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BENTINHO E CAPITU: ANTAGONISMOS ENTRE CONSERVADORISMO E

LIBERALISMO EM DOM CASMURRO

Bárbara M. Monteiro Albuquerque

Resumo: Firmando-se como um grande observador da sociedade a sua volta, Machado


de Assis é muitas vezes interpelado na tentativa de se entender a sociedade brasileira do
século XIX, dessa forma, esta pesquisa recorrerá a famosa obra machadiana Dom
Casmurro para analisar de que maneira conservadorismo e liberalismo protagonizaram
papéis distintos no Brasil do segundo império mais especificamente como os
personagens Bentinho e Capitu simbolizam esses dois ideais socioeconômicos.

Palavras-Chaves: Dom Casmurro, Conservadorismo, Liberalismo,

INTRODUÇÃO

Publicado em 1899, Dom Casmurro inscreve, uma vez mais,1 Machado de Assis na
história literária brasileira como um dos maiores autores do país ao loca-lo para a
dimensão dos poucos que souberam análisar a sociedade tupiniquim e suas
ambiguidades. Apresentando uma narrativa tecida a partir das memórias de Bento
Santiago, o autor cria o cenário para uma trama de amizades, ciúmes e desconfianças
sem entretanto, perder-se na construção de um enredo melodramático.

Bento, bentinho ou ainda Dom Casmurro (qualificativo adiquirido já na idade madura


do personagem), inicia sua narrativa ao rememorar sua infância e adolecência na rua de
Matacavalos ao lado da mãe, viúva e proprietária de imóveis e escravos, do tio
advogado, da prima Justina e do agregado da família José Dias . Outro importante grupo
de personagens inseridos nas reminicências do protagonista é a família modesta de
Capitu, vizinha dos Santiago. De origem humilde, Capitu crescerá ao lado do garoto
membro da elite carioca envolvendo-se em uma relação de amizade e amor com o
mesmo. Dessa relação surgirá o esperado casamento entre os dois, a mudança de
residência do casal, um filho e o sentimento de ciúmes por parte de Bentinho sobre a
mulher e seu melhor amigo Ezequiel. Nosso narrador termina sua jornada solitário e
melancólico amparado somente pelo desejo de convencer, provavelmente a si mesmo,
através da escrita de suas memórias seu vitimismo na infidelidade da companheira de
infância.

Mas engana-se quem acredita ser Dom Casmurro um simples romance piscológico
limitado a questão do possível adutério de Capitu já que a obra revela-se um terreno
fértil para consideráveis análises socioeconômicas do Brasil oitocentista, mais
especificamente do Brasil da segunda metade o século XIX como fez Roberto Schwarz
em sua obra Ao vencedor as batatas (1992). Ao relacionar literatura e sociedade
Schwarz dedica-se a análise da nossa sociedade a partir de seu processo histórico,
desvelando elementos e sujeitos importantes do cenário social e econômico do país
como o grande proprietário de terras, o escravo e o “homem livre”. Deste último grupo
1
Em 1881 o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas introduziria para muitos estudiosos o realismo
no Brasil consagrando o nome do escritor no movimento literário (BOSSI, 19..,)
social, como evidencia o escritor, nasce a figura do agregado nas relações da época
assim como a relação de favor. Outra importante relação apontada pelo sociólogo é a
discrepância entre a elite dominante escravagista e as idéias de modernidade advindas
com o liberalismo europeu que marcaram o deslocamento das concepções liberais na
sociedade tradicional brasileira.

Assim, a partir das análises de Roberto Schwarz (1992) esta pesquisa pretende entender
de que maneira conservadorismo e liberalismo manifestam-se no romance Dom
Casmurro e mais especificamente como ocorre a personificação dessas duas oposições
socioeconômicas nos personagens Bentinho e Capitu. Unidos pelo romance de
juventude, os dois personagens que se opõem em personalidade, status social, e
identidade vão levar suas diferenças para além das características individuais chegando
ao espaço das representações socias e econômicas de uma época.

Conservadorismo e Liberalismo no Brasil do século XIX

Defendendo o caráter individual do sujeito assim como o a liberdade econômica e


igualdade perante a lei, o liberalismo florescerá na Europa do século XVIII através de
pensadores iluministas como os filósofos John Locke e Montesquieu. Seus ideais foram
usados como justificadores de importantes revoluções a exemplo da Americana de 1776
e da Revolução Francesa de 1789, está ultima influenciando várias outras mundo a fora
e trazendo ao Brasil não só a família real fugida das perseguições napoleônicas como
também inspirações para a futura independência e constituição.

No Brasil esse liberalismo sedutor encontrará um país ainda de aparência colonial


formado por estruturas socias com raízes rurais (HOLANDA, 1995, p.73) e bases
econômicas fincadas em arcaicas atividades agrícolas realizadas por mão de obra
escrava. Com a chegada da família real bragantina em 1808 algumas mudanças, ainda
que sútis, são notadas no país como a permissão de atividades manufatureiras, a
introdução da tipografia e a criação de cursos superiores antes exclusivos a metrópole
(LYNCH, 2007, p. 216- 217). É nesse período também que uma abstração de liberdade
começa a tomar forma:

É nesse período que, ainda que lentamente, começou a se difundir no Brasil


uma noção moderna de liberdade, ou seja, não mais a liberdade dos antigos,
republicana clássica ou constitucional antiquária, ou de liberdade como
privilégio, mas de uma liberdade caracterizada pelos direitos e garantias
individuais, baseados em critérios isonômicos. (LYNCH, 2007, p. 217)

Mas as bases colonias e hierarquicas aqui fincadas desde o descobrimento do país


estruturaram significativamente a mentalidade de uma classe social que não aceitaria de
bom grado a transição das instituições sociais e econômicas além da possível perda de
seus privilégios para o futuro incerto fundamentado em teorias vindas de fora. Essa
classe social era composta majoritariamente por grandes proprietários tanto de terras
como de negros, e que logravam do predicado de aristocrastas. Constituiam-se do poder
herdado através do nome (transmitido ou conquistado) e do poder aquisitivo acumulado
a partir do trabalho realizado por terceiros, sem entretanto haver uma organização
empreendedora do sistema econômico como no caso dos Estados Unidos. Assim, mais
uma vez2 uma lei proposta e implementada sob pressão inglesa para inibir o tráfico de
escravos em 1850, a Lei Eusébio de Queirós, gerou nos senhores escravocratas um
sentimento de descontentamento geral e argumentos diversos para justificar a
manunteção de seus negócios:

Não faltou, além disso, o constante argumento dos partidários eternos do


status quo, dos que, temerosos do futuro incerto e insondável, só querem, a
qualquer custo, o repouso permanente das instituições. Estes eram
naturalmente do parecer que, em país novo e mal povoado como o Brasil, a
importação de negros, por mais algum tempo, seria, na pior da hipóteses, um
mal inevitável, em todo caso diminuto, se comparado à miséria geral que a
carência de mão-de-obra poderia produzir. (HOLANDA, 1995, p.75)

Outra característica relevante da aristocracia brasileira aportada aqui com a colonização


portuguesa é a ligação profunda com a religião católica que influiu regras de condutas
conservadoras e formas de ver o mundo a parti de uma ótica tradicional de costumes,
valores e relações sociais tal como a centralização social na figura da família e mais
especialmente na figura patriarcal.

Essas e outras dicotomias entre o conservadorismo e o liberalismo sobretudo no século


XIX vão gerar:

[…] dois mundos distintos que se hostilizavam com rancor crescente, duas
mentalidades que se opunham como ao racional se opõe o tradicional, ao
abstrato o corpóreo e o sensível, o citadino e cosmopolita ao regional e
paroquial. A presença de tais conflitos já parece denuciar a imaturidade do
Brasil escravocrata para as transformações que lhe alterassem profundamente
a fisionomia. (HOLANDA, 1995, p. 78)

O antagonismo socioeconômico de Bentinho e Capitu

Conhecido por todos como um exímio observador da sociedade a sua volta, Machado de
Assis percebeu com primazia as questões sociais e econômicas que se enredavam no
Brasil do século XIX, sobretudo suas hipocrisias, farsas e anseios realizando um
trabalho de desmascaramento das relações sociais de sua época:

[…] Machado de Assis evidencia as contradições que decorrem desse período


de transe social e político. Publicado no final do século XIX, Dom Casmurro
inaugura o lance seguinte à Abolição da Escravatura e à Proclamação da
República, ainda que seu plano de memória, da infância à vida adulta de
2
Em 1831 a Lei Feijó que ficou comumente conhecida como “lei para inglês ver” já propunha a
repressão da entrada de africanos escravos no Brasil e declarava livre todos os escravos que entrassem
no solo brasileiro.
Bento Santiago, transcorra entre as décadas de 1850 e 1860. O ambiente
desgastado por pressões políticas prepara as condições para que se aprofunde
em Machado de Assis a desilusão e o ceticismo que o acompanham até o fim.
A esse ceticismo adensa-se a maneira pela qual observa a sociedade e nela a
condição humana como um sistema de equívocos, espécie de circo de
marionetes onde cada um desempenha seu papel. (JUNIOR, 2019, p.87)

Logo, Machado tece em Dom Casmurro o Brasil com suas ambiguidades no qual a
modernidade vinda com as ideias liberais estrangeiras se chocara aqui com a tradição
colonial/fundiária (SCHWARZ, 1977). Dois personagens marcam essa dicotomia:
Bentinho e Capitu. Bento Santiago é filho de Pedro de Albuquerque Santiago, já
falecido e de D. Maria da Glória Fernandes Santiago, viúva e herdeira de toda a fortuna
deixada pelo marido. Ao se ver com um filho pequeno e sem companheiro, a viúva:

“vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns que pôs ao ganho ou


alugou, uma dúzia de prédios, certo número de apólices, e deixou-se estar na
casa de Matacavalos, onde vivera os dois últimos anos de casada. Era filha de
uma senhora mineira, descendente de outra paulista, a família Fernandes.”
(ASSIS, 2020, p.14)

Como faz questão de relatar nosso narrador, sua família é dententora de bens tanto
materias quanto humanos demostrando seu lugar de superioridade na ordem econômica
vigente. O nome de família também o distingue em um plano social; é marcado na sua
fala para não deixar dúvidas de sua origem.

Por outro lado, a família de Capitolina composta pelo pai Pádua e a mãe Fortunata, não
possuía sobrenome e nem posses, somente uma casa ao lado da casa de Bentinho, menor
e comprada com a “sorte grande” de um bilhete preimado. Pádua “era empregado em
repartição dependente do Ministério da Guerra. Não ganhava muito, mas a mulher
gastava pouco, e a vida era barata.” (ASSIS, 2020, p.26) Capitu, em relação a Bentinho,
figura no outro lado do território econômico, era livre mais sem recursos, tinha somente
a esperança de um futuro mais ambisioso, diferente de seu presente de “[…] sapatos de
duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos.” (ASSIS, 2020, p.23)

Bentinho era ainda, como a sociedade conservadora do século XIX, muito ligado a
figura da família e em especial da mãe, por sua vez muito religiosa. Temia sua reação ao
confessar sua vontade em não ser padre, promessa antiga da mesma. Era também,
opondo-se a figura de Capitu, cheio de temores sobre uma eventual instabilidade futura,
ideia impensável para quem sempre desfrutou de tudo; no capítulo XLIII intitulado
“Você tem medo?” Machado apresenta essa personalidade medrosa do jovem:

“De repente, cessado a reflexão, fitou em mim os olhos de ressaca, e


perguntou-me se tinha medo.
- Medo?
- Sim, pergunto se você tem medo.
- Medo de quê?
- Medo de apanhar, de ser preso, de brigar, de andar, de trabalhar…
Não entendi. Se ela tem dito simplismente: “Vamos embora!” pode ser que
eu obedecesse ou não; em todo caso entenderia. Mas aquela pergunta assim,
vaga e solta […] (ASSIS, 2020, p.69)

Percebe-se no questionamento de Capitu a impaciência frente a uma não atitude de


Bentinho, a mudança e escolha dos verbos na pergunta sobre o medo revela a pecepção
aguçada da garota em relação ao posicionamento conformista-aristocrático do amigo. A
palavra trabalhar no final da sequência é proposital, ela sabia que essa condição tomada
como necessidade não fazia parte da realidade dele. Bentinho era perpassado por esse
caráter medroso, inseguro e dependente, preferia a segurança de agir a partir dos
conselhos dos outros a exemplo das perguntas sobre o que fazer a Capitu, José Dias e
Ezequiel em relação a sua transformação em padre. Em uma primeira leitura sua
personalidade trasporta ao leitor um ar de ingenuidade, de inexperiência diante da vida,
mas nada em Machado pode ser tomado como involuntário, nem mesmo a descrição de
um personagem talvez vítima, talvez inventor da traição da esposa.

Já Capitu é traçada na obra como bela, inteligente, portadora de uma personalidade forte
e perspicácia singular além de que, apresenta-se como uma das personagens mais
racionais do círculo que envolve o narrador. Está sempre calculando sobre as situações:
“Capitu refletia. A reflexão não era coisa rara nela, e conheciam-se as ocasiões pelo
apertado dos olhos.”(ASSIS, 2020, p.31); reflete com pragmatismo sobre as
adversidades e consegue sair-se de situações embaraçosas através da encenação,
característica dos que se renovam por meio da dissimulação. As “ideias atrevidas”
também lhe caracterizaram e apresentavam uma jovem distinta para a sua época:

Como vês, Capitu aos quatorze anos, tinha já ideias atrevidas, muito menos
que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática
faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de
salto, mas aos saltinhos. Não sei se me explico bem. (ASSIS, 2020, p.32)

Com os olhos de “[…]cingana oblíqua e dissimulada” (ASSIS, 2020, p.40) a


personagem foge da figuração conservadora de uma jovem mais propensa a candura e
inocência, é antes, cigana, livre, sem amarras no pensar e astuta no agir. Capitu sem
dúvidas opõe-se a personalidade de Bentinho assim como ao seu tempo.

Mas uma leitura para além das personalidades dos dois mostra-se interessante e pode
revelar a caracterização de um Brasil dividido entre dois ideias distintos: o
conservadorismo e liberalismo. Segundo Schwarz (1992, p. 2) havia no século XIX uma
“[…] disparidade entre a sociedade brasileira, escravista, e as idéias do liberalismo
europeu”. Posto assim, Bentinho, sendo o herdeiro de uma fortuna acumulada a partir
do latifúndio, do aluguel de propriedades e de escravos, encarna bem o Brasil
conservador do segundo império ao passo que, Capitu, independente no falar e agir,
com olhos de “cigana”, personifica o que vem de fora: a modernidade ao lado do
liberalismo.
Uma vez que “era inevitável, por exemplo, a presença entre nós do raciocínio
econômico burguês” (SCHWARZ, 1992, p. 3) Bentinho, como o Brasil arcaico teme
perder seus privilégios com a ascesão desse novo raciocínio social e econômico, ao
mesmo tempo que deixa-se seduzir, semelhante a aristrocracia, com o que lhe é
diferente:

Mas, voltemos atrás. Em resumo, as idéias liberais não se podiam praticar,


sendo ao mesmo tempo indescartáveis. Foram postas numa constelação
especial, uma constelação prática, a qual formou sistema e não deixaria de
afetá-las. Por isso, pouco ajuda insistir na sua clara falsidade. Mais
interessante é acompanhar-lhes o movimento, de que ela, a falsidade, é parte
verdadeira. Vimos o Brasil, bastião da escravatura, envergonhado diante
delas as idéias mais adiantadas do planeta, ou quase, pois o socialismo já
vinha à ordem do dia e rancoroso, pois não serviam para nada. Mas eram
adotadas também com orgulho, de forma ornamental, como prova de
modernidade e distinção. (SCHWARZ, 1992 ,p.12)

Possuindo também os olhos de “ressaca”, Capitu personifica as ideias liberais, que


como o mar desperta medo e desejo no Brasil conservador representado pelo jovem:
Olhos de ressaca? Vá de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova.
Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava
para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não
ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos
cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a
onda que me saia delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-
me, puxar-me e tragar-me. (ASSIS, 2020, p.51).

Faz-se necessário pontuar que é sempre o olhar de Bentinho que descreve e percorre as
atitudes da esposa posto que toda a narrativa parte de suas percepções sobre as
personagens e situações. Não podemos assim, ignorar que a figuração de Capitu, logo a
figuração do liberalismo, é estabelecida pelo olhar conservador do marido. O exercício
do narrador é como o de uma tradução sobre Capitu assim como a elite escravagista
traduziu para a realidade brasileira os princípios liberais vindos de fora. (SCHWARZ,
1992 ,p. 7)

Os dois protagonizam a história, se envolvem, casam-se e tem um filho (ou não, uma
vez que Bentinho desconfia da traição de Capitu com seu melhor amigo) mas terminam
separados. Bentinho termina ranzinzo e só no Brasil ao passo que Capitu passa seus
últimos dias na Europa. Capitu termina, como em uma metáfora (atrevo-me a dizer), em
um lugar mais semelhante as suas ideias, no exterior, fora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS

ASSIS, M. de. Dom Casmurro. 1° ed. São Paulo: Pé da Letra, 2020. 199p.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das letras,
1995

JUNIOR, V. V. Machado de Assis e o mundo desagregado: uma leitura de Dom


Casmurro. Letras de Hoje, v. 54, n. 1, p. 85-94, 25 jun. 2019.

LYNCH, Cristhian Edward Cyril. O Conceito de Liberalismo no Brasil (1750-1850).


Araucaria, primer semestre año/ vol.9, número 17. Universidad de Sevilla. España. p.
212-234.

SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. 4ª ed. São Paulo: Duas Cidades, 1992.

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