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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

FEMINA SILENCIATA
A MULHER NA PERSPECTIVA DOS CLÉRIGOS MEDIEVAIS

Andreia de Almeida

2
Nenhuma religião ou visão do mundo glorificou e honrou tanto a mulher
como o cristianismo.

Haering

3
ÍNDICE

INTRODUÇÃO 5

1. A Biologia Sexual na Idade Média 9

2. A Difícil Arte de Amar nos Tempos Medievais 15

2.1. Os Modelos de Masculinidade 17


2.1.1. A Masculinidade entre o Clero 18
2.1.2. A Masculinidade dos Cavaleiros 19
2.1.3. A Virilidade das Classes Inferiores 20
3. Clero Regular e Secular: Relações com o Feminino 22

4. Os Modelos de Feminilidade preconizados pelo Clero 27


4.1. Eva 29
4.2. Maria 31
4.3. Maria Madalena 32
5. A Mulher sob Tutela: O Casamento 35

CONCLUSÃO 41

BIBLIOGRAFIA 44

4
INTRODUÇÃO

Estêvão de Fougères, ordenado bispo de Rennes, em 1168, dedicou parte da sua


vida a escrever hagiografias. No entanto, o seu relato sobre a vida de Guilherme Firmat,
merece-nos especial atenção. Estêvão descreve a vida deste eremita francês, canonizado
pela Igreja Católica, relatando-nos um episódio durante o qual o santo é tentado pelo
Demónio. Uma tarde, tentando alhear-se do mundo, Guilherme retirou-se para uma
cabana, num recôndito bosque, na tentativa de reflectir sobre si próprio. Quando a noite
caiu, Guilherme sentiu alguém bater à porta. O eremita correu a abri-la e, diante de si,
apareceu uma jovem mulher que, assustada e faminta, lhe pediu abrigo. Guilherme
acolheu-a e alimentou-a. Em troca, a mulher tentou seduzi-lo. O homem que habitava
em si não conseguiu resistir! Satanás provocava-o com o desejo ardente, que o
consumia como labaredas de um fogo incorpóreo. No entanto, num vislumbre de razão,
fugindo à tentação que o corroía, Guilherme tirou um tição do lume que crepitava na
lareira, e queimou a sua própria carne, perante o olhar incrédulo da mulher…

Esta narrativa do bispo de Rennes parece ser bastante explícita no que respeita à
visão dos homens da Igreja face às mulheres. A mulher aparece como o instrumento de
tentação, causa primeva e derradeira da decadência do Homem, o fruto do pecado. Ela é
a raiz de todo mal, o símbolo de tudo aquilo a que estes homens tentam fugir. Para eles,
todas elas são Eva, embora consigam encontrar modelos bíblicos alternativos, onde vão
encaixar uma minoria de mulheres! Estes homens de Deus fogem do pecado da carne,
da luxúria que os sobressalta, da sua própria natureza… Neste sentido, inundados pelo
medo da tentação, estes clérigos vão desenvolver uma literatura misógina, praticamente
a única que chegou até nós sobre as mulheres durante a Idade Média. A razão é óbvia:
eles detêm o monopólio do saber e da escrita logo, da transmissão da informação!

É através das palavras inflamadas destes clérigos, proferidas durante a eucaristia,


que a mentalidade dos cristãos medievais, dessa horda de gente simples que teme pelo
fogo do inferno, que tem como objectivo único a salvação da sua alma, se vai formando.
São estes eclesiásticos, pois, os verdadeiros opinion makers da época em questão, um

5
tempo em que a comunicação se exercia de modo pessoal e directo. É, pois, também,
nesse sentido, que vale a pena escutá-los. É meritório observar as suas palavras num
período tão díspar do actual, no qual cabe ao Estado uma função de ordenação e de
regulação das relações sociais e dos interesses individuais e colectivos. Todavia, durante
a Idade Média, tal não acontecia assim. Longe da secularização, era à Igreja que cabia a
regulamentação da vida em sociedade, era a ela que reis e imperadores deviam
obediência. Segundo Santo Isidoro de Sevilha, o rei servia para fazer cumprir pela força
o que os sacerdotes não conseguiam pela palavra. E esta noção de Braço Secular foi
fulcral na teoria política medieval. Isto não significa um aumento do poder real, porque
o monarca passa a ser necessário apenas com o propósito bélico, podendo a não
consumação desta função ser argumento válido para o depor. É por este motivo que
estes clérigos, mais do que liberdade de informação (liberdade que protege um todo
constituído pelo direito a ser informado, a formar a opinião e a exprimi-la), possuem
uma obrigação de transmitir a sua verdade para que todos possam conhecer o caminho
de Deus.

Todavia, não cabe ao homem actual fazer juízos de valor sobre estes tempos
idos, nem sequer sobre estes clérigos. Tal incorre no perigo, tão assustador para
qualquer historiador: o do anacronismo! É, na verdade, um erro observarmos os homens
de ontem com os olhos de hoje! Nem poderemos, contudo, cair no erro de considerar os
homens semelhantes, independentemente das épocas em que tenham vivido.
Biologicamente tê-lo-ão sido! Todavia, as suas mentalidades terão sido moldadas de
acordo com as circunstâncias, como um pedaço de barro ao sabor de duas mãos eleitas.

Na verdade, estes clérigos parecem deturpar a mensagem de Jesus, escrita nos


Evangelhos. Através da narração dos seus primeiros seguidores, podemos constatar que
Jesus não despreza as mulheres, nem teme macular-se pelo facto de andar na sua
companhia. Cristo vai mais além, mostrando mesmo uma aproximação positiva em
relação a elas. Admite-as perto de si, como vimos relatado com Maria Madalena ou com
a Samaritana. Na verdade, um certo número de jovens judias começa a adquirir o hábito
de acompanhá-l’O pelas estradas da Galileia, juntamente com os seus discípulos. Jesus
fala-lhes, conversa com elas como pessoas de pleno direito! As mulheres estão, ainda,
presentes, em número significativo, no momento da sua crucificação. Mais fiéis, mais
crentes ou mais pacientes que os discípulos, elas esperam diante do sepulcro. São as

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primeiras a aperceberem-se da ressurreição de Cristo e é a elas que Ele vem ao
encontro, pela primeira vez, após vencer a morte. Perante isto, é insustentável negar o
cuidado e o respeito com os quais Jesus tratava as signatárias do sexo oposto, numa
altura em que estas eram afastadas de tudo aquilo que era considerado importante,
inclusive do ensino da Torah.

Paulo de Tarso, um dos primeiros, senão o doutor da Igreja por antonomásia,


contribuiu para o agravamento do destino da mulher, acabando por submetê-la
expressamente ao homem, coisa que Jesus parece nunca ter cogitado. São Paulo é pouco
favorável ao casamento e à fecundidade. Ele acredita, sobretudo, nos benefícios da
virgindade! Tudo o que defende é inspirado na filosofia grega, na qual a mulher aparece
sempre como um fogo incendiário. De facto, o medo e a desvalorização da mulher não
são uma invenção do cristianismo! Poderemos esquecer o mito de Pandora, tão
intrínseco aos Gregos, como o episódio do jardim do Éden aos hebreus? Pandora
introduziu o mal entre os helénicos, tal como Eva entre os judaico-cristãos. Esta visão
corrompida do género feminino influenciou os sábios cristãos medievais, como Isidoro
de Sevilha, Alberto, o Grande ou Tomás de Aquino. Eles irão repetir e insistir que a
mulher é uma falha da criação…

Vários historiadores da actualidade, como Georges Duby ou Michelle Perrot,


entre outros, têm reflectido sobre o papel da mulher durante a Idade Média.
Praticamente todos corroboram a existência de uma atitude misógina entre os
representantes do clero. No entanto, não podemos, nem devemos ser completamente
taxativos! No tempo da exaltação do culto da Virgem Maria e do nascimento da
devoção a Maria Madalena, existiam claras diferenças entre os membros do clero
regular, encerrados nos seus mosteiros, e do clero secular, vivendo em comunidade.
Diferenças notórias no que era respeitante ao contacto com o sexo feminino. São essas
nuances, que ao longo deste trabalho tentaremos diferenciar. São esses homens, que
escreveram sobre mulheres, que tentaremos conhecer com maior profundidade. Só
assim poderemos compreender a sua forma de percepcionar o feminino.

De facto, traçar o percurso das mulheres na História não se revela uma tarefa
fácil. O primeiro obstáculo que se coloca no caminho do investigador prende-se com a
escassez de fontes. Poucos são os documentos que chegaram até nós, escritos pelos

7
punhos dessas mulheres, reveladores da sua própria visão do mundo. Neste sentido, o
vislumbre que podemos alcançar da mulher medieval é a visão que os clérigos, homens
de Deus, possuíam sobre ela. Visões de homens, entregues aos seus próprios
preconceitos, obrigados pela fé a manterem-se longe delas, a temê-las. No entanto, seria
essa visão representativa do quotidiano dessas mulheres? Ou apenas um reflexo
vacilante da sua própria existência? Nesta linha de pensamento, tornar-se-iam
imprescindíveis estudos que contemplassem a temática feminina na sua vertente
introspectiva, isto é uma visão da mulher sobre si própria. No entanto, o investigador ao
tentar fazer este tipo de abordagem embate sempre com o problema da escassez de
fontes. Poderá um oleiro trabalhar sem barro?

Para terminar, falta-nos revelar o objectivo primevo deste trabalho. Porque falar
de mulheres é também falar de homens, tentaremos dar algum protagonismo às
mulheres medievais, servindo-nos das penas dos homens de Deus, que tanto se
esforçaram para as denegrir. É a história dessa misoginia eclesiástica que pretendemos
descrever…

8
1. A BIOLOGIA SEXUAL NA IDADE
MÉDIA

Fig: Adão e Eva no Paraíso, de Lucas Cranach o Antigo (1472-1553), Berlim, Gemäldegalerie.

9
A subalternização da mulher em relação ao homem, durante a Idade Média,
baseava-se claramente numa teorização sustentada biologicamente. Fenómeno do qual
não devemos demonstrar especial estranheza, pois que ainda há poucas décadas foi
fundamento bastante para o extermínio de milhares de judeus. Conhecer as teorias que
pretensamente o comprovariam parece ser de especial interesse no âmbito desta
narrativa. Teorias elaboradas numa perspectiva da mais pura anti-ciência, pois que o seu
objectivo não seria a verificação de hipóteses, mas a confirmação de um resultado
considerado de uma verdade inabalável, verdadeiro dogma sexual: a inferioridade da
mulher! Na realidade, na Antiguidade Clássica acreditava-se que a diferença sexual não
derivava das características anatómicas, mas, sim, da mistura de 4 elementos que
compunham o mundo 1:

- Fogo (quente e seco)


- Ar (quente e húmido)
- Água (fria e húmida)
- Terra (fria e seca)

Nesta perspectiva, o corpo humano era composto por 4 humores:

- Bílis Amarela (quente e seca como o fogo)


- Sangue (quente e húmido como o ar)
- Fleuma (fria e húmida como a água)
- Bílis Negra (fria e seca como a terra)

Para os Gregos, o calor era a fonte da vida. As coisas quentes e secas eram
colocadas acima de todas as coisas. Os homens eram quentes, o princípio activo da vida,
enquanto as mulheres eram frias e passivas. Tal era a explicação para a diferença entre
sexos. Para Aristóteles, homens e mulheres eram princípios para os quais os órgãos

1
Cf. Marcel Bernos et all. - O Fruto Proibido. Lisboa: Ed. 70, 1991, p. 25.

10
reprodutores eram simples instrumentos. O princípio masculino era a fonte da vida e
punha o mundo em movimento, enquanto o feminino era passivo e dependente do outro.

Para Galeno, as mulheres tinham órgãos sexuais iguais aos masculinos mas
recolhidos no interior do corpo, porque a falta de calor fazia com que se albergassem.
Para Vesalius, o órgão sexual feminino era um pénis recolhido dentro do corpo.
Consideravam, assim, o princípio feminino como o negativo do masculino, incompleto
e inacabado. Segundo a teoria de Galeno, era possível uma mulher transformar-se em
homem, facultando-lhe o calor necessário. A parte mais nobre do ser humano era os
testículos, local onde era cozido o sangue. O esperma era considerado sangue cozido
introduzido na mulher. Para Aristóteles, era o esperma que fazia cozer o sangue
menstrual e que originaria a vida 2.

Na Idade Média, a tradição clássica foi mutilada pelas traduções feitas pelos
árabes. O livro Gynaecia, de Sorano de Éfeso, grego do século I, foi traduzido pelo
monge Moschion, do século VI. A obra de Nemésio de Émeso, De Natura Hominis, foi
traduzida no século XI por Alfano de Salerno. As traduções dos séculos XI e XII são as
mais importantes. Constantino, o Africano foi um tradutor e professor nas primeiras
universidades em território europeu, nomeadamente em Salerno, Itália, seguido de
Bolonha e Montpellier. Estas obras clássicas traduzidas terão grande difusão e vão
constituir a base do estudo médico. São elas:

- Pantegni, de Ali – Ibn – Abbas


- Viaticum, de Ibn – al – Jazzar
- De Coitu, do mesmo autor
- Dyspermate, atribuído primeiramente a Galeno, mas que actualmente não é imputado a
tal autor.

Estas obras foram essenciais para a concepção medieva dos órgãos sexuais. No
século XII, Gerardo de Cremone traduz novas obras importantes:

- Cânon, de Avicena

2
Cf. Vern L. Bullough e James A. Brundage (ed.), Handbook of Medieval Sexuality, London : New
York, Garland Publ., 1996, p. 45.

11
- Libera ad Almansorem, de Rhazés

No século XIII, Guilherme de Moerbecke vai traduzir De Animalibus, de


Aristóteles. No século XIV, De uso partium, de Galeno. Estas obras já eram, no entanto,
conhecidas pelas citações de outros autores. Avicena, no Cânone, retomou a afirmação
de Galeno, de que os órgãos sexuais femininos são negativos dos masculinos. Embora,
no século VI, Moschion tivesse identificado o clítoris, os tradutores cristãos traduziram
a obra sem lhe fazer referência, não lhe reconhecendo qualquer especificidade 3.

As primeiras dissecções, realizadas durante o século XIII não alteraram este


cenário. Os corpos utilizados na dissecção são corpos de criminosas ou mulheres da
vida, pessoas desqualificadas. A observação directa destes vai provocar uma série de
constatações como a de Mondino Luzzi, na sua obra Anatomia, que revela ter
encontrado no útero feminino as 7 células que os autores antigos encontraram no útero
das porcas. Estes compartimentos permitiam a coagulação do sangue em contacto com o
esperma.

O sangue menstrual era constituído pelos resíduos do sangue que não tinha sido
cozido e refinado devido à falta de calor. Seria um sangue nocivo que tinha de ser
expulso regularmente. Aristóteles exclamava que as mulheres não produziam mais
nenhuma secreção do que o fluxo menstrual. Galeno e Hipócrates defendiam a
existência de um esperma feminino que, segundo eles, era a contribuição das mulheres
para a geração. O embrião seria gerado através da junção dos dois espermas, masculino
e feminifo. Esta concepção teve, no entanto, efeito positivo na condição feminina.
Apenas o prazer da mulher era essencial à reprodução, por gerar a libertação de
esperma. Logo, aos homens era necessário gerar o orgasmo feminino. O facto de as
mulheres produzirem fluxo seminal e não o poderem consagrar era considerado lesivo
para elas e causa da histeria feminina 4.

A existência de dois sémenes e a teoria dos humores passaram a explicar o sexo


do embrião. Crianças geradas na parte esquerda do útero (mais fria e húmida) seriam

3
Cf. Jacques Le Goff e Nicolas Truong, Une histoire du corps au Moyen Âge, s. l., Liana Levi, 2003,
p.121
4
Cf. Vern L. Bullough e James A. Brundage, op. cit., p.54.

12
meninas. As crianças geradas na parte direita (mais quente e seca) seriam meninos. Da
mesma forma, o esperma produzido no testículo esquerdo originaria uma menina e no
testículo direito, um menino. Durante o século XVI este cenário não se alterou.
Contudo, na opinião de humanistas, houveram algumas interpretações de textos mais
antigos num sentido mais favorável para as mulheres.

Marie Le Jars de Gournay, numa obra de 1622, L’Egualité entre les Hommes et
les Femmes, contrapõe a teoria aristotélica e evoca a noção bíblica de uma criação
andrógina e interpreta ambas as teorias da criação para reclamar uma idêntica força para
ambas. Marguerite Buffer, em 1668, escreveu Novelle Observation sur la Langue
Francaise, que defendia os mesmos ideais. Um autor alemão, Henricus Aggripa von
Nettersheim, de 1532, na obra A Proeminência do Sexo Feminino sobre o Masculino,
desenvolve a teoria de que as mulheres, tendo sido criadas depois do homem,
mostravam a sua superior dignidade, não tendo sido feitas de barro, mas sim de carne
humana. A Revolução Científica do século XVII não vai alterar significativamente estas
observâncias. Descartes e Bacon (sec. XVII), Locke e Leibniss (sec. XVIII) não
alteraram este quadro, apenas deram à mulher um papel mais equitativo na sociedade.
Distinguem entre o corpo e o espírito, afirmando que as almas possuíam igual
capacidade. François Poulain de La Barre (1647-1725), autor jesuíta, utilizou os
métodos cartesianos para observar que não há diferenças significativas entre os sexos.

A partir de finais do sec. XVI, a teoria de Galeno é ultrapassada, passando a


considerar-se os órgãos sexuais femininos como órgãos próprios, únicos e capazes de
gerar novas vidas. Surge uma corrente científica, denominada de Prefermacionista, que
considera que, no esperma ou nos óvulos, já se encontram formados todos os seres
humanos futuros. Dá-se, assim, uma cisão entre espermistas e ovistas (principais
defensores da dignidade das mulheres) 5. A escola Epigenista considerava os fetos como
organismos simples que se desenvolviam e se aperfeiçoavam e para a sua formação
tanto era importante o homem como a mulher. Os outros órgãos corporais,
independentemente dos sexuais pareciam ser iguais entre os sexos. Vesalius constrói
manequins de esqueletos para aulas de anatomia, em que ambos eram iguais. O

5
Cf. Marcel Bernos et all, op. cit, p.67.

13
dismorfismo sexual ainda não era conhecido. Seria falta de observação? Ou alguns
princípios da Medicina antiga continuavam a ser inconscientemente aceites?

William Cowper, em 1697, escreveu The Anatomy of Humam Body, onde narra
que a diferença de gordura entre os corpos era devida à frieza da mulher, logo não
derretia. O maior calor também era responsável pelo maior desenvolvimento do cérebro
nos homens, como defendia William Harvey na sua obra Lectures on the whole of
Anatomy of the Male and Female Body. A teoria dos humores, que já tinha
desaparecido, reaparecia agora para responder a novas perguntas.

Em finais do sec. XVIII, a relação entre homens e mulheres deixa de ser de


desigualdade para ser uma relação de diferença. Passam a existir representações de
esqueletos femininos e masculinos, mas com as diferenças muito mais acentuadas do
que as reais: o crânio feminino é excessivamente pequeno quando comparado com o do
homem; a sua caixa torácica é excessivamente pequena; as costelas representam-se mais
estreitas; a bacia exageradamente aumentada; um excessivo comprimento do pescoço,
que parece transparecer uma associação entre as mulheres e as aves. O homem era
associado ao cavalo, com a sua força possante e um maior tamanho das pernas. As
representações dos esqueletos eram, pois, o espelho de ideais de beleza da época. No
século XIX esta diferença na representação dos esqueletos começou a espelhar as
diferenças raciais através do tamanho do crânio. A mulher branca situava-se, umas
vezes à frente, outras atrás do homem negro, enquanto a mulher negra era sempre a base
de uma pirâmide hierarquizavel. Era o homem branco que servia de modelo para todos
os seres humanos…

14
2. A DIFÍCIL ARTE DE AMAR NOS
TEMPOS MEDIEVAIS

Fig: O Bordel, Valério Máximo. Paris, Bibl. Nacional, Ms. Fr. 289, fl. 414v.

15
No período do Alto Império Romano observou-se uma contenção da sexualidade,
típica sobretudo das classes superiores: o puritanismo da virilidade. Tocava os homens
ligados ao poder que consideravam que, para o exercício de cargos públicos, era
necessário um auto-controlo, pois o bem público tinha que ser mais importante do que o
bem privado. Logo, não poderia existir um excessivo amor à família, de tal ordem que
ultrapassasse o amor pelo Imperador. O cristianismo tornou mais ampla a adesão a este
pensamento com origem grega. Na sua génese um comportamento minoritário e típico
de uma camada masculina e superior, vai passar a disseminar-se à grande massa
populacional. Observemos as palavras de São Jerónimo, na sua obra Contra Joviniano:

«Na verdade, em relação à esposa alheia, todo amor é vergonhoso; em relação à


própria, apenas o amor excessivo. O homem sábio deve amar a sua mulher com
entendimento, não com paixão. Que ele domine o arrebatamento da volúpia e não se
deixe arrastar precipitadamente para a cópula. Nada há de mais infame do que amar
uma esposa como uma amante. Que aqueles que dizem juntar-se às suas esposas em
benefício da coisa pública e do género humano e para criar filhos, imitem ao menos os
animais e, quando o ventre das suas esposas tiver inchado, não corrompam as
crianças. Que não se apresentem às suas esposas como amantes, mas como maridos.»

A carne e o sexo, a comida, a bebida, o repouso, os cuidados do corpo vão passar a


constituir pecados mortais. O pecado sexual, a luxúria, vão ser socialmente
estigmatizados. Desde muito cedo se ligou o pecado original à descoberta do sexo.
Santo Agostinho identifica o pecado original com o desejo, com a descoberta da nudez e
o desejo sexual. A Igreja vai, pois, procurar exercer um controlo estrito entre o que é
lícito e o que é ilícito. Mesmo no seio do matrimónio, o amor excessivo é considerado
um pecado. Durante os primeiros séculos até ao ano 1000 foram redigidos livros
penitenciais, guias para sacerdotes a utilizarem durante a confissão, que demonstravam
as penas exigidas para cada um dos pecados apontados 6.

6
Cf. Georges Duby (introd.), Amor e sexualidade no Ocidente. Lisboa, Terramar, 1990, p. 4.

16
Durante festas como o Natal, Páscoa, Pentecostes, festas dedicadas ao culto de
Maria, que se foram multiplicando durante a Idade Média, eram proibidas as relações
sexuais. Nas vigílias, isto é, na noite anterior a estes festejos, estava também proibido o
contacto íntimo. Tal acontecia, da mesma forma, durante o Domingo e sua vigília. Ou
durante as três Quaresmas: 40 dias antes da Páscoa, 40 dias antes do Natal (Advento), e
40 dias antes do Pentecostes. Para além do calendário litúrgico comum existiam outras
proibições: menstruação da mulher, gravidez (desde o momento da concepção ou
quando a criança começava a mover-se) e 40 dias após o parto. Estes últimos eram
princípios ancestrais, de impureza e derramamento de sangue. Ao calendarizar estas
proibições, chegamos à conclusão de que os casais, durante a época medieval, poderiam
apenas usufruir de 4 a 5 relações sexuais durante um mês, gerando duas a três
concepções num período de 4 anos 7.

2.1OS MODELOS DE MASCULINIDADE

Se, na verdade, procuramos compreender a opinião dos clérigos medievais sobre


as mulheres, é importante que compreendamos estes homens como aquilo que
biologicamente eram: homens. Quais os modelos de masculinidade que os regiam? O
que os tornaria verdadeiramente másculos? As informações de que dispomos provêm de
autores masculinos e eclesiásticos. Estes estudos, na verdade, são mais recentes do que
os estudos sobre as mulheres, havendo-se iniciado desde finais dos anos 90 e inícios do
2º milénio. Na verdade, não existe uma masculinidade, mas várias masculinidades
diferentes entre classes sociais, entre civilizações e entre tempos históricos. Ao nível
mais básico foi-se procurar na Psicologia e na Psicanálise a constituição da
masculinidade. Para Freud, através de uma teoria bastante contestada, a sexualidade
humana é marcada pela existência de um falo como símbolo de poder e pelo medo da
castração, da privação do falo e, logo, da privação do poder.

Segundo o mesmo autor, a identidade sexual seria mais fácil na mulher, por
associação com a mãe. No homem, a identidade sexual estava ligada com a separação
da mãe e a identificação com o pai. Nos rapazes deveria de haver, pois, uma ruptura
com a figura materna. Os psicólogos consideram, pois, que a masculinidade não é algo

7
Cf. Vern L. Bullough e James A. Brundage, op. cit., p. 67

17
que se tem, mas é algo que tem que ser reafirmado constantemente, sendo marcada pela
recusa de ser feminino. Ponderam, nesse sentido, que a masculinidade se pode resumir
numa trilogia o património masculino comum:

- seduzir e emprenhar mulheres – potência sexual


- capacidade de sustento da família
- protecção dos dependentes e amigos

Na Idade Média, existem várias masculinidades, existindo algumas mais


dominantes e outras que vão ser dominadas. Cada uma procura a hegemonia,
desvalorizando as outras, acusando-as de não serem verdadeiros modelos da
masculinidade. A sexualidade ligada ao clero é distinta da ligada aos cavaleiros. Qual
das duas seria dominante? Claramente a do Clero, com o seu poder económico, político
e ideológico. A masculinidade do clero espelha, no entanto, a masculinidade dos
cavaleiros. A doutrina católica foi sempre no sentido de os membros do clero não se
poderem casar e não desempenharem a sua sexualidade. Nos primeiros tempos,
contudo, a virgindade era apreciada, mas não era necessária! Bastava o clérigo manter-
se continente após a conversão8.

2.1.1 A MASCULINIDADE ENTRE O CLERO

Nos primeiros séculos da Idade Média, as famílias entregavam aos mosteiros um


dos seus filhos para aí ser criado. Estas crianças, desenvolviam, assim, uma identidade
de género que não era completamente masculina, nem feminina, porque não eram
educados por mulheres. Estas crianças eram denominadas de oblatos e a sua identidade
de género seria uma espécie de um terceiro género, intitulado por alguns autores de
emasculino9. Nos mosteiros, a disciplina ia no sentido de acalmar os desejos através da
utilização de silícios, da penitência e de outros instrumentos de punição da carne, como
forma a impedir o pecado.

Para o clero secular, que vivia no meio da sociedade, o desenvolvimento da sua


identidade sexual era masculina, necessitando de um maior esforço de continência na

8
Cf. Georges Duby, As três ordens ou o imaginário do feudalismo, Lisboa, Ed. Estampa, 1982, p. 34.
9
Cf. Jacques Le Goff e Nicolas Truong, op.cit, p. 67

18
idade adulta. No entanto, abundavam os filhos ilegítimos dos clérigos, sendo
encontrados, por vezes, vários filhos da mesma mulher, o que significa que estes
possuíam relacionamentos prolongados com uma companheira, chamada barregã, de
tipo conjugal. Tal pode ser provado através das legitimações dos filhos nos seus
testamentos, nos quais os sacerdotes deixam, por vezes, os bens aos filhos e às barregãs.
Esta ligação é, por vezes, escamoteada por uma linguagem metafórica, na qual as suas
companheiras são apresentadas como serventes. Nesta perspectiva, a igreja católica
dava indicação que os clérigos deveriam ter serventes maiores de 50 anos e com laços
de familiaridade com eles. Os filhos eram tratados como afilhados ou sobrinhos para
esconderem tal situação escandalosa.

Os clérigos também sustentam os seus filhos, fomentando os seus estudos e


dando-lhe rendimentos para se deslocarem com esse intuito. Por vezes, deixam-lhes o
seu benefício eclesiástico, por renuncia. Outra forma de tratamento dos filhos era por
criados nascidos na sua casa. Na verdade, os sacerdotes também se comportavam com
os seus filhos de uma forma protectora. Gostavam de se vestir bem, com cores e
formatos que não eram os mais adequados à sua postura. Disfarçavam a tonsura para
fingirem que não eram clérigos, não andando sempre com a barba aparada 10. Não
podiam usar armas, exceptuando os que pertenciam às ordens religiosas militares. Era
criticado o seu gosto pela caça, por beber, comportamentos típicos da virilidade dos
membros da aristocracia, dos cavaleiros. Os membros do clero das classes mais
inferiores identificavam-se com os modelos de virilidade das classes mais pobres,
baseados na bebedeira e na fornicação. Os eclesiásticos mais ligados à vida espiritual
seriam, pois, os precursores do 3º género.

2.1.2 A MASCULINIDADE DOS CAVALEIROS

A identidade sexual dos cavaleiros enraíza-se nas tradições dos povos bárbaros
no seio do Império Romano, exprimida no domínio pela força. É a força que permite
submeter as mulheres e outros homens inferiores. Prestam o culto do corpo perfeito,
robusto, detentor de grande potência, valorizando qualidades como a coragem, a
resistência, e valores morais como a lealdade, a fidelidade. Toda esta exuberância era

10
Cf. Jacques Le Goff e Nicolas Truong, op.cit, pp.100-102.

19
violenta e perigosa. A força bruta era disciplinada pela Igreja, que lhe introduziu alguns
valores, canalizando a violência para os não Cristãos e o auxílio aos desprotegidos
(mulheres solteiras, viúvas, crianças e inválidos).

Se exprimem a sua virilidade na guerra, os cavaleiros também a mostram


protegendo as damas, os pobres e pondo-se ao serviço dessas damas através do amor
cortês. Outra forma de canalizar a violência é o amor cortês, que obriga a uma educação
no seio da corte para um correcto linguajar, versejar, dançar e boas maneiras, dotes que
se vão tornando mais importantes11. Os cavaleiros também deviam formar família. Na
sua juventude, a sua masculinidade estava ligada à tomada de afecto com mulheres de
outras classes sociais, muitas vezes violadas. Mais tarde, ao casamento e à sua numerosa
prole. Duby, diz-nos que, para casar, o cavaleiro tinha que ter sustento para a família.
No norte da Europa, os bens eram divididos pelo primogénito e pelas raparigas. Os
outros filhos iam para um mosteiro ou tornavam-se cavaleiros andantes, pois não tinham
forma de sustento, logo não se podiam casar, indo muitos deles engrossar o contingente
humano das Cruzadas. As mulheres sem dote eram enclausuradas num convento. Os
senhores, para além da sua família, tinham sob sua protecção dependentes, vassalos a
quem lhes atribuía um feudo pelos seus feitos militares.

2.1.3 A VIRILIDADE DAS CLASSES INFERIORES

A virilidade das classes inferiores era demonstrada através da constituição de


família e do emprenhamento de mulheres. Os servos, aprendizes, aproprietários, por
vezes não se casavam, mas juntavam-se. Os proprietários rurais, contudo, separavam
bem as águas, no sentido de transmissão do património. O problema entre lavradores e
mesteirais era o mesmo que entre os cavaleiros. Entre os lavradores mais ricos e os
chefes dos mestres, há um controlo da natalidade, havendo uma parte de excluídos. As
mulheres ficam em casa, controladas pelos familiares e os homens são remetidos para
uma marginalidade social patente nos meios urbanos. São jovens sem família legítima,
frequentadores das tabernas, que entram em convívio com homens e mulheres de má

11
Cf. Jean-Louis Flandrin, Un temps pour embrasser. Aux origines de la morale sexuelle occidentale
(VIe-XIe siècles), Paris, Seuil, 1983, p. 98.

20
vida, que não gerarão uma família digna. São os mais mobilizáveis para as revoltas de
tipo político existentes nas cidades, contra a miséria e os salários.

Entre os artesãos, a expressão da masculinidade dos mestres tem o mesmo


sentido que a dos camponeses. Os mestres têm controlo sobre outros da sua profissão,
regulando a prática do seu mester. A entrada para as corporações de mesteres no
governo da cidade acentuam o seu poder. Recebem o rei, entram nas procissões, com
funções de representação. Os companheiros e aprendizes que não têm fortuna para
ascenderem ao grau de mestre vivem sempre numa situação subordinada ao mestre. São
esses que não podem constituir família, servindo de mão-de-obra para revoltas contra a
autoridade12. São homens que, através da violência tentam reverter a sua situação,
exercendo violência sobre as mulheres.

Ruth Mazo Karras, estudou o comportamento sexual dos universitários, um meio


masculino de aspirantes a clérigos, no qual se procurava evitar o contacto com
mulheres. A autoridade eclesiástica pede-lhes que não casem, afastando-os das mulheres
da sua categoria social, o grande perigo de perda desses estudantes. É um meio onde
existe um homoeroticismo, com relatos de amizades entre colegas, e de alívio das
pulsões sexuais semelhantes aos seus contemporâneos citadinos. Revelam acreditar
numa superioridade da racionalidade masculina sobre a irracionalidade feminina. As
mulheres eram, para eles, seres nos quais a emoção se sobrepunha à razão. Vão afirmar-
se através do uso racional da palavra, diferente da palavra das mulheres, prolixa, sem
interesse. Têm comportamentos típicos dos jovens urbanos, mas também
comportamentos que os ligam ao clero.

12
Cf. Jean-Louis Flandrin, op.cit., p.54

21
3. O CLERO REGULAR E SECULAR:
RELAÇÕES COM O FEMININO

Fig: O Jardim do Amor, De Sphaera. Modena, Bibl. Estense, Ms. Lat. 209

22
Será que nos é possível avaliar aquilo que desconhecemos? Para melhor
compreendermos a substância da informação sobre o feminino veiculada por estes
clérigos, é importante termos consciência das suas verdadeiras relações com o sexo
oposto. O ascetismo não foi nem ensinado, nem praticado por Jesus. No entanto,
converteu-se numa característica do cristianismo, veiculado sobretudo pelos membros
das ordens regulares. A palavra monge, que advém do vocábulo monos, que significa
solitário, aparece pela primeira vez no léxico cristão por volta do ano 180. No entanto,
não podemos falar de um monaquismo cristão, propriamente dito, antes dos meados do
século IV. Terá sido a partir dessa época que alguns cristãos começaram a viver
sozinhos ou em grupo, não possuindo, no entanto, leis ou regras sólidas. Em 320, surgiu
em Tabennisi, no actual Egipto, um mosteiro dirigido por Pacomio, antigo soldado
romano. Foi este monge que terá escrito a primeira regra monacal, que impunha uma
disciplina militar e que, directa ou indirectamente, terá influenciado todas as regras
posteriores.

Apesar de, durante os primeiros séculos de cristianismo, o celibato não ser


levado em conta por muitos prelados, nomeadamente seculares, os monges norteavam-
se por um ideal extremamente exigente, no que era respeitante a tal virtude. O seu quase
total afastamento do mundo e, em particular das mulheres, por vezes desde a infância,
facilitava-lhes, de certo modo, a tarefa de não cederem às tentações da carne. De facto,
na Alta Idade Média, como já foi dito, era frequente os pais entregarem os filhos, de
tenra idade, a mosteiros para que neles fossem educados e viessem a tornar-se, anos
mais tarde, religiosos13. Essas crianças eram denominadas “oblatos”, constituindo o
gesto de seus pais uma atitude sacrificial destinada a atrair a benevolência de Deus para
com a sua família. No entanto, não podemos esquecer que tal postura possuía objectivos
materiais, como a protecção e o sustento dessas crianças e, quando muito, de todos os
seus parentes, pela comunidade cenobítica. Esta prática terá tido como consequência o
total desconhecimento por parte de alguns monges de uma vida familiar tradicional,
marcada pela presença masculina e feminina e pelos seus afectos inerentes. Muitos

13
Vide José Mattoso, “A cultura monástica em Portugal (975-1200)”, Religião e Cultura na Idade Média
Portuguesa, 2ª ed., Lisboa, I.N.C.M., 1997, p. 359.

23
destes religiosos guardavam apenas uma imagem longínqua de sua mãe, imagem muitas
vezes perdida na bruma dos tempos. A mãe, para muitos, a única mulher que
conheceram, era um espectro fugidio de um passado há muito esquecido…

No entanto, para além da vocação religiosa e dos objectivos materiais, existiam


um conjunto de outras razões que levavam os homens a ingressar numa ordem religiosa.
Nomeadamente, entre outros motivos, a fuga a um matrimónio contrariado ou a um
crime, tendo em conta que os conventos possuíam direito de asilo 14. Note-se que, Santo
Agostinho, apesar dos seus elogios aos monges, declarava que não conhecia pessoas
piores do que aquelas que acabavam nos mosteiros! Salviano, no século V, queixava-se
dos que se entregavam aos vícios do mundo debaixo do manto de uma ordem.

Para salvaguardar os monges da tentação carnal, tentação das tentações,


Pacomio determinou que se uma mulher dirigisse a palavra a um monge ao passar junto
dele, este deveria responder-lhe com os olhos fechados. Os beneditinos, por seu turno,
começaram a reger-se por uma estrita clausura. Os cluniacenses nem sequer deixavam
fixar mulheres nas proximidades do seu mosteiro, num círculo de duas milhas. Os
franciscanos, de acordo com a sua regra, deveriam ter cuidado com as mulheres e
nenhum deveria conversar ou simplesmente andar com elas, nem comer do seu prato
durante a refeição. São Francisco proibiu, ainda, os irmãos de estabelecerem qualquer
tipo de relação com mulheres e de entrarem em conventos femininos. Tudo com o
objectivo de não dar ao diabo nenhuma ocasião, como afirma no sínodo de 1212.

Qualquer transgressão era duramente castigada! Os penitenciais da Alta Idade


Média fixavam uma penitência de três anos para o monge que se envolvia com uma
mulher; se essa mulher fosse uma monja, a pena aumentaria para sete anos; se cometia
adultério teria que sofrer durante dez anos, seis deles a pão e água. Se a relação fosse
incestuosa, a penitência poderia chegar aos doze anos, metade deles a pão e água. No
entanto, apesar das punições, os prevaricadores pareciam abundar, como comprova a
preocupação com a elaboração dos penitenciais. Um pouco por toda a Cristandade,
existem relatos de monges libertinos. Segundo relatos da época, em Estrasburgo, os
dominicanos bailavam e relacionavam-se intimamente com as monjas de Saint Marx,

14
Cf. Karlheinz Deschner, Historia Sexual del Cristianismo, Zaragoza, Editorial Yalde, 1993, p. 133.

24
Santa Catarina e San Nicólas. Em Salamanca, os carmelitas descalços trocavam
frequentemente de mulher. Em Farfa, perto de Roma, os beneditinos viviam
publicamente amancebados. 15 Existem, ainda, relatos de abades com inúmeros filhos,
como o abade Clarembaldo de Santo Agostinho, de Canterbury, que foi pai de dezassete
crianças numa só aldeia.

Relativamente ao clero secular, encontramos uma diferente panorâmica. Durante


os primeiros tempos do cristianismo, a ordenação de homens casados, até mesmo como
bispos, foi uma prática corrente. No entanto, a partir do século IV, começou a ser
exigida uma coabitação casta ou a separação de corpos. Em contrapartida, se os
sacerdotes tivessem sido ordenados enquanto celibatários, já não poderiam casar. E
aqueles que eram casados, caso enviuvassem viam proscritos os seus segundos
casamentos. Estas restrições aplicavam-se apenas aos clérigos das ordens maiores,
podendo os restantes consorciar-se e constituir família. Gregório de Nazianzo (329-
389), doutor da Igreja, era filho de um bispo. No entanto, durante o século V, existem
relatos da descendência de certos bispos. Os prelados solteiros guardavam abstinência,
apenas voluntariamente. Quando São Patrício (372-461) foi enviado por Roma para
evangelizar a Irlanda, os sacerdotes casados apareciam como algo de completamente
banal. Durante o período merovíngio nunca tiveram a obrigação de dissolver o
matrimónio e a maioria mantinha relações com mulheres, sem necessidade de ocultá-lo.
Nem sequer os sínodos de Espanha, onde surgiu o primeiro decreto de celibato,
mencionam a abstinência do clero até ao raiar do século VI. Em Roma, já durante o
século X, registou-se a subida ao papado de vários filhos de sacerdotes. Inclusive,
houveram papas que eram filhos de outros papas, como foi o caso de Silvério e João XI.

No limiar do ano mil, surgiram novas ameaças para a sociedade cristã devido à
emergência da feudalidade. Foi no modelo monástico triunfante que os dirigentes
eclesiásticos foram inspirar-se para reformar a Igreja e garantir a preeminência do poder
espiritual sobre o temporal. Para serem aceites pelos fiéis como únicos interlocutores
legítimos entre Deus e os homens e poderem continuar a conduzir o povo cristão no
caminho da salvação, os oratores tinham de ser puros. Não só aqueles que viviam

15
Vide Karlheinz Deschner, op. cit, p. 135.

25
afastados do mundo, dedicados à oração e à penitência, mas também os que no século
dirigiam espiritualmente os crentes e lhes ministravam os sacramentos 16.

Leão IX (1049-1054) foi, de certo modo, o iniciador do movimento pelo celibato


preconizado pela Reforma Gregoriana. O pontifex ordenou que os sacerdotes
abandonassem as suas mulheres sob pena de perda de privilégios e sob ameaça de
suspensão permanente do seu ofício. Na realidade, Gregório VII não trouxe nenhuma
inovação, nem nos temas, nem nas penas. A única novidade que imprimiu foi a
austeridade com a qual pôs em vigor leis que já existiam, mas que habitualmente não
eram cumpridas. Novidade foi, talvez, a intolerância com a qual arruinou a imagem dos
sacerdotes casados, convertendo-os em concubinatários. No entanto, apesar de ilícito, o
casamento de clérigos continuava a ser válido. Foi o segundo Concílio de Latrão, em
1139, que decidiu que o casamento de sacerdotes passaria a ser inválido17.

No entanto, apesar do rigor imposto por esta reforma, muitos prelados


continuaram a infringir as regras de celibato. Existem, na verdade, indicações que nos
sugerem que muitos continuaram a manter relações com mulheres, desta feita
dissimuladamente. Na verdade, o clérigo secular ainda enfrenta mais um “perigo”: a
confissão. De facto, durante a confissão, oferecem-se amplas possibilidades de
sacrilégio. A Igreja tomou várias precauções nesse sentido. Proibiu a confissão às
escuras, em especial às mulheres, mulheres essas que nunca deveriam estar sozinhas
junto ao prelado. Os confessores, por seu turno, não deveriam contemplar a face dessas
mulheres, nem deveriam posicionar-se à sua frente, mas a um dos lados. O clérigo só
podia visitar as mulheres doentes perante duas ou três testemunhas, não sendo permitido
administrar o sacramento à porta fechada. Convidar as mulheres, pelo menos as mais
nobres, a confiarem-se a um homem da Igreja era tratá-las como pessoas, capazes de se
corrigirem. Mas, também, era capturá-las! A Igreja apanhava-as nas suas malhas….

Durante a confissão, as perguntas perpetuadas a um homem e a uma mulher


começam, também, a diferir. Esta divisão pelos dois sexos das questões formuladas
mostra bem que, já no inicio do século X, corria a ideia de que a natureza das mulheres

16
Cf. Georges Duby, As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo, p. 156.
17
Cf. Armando Martins, História do Cristianismo Medieval, Textos e Documentos, [Lisboa], Faculdade
de Letras, 2001, p. 54.

26
as levava a pecar de determinada maneira. Esta ideia vem, na verdade, de mais longe,
dos clérigos e monges carolíngios que redigiram penitenciais: Teodoro, Rabano Mauro,
Teodulfo, bispo de Orleans. O leque de penas prometidas às pecadoras é muito aberto,
entre três dias de privações a dez anos. De um ano a cinco ou seis vão as punições
severas que castigam a negligência com crianças, as diversas maneiras de enfeitiçar e de
tirar prazer com outras. Seis pecados são punidos com tanto rigor como o homicídio:
envenenar, contrariar o juízo de Deus com talismãs, ensinar práticas abortivas, entregar-
se ao mais abjecto dos desvios sexuais, a bestialidade, beber o esperma do marido, e
depois o sonho, sair de noite para regiões estranhas onde põem a grelhar o coração dos
homens. Para além da barreira dos sete anos contava-se o crime de abortar ou matar um
homem18.

Podemos, pois, concluir que estamos perante duas realidades distintas, no que se
refere ao contacto dos prelados com as mulheres. Os monges, almas solitárias que
vivem uma existência baseada na oração, no trabalho e na penitência, profundamente
ascética, possuem pouco contacto com o sexo feminino, salvo os prevaricadores que,
talvez não fossem assim em tão escassa percentagem. Os monges julgavam-se anjos.
Pretendiam, como estes, não ter sexo e viam honra na sua virgindade, professando
horror pela mácula sexual. Por seu turno, os sacerdotes do século, membros activos da
sociedade, possuem contactos oportunos e privilegiados com o sexo oposto. A Igreja,
por conseguinte, dividiu os homens em dois grupos. Aos servidores de Deus proibiu o
uso do seu sexo; permitiu-o aos outros nas condições draconianas que decretou. É esta
realidade, que terá consequências na sua visão sobre a feminilidade, que irá prevalecer
durante toda a Idade Média…

18
Cf. George Duby, As Damas do Século XII – Eva e os Padres., Lisboa, Teorema, p.36-37.

27
4. OS MODELOS DE FEMINILIDADE
PRECONIZADOS PELO CLERO

Fig: Madonna of the Meadow, de Giovanni Bellini, 1505, in National Gallery, London.

28
Envoltos no seu universo masculino, mais preponderantemente a partir da
Reforma Gregoriana, os clérigos mantinham-se fechados nos seus claustros, nos
scriptoria, nas escolas, nas faculdades de teologia… Os clérigos seculares preparavam-
se para a vida imaculada dos monges. A imagem da mulher, a cada dia, se desvanecia,
para a maioria daqueles que não transgrediam as regras de celibato. Cada vez mais
afastados do universo feminino, nomeadamente os membros do clero regular e os altos
prelados, olham a mulher com medo e estranheza. Ela pode ser percepcionada como
uma espécie de íman que os atrai e que, ao mesmo tempo, devem repudiar com todas as
suas forças. Ela é o desconhecido, o insondável, que clama incessantemente para ser
explorado. É o pecado, é a tentação demoníaca à qual o clérigo deve resistir com a força
da sua fé! A ideia da mulher obceca-os e é essa obsessão que estará na origem de uma
literatura misógina, levada a cabo por muitos destes sacerdotes. Para tal, baseiam-se nos
comentários dos padres dos primeiros séculos, alimentados pelas Escrituras e pela
tradição. De facto, não trouxeram nada de novo, porque estes autores medievais
detestam a ideia de novidade 19. É sempre do velho que eles fazem o novo.

Na viragem do século XI para o século XII, no oeste de França, um conjunto de


prelados assumem-se como os precursores da mais pura misoginia. Entre eles,
destacam-se Marbode de Rennes, Godofredo de Vandoma e Hildeberto de Lavardin.
Detemo-nos um pouco sobre estas três personagens, porque nelas poderemos rever a
convicção geral dos eclesiásticos coevos. Marbode e Hildeberto são de origem modesta,
produtos das escolas-catedrais. Por seu turno, Godofredo é da mais alta extracção,
proveniente de uma linhagem de barões. Entra em criança para um mosteiro beneditino,
tornando-se seu abade aos vintes anos, cargo que ocupará até à sua morte. Sabemos,
ainda, que Hildeberto viveu maritalmente, foi polígamo e teve vários filhos.

Para Godofredo, a mulher é, acima de tudo, Eva, a desgraça (vae), a tentação e o


pecado. O abade dirigia-se aos seus monges para os convencer a recusarem a sua parte
na carne, a se afastarem da mulher, moralmente hedionda desde a origem e cuja beleza

19
Cf. Jacques Dalarun, “Olhares de Clérigos”, História das Mulheres no Ocidente. Dirigido por Georges
Duby e Michelle Perrot, vol II, [Porto], Edições Afrontamento, 1994, p.30.

29
constituía o pior dos logros: «Este sexo envenenou o nosso primeiro pai, que era
também o seu marido e pai, estrangulou João Baptista, entregou o corajoso Sansão à
morte. De uma certa maneira, também, matou o Salvador porque, se a sua falta o não
tivesse exigido, o nosso Salvador não teria tido necessidade de morrer.20» Marbode, no
poema Da Mulher Má, da sua autoria, conseguiu juntar todas as imagens que conhecia
da sua vasta cultura clássica, redigindo uma peça da literatura mais misógina que nos
pode ser dado ler. Para o bispo de Rennes, a mulher é a raiz do mal, o fruto de todos os
vícios. Este alto prelado revela ainda uma repugnância face à mulher grávida, referindo-
se aos ventres das mulheres retesados pela gravidez como velhos odres inchados de
vinho novo21. Esta perspectiva não parece ter nada de novo, se recordarmos que Santo
Agostinho, séculos antes, proclamava que o homem nascia no meio de urina e fezes.
Desta forma, a mulher aparece simultaneamente como uma chama voraz e uma “coisa”
frágil. Nesse sentido, para Hildeberto de Lavardin, os três maiores inimigos dos homens
são as mulheres, o dinheiro e as honras: «A mulher, coisa frágil, inconstante a não ser
no crime, não deixa nunca espontaneamente de ser nociva. A mulher, chama voraz,
loucura extrema, inimiga íntima, aprende e ensina tudo o que pode prejudicar. A
mulher, vil fórum, coisa pública, nascida para enganar, pensa ter triunfado quando
pode ser culpada. Consumindo tudo no vício, é consumida por todos; predadora dos
homens, torna-se ela própria a presa.22»

Não poderíamos fazer referência à misoginia eclesiástica sem nos referirmos a


Odão, abade de Cluny, talvez o maior dos misóginos do seu tempo. O prelado inspirava
aos seus monges os mesmos terrores salutares: “ A beleza do corpo não reside senão na
pele. Com efeito, se os homens vissem o que está debaixo da pele, a vista das mulheres
dar-lhes-ia náuseas…Então, quando nem mesmo com a ponta dos dedos suportamos
tocar um escarro ou um excremento, como desejaríamos abraçar esse saco de
excrementos?”23

Durante toda a Idade Média, a mulher aparece como a quinta-essência de todos


os vícios, de todas as maldades e de todos os pecados. Ela é a origem da corrupção do
homem, como uma emboscada na senda da virtude e da santidade. São Tomás de

20
Cf. Godofredo de Vandoma, PL 157, col. 168.
21
Vide idem, ibidem, p. 37.
22
Cf. Hildeberto de Lavardin, PL 171, col. 1428.
23
Citado por Jacques Dalarun, op. cit, p. 35.

30
Aquino, elevado por Leão XIII à categoria de primeiro doutor da Igreja e patrono de
todas as faculdades e escolas católicas, acreditava que o valor essencial da mulher
residia nas suas capacidades reprodutivas e na sua utilidade nas tarefas domésticas.
Segundo este, a mulher deveria estar subordinada ao homem porque ele seria a sua
“cabeça”, mais perfeito em corpo e espírito. Ainda segundo este doutor da Igreja:” A
mulher relaciona-se com o homem como o imperfeito e defeituoso com o perfeito. A
mulher é espiritual e corporalmente inferior e a inferioridade intelectual é o resultado
da corporal, mais precisamente devido ao excesso de humidade e à sua falta de
temperatura.”24 A mulher aparece, pois, como um verdadeiro erro da natureza, uma
espécie de um pequeno homem defeituoso, errado, mutilado….

Estes homens de Deus levaram simultaneamente a mulher ao pináculo e


votaram-na ao anátema. Sim, porque os prelados aos quais fizemos referência, da
mesma forma que desprezam a mulher, exercitam-se em orações fervorosas a Maria.
Não nos esqueçamos que a Idade Média é o tempo da exaltação da Virgem. No entanto,
não nos enganemos! Como diria Jules Michelet, louvar a Virgem Mãe não era, de
maneira nenhuma, prestar homenagem ao conjunto das suas irmãs terrenas…. No
entanto, de forma a catalogarem e orientarem as mulheres reais, os nossos prelados
produziram modelos de feminilidade inscritos na Bíblia, várias categorias onde
encaixam vários arquétipos de mulheres. Modelos duais, que compreendem figuras
femininas do Antigo e do Novo Testamento. São elas: Eva, a Virgem Maria e Maria
Madalena.

4.1. EVA

Para estes religiosos, Eva é a mãe universal, mas, acima de tudo, a pecadora. Eva
é vae, a desgraça, mas também vita, a vida. No Génesis, existem dois relatos, com
diferenças significativas, que se seguem sem explicação. O primeiro relato é de tradição
sacerdotal, explicando a criação em sete dias. Nessa descrição, Deus cria o Homem à
sua imagem e semelhança, homem e mulher, simultaneamente. O relato que se segue é
um relato Javista, que não divide a criação por dias e, quando chega à génese do
Homem, narra que Deus criou primeiro o homem. Trouxe, então, vários animais para o

24
Citado por Karlheinz Deschner, op. cit, p. 225.

31
auxiliar, mas ele não se contentou com a sua companhia. Então, Javé colocou o homem
num sono profundo, retirou-lhe uma costela e moldou com barro a figura feminina,
dando-lhe o sopro da vida. Segundo as ideologias de determinada época, uma ou outra
versão é escolhida. A iconografia e a teologia medievais, mostram a criação segundo o
relato sacerdotal, mas quando chega à criação do Homem, servem-se da narração
Javista.

O episódio do fruto da árvore do conhecimento é o relato que se segue. Trata-se


do encontro de Eva com a serpente e o incitamento de Adão à transgressão perpetuado
pela sua companheira. Trata-se do episódio, como intitularia Duby, da «Queda».25 Este
relato faz da mulher o veículo do mal no mundo. De facto, nesta história é ela que
desobedece. Na verdade, para os nossos prelados medievais, Eva introduziu o pecado no
mundo. A sua condenação é parir os filhos com dor e estar submetida ao marido. Para
muitos, Eva é a assassina de Cristo, porque Ele redimiu o pecado original com a sua
morte. Assiste-se, pois, a uma acentuação do carácter maléfico de Eva e ao
branqueamento da acção de Adão. O pecado original, que na sua génese é um pecado de
desobediência, vai sendo considerado como um pecado carnal. Porque Adão
influenciou-se pela sua companheira, devido ao amor que por ela nutria…

É esta concepção da mulher que vai dar origem a uma literatura misógina, da
qual já fizemos referência, que atribui todos os pecados e defeitos aos elementos do
sexo feminino. Na sua génese, parecem estar os monges isolados que seguem uma
tradição dos pais do deserto, que tentavam fugir às tentações do espírito e da carne,
nomeadamente de São João Crisóstomo. A partir desse momento, durante o século IV,
começam a ser desenvolvidos escritos, que serão retomados nos tempos áureos do
monaquismo.

Apoiado nesta teorização, o já citado Godofredo de Vandoma, observa a mulher


como a precursora do pecado de Eva, a alma pérfida que tudo consegue através da
sedução. Para ele, a mulher não é uma fonte de vida, mas aquela que leva à morte, ao
pecado. Aquela que faz incorrer o homem no castigo eterno! Os escritores monásticos
do século XI a XIII, continuam a fazer a associação da mulher à morte, considerando o

25
Cf. Georges Duby, As Damas do Século XII – 3: Eva e os Padres, Lisboa, Teorema, 1997, p.47.

32
cariz corporal como algo de efémero, condenado à destruição do devir temporal. As
características biológicas do corpo feminino causam repulsa e horror a estes homens.
Eva é, pois, um modelo de mulher que serve como objecto de aversão.

4.2. MARIA

Maria. É este o tempo pleno da sua devoção, de Chartres a Amiens, o seu Verão
esplêndido. O século XII foi a primavera das catedrais, o tempo pleno de Nossa
Senhora. Os cânticos mais enamorados em seu louvor vêm do meio monástico, muito
particularmente dos cistercienses. É virada para a Virgem que a mística medieval
levanta voo. Os séculos XIII, XIV e XV ressoam com os lamentos dos autores mais
místicos sobre a dor da Virgem, aquela que recolhe o seu filho aos pés da cruz e o
deposita no túmulo. É o tempo da pietà… De facto, nota-se uma exaltação poética da
«virgem sempre preciosa», «stella maris», «porta do Céu», «refúgio do pecador»,
«esperança dos homens», …

Maria é a mãe por antonomásia, no seio da qual o filho indigno pode vir
esconder a sua vergonha. Dos quatro grandes dogmas atribuídos a Maria – maternidade
divina, virgindade, Imaculada Conceição e Assunção – os dois últimos foram
promulgados bastante depois da Idade Média, ainda que, desde o século XI, tenham
suscitado grandes paixões. Na verdade, no Novo Testamento, a virgindade de Maria é
afirmada, apenas, na concepção e por dois evangelistas: Lucas e Mateus. É a Godofredo
de Vandoma que se deve a fórmula da virgindade «antes, durante e após o parto» 26. Esta
concepção de Maria, torna-a cada vez mais incorpórea, mais irreal. Cada vez mais, Ela
torna-se mais numa virgem do que numa mãe… No século XIV, existem relatos de uma
santa sueca, Santa Brígida, que tem uma visão do nascimento de Cristo, na qual a Mãe
não sente dor… Tratava-se, pois, de um parto miraculoso. Maria, através da mão dos
nossos prelados, torna-se a cada passo, uma personagem imaginária, não podendo servir
de modelo para as mulheres terrenas, somando-se o perigo de o seguimento do seu
modelo originar uma quebra demográfica!

26
Cf. Jacques Dalarun, op. cit, p. 42.

33
Se Maria não constitui um modelo a seguir pelas mulheres reais, o que propõem
os nossos prelados para elas? A virgindade! Para as destinatárias do Espelho das
Virgens, redigido durante o século XII, na Alemanha, não haverá temores desde que se
preservem. De facto, segundo eles, as virgens gozavam da maior liberdade, livres do
poder do homem sobre o seu corpo e dos temores em relação à progenitura. No entanto,
o que deveriam propor às mulheres casadas, distantes da castidade virginal e que
queriam ser salvas? No espírito dos autores eclesiásticos, a possibilidade de salvação
para as mulheres casadas é, antes de mais, uma possibilidade de resgate. A perda do selo
virginal não tem apelo, tanto física como moralmente. A penitência é a única via; o
arrependimento da pecadora, da meretrix é o único modelo. Para as descendentes de
Eva, que não souberam aceitar o desafio mariano, não há salvação senão pela porta
pequena 27. E essa porta seria aberta por Maria Madalena…

4.3. MARIA MADALENA

Influenciado pela tradição, Gregório Magno faz ressurgir uma figura que
interessa especialmente às mulheres: Maria Madalena. Mas, quem seria essa mulher que
o Papa tanto se interessou por glorificar? Nos Evangelhos, ela não existe como
indivíduo. Constitui, na verdade, uma amálgama de três personagens do Novo
Testamento: Maria de Magdala, Maria de Betânia e uma pecadora anónima. Maria de
Magdala, é a mulher da qual Cristo expulsa sete demónios e que o segue até ao
Calvário, tendo sido a primeira testemunha da Sua ressurreição. Maria de Betânia era a
irmã de Marta e Lázaro. A terceira Madalena é conotada com a pecadora não nomeada,
que em casa de Simão banha os pés de Cristo com as suas lágrimas, enxuga-os com os
cabelos, cobre-os de beijos e unge-os com perfume. Se, na verdade, alguns factos
permitem ligar algumas destas personagens, sem mais delongas, Gregório Magno
fundiu-as definitivamente na figura de Maria Madalena. No entanto, não devemos
menosprezar a influência das penitentes do deserto, nomeadamente da figura de Maria
Egipcíaca. Depois de ter oferecido, indiscriminadamente, os encantos do seu corpo, esta
sacerdotisa passa a viver numa solidão total, para além do Jordão. Foi precisamente a
sua lenda que inspirou a vida eremítica de Maria Madalena.

27
Cf. Jacques Dalarun, op. cit, p. 47.

34
A aparição do culto a Maria Madalena, surgiu no século VIII, como comprova a
sua menção nos martirológios e na liturgia. As suas relíquias podiam ser encontradas na
abadia de Chelles. Mas o verdadeiro desenvolvimento do culto, vindo provavelmente do
Leste, está ligado ao êxito do santuário de Vezelay. Em 1050, esta abadia borgonhesa,
originalmente dedicada à Virgem Maria, é colocada sob protecção de Maria Madalena.
A peregrinação a este local irradia com esplendor incomparável nos séculos XI e XII.
Fenómeno que alguns autores denominam de “fermentazione magdalenica del sec.
XI”28. Devoção que irradia, não só em França, mas também na Inglaterra, na Alemanha
e em Itália. Franciscanos e Dominicanos tornam-se zelosos propagadores do seu culto e
da sua imagem.

Em 1105, Godofredo de Vandoma compõe um sermão intitulado “Em Honra da


Bem-aventurada Maria Madalena”. Nele, o prelado parte da figura da mulher que unge
os pés de Cristo, em casa de Simão. Madalena é a pecadora por antonomásia e todos,
durante a Idade Média, compreendem que o seu pecado é o da carne. Madalena é, pois,
uma meretrix! No entanto, dividida entre a esperança e o temor, ela arrepende-se dos
seus pecados e é essa confissão que a salva! Godofredo vai mais longe, opondo-a a
Pedro. Segundo ele, Madalena ultrapassa o apóstolo no seu amor por Cristo. De facto, é
a ela que Cristo ressuscitado aparece primeiro, encarregando-a de anunciar a boa nova.
Godofredo delineia, desta forma, o papel de Maria Madalena: para que a mulher que
trouxe a morte ao mundo tenha esperança de salvação. Pela mão da mulher a morte, mas
pela sua boca o anúncio da Ressurreição. Maria Madalena irá surgir, assim, como
modelo de arrependimento e porta da salvação para as mulheres corrompidas pelo
pecado da carne. Salvação também para os homens, porque Madalena não é apenas
símbolo de mulher, mas também da parte feminina existente em cada homem, que o
atrai para o corpo, para o sensível….

O desprezo medieval pela sexualidade feminina é, pois, compensado com a


figura de Madalena, a prostituta arrependida que escolhe um caminho de purificação e
penitência. A sua própria representação iconográfica evolui. Para alguns pintores como
Giotto de Bondone, ela já não é uma figura penitente. Cresce e o seu tamanho

28
Cf. Jacques Dalarun, op. cit , p. 48.

35
hierárquico define-a como mulher santificada, consolo dos aflitos e transmissora do
perdão.

Através da reflexão sobre estes modelos, podemos encontrar, de imediato, uma


antinomia: Eva e Maria. Eva simboliza as mulheres reais, plenas de pecado, e Maria a
mulher ideal, mas incorpórea. Na viragem dos séculos XI e XII, Eva é a mais
sobrecarregada. Ela é a filha do Diabo, de quem o clérigo se deve afastar. Por seu turno,
a Virgem Mãe é projectada, pelos altos prelados, para fora do alcance das mulheres
terrenas. Maria é um modelo praticamente inatingível. No entanto, quase
miraculosamente, entre Maria e Eva começa a estabelecer-se uma ponte, uma ponte que
toma o nome de Maria Madalena. Entre a porta da morte e a porta da vida, Madalena é a
porta entreaberta, a ponte a percorrer para uma possível salvação. No entanto, tal
redenção tem um preço: a confissão, o arrependimento e a penitência…

36
5. A MULHER SOB TUTELA: O
CASAMENTO

Fig: O quarto dos esposos, fresco de c. 1320.San Gemignano, Museu cívico.

37
Segundo a lei romana, o casamento traduzia-se num pacto, um contrato, entre as
famílias e os conjugues, feito muito informalmente; tinha que haver um consenso, quer
entre os parceiros quer entre os pais, no qual a intenção de se casar era preferível a viver
em concubinato. Era revestido de uma certa formalidade social, especialmente entre as
pessoas abastadas, que diferenciavam o casamento de outro tipo de relacionamento.
Durante o período imperial romano surge o casamento por consentimento mútuo entre
os parceiros, ou entre os seus pais, ou quem tivesse a pátria potestas, a autoridade
paterna, sobre eles. Uma das suas finalidades principais, universalmente reconhecida,
era a de ter filhos legítimos. Mas, nas palavras do grande jurista romano Ulpiano:
“«Não é a consumação (concubius) mas o consentimento que faz os casamentos», ou
então «não é a consumação (coitus) mas a intenção de casar (maritalis affectio) que faz
um casamento»” 29. Embora a linguagem da lei romana tenha sobrevivido, o seu
significado foi sendo subtilmente adaptado, à medida da passagem dos séculos.

No princípio da idade Média o casamento começou por ser um acto puramente


profano, não regulado pela Igreja. Nos primeiros tempos medievais existiam dois
moldes de união conjugal: o Concubinato, casamento temporário, provisório, até que a
família escolhesse uma boa aliança, destinando-se esta prática a controlar os impulsos
sexuais dos cavaleiros e a resolver da mesma forma o problema dos clérigos; o
Matrimónio, este sim, considerado como casamento legítimo e definitivo, implicando
rituais mais ostensivos e visando a união de duas famílias.

Nos séculos IX e X as uniões matrimoniais eram previamente combinadas pelos


pais dos noivos, como se de um negócio se tratasse, envolvendo várias etapas até à
consumação final. Começava por um pacto de esponsais nas quais as famílias
prometiam o consórcio dos seus filhos. Era então redigido um contrato, documento no
qual se previa o dote da família da noiva e o do futuro marido e a verba a deixar à
esposa para o seu sustento, caso ficasse viúva. Não se pense, contudo, que o casamento
se revestia da simplicidade actual. Percorrendo as fontes do século XI e XII
convencemo-nos que a distância entre a desponsatio e as nuptiae varia muito segundo
as circunstâncias. Os prazos mais longos relacionam-se com os caracteres originais da

29
Cf. Karma Lochrie, Peggie McCracken, James A. Schultz (ed.), Constructing Medieval Sexuality,
Minneapolis / London, University of Minnesota Press, 1997, p. 117.

38
própria vida aristocrática: afastamento geográfico de duas parentelas, que impunha uma
viagem sob a responsabilidade do marido, ou a necessidade de concluir o noivado do
filho, dado que tal noivado era o selo indispensável de uma aliança ou de uma
reconciliação entre grupos em guerra 30.

Este processo de formalidades do casamento iniciava-se com a petitio, pedido da


noiva pelos pais do noivo; seguia-se o desponsatio: entendimento das famílias sobre a
ligação dos seus filhos; a dotatio: concordância sobre o dote; a traditio: entrega da
jovem ao noivo pelos pais; a publicae nuptiae: que consistia na cerimónia do casamento
propriamente dita; e por fim a copula carnalis: consumação, que só acontecia após a
união carnal.

O desponsatio podia ser entendido como um noivado, mas sempre sem intervenção
alguma por parte dos noivos, pois eram ainda crianças, com cerca de sete anos de idade,
quando não menos, portanto sem idade para decisões. Quanto ao dotatio para além de
estabelecer os acertos sobre o dote, estipulava também que, após as crianças crescessem
e atingissem a idade de tomar as suas próprias decisões, se o casamento não se realiza-
se por rebeldia de alguma das partes, haveria lugar a uma espécie de multa a pagar pela
família de quem desistisse do casamento. A traditio, entrega da jovem ao futuro marido,
só acontecia anos após as três primeiras etapas, quando os jovens já tivessem atingido a
idade de aproximadamente doze ou catorze anos, no caso das raparigas, e de dezasseis
anos de idade, no caso dos rapazes.

A cerimónia (publicae nuptiae) consistia no transporte da noiva para a casa do


noivo, num cortejo ruidoso, precedido por uma grande festa dada na casa dos pais do
noivo. Nesta época, em que a Igreja não participava dos casamentos, a copula carnalis
(acto sexual) constituía o momento da efectivação do matrimónio. O longo desenrolar
da aliança matrimonial, apesar de parcialmente privado (promessa, entrega do anel), os
últimos rituais, começo da coabitação, visita à casa paterna, eram celebrados em público
com alarde, sobretudo entre o povo. Convidados, conhecidos, clientes, mirones,
centenas de pessoas participam alegremente em cada dia nas festas. As cavalariças e os

30
Cf. História da Vida Privada, sob a direcção de Philippe Ariés e de Georges Duby, Porto, Edições
Afrontamento, 1990, p. 134.

39
celeiros transbordavam de presentes (sobretudo vinho), enviados por aldeias inteiras,
por mosteiros, camponeses anónimos, assim como pelos próximos.

Neste período até por volta do ano mil o casamento tinha por objectivo
estabelecer alianças e assegurar a transmissão do património, assim como o sangue e a
honra da linhagem. Para tal o importante era casar com alguém do mesmo grupo social,
ou superior, para aumentar a riqueza das famílias e consequentemente exercer maior
poder. A partir do ano mil, os contratos de esponsais tendem a desaparecer. Os bens do
marido cedidos à esposa em arras, passam a ser menores, e ela é obrigada a deixa-los
aos filhos primogénitos, passando apenas a dispor do dote dos seus familiares para
passar às filhas.

No final do século XI, principio do XII o consentimento mútuo do casal passa a ser
exigido pela Igreja. E no século XII passa-se a assistir a um ritual no qual os noivos
depois de terem prometido a profissão de fé trocam alianças que são benzidas pelo
pároco. A bênção fazia-se à porta da Igreja. E tal só acontecia depois de o sacerdote ter
verificado os consentimentos e a não consanguinidade entre ambos. Só depois os noivos
e familiares entravam no templo para assistir à cerimónia, que se limitava, ainda, a
presenciar o testemunho que termina apenas com uma oração 31. A esposa (sponsa) é
depois entregue ao marido pelo pai ou parente próximo que a tinha à sua guarda.

No século XIII, o padre substitui-se ao pai da noiva para a entregar ao futuro


marido, passando ele próprio a representar o papel daquele que une. O esposo passa em
três dedos da sua mulher, o anel benzido pelo qual a desposa. Anel que afastará os
assaltos do demónio; e é dado, diz já a teoria eclesiástica, por amor e fidelidade, mas o
gesto recíproco só aparecerá depois, no século XVI. Duas das ordines do século XII
comportam em seguida a prosternação da mulher perante o marido: depois, a
transformação do gesto é esboçada por uma tentativa de ajoelhar os futuros esposos aos
pés do padre, mas tal é pedir demasiado, e a Igreja, hábil em ter em conta as tentativas e
os erros na sua empresa de absorção do ritual, prefere a supressão pura e simples desta
sequência, que não era, sem dúvida, como tantas outras, mais do que uma

31
Cf. Jean-Pierre Poly, Le chemin des amours barbares. Genèse médiévale de la sexualité européenne,
Paris, Perrin, 2003, p.201.

40
particularidade regional. Bem se esforça a teologia por exaltar as dádivas dos esposos
um para com o outro, mas a cerimónia acaba por marcar o predomínio do marido. Ele é
a parte activa: dando com o anel aos presentes «acostumados» e apresentando a carta do
dote, assim como os treze drenários vindos da lei sálica. «Com este anel te desposo,
com este ouro te honro e com este dote te doto»: fórmula dita pelo marido ou qualquer
outra do mesmo género, acompanha o gesto32.

Entretanto, vão-se afastando as antigas formas de união, nomeadamente o


concubinato. O casamento, segundo a doutrina da Igreja, era visto como o único
contexto em que a sexualidade podia ser praticada de forma legítima. Visando o
casamento servir apenas para a procriação de herdeiros legítimos, assim sendo o corpo
feminino devia ser controlado de forma especial a fim de permanecer reservado
unicamente para a «fecundação» pelo marido. Consideradas fonte de todo o mal, só o
casamento, com um homem ou com Cristo, permitia às mulheres uma certa moderação
da sua natural concupiscência; de mulheres transformavam-se em mães e, assim,
podiam alcançar alguma da serenidade da Virgem Maria ou de Maria Madalena 33.

Na opinião da Igreja continua a residir no casamento a única forma de controle


sobre a mulher, vendo assim o casamento como forma de evitar o incesto, tabu que a
Igreja persegue, chegando ao cúmulo de proibir as uniões com parentes até ao décimo
quarto grau, como impõe o Concílio de Latrão, de 121534. Quanto à vida conjugal era
sobretudo um estilo de vida e uma questão de regulamentação das relações sociais, que
afectava o exterior e o futuro, não uma comunhão de almas entre indivíduos. A falta de
amor conjugal não era reconhecida como razão para um divórcio, assim como o amor
por si só não bastava para fundar um casamento válido: filhos comuns e fidelidade
conjugal constituem o essencial do sacramento do matrimónio. “Dar à luz e criar filhos
eram as tarefas principais das esposas, a «profissão» das mulheres casadas” 35.

32
Cf. História da Vida Privada, dir. Philippe Ariés e de Georges Duby, Porto, Ed. Afrontamento, 1990.
p. 138.
33
Vide A Mulher na História, Actas dos colóquios sobre a temática da Mulher (1999-2000), Câmara
Municipal da Moita, 2001, p. 128.
34
Idem, ibidem, p. 135.
35
História das mulheres no Ocidente, sob a direcção de Georges Duby e Michelle Perrot, Porto, Edições
Afrontamento, 1990, p. 377.

41
«As mulheres sejam submissas a seus maridos, como ao Senhor, pois o marido é
a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja…E como a Igreja está sujeita a
Cristo, assim também as mulheres se devem submeter em tudo aos seus maridos»36. Aos
olhos da Igreja um bom casamento era uma comunhão entre um homem e uma mulher,
mas, segundo os ensinamentos morais da Igreja, ele só era realmente bom quando o
homem «governava» e a mulher obedecia. Constituindo os maridos a primeira instância
de controlo social das suas mulheres, o que não era apenas determinado pelas
disposições legais, mas pelos próprios decretos canónicos que convertiam o marido em
chefe da sua mulher e reforçavam também a responsabilidade e as possibilidades de
controlo por parte do «senhor e mestre». Este monopólio encontra a sua expressão mais
nítida no direito que o marido tinha de castigar a mulher, que as autoridades laicas e
eclesiásticas fixavam, e no privilégio masculino de ser-se infiel sem consequências.
Enquanto as normas jurídicas e a mentalidade pretendiam condenar as mulheres
adúlteras com a pena de morte, os homens casados escapavam impunes 37.

A terminar este capítulo julgamos pertinente concluir com a análise acerca dos
escritos de Bourchard de Worms, bispo da Igreja entre 1107 e 1112, autor de uma
pastoral, compilação de textos normativos, o Decretum, dado parecer bastante apelativo
da forma como a Igreja concebia o casamento. Autor do prólogo de um penitencial
precedente, do qual constam oitenta e oito infracções classificadas por ordem de
gravidade decrescente, Bourchard entende que o casamento é deveras concebido como
um remédio para a avidez sexual. Ele ordena, disciplina, mantém a paz. Por meio dele, o
homem e a mulher são afastados da área onde existe um acasalamento livre, sem regra,
na desordem. Contribuindo a penitência para a ordem social, para a paz, actuando em
prol da reforma da sociedade 38.

36
Carta de Paulo aos Efésios, V, 21-24
37
Idem, ibidem, pp. 367-369.
38
Georges Duby, O Cavaleiro a Mulher e o Padre, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1998, p.45-57.

42
CONCLUSÃO

Ao longo deste trabalho pareceu-nos ficar comprovada uma intensa misoginia


eclesiástica, durante a Idade Média. Facto que, na verdade, não revela nada de novo! No
entanto, o objectivo deste trabalho projectou-se mais além. Mais do que provar a
existência dessa atitude execranda face à mulher, procurou-se compreender a causa de
tal postura, analisando o relacionamento dos homens de Deus, com o sexo feminino.
Que conclusão poderemos, então, tirar deste tipo de abordagem? Na verdade, estes
prelados não inventaram nada de novo. Eles baseiam-se numa tradição, há muito
implantada nas sociedades patriarcais, que descreve a mulher de uma forma
subalternizada em relação ao homem.

Os nossos prelados medievais terão pegado nessa tradição pouco favorável à


mulher, exacerbando-a preponderantemente. Porquê? A maior parte da bibliografia
relativa a esta temática, tende a explicar este facto com um agravamento do controlo
sobre a mulher. Durante a Idade Média, a mulher é considerada um ser precioso,
sobretudo pela faculdade de gerar descendência e, por isso, muito protegida e inibida
nos seus contactos sociais desde a infância. No entanto, esta necessidade de manter a
mulher sob custódia não parece esgotar as possíveis razões para esta atitude dos
prelados. Outros autores, avançam com a hipótese de que a causa desta misoginia
clerical seja o seu afastamento das mulheres. Longe das mulheres? Talvez,
nomeadamente os clérigos regulares, muitos deles oblatos, que não ousaram quebrar a
sua ascética castidade. Mas, e os restantes? Os prevaricadores regulares e os sacerdotes
seculares? Estariam eles assim tão distantes das mulheres? Os sacerdotes do século
sempre tiverem contactos privilegiados com o sexo oposto. Nunca estiveram longe
delas, pessoal e/ou intimamente! E depois, não esqueçamos a confissão, mátria de todos
os segredos femininos, partilhados com o prelado!!

A razão desta misoginia pode basear-se na tradição, numa necessidade de


controlo da mulher ou no seu maior ou menor afastamento face a ela, como vimos
anteriormente. No entanto, avizinha-se-nos uma outra causa possível: o controlo do

43
clérigo, isto é do próprio homem, aliás, tão característico da Reforma Gregoriana. Ao
tentarem convencer os sacerdotes da inferioridade, por vezes demoníaca e execrável da
mulher, o objectivo dos nossos prelados seria, talvez, a repressão do desejo carnal que
estes homens salutarmente experimentavam. Causar-lhes repúdio seria uma forma de
afastá-los ainda mais da realidade feminina, a que muitos não resistiam… Este facto, em
concordância com a matéria inscrita nos penitenciais, sugere-nos que a clerezia e o
universo feminino são duas realidades muito próximas durante a época medieval.

No início deste estudo, ainda durante a introdução ao tema, formulámos uma


questão essencial: será que esta visão clerical da mulher, a informação deturpada que
estes homens transmitiam aos sete ventos, corresponde à realidade por ela vivida no seu
dia-a-dia? A resposta é, taxativamente, negativa. Na verdade, a diferença entre os
tratados teóricos elaborados pelos eclesiásticos e a realidade da época medieval é
incomensurável. Através da análise de várias fontes, podemos encontrar uma sociedade
medieval amplamente partilhada pelos dois sexos e, ao contrário do que muitas vezes se
pensa, a mulher tinha personalidade jurídica, que lhe foi sendo retirada com o limiar do
Renascimento. De facto, o reflexo que estudamos neste trabalho, é um reflexo
deturpado, vacilante, da mulher medieval, veiculado por aqueles que tinham o poder de
difundir informação. Contudo, é o único meio que possuímos e que nos dá conta da
vivência das mulheres daquele tempo, sempre filtrado pelas mentes dos clérigos
produtores de comunicação. Das mulheres e da sua vivência interior, nesta época, pouco
sabemos, tendo em conta que estas não possuíam o mesmo direito dos homens, ao
conhecimento, ao ensino, à informação…. Claro, que só podemos estabelecer um grau
de comparação entre sexos em termos dos níveis mais abastados da sociedade. Apenas
os homens nascidos nos meios mais elitistas possuíam acesso à formação e ao
conhecimento. Aqueles que nasciam nos meios mais humildes, homens ou mulheres,
jamais poderiam ansiar qualquer tipo de educação.

Quanto aos modelos bíblicos analisados, desde logo, Eva e Maria constituem um
contraponto. No entanto, a terceira via aberta por Maria Madalena marca o início de
uma nova perspectivação da vida espiritual das mulheres medievais. Levada ao pináculo
por Gregório Magno, Madalena é sinónimo de arrependimento, de esperança. É, por
muitos, associada ao Purgatório. Sob os seus auspícios, as mulheres parecem resgatar-se
duas vezes: por serem pecadoras e por serem mulheres. Madalena é o sintoma de

44
avanço para uma nova mentalidade, símbolo da mulher redimida. Se, na verdade, a
Reforma Gregoriana intensificou o controlo da mulher e do prelado, também é um facto
que glorificou a figura de Madalena, esperança de salvação da mulher real.

Embora o cristianismo não tenha aliviado a discriminação sexual no seio do


Império Romano tardio, na verdade, ofereceu às mulheres a oportunidade de se
considerarem personalidades independentes. O cristianismo permitiu que as mulheres
desenvolvessem uma auto-estima como seres espirituais que possuíam o mesmo
potencial de perfeição dos homens. Apesar da atitude misógina dos prelados,
materialmente, o cristianismo foi generoso e protector para com a mulher, condenando
todas as formas de violência física contra ela. No entanto, no campo moral, foi bastante
severo. Talvez, no seio do cristianismo, a mulher tenha encontrado a pior imprecação,
mas a melhor sorte, especialmente quando comparamos com outras religiões.

Para terminar, é importante salientar que, quando comparada com a perspectiva


cavaleiresca, a perspectiva cristã da mulher é muito mais igualitária. De facto, a óptica
da nobreza, coeva do horizonte clerical que temos vindo a estudar, era extremamente
desigual, pois considerava que aos homens tudo era permitido… A Igreja, no que diz
respeito aos leigos, irá também exercer um controlo estrito entre o lícito e o ilícito. Tal é
comprovado pelos livros penitenciais, guias de pecados e penas aplicáveis a ambos os
sexos. Em suma, podemos concluir que no seio da doutrina cristã, o destino de homens
e mulheres interligam-se, parecendo haver uma exigência moral equivalente para
ambos… Embora apenas os homens continuassem a ter o monopólio da informação, do
conhecimento e da sua difusão…. E pudessem, sem temer penas civis, consumar o
adultério à sua livre vontade….

45
FONTES E BIBLIOGRAFIA

1. FONTES

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LAVARDIN, Hildeberto de - PL 171, col. 1428
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