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Revista Estudos Feministas

ISSN: 0104-026X
ref@cfh.ufsc.br
Universidade Federal de Santa Catarina
Brasil

Sacramento, Sandra
Reseña de "As mulheres ou os silêncios da história" de Michelle Perrot
Revista Estudos Feministas, vol. 14, núm. 2, maio-setembro, 2006, pp. 566-571
Universidade Federal de Santa Catarina
Santa Catarina, Brasil

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Mulheres emparedadas e seus espaços de
memória
As mulheres ou os silêncios da que se debruçaram sobre questões atinentes à
mulher, como Michel Foucault e das várias
história. correntes do feminismo. A autora discorre sobre
os espaços de memória ocupados pela mulher
PERROT, Michelle. Trad. Viviane Ribeiro. ao longo da história e seus emparedamentos.
Mesmo silenciada, a mulher conseguiu registrar
São Paulo: Edusc, 2005. 519 p. experiências onde lhe era permitido, restritas,
evidentemente, ao espaço doméstico, ao
privado. Esse espaço, paradoxalmente, vem a
ser o grande celeiro de sua própria libertação. É
o que vamos tentar colocar aqui.
Trata-se de uma obra interessantíssima, Na Introdução, Michelle Perrot faz uma
composta de cinco partes em 23 capítulos, espécie de arqueologia de todo o processo de
baseados em estudos publicados anteriormente, resistência trilhado pela mulher, passando por
pela própria autora e por outros pesquisadores várias fases, até chegar ao feminismo, na década

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de 60 do século passado. A Parte I da obra, Internacional e do King’s College de Oxford, e
chamada de “Traços”, é composta de quatro migra para a França. Eleanor, a mais nova, após
capítulos e centra-se nas correspondências das a morte dos pais e de Jenny, a irmã mais velha,
filhas de Karl Marx e nos diários da jovem Caroline mantém correspondência com Laura. São 69
Brame, que viveu em Paris entre 1847 e 1892. A cartas ávidas por notícias da irmã. Suplica, em
autora detecta o pouco espaço dispensado à 1881, que apenas um cartão-postal lhe seria
mulher na narrativa histórica tradicional, muito suficiente, mas logo depois condena a secura
mais comprometida com a cena pública, com a de comunicação através de postal.
guerra e a política, ainda que a República A participação dos maridos, nessas
francesa tenha dedicado a ela parte do seu correspondências, reduzia-se ao post-scriptum
acervo iconográfico com estátuas de silhueta quando mandavam notícias ao “Caro Senhor
feminina. Marx,” por exemplo, sobre a Internacional
Como o registro histórico sempre privilegiou Socialista. São correspondências que têm “um
os eventos acontecidos na esfera pública e a tom de conivência, uma ironia zombeteira que
mulher ficou reduzida ao espaço privado, ela cai bem em uma família tão imbuída de sua
nunca foi chamada a fazer parte da cena superioridade” (p. 47). E ampla admiração e
histórica e teve de desenvolver estratégias de necessidade de estarem à altura das leituras do
sobrevivência naquilo que lhe restou: o lar. Por pai é o que denotam as cartas das filhas a Marx,
isso, a memória do privado coube à mulher. Era a quem tratavam como Mestre, Velho Mestre,
ela quem cultuava os mortos e suas tumbas, Mohr, Challey, Old, Nick, entre outras
sendo a forma de comunicação dominante a denominações, sempre em sinal de respeito.
oralidade, passada, geralmente, de mãe para Marx possuía convicções bem burguesas
filha. Mas muita coisa se perdeu devido a em relação às filhas. A mais nova, Eleanor, Tussy,
mudanças de casa, ao desprezo por se tratar de como era carinhosamente chamada, foi
mulher e ao embaraço pelo conteúdo legado. impedida de casar com um homem basco,
As cartas deixadas pelas filhas de Karl Marx, por pobre, chamado Lissagoray. “Marx partiu o
exemplo, foram quase todas extraviadas, uma vez coração de sua filha e irritava-se com a sua
que emitem juízos sobre as manias e fraquezas depressão” (p. 50), e ela cometeu suicídio,
do pai do materialismo dialético. O mesmo não ingerindo veneno “para cães”, em 31 de março
aconteceu, por exemplo, em relação às cartas de 1898. Eleanor viveu com Edward Aveling, que
de Tocqueville trocadas com Gustavo de era separado de uma primeira esposa e nunca
Beaumont. teve a aceitação da família desta e,
Enquanto os homens da burguesia, no principalmente, do seu pai. Já a figura da esposa
século XIX, têm o hábito de colecionar quadros, de Marx é pouco proeminente, sendo tratada
livros como distinção e sinônimo de suas pelas próprias filhas como um tanto bizarra, por
conquistas econômicas, as mulheres preocupam- sua distração e sua ocupação com as agulhas a
se com a roupa branca e os objetos, em uma costurar para as filhas e netos, ainda que, no final
ânsia de reter suas vidas em “mil nadas”: estojos, da vida, seja vista por elas como terna e
nos quais guardam “mechas de cabelo, flores dedicada à família.
secas, jóias de família”, e depois fotografias, É interessante destacar que dados que não
croquis e cartões-postais de viagens e outras constam dos manuais de história, nas
miudezas. correspondências, aparecem de forma bem
As correspondências têm a possibilidade de clara e capazes de causar estranheza aos leitores
diálogo, buscando uma troca. Têm a capacidade mais atentos, como o comportamento de Marx
de apresentar o que o espetáculo esconde, em relação aos pretendentes das filhas. O
porque explicitam “as fadigas do herói, suas casamento de sua filha Laura com Paul Lafargue
dúvidas e o seu dia-a-dia” (p. 46). O II, “o Negro”, por suas ascendências cubanas,
desenvolvimento da imprensa, por outro lado, por exemplo, só ocorre depois que a família do
trouxe à mulher do século XIX mais um desafio: o noivo lhe dá garantias da boa situação financeira.
domínio da escrita, através de correspondências, Em carta de 23 de agosto de 1866, Marx,
cartões-postais e diários, impondo-lhe uma nova escrevendo a Engels, afirma: “O pai [Laforgue]
forma de memória. escreveu-me de Bordeaux. Ele pediu para seu
O pai do comunismo, Karl Marx, possuía três filho o título de noivo e apresentou-me, do ponto
filhas: Jenny, Laura e Eleanor. Em 1868, Laura casa de vista financeiro, condições muito favoráveis”.
com o francês Paul Lafargue, e Jenny, em 1872, Engels era tão amigo de Marx que chegou, para
desposa Charles Longuet, ativo militante da evitar um escândalo, a perfilhar um filho natural

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deste com a criada Helene, sobrinha de sua confundido com outros livros por seu capricho
mulher Lizzie. Com a morte de Lizzie, Helene de encadernação. No entanto, o que mais
assume a casa de Engels. Mas Eleanor logo chama a atenção no mesmo é a “expressão de
suspeita de que essa “nova formação familiar” um sentimento, de um desejo, o esboço logo
seria uma tentativa de controle sobre os escritos abandonado de uma aventura, e o
de seu pai, Karl Marx. consentimento final ao irremediável destino das
As correspondências trocadas deixam mulheres: um casamento arranjado que se
transparecer as mágoas, as desilusões, as dores procura transformar em uma união escolhida” (p.
dessas sensíveis mulheres que, apesar de velarem 90).
o socialismo, como colaboradoras, estiveram A escrita do diário de uma moça do século
condicionadas aos papéis a elas destinados: XIX detém-se em enumerar ocupações do
maternidade, partos sucessivos, com corpos cotidiano, como ir às compras, fazer visitas,
cansados e adoecidos. Perrot fala das freqüentar jantares, etc., sendo o espaço
contradições vividas por essas mulheres que não reservado a confissões altamente policiado, de
são capazes de escrever abertamente entre irmãs acordo com o que era esperado de uma moça.
sobre seus próprios ventres, seus corpos, ainda Não raro, Caroline escreve: “Meu Deus, há neste
que a doença ocupe amplo espaço em suas momento algo que eu desejo” (4.1.1866); “Meu
missivas. As irmãs deixam entrever a angústia da Deus, o que escrever aqui!... Posso abrir meu
vida doméstica em suas cartas, usando essa coração!” (15.1.1866). A decência determina o
forma de comunicação para desabafo. Porém, que dizer até no diário!
apesar das críticas às condicionantes das Constituía fator de distinção feminina saber
mulheres, as herdeiras de Marx não eram ocupar os dias. Em 1888, circularam anuários
feministas. As feministas da época, como Paule como Le Livre d’Or des Salons, que prescreviam
Mink, Séverine ou Annie Besant, sofriam repulsa os ritos a serem seguidos pelas mulheres
das irmãs. burguesas com a rotina de visitas, como Caroline
Eleanor, das três irmãs, foi aquela que mais relata em seu diário de 21.12.1864: “Dia
sofreu com as pressões de uma época, sendo perfeitamente atordoante [...] Precisei fazer visitas
impedida de casar com o homem da sua vida. o dia inteiro!”. Ela comparava as obrigações
Após a morte do pai, entretanto, vive em sociais às “pesadas cruzes que se deve carregar”.
liberdade. Viaja pelos Estados Unidos e Suécia, A jovem era muito influenciada pelos
conhece Aveling, por quem tem forte apego; preceitos do catolicismo. O século XIX, porém,
porém, descobre um casamento secreto deste impõe e justifica a utilidade do trabalho em nome
com uma jovem artista. As dificuldades financeiras do progresso. “Ainda que a Igreja não tenha
sempre presentes, a depressão nervosa no verão realmente elaborado uma teologia do trabalho
de 1881, a segunda crise, em 1882, tudo isso no século 19, sua mensagem é atravessada pelos
exaurem-lhe as forças, levando-a ao suicídio. novos valores. Ora, o ócio é, naquele momento,
Além de Eleanor, Laura também se matou, em um valor contestado. A Igreja o condena assim
25 de novembro de 1911, com 66 anos, após como os socialistas” (p. 12).
uma noite de festa, junto a Paul, seu velho A Parte 2, “Mulheres no trabalho”, compõe-
companheiro. se de seis capítulos dedicados a pesquisas que
O diário, outra forma de comunicação se voltaram ao trabalho das mulheres no século
permitida à mulher do século XIX, tende a firmar- XIX e, principalmente, à incorporação do
se como uma maneira de expressão pessoal e “gênero” no setor terciário da economia, a partir
se trata, ao mesmo tempo, de uma agenda, uma de então o grande gerador de emprego para as
vez que não se limita a registrar apenas o que mulheres, principalmente, em seus escritórios. O
passou, mas também a previsão das atividades corpo, ou melhor, o corpo sexuado passa a ser
futuras, como uma espécie de organização do objeto de poder e de desejo nas fábricas daquele
tempo, tão necessária a um século em que a século. Ainda que o droit de cuissage (direito à
noção de progresso se instaura. primeira noite) nunca tenha constituído uma
Caroline Brame (1847-1892) tinha o hábito categoria jurídica real, como sublinhou, com
de escrever em cadernos escolares – 36 ao todo, justiça, Alain Boureau, sua representação
e depois os encadernou, usando uma flor impregna o imaginário social, o imaginário dos
diferente para identificar os dias. Um desses foi executivos que acreditavam poder tudo. Nessas
adquirido por Georges Ribeill, companheiro de circunstâncias, as palavras utilizadas em relação
pesquisa de Perrot, em um mercado de pulgas, à mulher, muitas vezes, reproduzem imagens
e talvez tenha permanecido ali por ter sido ainda da era do feudalismo.

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Visto como insignificante e complementar aposentadoria por tempo de serviço.
à remuneração masculina, o trabalho feminino Na Exposição Universal de 1867, um
em fábricas, inferiorizado, estigmatiza a mulher delegado operário assume a seguinte fala,
ainda mais porque lhe impõe condições que em refletindo o modo de pensar da época: “O destino
nada a dignificam e, ao mesmo tempo, não a da mulher é a família e a costura [...]. Ao homem,
amparam na maternidade. As mulheres, a madeira e os metais, à mulher, a família e os
enquanto grupo, pouco se envolviam com as tecidos”. Essa divisão dos papéis sexuais impunha,
greves: entre 1871 e 1890, de 173 reivindicações para ela, um modelo a ser seguido tanto na esfera
somente das mulheres, havia a adesão de 5,9% pública quanto na privada.
delas. Já em greves mistas há uma adesão maior: A Parte 3, “Mulheres na cidade”, é composta
em 361 greves, no mesmo período, 12,3% de cinco capítulos, em que são tratadas questões
contam com a participação das mulheres. Foram relativas à mulher, procurando fazer uma
participantes nas passeatas, usando voz e gestos, diferença entre o político e o jurídico, enquanto
conseguindo bandeiras, vociferando contra os instâncias do poder. Assim, as esferas do público
patrões e até quebrando vidraças. Entretanto, e do privado amparam-se na questão do poder
comportavam-se mais como esposas, não e refletem, antes, a relação entre os sexos, em
havendo, de fato, engajamento sindical. suas divisões de papéis, de tarefas, de espaços.
No cômputo geral, as mulheres militantes No século XIX, a distinção entre o público e o
do século XIX mais bem organizadas em suas privado, bem como a higenização, constituem
reivindicações eram aquelas que, de alguma formas de poder que se imiscuem em uma rede
forma, estavam vinculadas ao homem tentacular do controle. Logo, o lugar do poder
trabalhador. Elas podiam ser membros de não está somente na mão do Estado, mas se
comissão, oradoras de reuniões ou mesmo espraia no corpo social sem que se possa
responsáveis por sindicatos, mas controladas, estabelecer o seu limite, como já dizia Michel
podemos dizer, em suas rupturas. Tratava-se, nesse Foucault.
caso, de uma insubordinação a partir da ética Nessa dimensão do poder, encontram-se,
do homem. A sociologia profissional das greves de forma transversal, as relações entre os sexos,
femininas, ligadas à indústria da seda e ao grupo determinadas não somente pelo gênero:
têxtil-vestuário, vincula-se ao protestantismo e ao “construção sociocultural, produto das relações
radicalismo, sendo vistas, muitas vezes, pela sociais desenvolvidas no tempo e que se pode,
própria mulher, como uma forma de ela ser mais conseqüentemente, desconstruir” (p. 264).
livre e falar mais claramente sobre suas Michelet exclama: “as mulheres: que força!” Tal
demandas, encontrando apoio, assim, nos o poder difuso e eficaz que elas detêm sobre os
republicanos locais. costumes. A elas sempre foi atribuído o
Em 1886, em Lyon, a greve geral apresenta- enigmático: “A Mulher é a Outra, a estrangeira, a
se apoiada nos dois sexos solidários, tendo as sombra, a noite, a armadilha, a inimiga” (p. 265).
picadoras da Casa Calle-Mouco adesão do Assim, o sentimento de alteridade feminina
sindicato dos sapateiros, de tendência anarquista. reforça-se no século XIX, principalmente pelo
Porém, o mais importante movimento de greve impulso contínuo exercido pela ampliação de seu
foi aquele desencadeado em 1889, em Fougères, domínio, sendo o movimento feminista somente
quando as picadoras param por melhores uma conseqüência de todo um processo, ainda
salários, enquanto os homens aderem ao que, em certo sentido, a República promova uma
movimento não porque estivessem insatisfeitos regressão aos direitos femininos já conquistados
com seus próprios salários, mas antes por no Antigo Regime.
solidariedade ao grupo feminino trabalhador da É preciso destacar que o “exercício do
Casa Haussaye, da área da produção de poder” não ocorre em uma cartografia prévia,
sapatos. pois tanto homens quanto mulheres “negociam”
Entre 1874 e 1890 vários conflitos ocorreram, seus limites de ação. Inegavelmente, a Igreja
como nos “conventos de seda”, somente para promoveu a mulher, através da figura da Virgem
moças, mantidos por religiosas; na Casa Pochay- Maria, fortalecendo “uma forte consciência de
Bruny, em Paviot (Isère); em internatos destinados gênero” (p. 272). Se, por um lado, impõe uma
às moças solteiras; e nas “casernas” para os casais resignação, uma renúncia à mulher, por outro,
operários. As trabalhadoras das manufaturas do lhe atribui poder, dignidade e a necessidade da
tabaco, por outro lado, gozavam de relativas fidelidade masculina às suas esposas. Constitui-
vantagens, uma vez que ter o Estado como patrão se, dessa forma, uma exaltação da diferença
significava garantia de alguns direitos, como a feminina, mas, ao mesmo tempo, a promoção

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de “guardiãs do patriarcalismo”. A escola laica mulheres, não se deixaram calar diante das
da Revolução também promove a inserção da imposições de uma época. São elas Flora Tristan
mulher como professora primária e secundária, e George Sand, que se aproximam em vários de
sendo uma senda para o feminismo. seus traços: revolta acerca da condição da
As mulheres do século XIX exercem o poder mulher, reivindicação de uma justiça social que
“possível”. Muitas delas são mães “abusivas”, que levasse em conta a condição operária e a
se valem da tirania sobre uma linhagem, seus reivindicação de uma ética na política. A história
empregados e, muitas vezes, nas classes das mulheres foi escrita a partir da voz de
populares, sobre os maridos, que lhes entregam pioneiras, que ansiavam quebrar o silêncio. Elas
todo o salário e são controlados por elas em suas podem ser flagradas, em seus percursos, através
ações. A hegemonia feminina, então, ocorre do de retratos, biografias, nesse caminho de mudez.
espaço privado para o público. Baudrillard, em Quando Flora Tristan publica Promenades
De la séduction, fala acerca do poder exercido dans Londres (Passeios em Londres), em 1840, a
pela mulher através de seu corpo e da pesquisa social torna-se corrente tanto na França
ascendência deste sobre o casal. O poder das quanto na Grã-Bretanha. “Para governar o corpo
mulheres last but not least, isto é, último mas não social, é preciso conhecê-lo; para conhecê-lo é
menos importante, mantém-se em uma intrincada preciso estudá-lo em seu conjunto; conhecer sua
rede de contrapoderes. Paradoxalmente, o origem, sua história, sua população, seu território,
contrapoder exercido pela mulher no espaço seus costumes, seu espírito, sua força, sua riqueza”
doméstico, restrito, foi aquele que lhe entreabriu (p. 365) . Flora Tristan encarna essa tendência e
o espaço público, por meio da filantropia escreve em suas Promenades... sobre a
religiosa. Então, dialeticamente, o privado faz importância da pesquisa de campo: “O papel
parte do público e o religioso também do secular. importante que a Inglaterra desempenha nos faz
Dessa forma, justifica-se o “slogan” feminista de desejar conhecê-la” (p. 366). Além das
que o “privado é público”. Promenades dans Londres, Flora deixou
George Sand escreve em 1848: “Como os anotações, na forma de diário de viagem, para
costumes chegaram a este ponto em que a um livro que se chamaria Le Tour de France,
mulher reina no maior número de famílias, e que produto de um périplo por diversas cidades no
há abuso desta autoridade conquistada pela Sul da França com o objetivo de traçar uma
habilidade, pela tenacidade e pela astúcia, não radiografia da classe operária em seu “aspecto
há nada a temer que a lei se encontre à frente moral, intelectual e material”. Tal livro só foi
dos costumes. Ao contrário, para mim, ela se publicado em 1973.
encontra atrasada em relação a eles” (p. 278). George Sand, por sua vez, representa uma
Assim, a mulher do século XIX, socialmente, era resistência pouco vista, em uma época em que
autoridade na família, mas, juridicamente, não, a mulher aparecia como mero complemento na
uma vez que era impedida de votar e não cena social. Figuras como Guizot e Tocqueville
dispunha de outros direitos de cidadã. E a viam a política como coisa para homem. O
filantropia burguesa tira a mulher de sua casa último, em suas lembranças de 1848, dizia: “Eu
para “visitar os pobres, os prisioneiros, os doentes. detesto as mulheres que escrevem, sobretudo
Traçava, na cidade, itinerários permitidos e aquelas que disfarçam as fraquezas de seu sexo
abençoados. A ampliação dos problemas sociais, num sistema” (p. 382). Entretanto, George Sand
no século XIX, transforma este hábito em constituía uma exceção a essa avaliação
exigência” (p. 280). preconceituosa desse revolucionário, o que a
É importante destacar que a filantropia, a deixava bastante lisonjeada. George Sand viveu
princípio, reduzia-se à classe do lazer, isto é, às entre 1804 e 1876 e participou de parte do périplo
burguesas, entretanto, amplia-se para as classes percorrido pela Revolução Francesa. Desde 1830,
médias, que se encarregam de divulgar preceitos ainda como Aurore Dudevant, assumiu-se como
da economia doméstica liberal, via caridade. republicana. Em 1840, torna-se socialista.
Para Caroll Smith-Rosenberg, as New Women de A Parte 5 e última da obra, “Debates”, é
1880-1890 são as filhas das New Bourgeoises composta de seis capítulos e versa sobre vários
Matrons das décadas de 1850-1880. Isto é, a temas, que encerram cada um deles a visão de
filantropia deu uma espécie de “consciência de conjunto, isto é, a questão da mulher, a teoria
gênero” às mulheres, sendo, muitas vezes, uma das esferas do público e do privado, a construção
“consciência feminina”. da identidade feminina à luz do social, do
A Parte 4, “Figuras”, em dois capítulos, trata biológico, além de uma retrospectiva feita por
de duas figuras importantes, que, apesar de Perrot da presença da mulher nos séculos XIX e

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XX. Perrot, que trata dos percalços da mulher, Guattari. Entre as mulheres, podemos citar os
suas indefinições, bem como das estratégias trabalhos de Lois Mac Nay, Foucault and Feminism
utilizadas para ocupar as franjas do poder, fala (1992), ou de Caroline Ramazonaglu, Up Against
da certeza de que a mulher, ou melhor, o segundo Foucault (1993), e Sandra Borkty, Suzan Bordo,
sexo, ocupou na história do Ocidente um papel Irene Diamond ou Nancy Hartsock.
suplementar, em uma arena dominada pelo Uma obra importante na linha de Michel
homem, detentor do poder, do espaço público, Foucault é a de Thomas Laqueur Making Sex. Body
portanto. and Gender Fron the Greeks to Freud, publicada
Os Women’s films centram-se na em 1990. Ele defende a idéia de que a diferença
representação das mulheres em filmes de sexual deve-se menos à biologia do que à política
Hollywood, que encarnam, com várias desditas, e à cultura. Passamos de uma concepção
as agruras da dona-de-casa e mãe sempre com monista (século XVI a XVIII), com um único gênero
um happy end marcado pela felicidade. Betty e duas modalidades, para a dualista, a partir do
Friedan, em seu livro The Feminine Mystique, de século XIX. A dualista, por seu turno, defende que
1963, insurgira-se contra esse feminine mystique, há dois sexos, dotados de identidade física e
sendo tal obra considerada, por isso, um marco moral, e que esses dois sexos têm uma suposta
teórico do feminismo norte-americano. Não se justificativa na biologia, capaz de transformar o
pode esquecer, entretanto, que o Segundo sexo, discurso naturalista em divisão sexual da
de Simone de Beauvoir, foi publicado em 1949! sociedade e um determinado modo de ver o
Ainda são publicadas, no século XX, nos mundo, que legitima e delimita as esferas do
Estados Unidos, obras sobre a esfera privada da público e do privado. Em sua crítica à
mulher e seu grau de influência. Entre elas, modernidade, afirma que não há objetivos
destacam-se Public Man e Private Woman, de naturais, mas constituídos discursivamente em
Jean Bethke Elshtain, ou as teses de Carol Gilligan sociedade. Nesse sentido, tanto a mulher quanto
em A Different Voice: Women’s Conceptions of o homem não existem, daí a recusa à “eternidade
Self and Morality, de 1977. A década de 1970, de uma sexualidade feminina”, essencialista e
com o seu feminismo radical, foi às últimas universal.
conseqüências com o feminismo lésbico e Portanto, a obra As mulheres ou os silêncios
homossexual em geral. O feminismo culturalista da história, de Michelle Perrot, rastreia os vários
dos anos 1980, na Itália, também segue essa recursos de silenciamento impostos à voz feminina
linha, ainda que seja via criação literária, com na história do Ocidente. Entretanto, apesar de
Hélène Cixous e Mônica Wittig ou com a pesquisa restrita à esfera privada, conseguiu articular-se a
psicanalítica de Luce Irigaray. partir do que lhe foi reservado, isto é, o doméstico,
No início de sua produção intelectual, a filantropia e a própria Igreja. Esses espaços
Michel Foucault não se preocupou com a questão definidos de socialização, quando tensionados,
das mulheres, ou mesmo com a diferença entre constituíram fator de engendramento para o
os sexos. Entretanto, obras como História da domínio público posterior, muito devido à
loucura, Nascimento da clínica, Dito e escrito, contribuição de figuras como George Sand e
entre outras, foram utilizadas em grande número Flora Tristan na França do século XIX. E os estudos
de pesquisas envolvendo mulher e diferença feministas, em suas várias correntes, propõem
entre os sexos. Os Estados Unidos mantêm a uma clivagem na forma de organizar o político,
discussão em torno dos Women’s Studies e dos porque “o privado é político”.
Gender Studies. Os estudos baseados nos pós-
estruturalistas e aplicados aos estudos de gênero Sandra Sacramento
são mais de natureza teórica do que histórica. Universidade Estadual de Santa Cruz,
Mesmo na França, é possível encontrar estudos Ilhéus, BA
entre filósofos, além de Foucault, como Deleuze,

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