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UNIDADE CURRICULAR: Temas de Cultura e Religião – Idade Média

CÓDIGO: 31122

DOCENTE: Maria Filomena Andrade

A preencher pelo estudante

NOME: Saulo Junior

N.º DE ESTUDANTE: 2000206

CURSO: História

DATA DE ENTREGA: 19 de janeiro de 2024

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Conter os modos em público, nunca abanar muito a cabeça, sorrir sem deixar
parecer os dentes, olhos sempre semicerrados e direcionados quase sempre para o chão1.
Eram estas algumas das diretrizes que, uma mulher que tenha vivido no alvorecer da
idade média teria de seguir, uma vez que, tais diretrizes eram estipuladas por aqueles
que buscavam de maneira incansável, um modo de refrear o fervor do desejo carnal
contidos si, na figura de outrem. O rio da literatura medieval, no que implica a figura
feminina, acabou por desaguar numa foz onde, o objeto do desejo masculino passa a ser
demonizado, contrastando uma noção presente nas sagradas escrituras:

“Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás ver com clareza para
tirar o cisco do olho de teu irmão”.2

Este mesmo texto sagrado é o qual servirá de base para uma fundamentação
teológica, onde considerando o conteúdo textual do livro de Gênesis, este deixará no
imaginário masculino medieval, uma larga margem interpretativa em que o papel de
Eva será tido como uma função inaugural da existência feminina. Ou seja, uma
tendência a fraqueza por parte da mulher, que por sua vez exige do homem uma posição
vigilante e provedora. Doravante, não é preciso muita elaboração interpretativa para
reconhecer o quão grotesco era tal linha teológica, onde tendo em vista a mesma
passagem do texto bíblico, o historiador francês Georges Duby o interpretará da
seguinte maneira: “Depois, diante de Adão que a cobre de insultos e de censuras, a
mulher surge muito mais digna. (...) Acusa-se, confessa, humilha-se, como perfeita
penitente. Proclama no fim sua esperança: Deus me restituirá a sua graça. Convicta de
estar salva (...).”3 Assim, é posto em evidência, a luz de uma mesma referência literária,
a possibilidade de interpretações completamente distintas, extenuando evidentemente o
largo espaço cronológico entre uma e outra. A mulher, pois, tinha um papel quase que

1
DUBY, Georges, PERROT, Michelle – História das Mulheres: A Idade Média. Vol. 2, Lisboa:
Afrontamento, 2015, p. 99-139.

2
Mateus, cap. 7, vsc. 5.

3
DUBY, Georges - As Damas do século XII. Vol. 3, Lisboa: Teorema, 1996-1997, p. 123.

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completamente passivo, uma vez que as instituições dominantes de então eram todas
administradas por homens4.

Tal contexto histórico acabava por confinar a vida da mulher num beco existencial,
sombrio e opaco. Pode-se falar da distinção que se fazia da mulher em determinado
plano, por idades, distinguia-as em novas e velhas, como fazia Filipe de Novara5 já no
século XIII e ainda, de maneira mais específica, falava-se em mulheres casadas, viúvas
e virgens6 que constituíam juntamente com as freiras e serventes, o principal público de
conhecidos pregadores, como Gilberto de Tournai, Tiago de Vitry e Alão de Lille7. A
evocação destas nos escritos, eram executadas pelos homens nomeados santos e
sapiente, e compunham também a linha de objeto do discurso, por meio das damas,
princesas e rainhas, que eram como que interlocutoras do conselho ou sermão
moralizador do feminino, que faziam destas, exemplos a serem seguidos. A mulher era
tida, na sociedade medieval, como a herdeira da sentença obtida por Eva através do
pecado primordial, chegando a ser considerada ainda, segundo palavras do escritor
medieval Peraldo como “Incendiárias dos lugares sagrados”8.

No que se refere ao envolvimento feminino nos estudos e na literacia, deriva este


início, de uma natural notabilidade da mulher que forçou os escritores e pregadores
medievais a suavizarem o discurso sobre a elas, não correspondendo mais as
equivocadas perceções masculinas em dirimir a pessoa feminina, com as atividades por
estas praticadas. Neste contexto é que surgem os escritos envolvendo mulheres em
conventos ou outras organizações religiosas, pois agora, viu-se como necessário a
leitura e estudo do texto bíblico na formação não só do homem, mas também da mulher.
Adiante, a título de exemplo, tem-se em Portugal, no século XV o surgimento de uma
organização religiosa liderada por uma mulher, Beatriz de Galvoa. Mulher, que pautada

4
DUBY, Georges, PERROT, Michelle – op. cit.

5
NOVARA apud Filipe de - Les quatre âges de l'homme, ed. M. de Frévile, Paris, 1888.

6
DUBY, Georges, PERROT, Michelle – op. cit.

7
Idem.

8
PERALDO apud Guilherme - Summa de virtutibus et vitis, per Paganinum de Paganinis, Venetiis, 1497,
f 207r.a.

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no ideal de uma autónoma e independente, funda uma organização cuja intenção é a
prevalência da garantia do bem da vida comunitária em detrimento da vida pessoal, uma
vez que, sendo esta sua síntese de modo de vida, idealizou a igualdade de irmãs no viés
da opção pela pobreza, exercício da humildade e a disciplina do corpo9. Essa pulsão
ativa que a mulher passa a ocupar, a despeito da opressão intelectual e social exercida
pelos líderes deste contexto histórico, gerará talvez o que há de melhor da literatura e
das artes medievais. Compõe bom exemplo, as cartas de Abelardo e Heloísa, onde lê-se
rasgados ensejos amorosos num enlace erótico da poesia medieval, visto a seguinte
passagem onde Heloísa recente a dor da perda de seu “único”: “Ó inclemente
clemência! Ó desafortunada fortuna! O destino contra mim gastou todos os seus
dardos, de tal modo que já não lhe restam mais para que possa ferir outros!”. Há uma
vasta obra executada por mãos femininas durante a idade média, a mencionar, Chiara de
Assis que ao se deparar com a pregação de São Francisco de Assis, logo abandonou o
que possuía, abdicou de um bom casamento arranjado por sua família e entregou-se a
vida cristã. Escreveu larga obra teológica tais como, Forma Vitae, Bênção, O
Testamento, Cartas a Inês de Praga dentre outras obras10, também Cristina Di Pisano
que tendo perdido um marido, o pai e a fortuna de sua família, dedicou-se as letras e
tornou-se notável escritora de seu tempo, tendo produzido Roman de la rose, sendo este
um dos livros mais populares da Europa no século XIII11. É indubitável que, além
destas outras tantas e tantas mulheres contribuíram não só em literatura, mas também
em medicina, direito, ciências, filosofia e mais. Há uma possibilidade filosófica de que a
historiografia humana talvez seja gerada benevolamente pela mulher, na contenção da
tendente submersão masculina no trágico de seus próprios medos.

9
FONTES, João Luís Inglês – A pobre vida no feminino: o caso das Galvoas de Évora, in O Corpo e o
Gesto na Civilização Medieval. FCSH. Universidade Nova de Lisboa, 2020, p. 157-178.

10
COSTA, Marcos Roberto Nunes, COSTA, Rafael Ferreira – Mulheres Intelectuais na Idade Média.
Porto Alegre: Editora Fi, 2019, p. 121.

11
Ibid. p. 248.

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BIBLIOGRAFIA:

COSTA, Marcos Roberto Nunes, COSTA, Rafael Ferreira – Mulheres Intelectuais na


Idade Média. Porto Alegre: Editora Fi, 2019.

DUBY, Georges - As Damas do século XII. Vol. 3, Lisboa: Teorema, 1996-1997.

DUBY, Georges, PERROT, Michelle – História das Mulheres: A Idade Média. Vol. 2,
Lisboa: Afrontamento, 2015.

FONTES, João Luís Inglês – A pobre vida no feminino: o caso das Galvoas de Évora,
in O Corpo e o Gesto na Civilização Medieval. FCSH. Universidade Nova de Lisboa,
2020.

NOVARA apud Filipe de - Les quatre âges de l'homme, ed. M. de Frévile, Paris, 1888.

PERALDO apud Guilherme - Summa de virtutibus et vitis, per Paganinum de


Paganinis, Venetiis, 1497, f 207r.a.

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