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FACULDADE DE LETRAS
FEMINA SILENCIATA
A MULHER NA PERSPECTIVA DOS CLÉRIGOS MEDIEVAIS
Andreia de Almeida
2
Nenhuma religião ou visão do mundo glorificou e honrou tanto a mulher
como o cristianismo.
Haering
3
ÍNDICE
INTRODUÇÃO 5
CONCLUSÃO 41
BIBLIOGRAFIA 44
4
INTRODUÇÃO
Esta narrativa do bispo de Rennes parece ser bastante explícita no que respeita à
visão dos homens da Igreja face às mulheres. A mulher aparece como o instrumento de
tentação, causa primeva e derradeira da decadência do Homem, o fruto do pecado. Ela é
a raiz de todo mal, o símbolo de tudo aquilo a que estes homens tentam fugir. Para eles,
todas elas são Eva, embora consigam encontrar modelos bíblicos alternativos, onde vão
encaixar uma minoria de mulheres! Estes homens de Deus fogem do pecado da carne,
da luxúria que os sobressalta, da sua própria natureza… Neste sentido, inundados pelo
medo da tentação, estes clérigos vão desenvolver uma literatura misógina, praticamente
a única que chegou até nós sobre as mulheres durante a Idade Média. A razão é óbvia:
eles detêm o monopólio do saber e da escrita logo, da transmissão da informação!
5
tempo em que a comunicação se exercia de modo pessoal e directo. É, pois, também,
nesse sentido, que vale a pena escutá-los. É meritório observar as suas palavras num
período tão díspar do actual, no qual cabe ao Estado uma função de ordenação e de
regulação das relações sociais e dos interesses individuais e colectivos. Todavia, durante
a Idade Média, tal não acontecia assim. Longe da secularização, era à Igreja que cabia a
regulamentação da vida em sociedade, era a ela que reis e imperadores deviam
obediência. Segundo Santo Isidoro de Sevilha, o rei servia para fazer cumprir pela força
o que os sacerdotes não conseguiam pela palavra. E esta noção de Braço Secular foi
fulcral na teoria política medieval. Isto não significa um aumento do poder real, porque
o monarca passa a ser necessário apenas com o propósito bélico, podendo a não
consumação desta função ser argumento válido para o depor. É por este motivo que
estes clérigos, mais do que liberdade de informação (liberdade que protege um todo
constituído pelo direito a ser informado, a formar a opinião e a exprimi-la), possuem
uma obrigação de transmitir a sua verdade para que todos possam conhecer o caminho
de Deus.
Todavia, não cabe ao homem actual fazer juízos de valor sobre estes tempos
idos, nem sequer sobre estes clérigos. Tal incorre no perigo, tão assustador para
qualquer historiador: o do anacronismo! É, na verdade, um erro observarmos os homens
de ontem com os olhos de hoje! Nem poderemos, contudo, cair no erro de considerar os
homens semelhantes, independentemente das épocas em que tenham vivido.
Biologicamente tê-lo-ão sido! Todavia, as suas mentalidades terão sido moldadas de
acordo com as circunstâncias, como um pedaço de barro ao sabor de duas mãos eleitas.
6
primeiras a aperceberem-se da ressurreição de Cristo e é a elas que Ele vem ao
encontro, pela primeira vez, após vencer a morte. Perante isto, é insustentável negar o
cuidado e o respeito com os quais Jesus tratava as signatárias do sexo oposto, numa
altura em que estas eram afastadas de tudo aquilo que era considerado importante,
inclusive do ensino da Torah.
De facto, traçar o percurso das mulheres na História não se revela uma tarefa
fácil. O primeiro obstáculo que se coloca no caminho do investigador prende-se com a
escassez de fontes. Poucos são os documentos que chegaram até nós, escritos pelos
7
punhos dessas mulheres, reveladores da sua própria visão do mundo. Neste sentido, o
vislumbre que podemos alcançar da mulher medieval é a visão que os clérigos, homens
de Deus, possuíam sobre ela. Visões de homens, entregues aos seus próprios
preconceitos, obrigados pela fé a manterem-se longe delas, a temê-las. No entanto, seria
essa visão representativa do quotidiano dessas mulheres? Ou apenas um reflexo
vacilante da sua própria existência? Nesta linha de pensamento, tornar-se-iam
imprescindíveis estudos que contemplassem a temática feminina na sua vertente
introspectiva, isto é uma visão da mulher sobre si própria. No entanto, o investigador ao
tentar fazer este tipo de abordagem embate sempre com o problema da escassez de
fontes. Poderá um oleiro trabalhar sem barro?
Para terminar, falta-nos revelar o objectivo primevo deste trabalho. Porque falar
de mulheres é também falar de homens, tentaremos dar algum protagonismo às
mulheres medievais, servindo-nos das penas dos homens de Deus, que tanto se
esforçaram para as denegrir. É a história dessa misoginia eclesiástica que pretendemos
descrever…
8
1. A BIOLOGIA SEXUAL NA IDADE
MÉDIA
Fig: Adão e Eva no Paraíso, de Lucas Cranach o Antigo (1472-1553), Berlim, Gemäldegalerie.
9
A subalternização da mulher em relação ao homem, durante a Idade Média,
baseava-se claramente numa teorização sustentada biologicamente. Fenómeno do qual
não devemos demonstrar especial estranheza, pois que ainda há poucas décadas foi
fundamento bastante para o extermínio de milhares de judeus. Conhecer as teorias que
pretensamente o comprovariam parece ser de especial interesse no âmbito desta
narrativa. Teorias elaboradas numa perspectiva da mais pura anti-ciência, pois que o seu
objectivo não seria a verificação de hipóteses, mas a confirmação de um resultado
considerado de uma verdade inabalável, verdadeiro dogma sexual: a inferioridade da
mulher! Na realidade, na Antiguidade Clássica acreditava-se que a diferença sexual não
derivava das características anatómicas, mas, sim, da mistura de 4 elementos que
compunham o mundo 1:
Para os Gregos, o calor era a fonte da vida. As coisas quentes e secas eram
colocadas acima de todas as coisas. Os homens eram quentes, o princípio activo da vida,
enquanto as mulheres eram frias e passivas. Tal era a explicação para a diferença entre
sexos. Para Aristóteles, homens e mulheres eram princípios para os quais os órgãos
1
Cf. Marcel Bernos et all. - O Fruto Proibido. Lisboa: Ed. 70, 1991, p. 25.
10
reprodutores eram simples instrumentos. O princípio masculino era a fonte da vida e
punha o mundo em movimento, enquanto o feminino era passivo e dependente do outro.
Para Galeno, as mulheres tinham órgãos sexuais iguais aos masculinos mas
recolhidos no interior do corpo, porque a falta de calor fazia com que se albergassem.
Para Vesalius, o órgão sexual feminino era um pénis recolhido dentro do corpo.
Consideravam, assim, o princípio feminino como o negativo do masculino, incompleto
e inacabado. Segundo a teoria de Galeno, era possível uma mulher transformar-se em
homem, facultando-lhe o calor necessário. A parte mais nobre do ser humano era os
testículos, local onde era cozido o sangue. O esperma era considerado sangue cozido
introduzido na mulher. Para Aristóteles, era o esperma que fazia cozer o sangue
menstrual e que originaria a vida 2.
Na Idade Média, a tradição clássica foi mutilada pelas traduções feitas pelos
árabes. O livro Gynaecia, de Sorano de Éfeso, grego do século I, foi traduzido pelo
monge Moschion, do século VI. A obra de Nemésio de Émeso, De Natura Hominis, foi
traduzida no século XI por Alfano de Salerno. As traduções dos séculos XI e XII são as
mais importantes. Constantino, o Africano foi um tradutor e professor nas primeiras
universidades em território europeu, nomeadamente em Salerno, Itália, seguido de
Bolonha e Montpellier. Estas obras clássicas traduzidas terão grande difusão e vão
constituir a base do estudo médico. São elas:
Estas obras foram essenciais para a concepção medieva dos órgãos sexuais. No
século XII, Gerardo de Cremone traduz novas obras importantes:
- Cânon, de Avicena
2
Cf. Vern L. Bullough e James A. Brundage (ed.), Handbook of Medieval Sexuality, London : New
York, Garland Publ., 1996, p. 45.
11
- Libera ad Almansorem, de Rhazés
O sangue menstrual era constituído pelos resíduos do sangue que não tinha sido
cozido e refinado devido à falta de calor. Seria um sangue nocivo que tinha de ser
expulso regularmente. Aristóteles exclamava que as mulheres não produziam mais
nenhuma secreção do que o fluxo menstrual. Galeno e Hipócrates defendiam a
existência de um esperma feminino que, segundo eles, era a contribuição das mulheres
para a geração. O embrião seria gerado através da junção dos dois espermas, masculino
e feminifo. Esta concepção teve, no entanto, efeito positivo na condição feminina.
Apenas o prazer da mulher era essencial à reprodução, por gerar a libertação de
esperma. Logo, aos homens era necessário gerar o orgasmo feminino. O facto de as
mulheres produzirem fluxo seminal e não o poderem consagrar era considerado lesivo
para elas e causa da histeria feminina 4.
3
Cf. Jacques Le Goff e Nicolas Truong, Une histoire du corps au Moyen Âge, s. l., Liana Levi, 2003,
p.121
4
Cf. Vern L. Bullough e James A. Brundage, op. cit., p.54.
12
meninas. As crianças geradas na parte direita (mais quente e seca) seriam meninos. Da
mesma forma, o esperma produzido no testículo esquerdo originaria uma menina e no
testículo direito, um menino. Durante o século XVI este cenário não se alterou.
Contudo, na opinião de humanistas, houveram algumas interpretações de textos mais
antigos num sentido mais favorável para as mulheres.
Marie Le Jars de Gournay, numa obra de 1622, L’Egualité entre les Hommes et
les Femmes, contrapõe a teoria aristotélica e evoca a noção bíblica de uma criação
andrógina e interpreta ambas as teorias da criação para reclamar uma idêntica força para
ambas. Marguerite Buffer, em 1668, escreveu Novelle Observation sur la Langue
Francaise, que defendia os mesmos ideais. Um autor alemão, Henricus Aggripa von
Nettersheim, de 1532, na obra A Proeminência do Sexo Feminino sobre o Masculino,
desenvolve a teoria de que as mulheres, tendo sido criadas depois do homem,
mostravam a sua superior dignidade, não tendo sido feitas de barro, mas sim de carne
humana. A Revolução Científica do século XVII não vai alterar significativamente estas
observâncias. Descartes e Bacon (sec. XVII), Locke e Leibniss (sec. XVIII) não
alteraram este quadro, apenas deram à mulher um papel mais equitativo na sociedade.
Distinguem entre o corpo e o espírito, afirmando que as almas possuíam igual
capacidade. François Poulain de La Barre (1647-1725), autor jesuíta, utilizou os
métodos cartesianos para observar que não há diferenças significativas entre os sexos.
5
Cf. Marcel Bernos et all, op. cit, p.67.
13
dismorfismo sexual ainda não era conhecido. Seria falta de observação? Ou alguns
princípios da Medicina antiga continuavam a ser inconscientemente aceites?
William Cowper, em 1697, escreveu The Anatomy of Humam Body, onde narra
que a diferença de gordura entre os corpos era devida à frieza da mulher, logo não
derretia. O maior calor também era responsável pelo maior desenvolvimento do cérebro
nos homens, como defendia William Harvey na sua obra Lectures on the whole of
Anatomy of the Male and Female Body. A teoria dos humores, que já tinha
desaparecido, reaparecia agora para responder a novas perguntas.
14
2. A DIFÍCIL ARTE DE AMAR NOS
TEMPOS MEDIEVAIS
Fig: O Bordel, Valério Máximo. Paris, Bibl. Nacional, Ms. Fr. 289, fl. 414v.
15
No período do Alto Império Romano observou-se uma contenção da sexualidade,
típica sobretudo das classes superiores: o puritanismo da virilidade. Tocava os homens
ligados ao poder que consideravam que, para o exercício de cargos públicos, era
necessário um auto-controlo, pois o bem público tinha que ser mais importante do que o
bem privado. Logo, não poderia existir um excessivo amor à família, de tal ordem que
ultrapassasse o amor pelo Imperador. O cristianismo tornou mais ampla a adesão a este
pensamento com origem grega. Na sua génese um comportamento minoritário e típico
de uma camada masculina e superior, vai passar a disseminar-se à grande massa
populacional. Observemos as palavras de São Jerónimo, na sua obra Contra Joviniano:
6
Cf. Georges Duby (introd.), Amor e sexualidade no Ocidente. Lisboa, Terramar, 1990, p. 4.
16
Durante festas como o Natal, Páscoa, Pentecostes, festas dedicadas ao culto de
Maria, que se foram multiplicando durante a Idade Média, eram proibidas as relações
sexuais. Nas vigílias, isto é, na noite anterior a estes festejos, estava também proibido o
contacto íntimo. Tal acontecia, da mesma forma, durante o Domingo e sua vigília. Ou
durante as três Quaresmas: 40 dias antes da Páscoa, 40 dias antes do Natal (Advento), e
40 dias antes do Pentecostes. Para além do calendário litúrgico comum existiam outras
proibições: menstruação da mulher, gravidez (desde o momento da concepção ou
quando a criança começava a mover-se) e 40 dias após o parto. Estes últimos eram
princípios ancestrais, de impureza e derramamento de sangue. Ao calendarizar estas
proibições, chegamos à conclusão de que os casais, durante a época medieval, poderiam
apenas usufruir de 4 a 5 relações sexuais durante um mês, gerando duas a três
concepções num período de 4 anos 7.
Segundo o mesmo autor, a identidade sexual seria mais fácil na mulher, por
associação com a mãe. No homem, a identidade sexual estava ligada com a separação
da mãe e a identificação com o pai. Nos rapazes deveria de haver, pois, uma ruptura
com a figura materna. Os psicólogos consideram, pois, que a masculinidade não é algo
7
Cf. Vern L. Bullough e James A. Brundage, op. cit., p. 67
17
que se tem, mas é algo que tem que ser reafirmado constantemente, sendo marcada pela
recusa de ser feminino. Ponderam, nesse sentido, que a masculinidade se pode resumir
numa trilogia o património masculino comum:
8
Cf. Georges Duby, As três ordens ou o imaginário do feudalismo, Lisboa, Ed. Estampa, 1982, p. 34.
9
Cf. Jacques Le Goff e Nicolas Truong, op.cit, p. 67
18
idade adulta. No entanto, abundavam os filhos ilegítimos dos clérigos, sendo
encontrados, por vezes, vários filhos da mesma mulher, o que significa que estes
possuíam relacionamentos prolongados com uma companheira, chamada barregã, de
tipo conjugal. Tal pode ser provado através das legitimações dos filhos nos seus
testamentos, nos quais os sacerdotes deixam, por vezes, os bens aos filhos e às barregãs.
Esta ligação é, por vezes, escamoteada por uma linguagem metafórica, na qual as suas
companheiras são apresentadas como serventes. Nesta perspectiva, a igreja católica
dava indicação que os clérigos deveriam ter serventes maiores de 50 anos e com laços
de familiaridade com eles. Os filhos eram tratados como afilhados ou sobrinhos para
esconderem tal situação escandalosa.
A identidade sexual dos cavaleiros enraíza-se nas tradições dos povos bárbaros
no seio do Império Romano, exprimida no domínio pela força. É a força que permite
submeter as mulheres e outros homens inferiores. Prestam o culto do corpo perfeito,
robusto, detentor de grande potência, valorizando qualidades como a coragem, a
resistência, e valores morais como a lealdade, a fidelidade. Toda esta exuberância era
10
Cf. Jacques Le Goff e Nicolas Truong, op.cit, pp.100-102.
19
violenta e perigosa. A força bruta era disciplinada pela Igreja, que lhe introduziu alguns
valores, canalizando a violência para os não Cristãos e o auxílio aos desprotegidos
(mulheres solteiras, viúvas, crianças e inválidos).
11
Cf. Jean-Louis Flandrin, Un temps pour embrasser. Aux origines de la morale sexuelle occidentale
(VIe-XIe siècles), Paris, Seuil, 1983, p. 98.
20
vida, que não gerarão uma família digna. São os mais mobilizáveis para as revoltas de
tipo político existentes nas cidades, contra a miséria e os salários.
12
Cf. Jean-Louis Flandrin, op.cit., p.54
21
3. O CLERO REGULAR E SECULAR:
RELAÇÕES COM O FEMININO
Fig: O Jardim do Amor, De Sphaera. Modena, Bibl. Estense, Ms. Lat. 209
22
Será que nos é possível avaliar aquilo que desconhecemos? Para melhor
compreendermos a substância da informação sobre o feminino veiculada por estes
clérigos, é importante termos consciência das suas verdadeiras relações com o sexo
oposto. O ascetismo não foi nem ensinado, nem praticado por Jesus. No entanto,
converteu-se numa característica do cristianismo, veiculado sobretudo pelos membros
das ordens regulares. A palavra monge, que advém do vocábulo monos, que significa
solitário, aparece pela primeira vez no léxico cristão por volta do ano 180. No entanto,
não podemos falar de um monaquismo cristão, propriamente dito, antes dos meados do
século IV. Terá sido a partir dessa época que alguns cristãos começaram a viver
sozinhos ou em grupo, não possuindo, no entanto, leis ou regras sólidas. Em 320, surgiu
em Tabennisi, no actual Egipto, um mosteiro dirigido por Pacomio, antigo soldado
romano. Foi este monge que terá escrito a primeira regra monacal, que impunha uma
disciplina militar e que, directa ou indirectamente, terá influenciado todas as regras
posteriores.
13
Vide José Mattoso, “A cultura monástica em Portugal (975-1200)”, Religião e Cultura na Idade Média
Portuguesa, 2ª ed., Lisboa, I.N.C.M., 1997, p. 359.
23
destes religiosos guardavam apenas uma imagem longínqua de sua mãe, imagem muitas
vezes perdida na bruma dos tempos. A mãe, para muitos, a única mulher que
conheceram, era um espectro fugidio de um passado há muito esquecido…
14
Cf. Karlheinz Deschner, Historia Sexual del Cristianismo, Zaragoza, Editorial Yalde, 1993, p. 133.
24
Santa Catarina e San Nicólas. Em Salamanca, os carmelitas descalços trocavam
frequentemente de mulher. Em Farfa, perto de Roma, os beneditinos viviam
publicamente amancebados. 15 Existem, ainda, relatos de abades com inúmeros filhos,
como o abade Clarembaldo de Santo Agostinho, de Canterbury, que foi pai de dezassete
crianças numa só aldeia.
No limiar do ano mil, surgiram novas ameaças para a sociedade cristã devido à
emergência da feudalidade. Foi no modelo monástico triunfante que os dirigentes
eclesiásticos foram inspirar-se para reformar a Igreja e garantir a preeminência do poder
espiritual sobre o temporal. Para serem aceites pelos fiéis como únicos interlocutores
legítimos entre Deus e os homens e poderem continuar a conduzir o povo cristão no
caminho da salvação, os oratores tinham de ser puros. Não só aqueles que viviam
15
Vide Karlheinz Deschner, op. cit, p. 135.
25
afastados do mundo, dedicados à oração e à penitência, mas também os que no século
dirigiam espiritualmente os crentes e lhes ministravam os sacramentos 16.
16
Cf. Georges Duby, As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo, p. 156.
17
Cf. Armando Martins, História do Cristianismo Medieval, Textos e Documentos, [Lisboa], Faculdade
de Letras, 2001, p. 54.
26
as levava a pecar de determinada maneira. Esta ideia vem, na verdade, de mais longe,
dos clérigos e monges carolíngios que redigiram penitenciais: Teodoro, Rabano Mauro,
Teodulfo, bispo de Orleans. O leque de penas prometidas às pecadoras é muito aberto,
entre três dias de privações a dez anos. De um ano a cinco ou seis vão as punições
severas que castigam a negligência com crianças, as diversas maneiras de enfeitiçar e de
tirar prazer com outras. Seis pecados são punidos com tanto rigor como o homicídio:
envenenar, contrariar o juízo de Deus com talismãs, ensinar práticas abortivas, entregar-
se ao mais abjecto dos desvios sexuais, a bestialidade, beber o esperma do marido, e
depois o sonho, sair de noite para regiões estranhas onde põem a grelhar o coração dos
homens. Para além da barreira dos sete anos contava-se o crime de abortar ou matar um
homem18.
Podemos, pois, concluir que estamos perante duas realidades distintas, no que se
refere ao contacto dos prelados com as mulheres. Os monges, almas solitárias que
vivem uma existência baseada na oração, no trabalho e na penitência, profundamente
ascética, possuem pouco contacto com o sexo feminino, salvo os prevaricadores que,
talvez não fossem assim em tão escassa percentagem. Os monges julgavam-se anjos.
Pretendiam, como estes, não ter sexo e viam honra na sua virgindade, professando
horror pela mácula sexual. Por seu turno, os sacerdotes do século, membros activos da
sociedade, possuem contactos oportunos e privilegiados com o sexo oposto. A Igreja,
por conseguinte, dividiu os homens em dois grupos. Aos servidores de Deus proibiu o
uso do seu sexo; permitiu-o aos outros nas condições draconianas que decretou. É esta
realidade, que terá consequências na sua visão sobre a feminilidade, que irá prevalecer
durante toda a Idade Média…
18
Cf. George Duby, As Damas do Século XII – Eva e os Padres., Lisboa, Teorema, p.36-37.
27
4. OS MODELOS DE FEMINILIDADE
PRECONIZADOS PELO CLERO
Fig: Madonna of the Meadow, de Giovanni Bellini, 1505, in National Gallery, London.
28
Envoltos no seu universo masculino, mais preponderantemente a partir da
Reforma Gregoriana, os clérigos mantinham-se fechados nos seus claustros, nos
scriptoria, nas escolas, nas faculdades de teologia… Os clérigos seculares preparavam-
se para a vida imaculada dos monges. A imagem da mulher, a cada dia, se desvanecia,
para a maioria daqueles que não transgrediam as regras de celibato. Cada vez mais
afastados do universo feminino, nomeadamente os membros do clero regular e os altos
prelados, olham a mulher com medo e estranheza. Ela pode ser percepcionada como
uma espécie de íman que os atrai e que, ao mesmo tempo, devem repudiar com todas as
suas forças. Ela é o desconhecido, o insondável, que clama incessantemente para ser
explorado. É o pecado, é a tentação demoníaca à qual o clérigo deve resistir com a força
da sua fé! A ideia da mulher obceca-os e é essa obsessão que estará na origem de uma
literatura misógina, levada a cabo por muitos destes sacerdotes. Para tal, baseiam-se nos
comentários dos padres dos primeiros séculos, alimentados pelas Escrituras e pela
tradição. De facto, não trouxeram nada de novo, porque estes autores medievais
detestam a ideia de novidade 19. É sempre do velho que eles fazem o novo.
19
Cf. Jacques Dalarun, “Olhares de Clérigos”, História das Mulheres no Ocidente. Dirigido por Georges
Duby e Michelle Perrot, vol II, [Porto], Edições Afrontamento, 1994, p.30.
29
constituía o pior dos logros: «Este sexo envenenou o nosso primeiro pai, que era
também o seu marido e pai, estrangulou João Baptista, entregou o corajoso Sansão à
morte. De uma certa maneira, também, matou o Salvador porque, se a sua falta o não
tivesse exigido, o nosso Salvador não teria tido necessidade de morrer.20» Marbode, no
poema Da Mulher Má, da sua autoria, conseguiu juntar todas as imagens que conhecia
da sua vasta cultura clássica, redigindo uma peça da literatura mais misógina que nos
pode ser dado ler. Para o bispo de Rennes, a mulher é a raiz do mal, o fruto de todos os
vícios. Este alto prelado revela ainda uma repugnância face à mulher grávida, referindo-
se aos ventres das mulheres retesados pela gravidez como velhos odres inchados de
vinho novo21. Esta perspectiva não parece ter nada de novo, se recordarmos que Santo
Agostinho, séculos antes, proclamava que o homem nascia no meio de urina e fezes.
Desta forma, a mulher aparece simultaneamente como uma chama voraz e uma “coisa”
frágil. Nesse sentido, para Hildeberto de Lavardin, os três maiores inimigos dos homens
são as mulheres, o dinheiro e as honras: «A mulher, coisa frágil, inconstante a não ser
no crime, não deixa nunca espontaneamente de ser nociva. A mulher, chama voraz,
loucura extrema, inimiga íntima, aprende e ensina tudo o que pode prejudicar. A
mulher, vil fórum, coisa pública, nascida para enganar, pensa ter triunfado quando
pode ser culpada. Consumindo tudo no vício, é consumida por todos; predadora dos
homens, torna-se ela própria a presa.22»
20
Cf. Godofredo de Vandoma, PL 157, col. 168.
21
Vide idem, ibidem, p. 37.
22
Cf. Hildeberto de Lavardin, PL 171, col. 1428.
23
Citado por Jacques Dalarun, op. cit, p. 35.
30
Aquino, elevado por Leão XIII à categoria de primeiro doutor da Igreja e patrono de
todas as faculdades e escolas católicas, acreditava que o valor essencial da mulher
residia nas suas capacidades reprodutivas e na sua utilidade nas tarefas domésticas.
Segundo este, a mulher deveria estar subordinada ao homem porque ele seria a sua
“cabeça”, mais perfeito em corpo e espírito. Ainda segundo este doutor da Igreja:” A
mulher relaciona-se com o homem como o imperfeito e defeituoso com o perfeito. A
mulher é espiritual e corporalmente inferior e a inferioridade intelectual é o resultado
da corporal, mais precisamente devido ao excesso de humidade e à sua falta de
temperatura.”24 A mulher aparece, pois, como um verdadeiro erro da natureza, uma
espécie de um pequeno homem defeituoso, errado, mutilado….
4.1. EVA
Para estes religiosos, Eva é a mãe universal, mas, acima de tudo, a pecadora. Eva
é vae, a desgraça, mas também vita, a vida. No Génesis, existem dois relatos, com
diferenças significativas, que se seguem sem explicação. O primeiro relato é de tradição
sacerdotal, explicando a criação em sete dias. Nessa descrição, Deus cria o Homem à
sua imagem e semelhança, homem e mulher, simultaneamente. O relato que se segue é
um relato Javista, que não divide a criação por dias e, quando chega à génese do
Homem, narra que Deus criou primeiro o homem. Trouxe, então, vários animais para o
24
Citado por Karlheinz Deschner, op. cit, p. 225.
31
auxiliar, mas ele não se contentou com a sua companhia. Então, Javé colocou o homem
num sono profundo, retirou-lhe uma costela e moldou com barro a figura feminina,
dando-lhe o sopro da vida. Segundo as ideologias de determinada época, uma ou outra
versão é escolhida. A iconografia e a teologia medievais, mostram a criação segundo o
relato sacerdotal, mas quando chega à criação do Homem, servem-se da narração
Javista.
É esta concepção da mulher que vai dar origem a uma literatura misógina, da
qual já fizemos referência, que atribui todos os pecados e defeitos aos elementos do
sexo feminino. Na sua génese, parecem estar os monges isolados que seguem uma
tradição dos pais do deserto, que tentavam fugir às tentações do espírito e da carne,
nomeadamente de São João Crisóstomo. A partir desse momento, durante o século IV,
começam a ser desenvolvidos escritos, que serão retomados nos tempos áureos do
monaquismo.
25
Cf. Georges Duby, As Damas do Século XII – 3: Eva e os Padres, Lisboa, Teorema, 1997, p.47.
32
cariz corporal como algo de efémero, condenado à destruição do devir temporal. As
características biológicas do corpo feminino causam repulsa e horror a estes homens.
Eva é, pois, um modelo de mulher que serve como objecto de aversão.
4.2. MARIA
Maria. É este o tempo pleno da sua devoção, de Chartres a Amiens, o seu Verão
esplêndido. O século XII foi a primavera das catedrais, o tempo pleno de Nossa
Senhora. Os cânticos mais enamorados em seu louvor vêm do meio monástico, muito
particularmente dos cistercienses. É virada para a Virgem que a mística medieval
levanta voo. Os séculos XIII, XIV e XV ressoam com os lamentos dos autores mais
místicos sobre a dor da Virgem, aquela que recolhe o seu filho aos pés da cruz e o
deposita no túmulo. É o tempo da pietà… De facto, nota-se uma exaltação poética da
«virgem sempre preciosa», «stella maris», «porta do Céu», «refúgio do pecador»,
«esperança dos homens», …
Maria é a mãe por antonomásia, no seio da qual o filho indigno pode vir
esconder a sua vergonha. Dos quatro grandes dogmas atribuídos a Maria – maternidade
divina, virgindade, Imaculada Conceição e Assunção – os dois últimos foram
promulgados bastante depois da Idade Média, ainda que, desde o século XI, tenham
suscitado grandes paixões. Na verdade, no Novo Testamento, a virgindade de Maria é
afirmada, apenas, na concepção e por dois evangelistas: Lucas e Mateus. É a Godofredo
de Vandoma que se deve a fórmula da virgindade «antes, durante e após o parto» 26. Esta
concepção de Maria, torna-a cada vez mais incorpórea, mais irreal. Cada vez mais, Ela
torna-se mais numa virgem do que numa mãe… No século XIV, existem relatos de uma
santa sueca, Santa Brígida, que tem uma visão do nascimento de Cristo, na qual a Mãe
não sente dor… Tratava-se, pois, de um parto miraculoso. Maria, através da mão dos
nossos prelados, torna-se a cada passo, uma personagem imaginária, não podendo servir
de modelo para as mulheres terrenas, somando-se o perigo de o seguimento do seu
modelo originar uma quebra demográfica!
26
Cf. Jacques Dalarun, op. cit, p. 42.
33
Se Maria não constitui um modelo a seguir pelas mulheres reais, o que propõem
os nossos prelados para elas? A virgindade! Para as destinatárias do Espelho das
Virgens, redigido durante o século XII, na Alemanha, não haverá temores desde que se
preservem. De facto, segundo eles, as virgens gozavam da maior liberdade, livres do
poder do homem sobre o seu corpo e dos temores em relação à progenitura. No entanto,
o que deveriam propor às mulheres casadas, distantes da castidade virginal e que
queriam ser salvas? No espírito dos autores eclesiásticos, a possibilidade de salvação
para as mulheres casadas é, antes de mais, uma possibilidade de resgate. A perda do selo
virginal não tem apelo, tanto física como moralmente. A penitência é a única via; o
arrependimento da pecadora, da meretrix é o único modelo. Para as descendentes de
Eva, que não souberam aceitar o desafio mariano, não há salvação senão pela porta
pequena 27. E essa porta seria aberta por Maria Madalena…
Influenciado pela tradição, Gregório Magno faz ressurgir uma figura que
interessa especialmente às mulheres: Maria Madalena. Mas, quem seria essa mulher que
o Papa tanto se interessou por glorificar? Nos Evangelhos, ela não existe como
indivíduo. Constitui, na verdade, uma amálgama de três personagens do Novo
Testamento: Maria de Magdala, Maria de Betânia e uma pecadora anónima. Maria de
Magdala, é a mulher da qual Cristo expulsa sete demónios e que o segue até ao
Calvário, tendo sido a primeira testemunha da Sua ressurreição. Maria de Betânia era a
irmã de Marta e Lázaro. A terceira Madalena é conotada com a pecadora não nomeada,
que em casa de Simão banha os pés de Cristo com as suas lágrimas, enxuga-os com os
cabelos, cobre-os de beijos e unge-os com perfume. Se, na verdade, alguns factos
permitem ligar algumas destas personagens, sem mais delongas, Gregório Magno
fundiu-as definitivamente na figura de Maria Madalena. No entanto, não devemos
menosprezar a influência das penitentes do deserto, nomeadamente da figura de Maria
Egipcíaca. Depois de ter oferecido, indiscriminadamente, os encantos do seu corpo, esta
sacerdotisa passa a viver numa solidão total, para além do Jordão. Foi precisamente a
sua lenda que inspirou a vida eremítica de Maria Madalena.
27
Cf. Jacques Dalarun, op. cit, p. 47.
34
A aparição do culto a Maria Madalena, surgiu no século VIII, como comprova a
sua menção nos martirológios e na liturgia. As suas relíquias podiam ser encontradas na
abadia de Chelles. Mas o verdadeiro desenvolvimento do culto, vindo provavelmente do
Leste, está ligado ao êxito do santuário de Vezelay. Em 1050, esta abadia borgonhesa,
originalmente dedicada à Virgem Maria, é colocada sob protecção de Maria Madalena.
A peregrinação a este local irradia com esplendor incomparável nos séculos XI e XII.
Fenómeno que alguns autores denominam de “fermentazione magdalenica del sec.
XI”28. Devoção que irradia, não só em França, mas também na Inglaterra, na Alemanha
e em Itália. Franciscanos e Dominicanos tornam-se zelosos propagadores do seu culto e
da sua imagem.
28
Cf. Jacques Dalarun, op. cit , p. 48.
35
hierárquico define-a como mulher santificada, consolo dos aflitos e transmissora do
perdão.
36
5. A MULHER SOB TUTELA: O
CASAMENTO
37
Segundo a lei romana, o casamento traduzia-se num pacto, um contrato, entre as
famílias e os conjugues, feito muito informalmente; tinha que haver um consenso, quer
entre os parceiros quer entre os pais, no qual a intenção de se casar era preferível a viver
em concubinato. Era revestido de uma certa formalidade social, especialmente entre as
pessoas abastadas, que diferenciavam o casamento de outro tipo de relacionamento.
Durante o período imperial romano surge o casamento por consentimento mútuo entre
os parceiros, ou entre os seus pais, ou quem tivesse a pátria potestas, a autoridade
paterna, sobre eles. Uma das suas finalidades principais, universalmente reconhecida,
era a de ter filhos legítimos. Mas, nas palavras do grande jurista romano Ulpiano:
“«Não é a consumação (concubius) mas o consentimento que faz os casamentos», ou
então «não é a consumação (coitus) mas a intenção de casar (maritalis affectio) que faz
um casamento»” 29. Embora a linguagem da lei romana tenha sobrevivido, o seu
significado foi sendo subtilmente adaptado, à medida da passagem dos séculos.
29
Cf. Karma Lochrie, Peggie McCracken, James A. Schultz (ed.), Constructing Medieval Sexuality,
Minneapolis / London, University of Minnesota Press, 1997, p. 117.
38
própria vida aristocrática: afastamento geográfico de duas parentelas, que impunha uma
viagem sob a responsabilidade do marido, ou a necessidade de concluir o noivado do
filho, dado que tal noivado era o selo indispensável de uma aliança ou de uma
reconciliação entre grupos em guerra 30.
O desponsatio podia ser entendido como um noivado, mas sempre sem intervenção
alguma por parte dos noivos, pois eram ainda crianças, com cerca de sete anos de idade,
quando não menos, portanto sem idade para decisões. Quanto ao dotatio para além de
estabelecer os acertos sobre o dote, estipulava também que, após as crianças crescessem
e atingissem a idade de tomar as suas próprias decisões, se o casamento não se realiza-
se por rebeldia de alguma das partes, haveria lugar a uma espécie de multa a pagar pela
família de quem desistisse do casamento. A traditio, entrega da jovem ao futuro marido,
só acontecia anos após as três primeiras etapas, quando os jovens já tivessem atingido a
idade de aproximadamente doze ou catorze anos, no caso das raparigas, e de dezasseis
anos de idade, no caso dos rapazes.
30
Cf. História da Vida Privada, sob a direcção de Philippe Ariés e de Georges Duby, Porto, Edições
Afrontamento, 1990, p. 134.
39
celeiros transbordavam de presentes (sobretudo vinho), enviados por aldeias inteiras,
por mosteiros, camponeses anónimos, assim como pelos próximos.
Neste período até por volta do ano mil o casamento tinha por objectivo
estabelecer alianças e assegurar a transmissão do património, assim como o sangue e a
honra da linhagem. Para tal o importante era casar com alguém do mesmo grupo social,
ou superior, para aumentar a riqueza das famílias e consequentemente exercer maior
poder. A partir do ano mil, os contratos de esponsais tendem a desaparecer. Os bens do
marido cedidos à esposa em arras, passam a ser menores, e ela é obrigada a deixa-los
aos filhos primogénitos, passando apenas a dispor do dote dos seus familiares para
passar às filhas.
No final do século XI, principio do XII o consentimento mútuo do casal passa a ser
exigido pela Igreja. E no século XII passa-se a assistir a um ritual no qual os noivos
depois de terem prometido a profissão de fé trocam alianças que são benzidas pelo
pároco. A bênção fazia-se à porta da Igreja. E tal só acontecia depois de o sacerdote ter
verificado os consentimentos e a não consanguinidade entre ambos. Só depois os noivos
e familiares entravam no templo para assistir à cerimónia, que se limitava, ainda, a
presenciar o testemunho que termina apenas com uma oração 31. A esposa (sponsa) é
depois entregue ao marido pelo pai ou parente próximo que a tinha à sua guarda.
31
Cf. Jean-Pierre Poly, Le chemin des amours barbares. Genèse médiévale de la sexualité européenne,
Paris, Perrin, 2003, p.201.
40
particularidade regional. Bem se esforça a teologia por exaltar as dádivas dos esposos
um para com o outro, mas a cerimónia acaba por marcar o predomínio do marido. Ele é
a parte activa: dando com o anel aos presentes «acostumados» e apresentando a carta do
dote, assim como os treze drenários vindos da lei sálica. «Com este anel te desposo,
com este ouro te honro e com este dote te doto»: fórmula dita pelo marido ou qualquer
outra do mesmo género, acompanha o gesto32.
32
Cf. História da Vida Privada, dir. Philippe Ariés e de Georges Duby, Porto, Ed. Afrontamento, 1990.
p. 138.
33
Vide A Mulher na História, Actas dos colóquios sobre a temática da Mulher (1999-2000), Câmara
Municipal da Moita, 2001, p. 128.
34
Idem, ibidem, p. 135.
35
História das mulheres no Ocidente, sob a direcção de Georges Duby e Michelle Perrot, Porto, Edições
Afrontamento, 1990, p. 377.
41
«As mulheres sejam submissas a seus maridos, como ao Senhor, pois o marido é
a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja…E como a Igreja está sujeita a
Cristo, assim também as mulheres se devem submeter em tudo aos seus maridos»36. Aos
olhos da Igreja um bom casamento era uma comunhão entre um homem e uma mulher,
mas, segundo os ensinamentos morais da Igreja, ele só era realmente bom quando o
homem «governava» e a mulher obedecia. Constituindo os maridos a primeira instância
de controlo social das suas mulheres, o que não era apenas determinado pelas
disposições legais, mas pelos próprios decretos canónicos que convertiam o marido em
chefe da sua mulher e reforçavam também a responsabilidade e as possibilidades de
controlo por parte do «senhor e mestre». Este monopólio encontra a sua expressão mais
nítida no direito que o marido tinha de castigar a mulher, que as autoridades laicas e
eclesiásticas fixavam, e no privilégio masculino de ser-se infiel sem consequências.
Enquanto as normas jurídicas e a mentalidade pretendiam condenar as mulheres
adúlteras com a pena de morte, os homens casados escapavam impunes 37.
A terminar este capítulo julgamos pertinente concluir com a análise acerca dos
escritos de Bourchard de Worms, bispo da Igreja entre 1107 e 1112, autor de uma
pastoral, compilação de textos normativos, o Decretum, dado parecer bastante apelativo
da forma como a Igreja concebia o casamento. Autor do prólogo de um penitencial
precedente, do qual constam oitenta e oito infracções classificadas por ordem de
gravidade decrescente, Bourchard entende que o casamento é deveras concebido como
um remédio para a avidez sexual. Ele ordena, disciplina, mantém a paz. Por meio dele, o
homem e a mulher são afastados da área onde existe um acasalamento livre, sem regra,
na desordem. Contribuindo a penitência para a ordem social, para a paz, actuando em
prol da reforma da sociedade 38.
36
Carta de Paulo aos Efésios, V, 21-24
37
Idem, ibidem, pp. 367-369.
38
Georges Duby, O Cavaleiro a Mulher e o Padre, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1998, p.45-57.
42
CONCLUSÃO
43
clérigo, isto é do próprio homem, aliás, tão característico da Reforma Gregoriana. Ao
tentarem convencer os sacerdotes da inferioridade, por vezes demoníaca e execrável da
mulher, o objectivo dos nossos prelados seria, talvez, a repressão do desejo carnal que
estes homens salutarmente experimentavam. Causar-lhes repúdio seria uma forma de
afastá-los ainda mais da realidade feminina, a que muitos não resistiam… Este facto, em
concordância com a matéria inscrita nos penitenciais, sugere-nos que a clerezia e o
universo feminino são duas realidades muito próximas durante a época medieval.
Quanto aos modelos bíblicos analisados, desde logo, Eva e Maria constituem um
contraponto. No entanto, a terceira via aberta por Maria Madalena marca o início de
uma nova perspectivação da vida espiritual das mulheres medievais. Levada ao pináculo
por Gregório Magno, Madalena é sinónimo de arrependimento, de esperança. É, por
muitos, associada ao Purgatório. Sob os seus auspícios, as mulheres parecem resgatar-se
duas vezes: por serem pecadoras e por serem mulheres. Madalena é o sintoma de
44
avanço para uma nova mentalidade, símbolo da mulher redimida. Se, na verdade, a
Reforma Gregoriana intensificou o controlo da mulher e do prelado, também é um facto
que glorificou a figura de Madalena, esperança de salvação da mulher real.
45
FONTES E BIBLIOGRAFIA
1. FONTES
2. BIBLIOGRAFIA
ARIÉS, Philippe & DUBY, Georges (dir.) - História da Vida Privada. Porto, Edições
Afrontamento, 1990.
BERNOS, Marcel et all. - O Fruto Proibido. Lisboa: Ed. 70, 1991.
46
DUBY, Georges - As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo, Lisboa, Estampa,
1982.
DUBY, Georges & PERROT, Michelle (dir.) - História das Mulheres no Ocidente.
Porto, Edições Afrontamento, 1990
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