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O Martelo das Feiticeiras: a Bíblia inquisitorial do Caça às

Bruxas

É certo afirmar que a Idade Média foi um longo período histórico marcado por
várias superstições e interpretações deturpadas da realidade. Vários foram os
historiadores que estudaram este período e o classificaram como Idade das Trevas
fazendo referência ao perene obscurantismo intelectual por qual passava a sociedade
ocidental. Já outros historiadores designam a Idade Média como um período de intenso
florescimento cultural, onde a arte e a literatura sempre estavam unidas com a
religiosidade.

Sabemos também que os conceitos primitivos de bem e de mal sempre tiveram


origem na mitologia herdada do paganismo greco-latino e das tradições hebraicas que
dividiam o Céu do inferno entre anjos do bem e anjos do mal

A figura do diabo sempre foi motivo de controvérsias por parte de clérigos e


místicos. A verdade é que o diabo era uma constante ameaça aos dogmas católicos.

A Idade Média foi um período histórico extremamente místico e supersticioso,


onde as pessoas procuravam saber através de prognósticos astrológicos os seus destinos,
especializando- se em predições oraculares e muitas vezes recorrendo à magia como
forma de mudar o transcurso natural das coisas.

A prática da magia na Idade Média fora muito intensa o que fez com que o papa
Inocêncio VIII proclamasse sua bula contra a prática da bruxaria, a
Summisdesiderantes,em 1484 .

É neste cenário onde a inquisição já havia se instalado no século XIII e feito


muitas mortes e torturas na fogueira que entra a figura de um inquisidor alemão
chamado Heinrich Kramer. Este inquisidor era padre dominicano e durante uma sessão
malsucedida de interrogatórios contra uma mulher suspeita de bruxaria resolveu
escrever um livro que séculos mais tarde se tornaria a bíblia inquisitorial do caça às
bruxas.

MalleusMaleficarum, do latim, o Martelo das feiticeiras, este foi o título de sua


grande obra que contribuiu para o morticínio de mais de trinta mil mulheres na fogueira
durante o período do final do século XV ao século XVII.
Baseado em seus estudos de teologia, filosofia platônica e tomista e escatologia,
Heinrich Kramer compilou a sua obra dividindo-a em três partes: a primeira tratava da
forma de como se reconhecer as bruxas, a segunda parte tratava de expor todos os tipos
de malefícios praticados pelas bruxas e a terceira parte era um compêndio jurídico do
código canônico que justificava as torturas e a condenação à pena de morte da bruxa na
fogueira.

A verdade é que a prática da bruxaria era muito frequente uma vez que a Idade
Média era revestida de um misticismo tanto esotérico quanto religioso capaz de fazer
com que as pessoas principalmente as mulheres tivessem uma curiosidade muito grande
na arte da magia. Podemos dizer que as bruxas operavam certos fenômenos que hoje
podem ser explicados através do espiritismo científico como fenômenos mediúnicos. O
espiritismo na forma como o conhecemos hoje sempre esteve presente em várias
religiões de diferentes épocas da humanidade. Na Grécia antiga o oráculo de Delfos é
um exemplo claro da prática mediúnica, onde a sacerdotisa de Apolo chamada de
pitonisa ao entrar em transe fazia predições onde muitas delas se cumpriam. Os
mistérios de Elêusis na cidade de Elêusis próxima a Atenas, em homenagem à deusa
Deméter, também é um outro exemplo da prática mediúnica. Na Idade Média isso não
foi diferente. Da mesma forma que as pessoas possuíam temeridade muito forte a Deus,
também havia pessoas que cultuavam Satã.

Para fazermos um julgamento correto das práticas de tortura e condenação na


fogueira com a crescente prática da magia, devemos levar em conta a ignorância
completa de quem praticava a magia e de quem condenava à fogueira. Ambas as partes
não sabiam exatamente o que estavam fazendo, mas pode-se afirmar que a Igreja
Católica para firmar ainda mais o seu dogmatismo religioso proclamou uma guerra
contra as bruxas.

Na segunda parte do Martelo das feiticeiras observamos vários relatos dos


inquisidores- autores de uma ilustração fantasiosa, fantásticae alegórica como por
exemplo dizer que as bruxas voavam em vassouras (MalleusMaleficarum, Rosa dos
Tempos, 2004, p.228) :
Eis, enfim, o seu método de transporte pelo ar. De posse da pomada
voadora, que, como dissemos, tem sua fórmula definida pelas instruções do
diabo e é feita dos membros da criança, sobretudo daquelas mortas antes do
batismo, ungem com ela uma cadeira ou um cabo de vassoura; depois do que
são imediatamente elevadas aos ares, de dia ou de noite, na visibilidade ou, se
desejarem na invisibilidade; pois o diabo é capaz de ocultar um corpo pela
interposição de alguma outra substância, conforme mostramos na Primeira
Parte, onde falávamos dos encantamentos e das ilusões diabólicas.

Ou que tinham poderes de fazer desaparecer a genitália masculina, criando


pênis em forma de pássaros presos a gaiolas (MalleusMaleficarum, 2004, p.252):

E o que se há de pensar das bruxas que, vez por outra, reúnem


membros masculinos em grande número, num total de vinte ou trinta, e os
colocam em ninhos de pássaros ou em caixas, onde se movem como se
estivessem vivos e comem grãos de aveia e de trigo.

São estesdentre vários outros absurdos que torna este livro um compêndio
maquiavélico misturado a argumentos escolásticos fazendo com que até o papa
Inocêncio VIII nomeasse Henrich Kramer e James Sprenger como seus arautos da igreja
em defesa da fé. A verdadeira intenção da Igreja era se aproveitar da histeria coletiva
originada da manifestação repressiva da sexualidade feminina em favor do seu
fortalecimento político, já que a religião na Idade Média era mais política do que
doutrinária. Quem ditava as regras da sociedade pelo princípio da Igreja ser a
representante de Deus na Terra era o papa. "Roma locuta causa finita". Aquilo que a
Igreja ditava era lei e não podia jamais ser contestado por nenhum mortal. O Martelo
das feiticeiras foi reprovado pelos doutores da Igreja de Colônia, declarando que este
livro era antiético, mas mesmo assim o mentor dessa armadilha, Henrich Kramer inseriu
uma falsa nota de apoio da universidade em posteriores edições impressas do livro. O
ano de 1487 é geralmente aceito como a data de publicação. A Igreja Católica proibiu o
livro pouco depois da publicação, colocando- o no Index LibrorumProhibitorum
(Índice dos livros proibidos), no Concílio de Trento em 1559, mas apesar disso, entre os
anos de 1487 e 1520, a obra foi publicada treze vezes.
Após estas análises chegamos à conclusão de que a bruxaria fora um signo
interpretado de uma maneira que fizesse crer a ligação perene da mulher medieval com
o diabo.É verdade que a prática da bruxaria durante a Baixa Idade Média alcançou
números altíssimos principalmente entre as mulheres, mais qual foi o real significado
desta prática dado pela Igreja Católica? Segundo Michel Foucault o discurso possui
apenas uma literação e os seus pontos-de-vista são diversos.

As bruxas causavam uma grande temeridade na sociedade medieval, e quais


foram os recursos linguísticos e as interpretações utilizadas pela Igreja Católica para
denigrir cada vez mais com o ideário feminino?

O livro MalleusMaleficarum fora um exemplo contundente desta deliberação


interpretativa movida pela pastoral católica a fim de argumentar de todas as maneiras
possíveis que a mulher tem a natureza satânica antes mesmo de nascer e as suas práticas
abomináveis nada mais são do que uma justificativa para a liberação deste instinto
animalesco que tem origem no satanismo. Até que ponto as argumentações do Malleus
são verdadeiras e verídicas e até que ponto suas acusações contra as mulheres não
passam de fantasias alegóricas oriundas de uma fértil imaginação maquiavélica?

Todas estas questões encontraram respostas na obra de Michel Foucault na


Arqueologia do Saber. Nesta obra, Foucault ressalta a relatividade dos conceitos
expostos no discurso literário e oral. Se analisarmos a perseguição contra as bruxas sob
o aspecto de uma contextualização histórica e precisa podemos observar que a
perseguição às mulheres nada mais foi do que o resultado de uma explosão de séculos
de repressão moral e sexual cuja válvula de escape se encontrou na manifestação das
práticas de bruxaria e na sua eventual condenação e morte. O significado de toda esta
conturbação moral pode ser exemplificado nesta obra de Foucault como um
determinismo aceito e imposto por uma instituição altamente repressora cujas vítimas
nada mais foram do que o grito de liberdade de uma maioria massacrada pela fome, pela
miséria e pela total privação do conhecimento. Os pressupostos morais determinados
pela Igreja são o resultado de um longo período histórico marcado por uma terrível
disputa política de poderes, onde a Igreja Católicasempre saiu vitoriosa por se valer de
uma perene dominação ideológica e intelectual. O que sobrava das migalhas de um pão
para aquelas mulheres famintas e vestidas em andrajos senão o grito por uma vida mais
digna? Essa classe social totalmente desfavorecida encontrava refúgio nas artes mágicas
como forma de anestesiar os sentidos morais mergulhados numa miséria lancinante. Em
suma, o MalleusMalleficarum com certeza atingiu o seu objetivo até o término da
Inquisição no final do século XVIII com o advento do Iluminismo e da Revolução
Francesa.

Esta obra com certeza castrou o direito de livre expressão da mulher


anteriormente gozado na Antiguidade, fazendo valer sua perniciosa armadilha no que
prendia as mulheres a uma condição pela qual elas não vivenciavam. Todas as
abominações das mulheres relatadas nesta obra nada mais são do que a imposição de
uma ditadura cruel e sanguinária capazes de exterminar mais uma vez com o sagrado
feminino iniciado por Maria Madalena através da deturpação interpretativa da moral
feminina.

Assim fez a Igreja durante todo o transcurso de sua história: não descansou em
momento algum até que o último vestígio da identidade sagrada da mulher fosse
totalmente destruído, de forma que Cristo por ser o ser divino enviado por Deus Pai
jamais pudesse compartilhar com uma natureza satânica e demoníaca e desta forma o
exemplo de seu falso celibatarismo pudesse se sustentar durante séculos para a
edificação e manutenção do patrimônio financeiro instaurado pela Igreja Católica.

A destruição do sagrado feminino nada mais foi do que o objetivo principal da


Igreja que visava o futuro e se preocupava sem dúvida alguma com a manutenção do
luxo, das orgias, da opulência e da riqueza patrimonial de sua instituição.

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