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A violência simbólica é sutil e tem força ideológica para firmar valores culturais e morais. A
nossa cultura foi fortemente influenciada pela visão cristã do mundo e por conseqüência do papel
que mulheres e homens desempenham nela. A experiência religiosa eixo na cultura latino-
americana é a matriz cristã. O encontro dos modelos patriarcais desta religião com a cultura branca
colonialista que atravessaram mares e deixaram marcas destrutivas para a vida de culturas
autóctones (indígenas e afros) e para as mulheres.
Nas diferentes igrejas que compõem o cenário religioso nacional, as mulheres são sobretudo,
servidoras e subordinadas, tendo pouco acesso às esferas de decisão. A idéia de que essa é a
“vontade de Deus” leva à naturalização da violência e dificulta a resistência e a denúncia. O relato a
seguir1, exemplifica bem essa situação:
“Filomena tem 24 anos, é branca, estudou até a 6ª série do ensino fundamental, é
vendedora de produtos cosméticos por catálogo, freqüenta igreja evangélica, é
casada com João há oito meses. Têm uma filha e um filho com cinco e três anos,
respectivamente. João tem 29 anos, é moreno, marceneiro, desempregado,
evangélico e não é dependente químico. Toda a família é natural da Bahia.
Filomena conviveu com João por oito anos e desde o namoro sofria
violência. Casou-se com ele, há oito meses, por imposição da igreja, pois,
para freqüentar a igreja não poderia estar numa situação moralmente
irregular (sic). Denunciou-o por várias vezes, inclusive na Bahia, por causa
das agressões freqüentes. Ele a vigiava constantemente, até mesmo em suas
idas ao banheiro. Exigia ter relações sexuais com ela desde a manhã à
noite, mesmo que ela não tivesse vontade. João impedia os filhos de se
alimentarem, como uma forma de agredir Filomena (sic). Exigia que as
crianças presenciassem as cenas de violência. Nos últimos quatro meses as
agressões se intensificaram, quando ela começou a trabalhar e conquistar
sua independência econômica. Da última vez Filomena recebeu muitas
pancadas na cabeça, pensando não conseguir permanecer viva. O aparelho
ortodôntico que usava foi quebrado, ficando apenas metade dentro de sua
boca.
Durante seu período de abrigamento, Filomena freqüentou a igreja
evangélica do bairro. Foi orientada pelo pastor a suportar o sofrimento
nesta vida para obter recompensa na outra, além de dever orar pelo marido
para que este retornasse à igreja. Para orar, ela deveria estar ao lado dele
porque, neste momento, ele encontrava-se desviado.
Filomena apresentava-se sempre muito confusa e com um sentimento de
que Deus estava aborrecido com ela por ter fugido do marido. Após um mês
de abrigamento, Filomena decidiu voltar para o marido”.
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Fatos como estes, ocorrem com muita freqüência com muitas mulheres de várias religiões,
que diante da idéia de um sacramento perene, como é considerado o casamento, passam toda a sua
vida submetida a uma relação violenta com seus companheiros. Vivem a maternidade como uma
imposição, sentem-se culpabilizadas ao interromper uma gravidez e entendem que, ainda que as
relações conjugais aconteçam de forma violenta, devem manter-se fiéis à seus maridos e a seus
filhos.
Esta família de modelo patriarcal, proclamada como sagrada no Cristianismo, é a principal
instituição através da qual as Igrejas Cristãs impõe e tornam vigentes suas doutrinas e práticas
disciplinares, sobretudo no campo da moral sexual. Não é raro que mulheres casadas com, homens
alcoólatras violentos, sejam aconselhadas por um padre ou pastor a ser pacientes, tolerantes e rezar
para que estes homens se convertam em maridos carinhosos e responsáveis. É comum que se repita
o seguinte ditado popular: “Ruim com ele, pior sem ele”. Aí está a “sagrada família”, que tem sido
um lugar privilegiado do exercício da violência, conforme mostram as estatísticas sobre violência
doméstica.
Religião pode ser uma faca de dois gumes. Ela sempre atua na direção de dar um sentido
para a vida, às vezes possibilitando abrir horizontes para a existência e, outras, estreitando caminhos
com uma série de recursos punitivos. O que constatamos, no entanto, é que em quase todas as
culturas e em quase todos os tempos, a religião tem legitimado ideologicamente a subserviência das
mulheres. E uma das formas mais eficazes e sutis é associando o feminino ao mal, ao desviante, à
desordem. Isto significa que, culturalmente, as mulheres estão à mercê da punição naturalizada. A
violência se instala na cultura pela associação mulher-mal, justificando assim a sua exclusão e
desqualificação de espaços de poder e decisões da sociedade. Atualmente estamos vivendo um
fenômeno do fundamentalismo religioso que exacerba mais ainda o lado patriarcal e moralista das
religiões, o que tem trazido como resultado um fortalecimento da mentalidade conservadora em
relação aos papéis de mulheres e homens na sociedade. A desconstrução destes eixos conservadores
se faz urgente e nos desafia a todas/os para uma análise menos fragmentada e mais sistêmica da
sociedade.
Neste aspecto a nossa Carta Magna assegura tanto a liberdade de opinião como a
inviolabilidade de consciência. Mas podemos ressaltar que a crença como a consciência é inerente
ao ser humano, quem finalmente decide ou não em que ser divino queremos acreditar.
Nas palavras do autor Fernando Fonseca:
“O Estado não tem sentimento religioso e, laico como é, não deve estabelecer preferências
ou se manifestar por meio de seus órgãos. Entendemos haver equívoco ao se afirmar que o Brasil
acredita em Deus. Quem pode acreditar ou não são os brasileiros [as]2.”
Isto é diretiva para elaboração das políticas públicas e sua aplicação. Profissionais em todas
as áreas devem ter como base a Constituição e Normas Técnicas oficiais do Estado, devendo saber
discernir entre suas convicções filosóficas e religiosas e, sua atuação profissional em relação às
mulheres especialmente.
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A condição de ser mulher no tempo: uma história de violência a partir do direito
Esta discriminação legitimada através do religioso foi aumentando seu poder de influência
e perpassou aspectos das esferas civil e pública.
Ao traçarmos uma linha no tempo, podemos observar, por exemplo, como no direito
romano, considerado o berço do nosso sistema jurídico, as mulheres eram consideradas
propriedades do pai, quando eram solteiras, e quando casadas eram propriedades do marido. Eram
consideradas simplesmente res4.
Ulteriormente, entre os séculos XV e XVIII da nossa história ocidental, milhares de
mulheres foram torturadas e exterminadas pela morte na fogueira, sob acusação de bruxaria. Foi a
chamada Caça das Bruxas, que não eram nada mais que mulheres corajosas que lutavam pelos seus
direitos, constituindo um perigo para a Igreja Católica como para o sistema político e econômico
que imperava na época.5 Nessa sociedade patriarcal, os maridos dominavam as mulheres em
privado, e as autoridades masculinas defendiam em público a supremacia dos homens em todas as
instâncias sociais.
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Lamentavelmente, esta realidade não dista muito do que atualmente acontece nas outras
latitudes, além de ocidente. Em alguns países de tradição árabe, o clitóris é retirado para que elas
não possam sentir prazer sexual.
Por outro lado, aproximando-nos à nossa realidade, no Brasil, no tempo dos barões do café,
a mulher era considerada objeto de obediência do marido.
O quadro histórico a que nos referimos tem sua explicação, entre outras possíveis, nas
conseqüências do patriarcado, “...tempo em que as mulheres eram esquecidas e enfraquecidas pela
legislação, chegando a ser desconsideradas como ser humano, tal como fazia Esparta, na Grécia”.6
Posteriormente, através da condição de submissão e propriedade masculina que foi reconhecida a
humanidade da mulher.
Com a chamada época das luzes, no século XVIII, cuja fermentação cultural e filosófica
inundava a sociedade através de ideais de liberdade e independência, lentamente, esta visão de
rigidez a respeito das mulheres foi mudando. Porém, somente na segunda metade do século XX,
após a conquista do sufrágio universal juntamente com os direitos trabalhistas é que a violência
contra a mulher passou a ser tema de importância.
Desta maneira, a violência de gênero ganhou destaque nos diversos estudos
interdisciplinares, como também passou a ser competência de políticas públicas transformando-se
em um problema que precisava ser resolvido urgentemente através da saúde, segurança pública,
educação, entre outros7. Por outra parte, foi abordado no âmbito da análise comportamental da
sociedade, através dos fenômenos sócio-culturais e psicológicos8, e como estes são influenciados
pela economia global afetando as camadas da população. Também foi pensada no âmbito da
religião9 permitindo uma porta de entrada fértil para desvendar as suas implicações e conseqüências
no tema da violência de gênero e sua legitimidade através do sagrado.
Entretanto, a violência de gênero também pode ser pensada num marco mais abrangente de
reflexão e ação como são os temas dos Direitos Humanos Universais, as Convenções e Tratados
Internacionais que, por sua vez, estão intimamente relacionados com os Movimentos de Mulheres
que lutaram e lutam por melhores condições de vida.
1
Caso verídico ocorrido na CASA ABRIGO – Regional do ABC, citado em LEMOS, Marilda de O. Entre nós: um
estudo sobre a Casa-Abrigo regional do ABC para mulheres em situação de violência. São Caetano do Sul: IMES –
Centro Universitário Municipal de São Caetano do Sul, dissertação de mestrado, 2003.
2
O grifo é nosso
3
OLIVEIRA, Flávia Lopes. Estupro (e outros crimes contra a mulher): quem é o réu? Disponível em:
http://www.apriori.com.br/artigos>. Acesso em 13/novembro/2006
4
ABBUD, Valderez Deusdedit. A temática da mulher: os velhos modelos estão voltando. Disponível em:
http://www.correiocidadania.com.br/ed264/dicionario.htm. Acesso em 20/março/2002
5
Confira Luiza E. Tomita sobre o tema “A Inquisição e a Caça às Bruxas – Uma página tenebrosa da História das
Mulheres”. In: Mandrágora. São Bernardo do Campo: UMESP. Ano 7, n.o 7/8, 2001/2002. p.37
6
SANTIN, Janaina Rigo et al. “Violência doméstica: Como legislar o silêncio. Estudo disciplinar na realidade local”.
In: Just. Do Direito. Passo Fundo. v.1, n.o 16, 2002. p.81
8
7
Cf. SCHRAIBER, Lilia Blima e D’OLIVEIRA, Ana Flávia Pires Lucas. “A violência intrafamiliar e as mulheres:
Considerações da perspectiva de gênero”. In: Conciencia Latinoamericana. v. XIV, n.o 12, octubre 2005. p.30-35
8
Cf. SCHRAIBER, Lilia Blima et al. WHO Multi country study on women’s health and domestic violence against
women. Brazil. São Paulo: FMUSP, 2002. (Relatório de pesquisa); O’TOOLE, L.L. e SCHIFFMAN, J.R. Gender
violence. Interdisciplinary perspectives. New York: New York University Press, 1997; HEISE, L.; ELLSBERG, M. e
GOTTEMOELLER, M. “Ending violence against women”. In: Population Reports, Series L, n.o 11, v.27. p.1-44, 1999
9
A respeito deste tema a Revista Mandrágora, editada pelo Núcleo de Estudos Teológicos da Mulher na América Latina
(NETMAL), do Curso de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e
do Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, dedicou um número especial com vários artigos
desde uma perspectiva de gênero sobre esta temática: “Violência, Gênero e Religião”. In: Mandrágora. São Bernardo
do Campo: UMESP. Ano 7, n.o 7/8, 2001/2002