Você está na página 1de 7

SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DO OESTE DO PARÁ


INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
LICENCIATURA EM HISTÓRIA
HISTÓRIA MEDIEVAL
DOUGLAS MOTA XAVIER DE LIMA

ANÁLISE DOCUMENTAL: A CIDADE DAS DAMAS

E O DEBATE SOBRE MISOGINIA NA IDADE MÉDIA

SANTARÉM - PA
2023
SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DO OESTE DO PARÁ
INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
LICENCIATURA EM HISTÓRIA
HISTÓRIA MEDIEVAL
DOUGLAS MOTA XAVIER DE LIMA

ANÁLISE DOCUMENTAL: A CIDADE DAS DAMAS

E O DEBATE SOBRE MISOGINIA NA IDADE MÉDIA

Lucas Alves Borges

SANTARÉM - PA
2023
Christine de Pizan nasceu em Veneza no ano de 1364. Mudou-se para Paris durante a
infância, quando seu pai, Tommaso de Pizzano, atuaria como astrólogo para Carlos V, rei da
França. Durante a idade adulta, Christine se casa com Etienne de Castel, um dos secretários do
rei, com quem teve três filhos. Inserida no contexto aristocrático desde sua infância e
adolescência, a autora teve acesso a grande biblioteca da Corte. O ambiente erudito na qual
estava presente foi fundamental em sua trajetória intelectual, pois aproveitou dessa
oportunidade para ler as mais diversas obras filosóficas e políticas.

Um dos momentos mais marcantes na biografia de Christine de Pizan foi o falecimento


de seu marido. A partir da viuvez, foi aberta a possibilidade de se dedicar à escrita e aos estudos
de maneira integral. Caso contrário, “teria se ocupado exclusivamente de responsabilidades
domésticas” (SCHMIDT, 2020, p. 1). Vale destacar que, naquele período, se tornar solteira
“representava um estado de grande liberdade para as mulheres, já que elas podiam decidir não
se casar novamente” (SCHMIDT, 2020, p. 1). Portanto, tornou-se possível para Christine o
envolvimento intenso com a produção literária. Ela é considerada por muitos historiadores
como "a primeira mulher escritora profissional no Ocidente” (SHCMIDT, 2020, p.1). Em 1418
Christine se vê na obrigação de se retirar da corte parisiense, tendo em vista a eclosão de uma
guerra civil. Considera-se que o falecimento da autora se dá pouco antes de 1431.

Christine viveu em um momento de bastante turbulência nas disputas geopolíticas no


globo. Era o contexto da Guerra dos Cem anos (1337 – 1451), do conflito entre Armagnacs e
Borguinhões (1407 – 1435) e da instabilidade gerada pelo Grande Cisma do Ocidente (1378 –
1417), que foi uma crise religiosa criada a partir da nomeação de dois papas que reivindicavam
para si o poder sobre a Igreja. Assim, a enorme quantidade de obras de natureza política escritas
por Christine explica-se a partir das reações da autora diante do contexto da política externa e
interna.

O autobiográfico Le livre de Mutacion de Fortune (1403), uma das produções literárias


de Christine, ajuda a entender o contexto social das mulheres na Idade Média. No livro, a autora
descreve uma alegoria que é no mínimo intrigante: depois da morte de seu marido, Pizan é
"transformada pela Fortuna em um homem, que agora possui força suficiente para conduzir a
embarcação que representa sua existência” (SHCMDIT, 2020, p. 2). Vê-se, na obra, o reflexo
de uma realidade social em que as mulheres estavam submetidas à vontade dos homens,
inclusive no que se refere ao trabalho: escrever e viver da escrita eram atividades percebidas
como masculinas, cabendo às mulheres a dedicação exclusiva a afazeres domésticos.
Uma das obras que foi fruto do contato de Christine com a literatura presente na
biblioteca real e do envolvimento da autora com a escrita chama-se A Cidade das Damas,
escrita em 1405. No livro, a personagem Christine recebe a visita de três senhoras – as damas
– chamadas Razão, Retidão e Justiça. Elas buscam auxiliar a protagonista a construir uma
cidade “amuralhada para proteger as mulheres virtuosas das calúnias injustas lançadas pelos
homens” (SCHMIDT, 2020, p. 4). Vale destacar, também, que o livro traz uma compilação
biográfica de várias mulheres que foram notáveis na história, na mitologia e nas Escrituras. Ao
analisar A Cidade das Damas, portanto, entende-se que a intenção da obra é a de ser uma
narrativa alegórica que atua em defesa das mulheres ao denunciar a misoginia em diversos
textos filosóficos, políticos e histórico. Ou seja, além de ser considerada uma das primeiras
escritoras da história, Christine de Pizan também pode ser a primeira mulher a “viver de uma
escrita ‘feminista’ em defesa da mulher, como uma doce voz na amarga misoginia da época”
(LEITE, 2006, p. 25).

O contexto histórico em que A Cidade das Damas surge é marcado profundamente pela
herança de uma hegemonia masculina em todos os níveis da sociedade. A vivência cotidiana
das mulheres, os seus desejos e ideias “só podem frequentemente ser descortinados por detrás
do véu da tutela e da regulamentação impostas pelos seus pais, maridos e confessores”(OPITZ,
1990. p. 356). Assim, encontrar fontes escritas por mulheres, na maioria da Idade Média, tem
sido uma tarefa de empenho para os historiadores. É, contudo, nos finais dessa época que se
tornou acessível o contato com conteúdo escrito por autoras. Isso porque foi dado às mulheres
“o acesso a pergaminhos e penas” (OPITZ, 1990. p.355). A partir desse momento que mulheres
passam a desempenhar um papel mais importante na escrita no medievo.

Christine de Pizan é uma das autoras fundamentais no que tange a entender o contexto
feminino na Idade Média. Sua obra é amplamente caracterizada por suscitar uma defesa do sexo
feminino ante a dominação masculina. A sua autoria é, nesse sentido, uma “reflexão das
mulheres no seu tempo” (NOGUEIRA, 2008, p. 134), por conta da inserção de Christine nesse
contexto social que herdou convicções de uma torpe noção de supremacia masculina. Herança
essa que remonta ao período histórico da antiguidade, em que autores como Aristóteles
defendiam que a mulher fosse, de fato, inferior ao homem. Na Metafísica, Aristóteles defende,
por exemplo, a ideia de que a mulher seria um homem imperfeito. É a esse autor, o qual foi
absolutamente presente no contexto da filosofia medieval, que “devemos muito da linguagem
e do universo simbólico que codificaram a história da discriminação da mulher” (LOPES, 2010.
p. 95).
É importante, também, ressaltar que a herança medieval do pensamento de inferioridade
feminina ante ao homem vai além da influência da filosofia antiga. Em uma sociedade também
dominada pela religião, é fundamental analisar o impacto das Escrituras na mentalidade social.
A lembrança de Eva como aquela que corrompeu a humanidade e a associação dessa à
legitimação da repressão feminina aparece como um dos fatores defendidos por autores homens
para propor o silenciamento do feminino. Essa noção ganhou fortalecimento na Igreja por conta
do pertencimento da palavra aos clérigos: “homens da religião e da Igreja, que governam o
escrito, transmitem conhecimentos, comunicam o seu tempo e para além dos séculos, o que se
deve pensar das mulheres, da Mulher” (KLAPISH-ZUBER, 1990, p.16). Nesse contexto, a
história das mulheres é, portanto, “uma história escrita por homens” (NOGUEIRA, 2008,
p.138).

Para Maria Simone Marinho Nogueira,

“As mulheres medievais, me parece, só queriam ter também o direito de pregar,


ensinar e escrever, tendo igualmente o direito de não serem vistas como as
representantes maiores da maldade e do vício, denunciando, assim, a situação pela
qual passavam” (NOGUEIRA, 2008, p. 138)

Assim, é possível afirmar que as mulheres escritoras não pretendiam inverter a situação
social para promover a dominação do feminino sobre o masculino, mas sim de se desvincularem
de todos os maldizeres promovidos contra elas.

Em A Cidade das Damas, Christine promove a defesa das mulheres a partir da tentativa de
compreender os motivos que levaram os homens a promover o ódio contra o feminino e da
crítica ferrenha a essas motivações. A autora tinha como uma de suas convicções que a literatura
devia ter como função “ a boa orientação moral, para além da qualidade estética” (SCHMIDT,
2020. P.5). Assim, Pizan acreditava na possibilidade de se utilizar da escrita para reduzir a
discrepância social entre mulheres e homens. Na obra, traz um compilado enorme com mais de
150 biografias de mulheres ilustres na história: mulheres que atuaram como cientistas, artistas,
governantes e estrategistas militares.

Esses relatos tinham o objetivo de fornecer ao leitor material que desse evidências
suficientes para a superação do preconceito de gênero promovido pelos homens, sobretudo para
provar a compatibilidade da natureza feminina com o uso pleno da razão. Em A Cidade das
Damas, Christine mobiliza uma série de argumentos que “refutam a tese da imperfectibilidade
da forma feminina, se apropriando das tradições filosóficas medievais como bases teóricas”
(SCHMIDT, 2018).
Christine de Pizan toma como referência a obra A Cidade de Deus, escrita por Santo
Agostinho – autor com tremenda influência aristotélica – para propor A Cidade das Damas,
que, ao invés de separar o terreno do espiritual (como na obra de Agostinho), construiria
uma cidade que pertencesse às mulheres. Na obra, há reinterpretações de tradições
filosóficas e religiosas. Ela afirma, por exemplo, que por conta das mulheres serem criadas
a partir da costela do homem, “traz na sua essência a mesma centelha da luz divina que o
homem, o qual, por sua vez, foi feito à imagem e semelhança de Deus, daí a mulher ser tão
inteligente quanto o homem” (COSTA, 2021, p. 15-16). Ou seja, se apropria da tradição
religiosa para apresentar uma nova visão que tornava possível assemelhar a mulher do
homem, na tentativa de promover a igualdade de gênero.

Em determinado momento de A Cidade das Damas, Christine debate sobre o motivo que
fazia com que as mulheres não tivessem destaque na literatura:

“Sabes por que mulheres conhecem menos que homens? [...] é porque elas são menos
expostas a uma larga variedade de experiências já que precisam ficar em casa o dia
inteiro em nome do lar” (PIZAN, Cidade das Damas, parte I cap XXVII).

Nota-se, nesse sentido, que a autora propunha a existência de uma diferença de


possibilidades de desenvolvimento intelectual entre homens e mulheres. No trecho acima, é
evidente a convicção da autora de que não havia uma inferioridade natural do feminino, mas
sim a existência de uma razão circunstancial promovida pelo ambiente misógino da Idade
Média que explicava a disparidade de oportunidades dadas às mulheres no que tange a ocupar
posições de protagonismo na sociedade.

Por fim, deve-se ressaltar que Christine de Pizan é uma autora fundamental no debate sobre
misoginia na história das mulheres, principalmente por se tratar de uma escritora que ganhou
destaque durante o período medieval, sabidamente associado a um momento de repressão
contra mulheres e de dominação do homem sobre o feminino. Ler e analisar a bibliografia e a
biografia de Christine é uma tarefa fundamental para entender o contexto social das mulheres
no medievo, ainda que se trate de uma autora que conviveu com a aristocracia. É de suma
importância entender que a história das mulheres há pouco tempo tem conseguido superar a
misoginia, com a garantia de direitos femininos nos Estados de Direito contemporâneos.
Entender Pizan auxilia a todos que tiverem contato com as suas obras a construir uma
mentalidade que perceba a repressão social sofrida pelas mulheres na história e a noção de que
essa opressão deve ser combatida através de movimentos que reforcem a ideia de igualdade de
gênero.
Referências bibliográficas:

ARISTOTELES. Metafisica. Edición trilingüe [texto grego de Ross e latino de Moerbeke].


Traducción de V. García Yebra. Madrid: Gredos, 1970. 2 vols

COSTA, Marcos Roberto Nunes; COSTA, Rafael Ferreira. Escrita e gênero na pensadora
medieval Cristina de Pisano. In: Revista Ágora Filosófica, Recife, v. 21, n.2, 2021, p. 5-27.

LEITE, Lucimara. Christine de Pizan: uma resistência na aprendizagem da moral da resignação.


São Paulo: USP, 2008. 223 f. Tese (Doutorado em Língua e Literatura Francesa e Estudos
Medievais).

LOPES, Marisa. Cadernos de filosofia alemã XV. São Paulo: USP. 2010. p. 81-96.
NOGUEIRA, Maria Simone Marinho. “Escritoras medievais: transgressões silenciadas”. In:
BROCHADO, Cláudia e DEPLAGNE, Luciana. Vozes de mulheres da Idade Média. João
Pessoa: Editora UFPB, 2018, p. 132-152.

OPITZ, Claudia. O Quotidiano da mulher no final da Idade Média. In: História das Mulheres
no Ocidente. In: DUBY, George; PERROT, Michelle (orgs.). KLAPISCH-ZUBER, Christiane
(dir.). História das mulheres no Ocidente (2): a Idade Média. Trad. de Ana Losa Ramalho et al.
Porto: Edições Afrontamento; São Paulo: EBRADIL, 1990. v. 2, p. 355 – 435.

PIZAN, Christine. A cidade das damas. Tradução Luciana Calado Deplagne. Florianópolis:
Editora Mulheres, 2012. (Livro I)

SCHMIDT, Ana Rieger. Christine de Pizan. In: Blogs de Ciência da Universidade Estadual de
Campinas: Mulheres na Filosofia, V. 6 N.3, 2020, p. 1-15.

Você também pode gostar