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O Traído

Imaginário

Comédia de Molière
Adaptação teatral de Amandha de Souza
Campos

1
O Traído Imaginário

Personagens

1. Gorgibus - Burguês de Paris


2. Célia - Sua filha
3. Lélio - namorado de Célia
4. Sganarello - Traído Imaginário
5. A mulher de Sganarello
6. A criada de Célia.

Cenário – Praça Pública de Paris – 1660

Cena I
Gorgibus, Célia e a Criada de Célia.

Célia: (Saindo de casa banhada em lágrimas acompanhada da criada; seu pai a


segue) Não e não; jamais meu coração consentirá nisso!

Gorgibus: (Em tom colérico) Que está resmungando sua impertinente? Pretende
por acaso se opor à minha vontade? Não tive sempre sobre você um poder absoluto?
Talvez queira com a sua inexperiência governar a razão de seu pai? Qual de nós tem
de obedecer ao outro? Em sua opinião quem de nós julga melhor o que lhe convém,
eu ou você? Com a breca! Livre-se de me fazer ferver o sangue: do contrário ficará
sabendo sem demora, o peso do meu braço! O que lhe é melhor senhora cabeçuda,
é aceitar sem mais cerimônias o marido que lhe destino. Diz que eu não sei se ele
tem bom gênio e que devo consultar o seu gosto primeiro. Conhecendo como
conheço a grande fortuna que ele espera por herança, devo ter cuidado de
investigar mais? E este marido com vinte mil bons ducados, precisa de outros

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atrativos para ser amado? Como se fosse possível! Com tal soma eu garanto que
não pode haver homem mais honesto!

Célia: Ai de mim!

Gorgibus: (Imitando-a) “Ai de mim?” Que quer dizer com isso? Aí está o
resultado de você ficar lendo esses romances banais. Ao invés de ficar enchendo a
cabeça com essas estórias açucaradas tiradas desses tolos romances, deveria sim é
ler a “Alta Filosofia” de Pascal para aprender a obedecer melhor ao pai que lhe
sustenta a vida!

Célia: O quê? O senhor pretende então, meu pai, que eu esqueça a amizade que
devo a Lélio? Eu estaria errada se disputasse de mim, sem seu consentimento, mas
foi o senhor mesmo que lhe prometeu a minha mão! Como pode mudar tão rápido
de ideia?

Gorgibus: Oras, e mesmo que eu tivesse dado a palavra final! Apareceu um outro
por cujos bens eu a desprometo. Lélio é um belo rapaz, mas fique sabendo que ele
não tem nem dinheiro e nem propriedades! Desta forma não se deve renunciar ao
desejo de se possuir meios, e que o ouro dá aos mais feios um certo encanto, para
agradarem, que sem ele o que resta não vale nada! Eu bem sei que Valério não lhe
agrada. Mas se ele não é bom para o noivo, será para marido. Por mais que não se
acredite! Basta o nome de marido para fazer com que o amor não seja um único
motivo para se realizar o matrimônio. Mas não serei eu um tolo estando aqui a dar
satisfação quando tenho sobre você um poder absoluto. Chega portanto! Comunico
à sua impertinência, que não ouvirei mais, suas tolas lamúrias. Meu futuro genro
deverá vir visitá-la esta tarde. Ai de você se falhar um pouco, experimente recebê-lo
mal. Se eu não a vir fazer uma cara bem boa eu...Bem, não quero dizer mais nada.
(Sai)

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Cena II

Célia e a Criada

Criada: O quê?! A senhora vai recusar assim um casamento desses? Quem me


dera poder ter essa oportunidade, eu, um trapo velho que nunca fui feliz com
homem nenhum.

Célia: E você tem coragem de me aconselhar uma besteira dessa? Abandonar Lélio
e casar-me com um desengonçado daqueles?

Criada: Para mim o seu Lélio não passa de um tolo. Viaja já se faz dias, e isso é
motivo de desconfiar!

Célia: (Mostrando o retrato de Lélio) Ah, não me atormente com esses tristes
presságios. Veja bem os traços deste rosto. Eles inspiram ao meu coração ardores
eternos. Ai, ai...

Criada: (Observando o retrato de Lélio) É verdade que estes traços demonstram


um namorado digno. E a minha menina tem razão de o amar tanto.

Célia: E enquanto isto é preciso... Ah! ampara-me! (Desmaia deixando cair o


retrato de Lélio)

Criada: O que aconteceu? Ó meu Deus, ela desmaiou! Socorro! Depressa, acudam-
me!

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Cena III

Célia, Sganarelo e Criada

Sganarelo: Aqui estou! Que foi?

Criada: Minha patroa está morrendo.

Sganarelo: Quê? Só isso? Com tamanha gritaria, julguei que tudo estivesse
perdido. Mas vejamos. Madame está morta? Hei, mas ela não diz nada!

Criada: Tome conta dela, por favor, vou ver se acho alguém para ajudar e levá-la
para casa.
(Sai)

Cena IV

Sganarelo, sua Mulher e Célia

Sganarelo: (passando a mão pelo corpo de Célia) Está toda fria e nem sei o que
dizer. Vejamos se sai bafo pela boca. Oh! Já não sai mais nada. Mas parece agora
que ela dá algum sinal de vida.

Mulher: (Aparecendo na janela com uma cesta contendo roupas lavadas) Oh!
Que vejo? Meu marido nos braços de outra ... Mas vou descer, ele está me traindo
sem dúvida, vou surpreendê-lo.

Sganarelo: É preciso socorrê-la depressa! Ir pro outro mundo é uma grande


besteira, enquanto se pode ficar por aqui. (Leva-a para a casa de Gorgibus)

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Cena V

Mulher: (Só) Ele fugiu depressa e eu não fiquei sabendo do que se trata. Mas não
tenho a menor dúvida de que me engana. O pouco que vi já é suficiente. O ingrato
reserva seus carinhos para outras. E deixa-me só pra satisfazê-las. Mas isto é
procedimento dos maridos. O que é certo os aborrece. No princípio é tudo
maravilhas, eles nos testemunham ardores sem igual. Mas não tardam a se cansar e
a levar para casa alheia o que devia deixar na sua.
Ah! Como lastimo que a lei não nos autorize a mudar de marido, como se muda de
camisa!
Seria cômodo. E aposto como não há nenhuma a quem isso não agradasse. (Vê o
retrato que Célia deixou cair e apanha-o) O que será essa linda jóia? O esmalte é
bonito e a gravura encantadora! Vejamos...

Cena VI

Sganarelo e sua Mulher

Sganarelo: (julgando-se só) Pensavam que estava morta e não era nada.
Descansando um pouco ela fica logo boa! Oh! Minha mulher!

Mulher: (julgando-se só) Ah! É uma miniatura! O retrato de um homem. E que


belo homem!

Sganarelo: (à parte, olhando por cima do ombro da Mulher) O que é que ela está
vendo com tanto interesse? Um retrato! Ó minha honra! Coisa boa não deve ser.
Oh! Terrível suspeita formula minha alma!

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Mulher: (sem perceber seu marido) Jamais vi coisa mais bela em minha vida. O
trabalho vale mais que o ouro. E que cheiro maravilhoso!

Sganarelo: (À parte) Quê? Peste?... Ainda o beija! Ah! Não há mais dúvida.

Mulher: (Prosseguindo) Imagino como deve ser delicioso quando um homem


assim belo se interessa pela gente. E se ele insistisse seria difícil resistir à tentação.
Oh! Por que não tenho eu um marido assim? Em lugar daquele desajeitado...
Aquele bruto do meu...

Sganarelo: (Arrancando-lhe o retrato da mão) Ah! Bandida, agindo contra mim,


surpreendi-a! Que pode a senhora achar em mim de ridículo? Veja esta graça, este
porte que todo o mundo admira. Este rosto feito para inspirar amor, para que mil
beldades suspirem noite e dia! Em suma, minha encantadora pessoa não é algo
suficiente para contentá-la. E para saciar seu apetite guloso é preciso juntar ao
marido o complemento de um amante.

Mulher: Compreendo nisto tudo até onde vai a brincadeira. Você crê que por este
meio...

Sganarelo: Não disfarce, eu peço! A coisa está aprovada, e eu tenho em minhas


mãos um bom certificado do mal que me queixo.

Mulher: Basta! Não ajunte mais nada à minha raiva, senão cometo uma violência!
Escute, não pense que vai ficar com minha joia e lembre-se de que...

Sganarelo: Chega, mulher. Já lhe disse que quem manda aqui sou eu e está
acabado!

Mulher: Você tem de viver do jeito que eu quero, não me casei para aguentar as
suas maluquices.

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Sganarelo: Arre! Como é duro um sujeito ser casado! Razão tinha Aristóteles
quando dizia que a mulher é pior que o diabo!

Mulher: Olha só os dois sábios! Este daí e o imbecil do Aristóteles.

Sganarelo: Sábio, isso mesmo. Vê se você encontra outro rachador de lenha que
saiba falar um pouco de tudo, que nem eu. Não se esqueça que eu fui, durante seis
anos, criado de um grande médico e aprendi muita coisa boa! E tem mais, quando
menino, cheguei a estudar latim.

Mulher: Vá para o inferno com o seu latim, seu pinguço de uma figa!

Sganarelo: Vá você peste!

Mulher: Maldita seja a hora em que caí na asneira de te dar o sim.

Sganarelo: Maldito é o chifrudo do tabelião que me fez assinar a minha desgraça.

Mulher: Olha como fala. O que você devia era dar graças por ter se casado comigo.
Você não merece ter uma mulher que nem eu.

Sganarelo: É mesmo? Que grande honra! Até dei parabéns pra mim mesmo na
noite de núpcias. E vamos mudar de assunto, senão vou te dizer certas coisas ...

Mulher: O quê? Como é que é?

Sganarelo: Já chega saber o que já sabemos, que você foi uma felizarda de me
encontrar.

Mulher: Felizarda de te encontrar? Um debochado, um tratante, que me bate,


come todo o meu dinheiro e ainda por cima está me traindo com uma outra mulher!

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Sganarelo: Mentira!

Mulher: Que vai vender tudo que a gente tem.

Sganarelo: Isso é o que se chama “viver do que se tem”.

Mulher: (Para o público) Gente! Até a cama, até a cama que eu tinha, esse
bandido vendeu!

Sganarelo: E fiz muito bem. Foi o único jeito que encontrei pra você se levantar
antes do meio dia.

Mulher: Não vai sobrar nenhum móvel em casa.

Sganarelo: Assim a mudança fica mais fácil.

Mulher: Desde manhã até à noite já se sabe: jogo e bebida, jogo e bebida.

Sganarelo: Para me distrair.

Mulher: Enquanto isso, o que eu faço com as crianças?

Sganarelo: O que te der na telha.

Mulher: Com quatro crianças de colo?

Sganarelo: Tira do colo e bota no chão.

Mulher: Que a toda hora estão pedindo pão.

Sganarelo: Pão? Pau nelas.

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Mulher: Seu bêbado! Então você pretende que isso continue sempre assim?

Sganarelo: Mais baixo por favor!

Mulher: Que eu sofra toda vida os seus desaforos e essa sua vida debochada?

Sganarelo: Não fique zangada!

Mulher: Que eu não procure então te botar na linha?

Sganarelo: Eu não sou carretel pra andar na linha! Mas, minha querida esposa,
você sabe que eu não tenho o gênio lá muito bom e que o meu braço é braço
mesmo...

Mulher: Há!Há!Há! Acho até graça!

Sganarelo: Você já está com comichões, como de costume.

Mulher: Chega pra cá! Vou te mostrar que não tenho medo de você!

Sganarelo: Minha cara metade, seu corpinho anda pedindo pancada!

Mulher: Essa conversa não me assusta mais!

Sganarelo: Doce objeto dos meus amores; você quer uma fricçãozinha nas orelhas?

Mulher: Bêbado inveterado!

Sganarelo: Olha que eu te amasso a cara!

Mulher: Pudim de pinga!

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Sganarelo: Olha que eu te desmonto!

Mulher: Desgraçado!

Sganarelo: Olha que eu te arrebento!

Mulher: Bandido, vadio, sem-vergonha, porco, covarde, bestalhão, estúpido, sujo,


ladrão, imundo!

Sganarelo: Do que me lembro é lhe torcer o pescoço. É pena eu não ter nas mãos
o original como tenho a cópia!

Mulher: Por quê?

Sganarelo: Por nada, minha senhora, doce objeto de meu amor. Desculpe-me,
por ter me exaltado, eu devia era agradecer a situação em que me põe... (Olhando o
retrato de Lélio) Ah! Aqui está o bonitinho, o pilantra, o maldito tição de sua
chama interna. O tratante com quem...

Mulher: Com quem... prossiga!

Sganarelo: Com quem você me...

Mulher: Vamos, deixe de meias palavras.

Sganarelo: Sabe melhor do que eu, sua descarada. Pobre Sganarelo. Pobre e sem
honra. Mas a você que a machucou isto vai custar no mínimo um braço ou duas
costelas.

Mulher: Atreve-se a dizer isso na minha cara?

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Sganarelo: E você não se atreve a me desonrar?

Mulher: De maneira que depois de me teres feito a maior das ofensas que possa
provocar a vingança de uma mulher, ainda finges estar com raiva para te
prevenires de meu ressentimento! Semelhante proceder é novidade: quem faz a
ofensa é quem se ofende.

Sganarelo: Ah! Descarada! Quem a visse assim, a tomaria por uma mulher de
bem.

Mulher: Vai, vai, continua teu caminho, vai acariciar tuas amantes. Entrega-lhes
teu coração, vai, mas antes me entrega o retrato e deixa de escárnios! (Ela lhe
arranca o retrato das mãos e foge)

Sganarelo: (correndo atrás dela) Ah! Pensa que me escapa. Eu o terei de


qualquer jeito.
(Saem)

Cena VII

Lélio (chegando de viagem e para em frente a casa de Sgnanarelo)

Lélio: A notícia do próximo casamento de Célia alarmou minha alma. Só Deus


sabe o quanto a adoro e o quanto quero me certificar com cuidado deste boato tão
funesto. (Reflete por um instante) Não, não. Não é possível. O que estou pensando
é uma loucura. O pai me prometeu e a filha deu-me provas de amor suficiente para
alimentar minhas esperanças.

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Cena VIII

Sganarelo e Lélio

Sganarelo: (Sem ver Lélio e com o retrato na mão) Aqui está ele. Posso ver a
vontade, o focinho deste canalha que causa minha vergonha. Mas quem será?
Nunca o vi.

Lélio: (À parte) Meu Deus! Que vejo? Se este é o meu retrato, que devo pensar?

Sganarelo: (Sem ver Lélio) Ah! Pobre Sganarelo! A que sorte está condenada sua
reputação? (Vê Lélio que o está olhando e se vira)

Lélio: (À parte) Não, este retrato não pode sair das mãos a quem dei, sem que me
sinta sobressaltado!

Sganarelo: (À parte) Não demora muito e todo mundo estará falando, e atirando-
me à cara, a escandalosa afronta que uma desavergonhada provou.

Lélio: (À parte) Será que me engano?

Sganarelo: (À parte) Ah! Maldita de me tornar um marido traído assim na flor da


idade. Mesmo sendo mulher de um marido que pode passar por bonito, aparece um
maricas, um maldito bonitinho que...

Lélio: (À parte e tornando a olhar o retrato que Sganarelo tem nas mãos) Não,
não é engano. É o meu retrato mesmo.

Sganarelo: (Virando-lhe as costas) Este homem é curioso.

Lélio: (À parte) Nem sei o que pensar!

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Sganarelo: (À parte) Que diabo quererá ele?

Lélio: (À parte) Vou falar-lhe. (Alto) Poderei?... (Sganarelo quer se afastar) Por
favor, uma palavra!

Sganarelo: (À parte e se afastando mais) Parece que me quer falar.

Lélio: Poderei saber como esse retrato chegou às suas mãos?

Sganarelo: (À parte) Por que será esse interesse? Mas espera... (Olha para Lélio e
para o retrato) Ah! Agora vejo tudo claro. Sua surpresa não me admira. É o meu
homem, ou melhor, o de minha mulher!

Lélio: Tire-me de uma dúvida e diga-me como foi que...

Sganarelo: Graças a Deus, que eu sei a causa de sua inquietação. Este retrato que
o preocupa, é o seu. Estava nas mãos de uma pessoa de meu conhecimento. E não é
segredo pra mim, os ardores seus e os da dama. Não sei se tenho a honra de ser
conhecido de vossa senhoria, mas permita-me que de hora em diante, ponha fim
em certos amores de que um marido pode não gostar muito. Lembrai-vos de que os
sagrados laços do matrimônio...

Lélio: O quê? Aquela de quem vós recebestes isto é...

Sganarelo: É minha mulher e eu sou seu marido.

Lélio: Seu marido?

Sganarelo: Sim, seu marido arrependido, e o senhor sabe por quê! E agora
mesmo vou falar com os pais dela. (Sai)

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Cena IX

Lélio: (Só) Oh! Que acabo de ouvir? Bem me haviam dito e agora vejo que é o
homem mais feio do mundo o que ela tomou pra marido.
Ah! Ainda que sua boca infiel não me tivesse jurado um amor eterno, só o desprezo
de uma escolha tão baixa e tão vergonhosa, seria suficiente para que você se
conservasse leal às suas promessas... Ingrata. Sejam quais forem os bens... Mas
esse ultraje, junto com o cansaço de uma longa viagem, me abalam profundamente,
meu coração está fraco e meu corpo não aguenta mais...

Cena X

Lélio e a Mulher

Mulher: (Julgando-se só) Sem eu querer, aquele pérfido... (Percebendo Lélio) Hei!
O que você tem? Você está pálido como uma cera e cambaleando.

Lélio: Sim... É qualquer coisa que me veio de repente.

Mulher: Acho que precisa repousar um pouco. Entre aqui em minha casa.

Lélio: Por um momento aceitarei este favor. Obrigado.

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Cena XI

Sganarelo: (Só) De fato. É preferível ir devagar. Talvez eu tenha metido na cabeça


essas ideias cabeludas sem razão e os suores tenham vindo muito cedo. Minha
desonra em todo o caso não está confirmada só por causa deste retrato. Tratamos,
portanto de...

Cena XII

Sganarelo, Lélio e a Mulher.

Mulher: (À porta de sua casa despedindo-se de Lélio)

Sganarelo: (À parte ao vê-los) Oh! Que vejo! Eu morro! Agora já não é mais
questão de retrato! Agora o negócio é com o próprio original!

Mulher: Vós repousastes pouco, cavalheiro. Vosso mal pode muito bem voltar.

Lélio: Não, não. Eu vos agradeço o tanto quanto posso, dos cuidados que a
senhora me dispensou.

Sganarelo: A hipócrita ainda por cima lhe faz cortesia. (A mulher entra em casa)

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Cena XIII

Sganarelo e Lélio

Sganarelo: (À parte) Ele me viu. Vejamos o que ele poderá dizer.

Lélio: (À parte) A presença deste homem me ferve o sangue, mas devo refrear-me
e atribuir minha desgraça apenas à minha má estrela. Devo limitar-me a invejar-
lhe a sorte (Aproximando-se de Sganarelo) Oh! Feliz de quem tem uma mulher
assim! (Sai)

Cena XIV

Sganarelo, Célia que aparece vendo Lélio que se vai.

Sganarelo: (Sem ver Célia) Com estas palavras ambíguas já não tenho a menor
dúvida. (Olhando para o lado por onde Lélio saiu) Isso é o cúmulo do impudor!

Célia: (À parte, entrando) Qual! Lélio por aqui? Por que me esconderiam a notícia
do seu regresso?

Sganarelo: (Prosseguindo) Oh! Feliz de quem tenha uma mulher assim! Infeliz,
isto sim, de ter esta infame, que sem respeito, nem meio respeito, me apronta uma
destas! E eu, te deixo partir depois de tudo isso e fico aqui, de braços cruzados,
como um maricas! Devia pelo menos ter-lhe derrubado o chapéu, atirar-lhe umas
pedras, ou enlamear sua capa. E pra contentar minha raiva devia fazer um barulho
com ele para alarmar a vizinhança.

Célia: (Que durante a fala de Sganarelo, se aproxima pouco a pouco e espera que
a cólera lhe passe para poder lhe falar. A Sganarelo) De onde o senhor conhece
aquele moço com quem estava falando?

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Sganarelo: Quem, eu? Não sou eu que o conheço, é minha mulher.

Célia: Por que está assim transtornado?

Sganarelo: Não tenha dó de me ver assim e deixe-me respirar à vontade.

Célia: Qual a causa de dores tão raras?

Sganarelo: Se eu estou aflito, não é por ninharias. E não desejo a ninguém as


razões que tenho para me ver assim. Estais diante do modelo dos maridos infelizes.
Roubaram a honra e a reputação do pobre Sganarelo.

Célia: Como assim?

Sganarelo: Aquele galanteador, para não ser irreverente, me traiu


descaradamente e hoje eu pude ver com meus próprios olhos, o que há entre ele e
minha mulher.

Célia: Então aquele que...

Sganarelo: Sim, sim, aquele mesmo é o que me desonra. Adora minha mulher e
minha mulher o adora.

Célia: Ah! Logo vi que este regresso tão secreto encobria uma ação covarde. Bem
que logo ao ver aparecer, me estremeci com um pressentimento, de que devia
acontecer.

Sganarelo: A senhora toma minha defesa com muita bondade. Não são todos que
têm a mesma caridade. Há pouco os que souberam do meu martírio, não fizeram
mais do que rir.

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Célia: Haverá ação mais negra? Haverá castigo que seja suficiente? Depois de
manchar com tal perfídia, ainda terá o descaramento de continuar vivendo? Parece
impossível!

Sganarelo: Eu que o diga.

Célia: Ah! Traidor! Celerado! Alma negra, e sem fé.

Sganarelo: Que boa alma!

Célia: Não, não há no inferno um tormento que não seja pouco.

Sganarelo: Isto é que é falar.

Célia: Tratar assim a própria inocência, a bondade em pessoa!

Sganarelo: (Suspirando) Ai, ai!

Célia: Um coração que nunca fez a mínima coisa para merecer a afronta que lhe foi
feita.

Sganarelo: Isto é verdade.

Célia: Longe disto! Antes... é demais! É para morrer de dor!

Sganarelo: Não leve tanto a sério assim, minha grande amiga. Minha desgraça
comove-a tanto, que até já me trespassa a alma.

Célia: Não vá porém, supor que ficarei apenas em lamentações. Meu coração sabe
o que deve fazer para se vingar e nada poderá me deter.
(Sai)

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Sganarelo: (Só) Talvez me chamem de tolo por eu não me vingar, mas tolo seria
se me deixasse matar à toa (levando a mão ao peito) mesmo assim sinto minha
honra que está me pedindo qualquer ato viril. Sim, a raiva me domina. Isto é ser
poltrão demais, quero resolutamente me vingar deste ladrão de minha honra, pra
começar, no ardor que inflama, vou já contar a todo mundo o que há entre ele e
minha mulher. (Sganarelo sai. Logo em seguida entra Gorgibus com Célia e a
Criada)

Cena XV

Gorgibus, Célia e a Criada

Gorgibus: E então minha querida, refletiste bem em tudo o que lhe disse?

Célia: Sim, meu pai, submeto-me a tão justa lei; disponha de mim conforme sua
vontade. Faça assinar o contrato quando quiser. Estou decidida a cumprir com meu
dever; quero dominar meus próprios sentimentos e submeter-me em tudo à sua
vontade.

Gorgibus: Ah! Como me agrada ouvir-te falar assim. Com a breca! É tão grande
minha alegria neste momento que se não tivesse gente olhando eu daria uns pulos
de contente. Anda cá, quero dar-te um abraço. Que mal há nisso? Um pai pode
beijar uma filha sem que ninguém tenha motivo para se escandalizar. O
contentamento de te ver tão dócil me faz rejuvenescer dez anos de uma vez. (Sai).

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Cena XVI

Célia e a Criada

Criada: Esta mudança me espanta!

Célia: Mas quando você souber por que procedo assim, há de me estimar.

Criada: Bem, pode ser!

Célia: Saiba que Lélio apunhalou-me o coração com uma perfídia, que ele estava
aqui sem...

Criada: Mas ele vem aí.


Cena XVII

Lélio, Célia e Criada

Lélio: Antes de te dizer adeus para sempre, quero pelo menos censurar-te aqui de...

Célia: Como? Ainda me fala? Tem essa audácia?!

Lélio: Grande, na verdade! A tua escolha foi tal que censurar-te seria crime. Vive,
vive contente e afronta minha memória com o digno esposo que te cobre de glórias.

Célia: Sim, traidor! Assim viverei! E meu maior desejo seria que seu coração se
enchesse de despeito.

Lélio: Mas o que pode justificar esta cólera contra mim?

Célia: O quê? Finge surpresa e pergunta qual o seu crime?

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Cena XVIII

Célia, Lélio, Sganarelo e a Criada.

Sganarelo: (Armado da cabeça aos pés) Guerra, guerra de morte a este ladrão de
honra, que sem misericórdia manchou a minha!

Célia: (A Lélio, apontando para Sganarelo) Vira-te e olha, sem me obrigar a


responder.

Lélio: Ah! Vejo...

Célia: É o bastante para te confundir.

Lélio: É o suficiente para deixá-la vermelha.

Sganarelo: (À parte) Minha cólera neste momento está prestes a agir. Minha
coragem está montada a cavalo, e se eu o encontro, ai! Que carnificina! Sim, jurei
matá-lo. Ninguém pode me impedir. Onde eu o encontrar irei despachá-lo...
(tirando sua espada a meio e aproximando-se de Lélio) Mesmo no meio do
coração vou espet...

Lélio: (Voltando-se) Que é isto?

Sganarelo: É uma roupa que vesti por causa da chuva. (À parte) Com que gosto
eu daria cabo dele! Vamos, coragem!

Lélio: (Voltando-se novamente) Heinh?!

Sganarelo: Não disse nada (à parte depois de se bater para se excitar) Ah!
Poltrão que me envergonha! Covarde! Galinha morta!

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Célia: (A Lélio) Este homem a cuja vista te mortifica diz-lhe bastante...

Lélio: Sim, diz-me claramente que a senhora é culpada da infidelidade mais


imperdoável que jamais ultrajou a fé de um namorado.

Sganarelo: (Para o público) Por que não tenho um pouquinho de coragem?

Célia: Ah! Basta traidor, com essa insolência cruel.

Sganarelo: (À parte) Sganarelo, vê como ela briga por você? Coragem, rapaz, seja
um pouco vigoroso! Ânimo! Faça um esforço e fere-o quando ele se virar.

Lélio: (Dando dois passos sem destino, faz com que Sganarelo se aproxime para
feri-lo, se volte) Já que as minhas palavras vos ofende, não me resta senão mostrar-
te satisfeito, e felicitar-vos pela linda escolha que fizeste.

Célia: Sim, sim, minha escolha é tal que ninguém pode me repreender.

Lélio: Isto, faz bem em defendê-lo.

Sganarelo: Sem dúvida, ela faz bem em defender meus direitos. O seu
procedimento, meu senhor, não está conforme as leis. Tenho razões para me
queixar, e se eu não sou um pouco controlado, o senhor haveria de ver que
carnificina!

Lélio: Mas por que todas essas queixas? Pra que essa aflição toda?

Sganarelo: Basta! O senhor sabe muito bem o que me deixa assim. O senhor de
veria saber que a minha mulher é minha mulher, e que querer nas minhas barbas
fazê-la sua, não é obra de um cristão.

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Lélio: Uma tal suspeita, é vil e ridícula. Podei ficar descansado, eu sei que ela é
vossa e longe de...

Célia: Ah! Traidor, como sabe dissimular!

Lélio: Como? Supõe-me capaz de algum pensamento que possa ofender-vos?


Pretendeis me culpar de tal covardia?

Célia: Falai, falai a ele mesmo e ele poderá esclarecer-vos.

Sganarelo: (à Célia) Não, não, a senhora defende-me melhor do que eu seria


capaz e sem usar de subterfúgios.

Cena XIX

Célia, Lélio, Sganarelo, Mulher e a Criada

Mulher: Não estou com humor, minha senhora, para mostrar que tenho ciúmes
de vós. Mas não penseis quem sou uma tola e vede o que se passa, há certas paixões
que são muito erradas. Vosso espírito devia procurar fazer outra coisa e não seduzir
um coração que deve ser só meu.

Célia: A declaração é bastante ingênua.

Sganarelo: (À sua mulher) Ninguém te chamou, sua atrevida. Vens descompô-la


porque ela me defende, e treme de medo que ela tome seu amante.

Célia: Ide, não penseis que alguém vos inveja. (Voltando-se para Lélio) Vós vereis
se isto é mentira.

Lélio: Querem me meter numa cilada?

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Criada: Francamente não sei quando vai acabar esta embrulhada! Quanto mais
escuto menos entendo. Não há outro meio senão me meter na dança. (Coloca-se
entre Lélio e sua ama) Respondam-me por ordem e deixem-me falar. (A Lélio) O
senhor, que tem para censurar?

Lélio: Que a infiel me abandonou por outro e quando soube do boato, vim
correndo como um louco, chego aqui, e já a encontro casada.

Criada: Casada? Com quem?

Lélio: (Mostrando Sganarelo) Com ele.

Criada: Como , com ele?

Lélio: Então!

Criada: Quem que disse pro senhor?

Lélio: Ele mesmo esta manhã.

Criada (A Sganarelo) É verdade?

Sganarelo: Eu? Eu disse que era casado com minha mulher.

Lélio: Mas, eu vos vi todo perturbado por causa do meu retrato.

Sganarelo: Isto é verdade. Aqui está ele.

Lélio: (A Sganarelo) E você havia me dito que o tinha achado nas mãos da sua
mulher.

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Sganarelo: Sem dúvida (Mostrando sua mulher) Eu o arranquei de suas mãos e
senão o fizesse não saberia de seu pecado.

Mulher: O que você está dizendo seu idiota? Eu o encontrei por acaso no chão. E
mesmo depois da sua raiva estúpida (Indicando Lélio), quando esse senhor sentiu-
se mal, eu lhe ofereci nossa casa e nem reparei que era o mesmo do retrato.

Célia: Fui eu a causadora de tudo, por ter perdido o retrato. Deixei-o cair quando
desmaiei e este senhor teve a bondade de me levar para casa.

Criada: Estão vendo? Sem mim, você ainda estaria às cegas.

Sganarelo: (À parte) Hum! Será que isto está bem contado? Se é verdade, passei
um calor...

Mulher: As minhas suspeitas ainda não estão completamente dissipadas. E, ainda


que seja um mal que não mata, eu acho que estou sendo enganada.

Sganarelo: (À sua mulher) Olhai mulher, será bom que nos tornemos
mutuamente por gente de bem. Olhai que estou arriscando mais do meu do que do
teu. Aceita, portanto a proposta, sem mais cerimônias.

Mulher: Seja. Mas muito cuidado, se eu vier a saber de alguma coisa.

Célia: (A Lélio, com quem esteve conversando baixo) Ai, meu Deus, se é assim, o
que eu fui fazer? Julguei-te infiel, por vingança, resolvi obedecer a meu pai, e dei há
pouco o meu consentimento a outro pretendente. O que me desola é que prometi a
meu pai. Mas aí vem ele.

Lélio: Há de cumprir-se a primeira palavra.

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Cena XX

Os mesmos e Gorgibus

Lélio: Eis-me senhor, de volta a este lugar, ardendo nas mesmas chamas do meu
ardente amor. Verei, como espero, ser cumprida a promessa que me deu a mão de
Célia.

Gorgibus: Senhor, que está de volta a este lugar, ardendo nas mesmas chamas e
cujo ardente amor veria, como esperáveis, ser cumprida a promessa que vos dava a
mão de Célia. Lamento por ora dizer-lhe que a mão de Célia já foi dada.

Lélio: Como?! É assim que você trai minhas esperanças?

Gorgibus: Sim, senhor. É assim que eu cumpro com meu dever. Minha filha me
obedece.

Célia: Meu dever obriga-me, meu pai, a cumprir a promessa que eu lhe fiz.

Gorgibus: Então é assim que uma filha obedece às ordens de seu pai? Ainda há
pouco era Valério... Mas que confusão dos diabos a senhorita me apronta!

Criada: Senhor Gorgibus, permita-me entregar-lhe esta carta que recebi hoje de
manhã de um mensageiro.

Gorgibus: De quem é a carta?

Criada: Do senhor Villabrequim, o pai de Valério.

Célia: Leia em voz alta, meu pai.

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Gorgibus: (Limpa a garganta e enche os pulmões de ar) “Caro senhor Gorgibus,
um segredo importante que soube hoje cedo me obriga a quebrar a palavra
empenhada. Meu filho, que vossa filha aceitava como marido, casou-se
secretamente há quatro meses com Lisa, e como os pais, os bens e os títulos, me
impede absolutamente de romper aquela aliança, eu venho...”
Basta! Não preciso ler mais nada! Se Valério se casou sem a licença do pai, devo
lhes dizer que há muito tempo a mão de Célia foi prometida por mim mesmo ao
senhor Lélio, que tendo regressado, me exige o cumprimento da promessa.

Criada: É uma escolha encantadora.

Lélio: E este anjo irá coroar minha vida com uma felicidade eterna (Beija as mãos
de Célia e os dois se abraçam)

Gorgibus: Vamos escolher o dia para a festa. (Saem todos os personagens


comemorando)

Sganarello: (Só) Alguém se julgou mais traído do que eu? Vede como a simples
aparência pode pôr na cabeça uma falsa crença. Lembrem-se sempre deste exemplo,
e quando virem tudo, não acreditem nunca em nada.

Pano

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