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Introdução
vo, teremos de nos situar no espaço e no tempo da moral cristã, vigente na época,
que temia a sedução de Eva. Estamos conscientes que penetramos num terreno
difícil, mas mais do que chegar a conclusões, é nosso objetivo problematizar esta
temática, evitando um discurso descontextualizado, unilateral e redutor.
Quem prevaricasse ficava sujeito a castigo, com pena que variava entre os
seis e os quinze anos de jejum e excomunhão, acompanhados geralmente de in-
terdição perpétua de qualquer relação sexual e de casamento (Idem).
Estas ideias estoicas sobre a noção da procriação, como primeiro e último
fim legítimo do casamento, vinham sobretudo de pensadores como Ambrósio,
Gerónimo e Agostinho. Para este último Doutor da Igreja, a sexualidade tinha
uma finalidade estritamente delimitada, simbolizando um único e decisivo
acontecimento dentro da alma. A maternidade ecoava no corpo, como conse-
quência do primeiro pecado da humanidade, perpetrado por Adão e Eva
142 O corpo feminino na Idade Média. Um lugar de tentações
(Brown, 1990, p. 347). A tentação sexual era uma provocação e um pecado, casti-
gado pela Igreja. Por isso, a constância na castidade materializava a capacidade
do homem de vencer as provações carnais e de alcançar, num plano metafísico e
superior, a pureza e salvação da alma. As paixões deveriam ser substituídas por
ações moderadas e, principalmente, pela submissão das paixões humanas e do
corpo (Laqueur, 2001).
No IV Concílio de Latrão (1215), fica assente (cânones 21 e 22) que, e reto-
mando os estudos de Galeno, médico e filósofo romano (século II), o “abuso do
coito é muito perigoso, ele abrevia a vida, debilita o corpo, consumindo-o, dimi-
nui o cérebro, destrói os olhos, conduz à estupidez (cit. por Bolton,1983, p 478).
Já Agostinho acreditava que, quanto mais se renunciasse à carne mais pró-
ximo de Deus se chegava – por isso a sua conceção da cidade dos homens e a ci-
dade de Deus. Em oposição, Tomás de Aquino era de opinião que a alma huma-
na era o horizonte onde se tocavam o mundo dos corpos e dos espíritos, ou seja,
a alma e o corpo estavam intrinsecamente ligados, retomando a tradição clássica
de Platão. Em conformidade com as ideias agostinianas (foram estas que vinga-
ram), para os médicos e filósofos medievos, a saúde do espírito era inversamente
proporcional ao vigor genital. Nesta perceção, as agitações carnais, representa-
vam duplamente um pecado contra Deus e contra a razão (Rossiaud, 2006).
Neste imaginário de pecado, mesmo as mulheres castas e púdicas eram con-
sideradas perigosas. Como afirmou João Crisóstomo “o olhar das mulheres toca
e perturba a nossa alma, e não só o olhar da mulher desenfreada, mas também o
da mulher decente” (Ranke-Heinemann, 1996, p.134).
Em termos gerais, verificamos que as relações sexuais eram proibidas du-
rante as festas do Natal, da Páscoa, do Pentecostes e das festas dedicadas ao
culto de Maria, que foram crescendo ao longo da Idade Média. Nas vigílias, isto
é, na noite anterior a estes festejos, estava igualmente interdito o contacto íntimo.
Tal ocorria, da mesma forma, durante o domingo e sua vigília. Durante as três
Quaresmas: 40 dias antes da Páscoa, 40 dias antes do Natal (Advento) e 40 dias
antes do Pentecostes. Para além do calendário litúrgico, existiam outras proibi-
ções para a mulher: menstruação, gravidez (desde o momento da conceção) e 40
dias após o parto. Estes últimos eram princípios ancestrais, de impureza e der-
ramamento de sangue. Feitas as contas verificamos que os casais, apenas pode-
riam usufruir de quatro a cinco relações sexuais durante um mês, gerando duas
a três conceções num período de quatro anos.
sequente expulsão do Paraíso (Schmitt-Pantel, 2003). Eva, para além de ter sido
culpada por dominar Adão, ao conseguir fazer com que a sua vontade impe-
rasse, trazia consigo a concupiscência e a volúpia, uma vez que pecou levada
pelo prazer e pela curiosidade, pecado igualmente atribuído ao sexo feminino.
longo da Idade Média. Por isso, no século XII é redigido na Alemanha o famoso
Espelho das Virgens, tratado que aconselhava as mulheres a seguirem o modelo
de Maria.
Contrapondo este ideal de mulher perfeita, que era Maria, e por isso inaces-
sível ao comum das mulheres, surge então Maria Madalena, a pecadora arre-
pendida, que vem provar que a salvação está ao alcance de todos os pecadores
(Ramon, 2002). Com este novo ideário feminino, foi-lhe concedido, da mesma
forma que às pecadoras, o direito ao arrependimento, visível numa postura de
mortificação e lágrimas, em oposição à tagarelice e curiosidade de Eva, que con-
duzira a humanidade ao pecado. De forma a contrariar esta tendência, quando
as mulheres se recolhiam aos mosteiros, deveriam seguir uma pregação sem pa-
lavras e optar pela penitência do corpo (Dubby & Perrot, 1990). Maria Madalena
consegue agregar elementos de Eva e de Maria. Por um lado, guarda em si a sen-
sualidade, vivendo uma vida de luxúria e sedução, e, por outro, ao arrepender-
-se, torna-se uma pessoa cuja preocupação é seguir uma vida de obediência e
retidão (Idem).
A Igreja medieva procura identificar Eva com as mulheres e Maria com o
ideal de perfeição a alcançar. Verifica-se, assim, uma transferência de conceitos
de ordem teológica para o social (Mota-Ribeiro, 2000).
“Quando uma mulher tiver seu fluxo, um fluxo de sangue no corpo, ela ficará
impura durante sete dias. Todo o que a tocar ficará impuro até tarde. Todo móvel
sobre o qual ela se deitar durante sua impureza e todo o objeto sobre o qual ela se
sentar ficará impuro. Todo o que lhe tocar o leito lavará as suas vestes, banhar-se-á
na água e ficará impuro até à tarde. Todo o que tocar no móvel sobre o qual ela se
tiver assentado lavará as suas vestes, banhar-se-á na água e ficará impuro até à tarde.
Se houver um objeto sobre o leito ou sobre a cadeira na qual ela se sentou, aquele
que a tocar ficará impuro até à tarde. Se um homem se aproximar dela e a impureza
dela passar a ele, ficará impuro durante sete dias e todo o leito sobre o qual se deitar
ficará impuro (Levítico, XV, 19-24).
pacidade do raciocínio dos homens e suas virtudes são mais perfeitas e mais
fortes do que as das mulheres” (Ibidem).
No final da Idade Média, mantêm-se as perceções negativas sobre a mulher.
Assim sendo, terminamos o nosso percurso reflexivo sobre o imaginário femi-
nino, com o pensamento do dominicano Jakob Sprenger (1436-1495) Inquisidor
Geral, e especialista em bruxarias: “Por causa do defeito original de sua inteli-
gência, são mais propensas a abusar da fé; assim também devido ao seu outro
defeito, distúrbio passional e afetivo, procuram meditam, e infligem múltiplas
vinganças, seja por bruxaria ou por outros meios. Não é de estranhar que este
sexo tenha dado tantas bruxas (Idem, p.25).
Estas perceções perduraram e influenciaram a sociedade, ao longo do
tempo…
Conclusão
Referências
Publicado originalmente:
Martins, A. M. de O. (2013). O corpo feminino na Idade Média: um lugar de tenta-
ções. In J. Braz & M. N. Neves (Orgs). O corpo-Memória e Identidade (pp. 103-116).
Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas.