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Manoel de Barros está no rol dos principais poetas brasileiros contemporâneos, nascido em

1916 no estado de Mato Grosso, especificamente, na cidade de Cuiabá. Território, cujo bioma
é o pantanal, no qual, muito se inspira para criação de sua obra. Manoel estudou boa parte de
sua infância em um colégio interno. Durante sua adolescência viajou por vários países da
América. Em 1937, mudou-se para o Rio de Janeiro, nesse mesmo ano, publicou seu primeiro
livro de poesias chamado Poemas Concebidos Sem Pecados, mas já escrevia poemas desde
muito jovem. Ao finalizar os estudos em Direito, publicou seu segundo livro em 1942, com o
título de Face Imóvel. Desde então continuou escrevendo e no decorrer de sua carreira
literária possui vários livros publicados.

Sua obra enquadra-se na terceira fase do modernismo brasileiro, que vai de 1945 a 1980,
conhecida também como Geração de 45. Essa fase tem como contexto histórico, no cenário
internacional, o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria, e no cenário
nacional, o governo de Vargas e a redemocratização do país, tais fatores, contribuíram para as
características estilísticas presentes em sua obra, como a natureza, as imagens cotidianas, as
inovações linguísticas, o regionalismo, a metalinguagem, et.

Neste presente ensaio analisarei em específico alguns poemas contidos em seu livro Ensaios
Fotográficos. Publicado no ano de 2000, esse livro é dividido em duas partes, a primeira parte
possui como título o mesmo nome da obra e possui 15 poemas, já a segunda parte é chamada
de Álbum de família e contém 11 poemas. No decorrer da obra o sujeito lírico incorpora um
fotógrafo e por meio da fotografia e imagem, faz conceitos abstratos se tornarem concretos,
isto é, consegue fotografar coisas não materiais, intangíveis, tendo como exemplo o perdão, o
silêncio, o perfume, a existência, o vento, etc.

O  FOTÓGRAFO
 
Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre
as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na
pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim cheguei a Nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de
braços com Maiakovski – seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.

A obra apresenta um interessante jogo entre matéria e desmaterialização,


representação objetiva e não-objetividade, na medida em que se pretende
registrar através da fotografia as imagens selecionadas pelo poeta. A
inquestionável fotografia perde essa qualidade na medida em que deixa de ser
utilizada para registrar o objeto. No primeiro poema, “O fotógrafo”, já se
pode verificar que as imagens são irrepresentáveis:

Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado. (...)


Fotografei esse carregador. (...)
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão. (p.11)

A opção por fotografar o não representável: o silêncio, o perfume, a


existência e o perdão, se por um lado traduz uma nova visualidade, por outro
reafirma uma poética voltada para a palavra numa relação essencialmente
disjuntiva para com a imagem.
Pode-se perceber, desde o título, como se radicaliza a relação da poesia de
Manoel com a visualidade e como nessa relação se vai problematizar tanto o
visual como o subjetivo. Nesse livro, através da idéia de fotografia, o poeta,
ao mesmo tempo em que demonstra exatamente o contrário do estereótipo
romântico do subjetivismo, apresenta uma nova maneira de trabalhar as
imagens ligadas à natureza. A fotografia aí é uma forma de explicitar o
caráter complexo e fascinante da imagem visual, ao mesmo tempo presença e
ausência

No poema "O roceiro", o poeta compara o fazer poético ao ato de plantar


uma semente. E como um cuidadoso agricultor da palavra, escolhe a semente,
lança-a no terreno do papel e a burila até que encontre o lugar perfeito;
depois arranca as ervas daninhas (palavras acostumadas), afasta aquilo que
pode afetar e enfraquecer a composição como os adjetivos; em seguida,
cobre-a com os substantivos. Na esteira de Drummond e Murilo Mendes,
Manoel também busca uma poesia substantiva, objetividade e precisão dos
vocabulários, preocupa-se em desbastar suas imagens dos resíduos, ficando
apenas a nua intuição das formas e a sensação aguda dos objetos, que
delimitam o espaço do homem moderno.

Manoel procura um novo modo de representar o mundo, captando a natureza


a partir de relações. Segundo essa tendência, as coisas mudam de aparência
de acordo com o ponto de vista escolhido para focalizá-las, procura uma nova
forma de ver o mundo, de percebê-lo. Ele se distancia de seu estado de
espírito, fala a respeito do objeto sem paixão, dando-lhes nuanças a partir do
pensamento e da visão e não do sentimento.

Uma sede de atualização técnica e um gosto da coisa e da pedra - às vezes um


manuelirismo-, entram a compor a mitologia do nosso poeta. Sua originalidade
está mesmo nesta escolha, nada convencional, de seus motivos poéticos. Para
construir suas imagens utiliza-se de comparações e metáforas insólitas,
narrações fragmentadas, combinações novas para palavras conhecidas. Sua
linguagem é enxuta, concisa. A virtude de abstrair as linhas e as cores
essenciais parece ser um traço constante em sua obra.

No clarear do dia vou para o roçado


A capinar.
Até de tarde tiro o meu eito: arranco inços, tranqueiras
Jóias e bosta de bugiu que não serve nem para esterco.

Retoma, no poema "Línguas", a busca da palavra primitiva, que ainda não foi
contaminada pelo uso abusivo, aquela da qual não se busca o significado, mas
a sonoridade de seus desvios. Manoel diz:
“(...)
O que eu aprendi foi manobrar com as palavras.
(...)
Escuto bem o equilíbrio sonoro das letras e das sílabas. Isso produz harmonia
nas frases
(...)”.

Errar língua pode ser subvertê-la, renová-la ou mesmo atravessá-la sem rumo,
numa errância filosófica cheia de surpresas e deslumbramentos. A errância do
poeta se escora na liberdade dos conceitos, na possibilidade de intervir na
configuração de um termo até transformá-lo num ente novo. Barros nos revela
"que os poetas podem refazer o mundo por imagens, / por eflúvios, por
afeto", no poema "Despalavra". Noutro texto, o poeta diz que não
desestrutura a linguagem, como teria dita algum crítico, mas que as palavras
é que desestruturam a linguagem, como se o poeta fosse apenas uma vítima.

DESPALAVRAAAAAA

Nos poemas "Comparamento" e "Despalavra", o poeta repensa a poesia, daí o


ato de escrever ser uma depuração. Mas esse exercício não é fácil, ele o
explica no poema "Comparamento". À maneira das águas de um rio que ao
longo de seu percurso recebem sucatas da humanidade, mas que podem
chegar à boca filtradas, as palavras recebem torpezas, demências, vaidades
em sua depuração para a poesia, onde deságuam escorreitas e livres das tripas
do espírito de seu criador. E se mostram despidas das impurezas como Manoel
as desejou, para a nós se expor e emocionar.

O poeta brinca com o texto, mas como ele mesmo explica, são as palavras que
o tiram da construção segura, da lógica, da metáfora esperada, desviando-o
para uma construção torta, que desafia os sentidos e a razão e que desapruma
por arrevesamento sintático. Ao se retirarem do lugar comum, as palavras
desestruturam a linguagem, quebram estruturas, fazem colagens irregulares,
pintam de cores inexistentes, escrevem e lêem de cabeça-para-baixo. Enfim,
deixam Manoel levar a culpa que é delas de desestruturar a língua. O poeta se
explica no poema "Palavras": “(...) Foram as palavras pois que
desestruturaram a linguagem. E não eu.” (BARROS: 2000, p.57)

É nesse processo de destruição e construção que Manoel experimenta


equivocar o sentido das palavras, numa espécie de alquimia lingüística. No
percurso para a poesia, desvirtua-se, como confirma o poema
"Comportamento": “(...) Mas que essa mudança de comportamento
gental/para animal vegetal ou pedral / É apenas um descomportamento
semântico. (ibid, p.65) Todo comportamento que apresenta um desvio vira
poesia. Há uma meditação acerca da criação poética que se dá na própria
composição, instaurando o espaço para o exercício de uma metalinguagem
que está além da corriqueira definição da poesia. No caso de Manoel, trata-se
de encontrar em objetos, coisas, poetas e poemas aquelas situações ou
formas com que a sua linguagem passa a dialogar.

Fontes:

 Maria Adélia Menegazzo, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS


| Antonio Francisco de Andrade Jr., Caderno de Letras, Universidade Federal
Fluminense - UFF | Luciete Bastos, Profª de Literatura Brasileira da
Universidade Estadual da Bahia, UNEB | Igor Rossoni, Doutor em Letras,
Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia – UFBA

BARROS, Manoel. Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2000.

Na temática, estiveram presentes temas cotidianos e relacionados a


natureza.
A linguagem utilizada procurava transformar em algo gustativo, olfativo, tátil, visual e
auditivo, tudo aquilo que até então era abstrato, para algo muito além do paisagismo
inócuo, fato que pode ser observado na obra publicada no ano de 1942, 

Seu olhar procura sempre o pequeno, o sem importância, e dessa forma transgride o lugar-
comum da poesia grandiloqüente.

O universo poético de Manoel de Barros é formado por coisas banais retiradas do cotidiano do
Pantanal, local ancestral onde os seres miúdos e os animais silvestres reinam e compõem um
bestiário particular. O cenário é o da floresta, do mato embrenhado, das extensões dos rios.
Tudo se mistura num processo de troca e sinestesia. A natureza se humaniza, confundindo-se
com o próprio homem. Vem daí o dom a que foi eleito: “Deus disse: Vou ajeitar a você um
dom/ Vou pertencer você para uma árvore./ E pertenceu-me. (RAC, p. 61).

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