: defin indo-se em relação à mu-
contra a qual se deita o doente. A lógica da língua , que Iher, o homem não inter vém nos domíni os q ue a ela são
designa as duas faces (externa e interna) das paredes de reservados. A reprodução bio lógica: ser fecund ada, dar
modo diferente, estabelece essa inversão dos pontos car- à luz, criar, edu car e toma r conta das crianças; das filhas,
deais no interi or da casa: a prim eira , " rebocada a trolh a até seu casamento, que pe rmite ao pai. ou, em sua ausên-
pelos homens", a segunda "ca iada e decorada à mão pe- cia, aos irmãos, confiar - finalmente! - sua responsa-
las mulhere s" . À esq uerda de quem entra - de costas para bilidade a um outro homem ; dos menin os, até a idade,
o sul; logo. na verdade, orientado para o nort e - o es- muitas vezes precoce (sete anos - a ida de da circunci-
paço dos animais. A direita, elevado e sepa rado em rela- são - tanto no Maghreb de hoje q uanto na Atenas clãs-
ção ao precedente por uma pared e de meia altura , o sica), em que começam a viver entre os homens. A ma-
espaço dos hum anos: no centro da parede da di reita ou nutenção da casa e a preparação dos alimentos, no sen-
parede do alto, o fogo (kanun), cercado de instru mentos tido amplo : não somente limpar e cozinhar, mas também
de cozinha e de reserva s aliment ícias: mas o grão desti- fazer o pão , ir buscar água e madei ra , toma r conta das
nado à semeadura será conservado na parte escura. a aves de cri ação. Finalmente, onde O artesana to doméstico
parede do fund o. em frente à entrad a, o tear, d iant e do (atestado já por Homero) resistiu à econom ia de merca-
qual se recebe o convidado c expõe-se a jovem esposa. do, fiar a lã e tecer os trajes do grupo familiar: como
Desta forma , todo O espaço interior arti cula-se em torn o acabamos de ver, o tear ocupa um lugar de honra na casa
dessas oposições entre sombra e luz, noite e dia , alto e cab ila. Tudo isto não exclu i, naturalmente, as conversas
baixo, feminino e masculin o. Assim como a morte, a fe- com as vizinhas, nem o falatório na fonte, lugar tradicio-
cundidade da mulh er concem e à natureza; já a atividade nal da sociab ilidade femin ina e ponto de pa rt ida para
sexual do homem situa-se do lado da cultura. Do mesmo muitas br igas e conf usões. nas quais os homens, resigna-
modo que o pilar principal da casa - um tronco de ár- damente, são obrigados a intervir. em tampouco exclui,
vore bifurcado - é feminino e representa a esposa, fun- quando falta mão-de-obra ou quando há urgên cia, a par·
dação também estreitamente ligada à terra, a viga mestra tlcipação nos trabalhos dos campos, ajudand o o marido
é masculina c identiflca-se ao senhor, protetor, defensor ou os irmãos, ou em eq uipes femininas recrutadas para
e fiador da honra familia r. alguns trabalhos precisos: assim. todo ano as operár ias
Esta leitura minuciosa de um caso limite revela a vêm em grupo de Messina ou da Calábria até Cat ênla
lógica latente de regras e comportamentos que, de fora. para colher frutas cítricas e azeitonas, devidamente diri-
tendemos tão mais simplesmente a justapor, sem ligá-los gidas pelas velhas ou por um homem do grupo. Mas
ou compreendê-los, quanto mais eles se apre sentam em es- essas atividades exteriores ao lar permanecem , de um mo--
tado fragmentário. em um mundo mediterrânico fraci o- do geral, como exceções.
nado e aba lado pela violência unificadora da moderniza- Esta divi são do trabalh o que reserva aos homens o
ção. Testemunhos residuais de um passado considerado, essencial dos traba lhos agrí colas e às mulh eres a total i-
por falta de um termo melhor , arcaico , diante do qual dad e das tarefas domésticas bastaria por si s6 para jus-
precisamos fazer esforços para reconstituir sua coerência: tificar a permanência delas em casa . Na maiori a dos pai-
142 o eSPAço I: A HI STóRJA NO MEDfT ERRÀNEO ESPAÇOS 143
ses rnediterr ânlc os, n cultura transforma essa pe rman ên- ciam um pa redro, normalmente mascu lino, divindade de
cia em uma obrigação, em um dever . mudand o seu sen- segundo plano condenada a morrer e a renascer a cada
tido. A partir do século XV II , a clau sura da s mulher es ano como a vegetação.
veladas, escondidas. invisíveis para o visitante. torna-se Senhora do ciclo do nascimento e da morte, a mulher
um tema quase banal de qua lquer narr ativa de viajan- mantém uma relação privi legiada com as potências subter-
tes europeus que atravessam a It ália do sul, os Balcãs râneas. Freqüentemente excluída dos edifícios religiosos
otomanos, o Oriente Próximo e a África do No rte, tema e da s cerimônias de cult o celebradas na rua e em lugares
que perd ura até nossos dia s. A exclu são completa da vida públicos (quando aí admitida, é sempre estritamente sepa-
pública logo su rpreende imedi atamen te o ocide nta l, no
entanto habituado a ver as mulheres realizarem as mes- , rada dos homens), ela reina nos cemitérios, onde tem o
privilégio de ir sozinha. E ela quem lava os mortos, é
mas tarefas e viverem no mesmo estatuto de irrespon sa- ela quem intercede junto a eles. Atestadas desde a Anti-
bilidade política e civil. A seus olhos, ela indi ca um dado güidade grega e latina, condenadas em vão e, na maioria
de civilização qu e é identificado muitas vezes - e erra- das vezes , toleradas pela Igreja, as ca rpide iras são pa rte
damente - ao Islamismo : o mesmo acontecia na Grécia integrante do ritual tradicional do enterro e da homena-
do século V. Se a mulher deve realm en te permanecer em gem aos mortos. Ainda é possível vê-Ias no Maghreb, na
casa - "Tua casa é teu túmul o ", diz o provérbio ca bila Sicília e na Calábria, onde a mulh er mais idosa da famí-
citado por P. Bourdieu - , é, sem dú vida , menos em lia conduz as lamentações do dia dos mortos, Ei-las, ainda
nome de uma inferioridade, real mas de rivada - sabe- ontem, em Montenegro , descrit as pelo abade Forti s em
mos do pod er que ela pode ad qu iri r com a idade, e da sua Carta... sobre os usos e costumes dos morlacos
duradoura a uto ridade da mãe sobre seus filhos - , do que (Berna, 1778) . " Na igreja ( . . . ) os parentes do morto e
devido a um a es pecialização qua se míti ca das fun çõe s. Sua as carpideiras alugadas cantam sua vid a num tom lúgu-
fecundidade a tran sforma em instrumento de continuida- bre . . . Durante o primeiro ano apó s o enterro de um
de famili ar , e portant o em de positária da honra masculi - parente, as mulheres morIacas vão, pelo menos nos dias
na - honra qu e pod e ser ferida at é por um simples olha r. de festa fazer nova s lam entações junto ao túmulo, co-
Ela concede ao s homen s um poder consta nte de vigilâ n- brindo-no de flores e ervas odorífer as. Se a necessidade
cia , de exclusão, de castigo : o d ireito - ou a ntes o dever as obriga a faltarem a esse dever, elas de sculpam-se junto
- de vida e morte, reconhecido e mesmo imposto pela ao morto falando-lhe co mo se estivesse vivo ( .. . ) Pe-
tradição ao ma rido , ao pai e 80S irmãos. dem-lhe nctfcias do ou tro mundo, e muitas vezes dirige m-
Mas , ao mesmo tempo , esta fecundidade é reconh e- lhe perguntas bem singula res . Os hom en s, por sua vez,
cida, va lorizada, exaltada como um poder misterioso e mal enterram o morto e já vão banquetea r na casa do
mágico , alternadamente protegido e ameaçado por um defunto!'
conjunto de ri tos destinados a de fend ê-la, a sus pendê:la A dupla valorização da castidade e da fecundi da de
ou a abo li-la : é um prêmio de combate , e também ob je- femininas refo rça o caráter sagrado e secreto da casa,
to de culto, como em todas as antigas religiões mediter- cujos lim ites geográficos confundem-se com os da .
rânicas da Mãe Terra - a Arternis de Efeso de múltiplos Nossas sociedades européias adotaram o modelo arístocra-
seios, a Deméter grega e sua fil ha Prosérpina . raptada I: tico da honra , concebida como uma relação mais da pes-
esposada por Had es, a Ccres romana -r-, a quem asso- soa consigo mesma do que com o outro, corno um valor
144 o ES PAÇO li li m STORI A NO MEIJfTF.t<RANEO ESPAÇ O S 145
moral por definição inatacável a partir do exterior e acei- lhas do tio paterno - , permite impedir o fracionamen to
taram que este fosse realmente reservado às classes e a dispersão dos bens do grupo. Tomar mulheres: de
periores. No Mediterrâneo, a honra tem o mesmo valor linhagens vizinhas pela violência ou pela autoridade re-
para o conjunto da sociedade, tanto para os pobres como força a honra do grupo, cedê-las a diminui.
para os ricos, e mesmo mais para os pobres do que para Esta tradução espacial das relações familiare s tem
os ricos: é o úni co bem que resta àqueles que nada pos- suas front eiras redesenhadas e reforçadas, em prazos re-
suem. Ela adquire aí um sentido concreto, objetivo . e gulares, pela filiação patrilinear . A cada geração, as mu-
aparece associada a um certo número de critérios mate- lheres casadas fora do grupo agnato são, assim como seus
riais hem definidos, especialmente à castidade feminina . descendentes, excluídas da linhagem. À imprecisão dos
À imagem das paredes da casa, a honra é percebida co- limites do parentesco, geradora de instabilidade social, a
mo um muro, como uma bar reir a: "Um biombo que se- linhagem pode então opor o rigor de seus contornos, ao
para", escreve a respeito do mundo árabe 8i chr Feres, mesmo tempo materiais - um conjunto de bens, um "ter-
"aquele que o possui do resto dos humanos . .. uma bar- ritório" - e imate riais: a hierarquia das solidariedades
reira que protege o indivíduo ou o grupo dos ataques ex- que fixa o lugar de cada um no interi or do grupo , o
teriores." Identifica-se, assim, a um espaço e ao grupo auxílio que cada um deve e que lhe é devido. Tal hierar-
que nele vive: valor passivo para as mulhe res, ativo para quia define um eixo temporal único, cuja continuidade
os homens, está sob a respo nsab ilidade do chefe de Ia- só pode ser garantida pelos filhos, e fund a a predomi-
mília, que deve protegê-lo cont ra qualquer ataque - pois nãncia do mundo masculi no sobre o mundo feminino.
estaria invari avelmente perdido -t--, é um dever mais c0- Predominância que ultrapassa os limites do Islã, esten-
letivo do qu e inclividual. Só assume esse cará ter pessoal dendo-se ao conjunto do Mediterrâneo, por razões aliás
nas sociedades cr istãs basea das no casal e não na linha- bem comple xas: a herança de Roma que faz com que
gem, o que nos remete, ainda neste caso, à família . as família s patrícias italianas da Renascença, mesmo saí-
Melhor estudado pelos etnólogos, é mais uma vez das do comércio, voltem a adotar a velha regra do fidei-
o Islã que fornece os exemplos mais completos. Tal como comisso; a tradição particular da Igreja oriental,
a sociedade da Roma antiga, baseada na gens, a socíe- submete mais rigorosamen te o casamento das moças a
dade muçulmana reprodu z de fato a estru tu ra patrilinear autorização parental; a exacerbação do sentimento de
das linhagens agnatas, que ela amplamente conservou de honra, a partir do contato com o Islamismo, como na
suas origens beduínas: estr utura que ela deve conciliar Castela medieval. De certa forma, em toda parte, o es-
com a lei corânica, que atribui às jovens uma parte da paço público é reservado prioritariamente ao homem. Di-
herança. Onde quer que um Estado forte e hierarquizado reito e dever ao mesmo tempo , aliás, pois ele s6 pode ser
não tenha conseguido impor-se de forma durável , seu homem na medida em que se coloca sob o olhar dos ou-
equilíbrio políti co repousa sobre aquele que se estabelece tros, desafiando-os e enfrentando-os.
entre estas linhagens. Cada núcl eo familiar int egra-se por- Esse espaço público da cidade, onde ele deve apa-
tanto em um conjunto mais amplo, que se defin e como recer, tem, por sua própria natu reza, uma dup la defini-
um espaço fechad o que submete a troca de mulheres a ção. Em relação à casa, lugar do repouso e do sono, mas
regras rigorosas: apenas uma estrita endogamia, que dá espaço fechado, pr ivado , feminino, proibido e a ser de-
preferência às "primas par alelas patrilaterais" - as fi- fendido. Em relação à região plana , à "região vazia" do
146 o ESPAÇO li A H/STORfA NO MEDITERRÂNEO 1 ESPAÇOS 147
campo, espaço aberto, mas luga r de trabalho e da natu- Du brovn ic - Placa - . que se estende de uma porta a
reza. Impõe-se, portanto, como o espaço da ação sem outra da cidade e a divide em duas. E o lugar dos encon-
trabalho: lugar do ri tua l e da festa, do gesto e do espe- tros e do palavr ório, das assembléias dos cidadãos e
táculo, do lazer e dos jogos. das manifestações de massa, das decisões solenes e das
Lugar do ritual: não existe cidade sem fundador execuções .
real ou mítico, herói ou santo. Sem um centro ao mesmo Originariamente simples lugar de reunião, ela logo
tempo político e religioso. Sem um limite que, à imagem se cerca de pórticos e arcadas, de abrigos contra o sol
do pomerium romano, separe-a nitidamente do campo e e contra a chuva. Só excepcionalmente acolhe o mercado,
coloque-a sob a proteção divina. Sem uma orientação mas reúne ao seu redor os principais monumentos reli-
claramente legível: a de sua planta, quando regular, de • giosos e civis, aos quais serve simultaneamente de ante-
seu cardo e de seus decumanus. que se cortam em ângulo câmara e proscênio: o templo de Roma e de Augusto e
reto; a de seu eixo de desenvolvimento; a das rotas que a cúria, a catedral e o antigo palácio do podestade. Ela
lhe deram origem e que terminam em suas portas, mas exprime o êxito material e político da cidade. A partir
que a ligam através dos campos, do deserto ou do mar I do momento em que esta cresce, as praças multiplicam-
a outras cidades; a do altar- mor de suas igrejas ou da se e especializam-se. Abaixo da Grande Praça, esboça-se
direção da oração. Toda cidade tira seu sentido e sua toda urna complexa hierarquia que reproduz a da vida
realidade de um sistema de referências. social: uma praça para cada bairro, para cada comuni-
Seja sua planta geométrica ou espontânea, a cidade dade étnica ou religiosa; uma praça ainda para cada fun-
é organizada em função dos intercâmbios entre os homens: ção, mercado, culto, assemblé ia, festa; uma praça com
e em função de intercâmbios de signos e símbolos mais as dimensões de uma rua - um corsa - ao longo da
do que de bens. Raramente o importante é a rua, lugar .) qual alinham-se as casas dos ricos e as lojas de luxo. onde
de passagem estreito e atravancado, que as casas sempre desfilam as procissões e cortejos; finalmente, cada praça
procuram anexar como se fosse um pátio: basta pôr al- tem seu colorido, aristocrático ou popular. Mas sempre
gumas cadeiras para fora para que o barbeiro possa fa- basta, no menor vilarejo, um estreito espaço perto da igre-
zer ali a barba de seu cliente, para que as crianças façam ja ou da prefeitura, de um bar, de algumas árvores ou
suas lições e brinquem, sob o cuidado das mulheres que de um pouco de sombra para que os homens lá se reú-
costuram ou tricotam. O verdadeiro centro da vida so- nam e façam a praça viver.
cial situa-se em outro lugar . na praça, onde desemboca a destino orig inal das cidades muçulmanas produziu
toda essa circulação caótica e confusa das ruelas. Sem- um agenciamento diferente do espaço, aniquilando as
pre melhor defendida contra a invasão dos estranhos, funções da praça. Nenhum outro lugar de reunião dos
enquanto subsistir uma vida coletiva será o domínio pú- homens, no centro da cidade, além da mesquita e
blico por excelência, uma constante do urbanismo medi- pátio. rodeada de medreses, de hans e de banhos. Ah
terrânico, desde a ágora grega e o fórum romano. Plaza são anunciadas as decisões do poder e recitadas as preces
Mayor, cenário obrigatório e muitas vezes faustoso das
cidades espanholas. Praças estreitas, comprimidas ao re-
'j em nome do soberano. A vida comercial instalou-se nos
suks e nos bazares; mas outras praças, sem dúvida maio-
dor do portal nas ilhas gregas. Praça da Senhoria ou da res, desenvolvem-se às portas da cidade, onde as carava-
Comuna das cidades da ltália média. Grande praça de 1 nas chegam e descarregam-se os camelos.
148 o ESPAÇO E A H/STORfA NO MEDlTE:RRANEO ESPAÇOS 149
Ruelas, ruas e praças traçam assim o espaço do lazer. como já o era na Atenas de Péric1es no auge de sua pros-
Lá, o grupo oferece-se em espetáculo e observa-se a si peridade artesanal e comercial, dominam os valores da
mesmo. Os homens que andam. falam e se demoram, não ociosidade: o trabalho é para os outros, senão sempre pa-
estão ali para trabalhar. Saíram à noite com seus barcos ra os escravos. E a única atividade cujo espaço é reco-
de pesca, passaram o dia no campo. Ou, como tantos nhecido em todas as cidades - o comércio, o intercâm-
mediterrânicos, trabalham apenas de forma irregular, al- bio dos bens - tende a viver neste ritmo de lazer. Sabe-
guns dias por ano, esperando um emprego hipotético. Ou se que não há qualquer interesse em concluir um negó-
ainda, e cada vez mais nos dias de hoje, têm atrás de si cio com muita rapidez. Vender e comprar, ganhar ou per-
uma vida de traba lho na América, na Alemanha, na Ve- der , isto parece passar para o segundo plano em relação
nezuela ou na Austrália, e voltaram para terminar seus ao prazer da barganha, da discussão indefinidamente pro-
dias junto aos seus. O tempo da cidade pode assim im- longada, interrompida e retomada, só con.cluída quando
por seu ritmo próprio, que não é o ritmo monótono e os dois atores fazem questão de se cumprimentarem por
regular do trabalho, mas o ritmo descontínuo do silêncio terem desempenhado tão bem.
e da palavra, das longas discussões que preparam qual- No entanto, por mais que seja importante viver sob
quer decisão, que acompanham qualquer negócio e co- , os olhares dos outros, isto não poderia constituir um
mentam qualquer acontecimento. Ritmo do passeio, da objetivo suficiente. O espetáculo esgotar.se:ia em grat.ui-
passeggiata ou do paseo. O do ouzo lentamente degusta- dade se de ind ividual não se tornasse coletivo. Ele exige
do: não se entra no bar para beber, mas para assumir essas grandes representações que mobilizam o grupo por
seu lugar numa sociedade de homens. Ritmo, finalmente, completo, e que lhe permite sentir, no sentido mais com-
do jogo. de tão grande importância na vida dos mediter- pleto do termo, sua coesão: exprimi-la, verificâ-la, per-
rânícos, O jogo de cartas, do quadro de Cézanne, cena cebê-la em todo seu poder e dela extrair uma nova con-
não menos célebre de Pagnol ... Mas também o jogo de fiança. Marcam os "tempos fortes" da vida social. Eram,
damas, encontrado nas lajes do F6rum romano, os ga- na Antigüidade, o teatro , os [ogos do circo, as corridas de
nizes e os dados, símbolos do acaso desde César. Os ho- carros e os combates de gladiadores, cuja condenação pe-
mens jogarão então em todo lugar, na rua, se são po- los moralistas do Império Romano, mesmo justificada
bres, mas em geral em um lugar público, bar ou terraço, pela sua degradação, faz-nos esquecer sua origem e sua
ou, quando se acentuam as divisões sociais, num clube dimensão religiosa. Em nossos dias, é, em quase todo
ou círculo. Toda cidade andaluza possui seu "Círculo dos lugar, o esporte, a tourada na área espanhola, as gran-
Trabalhadores", toda vila da Sicília seu ou seus círculos des festas religiosas e cívicas ainda celebradas em certas
rivais de galantuomíni: um lugar que sem dúvida rom- cidades italianas e que testemunham um passado recente.
pe a solidariedade social, mas onde os homens se encon- Em todos os casos, são espetáculos de homens, realizados
tram entre seus iguais, para se conhecer e se desafiar, pois , por homens c para homens.
a aposta sempre acompanha o jogo. Se o esporte, sob a forma de esporte coletivo e so-
E claro que existem cidades laboriosas e atarefadas, bretudo do futebol, pôde ocupar o primeiro lugar, é sem
Barcelona, Marselha ou Gênova, hoje tragadas pela cor- dúvida menos pelo seu valor atlético do que pelo fato
rente da economia mundial que elas outrora dominavam. de ter assumido, mesmo sob uma forma empobrecida. a
Mas são um pouco como que exceções. Em toda parte. função determinada por Aristóteles para a tragédia gre-
150 o RSPA('O f,' 11 H/SrúRJA NO MEDJT ERRÁNEO ESPAÇOS 151
ga: a pu rific ação das pai xões do espectador, levadas ao montados em pêlo , que sobrevive em Siena, era um ele-
paroxismo durant e a representação. Daí desencadearnen-
õ mento normal do palio, que se via ainda, há mais ou me-
to de violências par tidárias, que reproduzem as lutas dos nos cento e cinqüenta anos, em qua se toda parte, prin-
clãs da vida política: é impossível assistir à partida como cipalmente em Roma, no Corso .
observador neutro. pela simples beleza do espo rte. Daí Como esta, as festas do Círi os (Cerl, em Gubbio)
também a celebração da vitória como se fosse um triunfo: ou a dos Lírios (Gig/i, em Nela), onde os participantes
toda a cidade então se identifica, por um tempo aliás carregam pelas rua s umas "máquinas" de madeira que
bem curto, à sua equipe. pesam muitos quintais ou mesmo toneladas, escondem,
A tourada atua ma is sutilmen te sobre dois registros por trás do pretexto religioso da homenagem rendida ao
que se so brepõem sem se confundir: um, o aparente, de santo prot etor, um dupl o aspecto. Um, o aspecto inegavel-
uma celebração que reún e no mesmo espaço fechado da mente esportivo de uma prova física imposta aos hom ens
arena o conjunto da socieda de urbana - todas as classes jovens. O outro, polít ico e cívico: em todos os casos. a
reunidas. mas não misturadas - para assistir ao mesmo festa visa reconciliar os bairros por uma justa cujo re-
comba te, sentir os mesmos medos e exaltar o mesmo he- sultado deve renovar o pacto da fundação, unificando
rói; o outro, o da cumplicidade mais íntima que se esta - assim, simbolicamente, o espaço sempre fr ágil e amea-
belece no níve l inconsciente entre o espectador e o par çado da cidade .
forma do pelo animal e pelo homem, que o doma pela
coragem e pela inteligên cia antes de matá-lo, como se as
duas bravu ras coníronta ntes tivessem q ue se equilibrar
para justificar a morte fin al.
Mas o espetáculo ganha outras dimensões quand o
se liberta da arena ou do está dio e escolhe como palco
a própria cidade, rompend o 8 fronteira que separa atores
de espectado res e mobilizando totalmente ou em parte
a população . Era esta a função evidente da s gr andes pro-
'cissões que faziam o conjun to dos hab itantes desfilar pela
cidade, cada qual em seu lugar e em sua categori a, em
uma cerimônia ao mesmo tempo políti ca e religiosa: o
friso da s Panatcnéías fixou seu modelo clássico. Contu-
do, o exemplo do carnaval romano mostra clar amente a
fragilidade deste tipo de festa , a rapidez com que se de-
grada de celebração em simples representação, quand o o
poder o anexa a seu serviço. Ainda o encontramos, ao
mesmo tempo arca ico e pobre, mas mais perto do modelo
inicial , nas pequenas cida des do Sul da Itália. Pois a
Itália deve à multiplicidade de suas cidades uma excep-
cional riqu eza de festas coletivas. A corrida de cavalos
Este livro foi impresso
(com filmes Iomecidos pela Editora)
na Gtifkll Editora Bisordi lida.,
à Rua &nla Clara, H ( Bri J),
,$io Paulo.

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