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INTRODUÇÃO
Publicado em 1899, Dom Casmurro inscreve, uma vez mais,1 Machado de Assis na
história literária brasileira como um dos maiores autores do país ao loca-lo para a
dimensão dos poucos que souberam análisar a sociedade tupiniquim e suas
ambiguidades. Apresentando uma narrativa tecida a partir das memórias de Bento
Santiago, o autor cria o cenário para uma trama de amizades, ciúmes e desconfianças
sem entretanto, perder-se na construção de um enredo melodramático.
Mas engana-se quem acredita ser Dom Casmurro um simples romance piscológico
limitado a questão do possível adutério de Capitu já que a obra revela-se um terreno
fértil para consideráveis análises socioeconômicas do Brasil oitocentista, mais
especificamente do Brasil da segunda metade o século XIX como fez Roberto Schwarz
em sua obra Ao vencedor as batatas (1992). Ao relacionar literatura e sociedade
Schwarz dedica-se a análise da nossa sociedade a partir de seu processo histórico,
desvelando elementos e sujeitos importantes do cenário social e econômico do país
como o grande proprietário de terras, o escravo e o “homem livre”. Deste último grupo
1
Em 1881 o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas introduziria para muitos estudiosos o realismo
no Brasil consagrando o nome do escritor no movimento literário (BOSSI, 19..,)
social, como evidencia o escritor, nasce a figura do agregado nas relações da época
assim como a relação de favor. Outra importante relação apontada pelo sociólogo é a
discrepância entre a elite dominante escravagista e as idéias de modernidade advindas
com o liberalismo europeu que marcaram o deslocamento das concepções liberais na
sociedade tradicional brasileira.
Assim, a partir das análises de Roberto Schwarz (1992) esta pesquisa pretende entender
de que maneira conservadorismo e liberalismo manifestam-se no romance Dom
Casmurro e mais especificamente como ocorre a personificação dessas duas oposições
socioeconômicas nos personagens Bentinho e Capitu. Unidos pelo romance de
juventude, os dois personagens que se opõem em personalidade, status social, e
identidade vão levar suas diferenças para além das características individuais chegando
ao espaço das representações socias e econômicas de uma época.
[…] dois mundos distintos que se hostilizavam com rancor crescente, duas
mentalidades que se opunham como ao racional se opõe o tradicional, ao
abstrato o corpóreo e o sensível, o citadino e cosmopolita ao regional e
paroquial. A presença de tais conflitos já parece denuciar a imaturidade do
Brasil escravocrata para as transformações que lhe alterassem profundamente
a fisionomia. (HOLANDA, 1995, p. 78)
Conhecido por todos como um exímio observador da sociedade a sua volta, Machado de
Assis percebeu com primazia as questões sociais e econômicas que se enredavam no
Brasil do século XIX, sobretudo suas hipocrisias, farsas e anseios realizando um
trabalho de desmascaramento das relações sociais de sua época:
Logo, Machado tece em Dom Casmurro o Brasil com suas ambiguidades no qual a
modernidade vinda com as ideias liberais estrangeiras se chocara aqui com a tradição
colonial/fundiária (SCHWARZ, 1977). Dois personagens marcam essa dicotomia:
Bentinho e Capitu. Bento Santiago é filho de Pedro de Albuquerque Santiago, já
falecido e de D. Maria da Glória Fernandes Santiago, viúva e herdeira de toda a fortuna
deixada pelo marido. Ao se ver com um filho pequeno e sem companheiro, a viúva:
Como faz questão de relatar nosso narrador, sua família é dententora de bens tanto
materias quanto humanos demostrando seu lugar de superioridade na ordem econômica
vigente. O nome de família também o distingue em um plano social; é marcado na sua
fala para não deixar dúvidas de sua origem.
Por outro lado, a família de Capitolina composta pelo pai Pádua e a mãe Fortunata, não
possuía sobrenome e nem posses, somente uma casa ao lado da casa de Bentinho, menor
e comprada com a “sorte grande” de um bilhete preimado. Pádua “era empregado em
repartição dependente do Ministério da Guerra. Não ganhava muito, mas a mulher
gastava pouco, e a vida era barata.” (ASSIS, 2020, p.26) Capitu, em relação a Bentinho,
figura no outro lado do território econômico, era livre mais sem recursos, tinha somente
a esperança de um futuro mais ambisioso, diferente de seu presente de “[…] sapatos de
duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos.” (ASSIS, 2020, p.23)
Bentinho era ainda, como a sociedade conservadora do século XIX, muito ligado a
figura da família e em especial da mãe, por sua vez muito religiosa. Temia sua reação ao
confessar sua vontade em não ser padre, promessa antiga da mesma. Era também,
opondo-se a figura de Capitu, cheio de temores sobre uma eventual instabilidade futura,
ideia impensável para quem sempre desfrutou de tudo; no capítulo XLIII intitulado
“Você tem medo?” Machado apresenta essa personalidade medrosa do jovem:
Já Capitu é traçada na obra como bela, inteligente, portadora de uma personalidade forte
e perspicácia singular além de que, apresenta-se como uma das personagens mais
racionais do círculo que envolve o narrador. Está sempre calculando sobre as situações:
“Capitu refletia. A reflexão não era coisa rara nela, e conheciam-se as ocasiões pelo
apertado dos olhos.”(ASSIS, 2020, p.31); reflete com pragmatismo sobre as
adversidades e consegue sair-se de situações embaraçosas através da encenação,
característica dos que se renovam por meio da dissimulação. As “ideias atrevidas”
também lhe caracterizaram e apresentavam uma jovem distinta para a sua época:
Como vês, Capitu aos quatorze anos, tinha já ideias atrevidas, muito menos
que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática
faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de
salto, mas aos saltinhos. Não sei se me explico bem. (ASSIS, 2020, p.32)
Mas uma leitura para além das personalidades dos dois mostra-se interessante e pode
revelar a caracterização de um Brasil dividido entre dois ideias distintos: o
conservadorismo e liberalismo. Segundo Schwarz (1992, p. 2) havia no século XIX uma
“[…] disparidade entre a sociedade brasileira, escravista, e as idéias do liberalismo
europeu”. Posto assim, Bentinho, sendo o herdeiro de uma fortuna acumulada a partir
do latifúndio, do aluguel de propriedades e de escravos, encarna bem o Brasil
conservador do segundo império ao passo que, Capitu, independente no falar e agir,
com olhos de “cigana”, personifica o que vem de fora: a modernidade ao lado do
liberalismo.
Uma vez que “era inevitável, por exemplo, a presença entre nós do raciocínio
econômico burguês” (SCHWARZ, 1992, p. 3) Bentinho, como o Brasil arcaico teme
perder seus privilégios com a ascesão desse novo raciocínio social e econômico, ao
mesmo tempo que deixa-se seduzir, semelhante a aristrocracia, com o que lhe é
diferente:
Faz-se necessário pontuar que é sempre o olhar de Bentinho que descreve e percorre as
atitudes da esposa posto que toda a narrativa parte de suas percepções sobre as
personagens e situações. Não podemos assim, ignorar que a figuração de Capitu, logo a
figuração do liberalismo, é estabelecida pelo olhar conservador do marido. O exercício
do narrador é como o de uma tradução sobre Capitu assim como a elite escravagista
traduziu para a realidade brasileira os princípios liberais vindos de fora. (SCHWARZ,
1992 ,p. 7)
Os dois protagonizam a história, se envolvem, casam-se e tem um filho (ou não, uma
vez que Bentinho desconfia da traição de Capitu com seu melhor amigo) mas terminam
separados. Bentinho termina ranzinzo e só no Brasil ao passo que Capitu passa seus
últimos dias na Europa. Capitu termina, como em uma metáfora (atrevo-me a dizer), em
um lugar mais semelhante as suas ideias, no exterior, fora.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ASSIS, M. de. Dom Casmurro. 1° ed. São Paulo: Pé da Letra, 2020. 199p.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das letras,
1995
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. 4ª ed. São Paulo: Duas Cidades, 1992.