Faculdade de Letras da Universidade do Porto – FLUP
Literatura e Estudos Interartes – 2019/2020
Professora Isabel Morujão
Manifestações da escrita feminina em Portugal no
século XVII – Cartas de D. Luísa de Gusmão
Ayesha Oliveira Domingues da Silva
Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes.
Porto, 2020 Manifestações da escrita feminina em Portugal no século XVII – Cartas de D. Luísa de Gusmão
Ayesha Oliveira Domingues da Silva
Por um extenso período da história, a leitura e, principalmente, a escrita não foram
habilidades comuns entre a maior parte da população. O ensino das letras na modalidade escrita era dirigido apenas a uma elite social ou econômica. Porém, a democratização desse conhecimento tornou-se inevitável com as transformações sociais ocorridas ao longo do tempo e foi se realizando gradualmente, atingindo diversos grupos até então segregados, elevando aos poucos suas possibilidades de acesso e produção de conhecimento. Uma parcela populacional, entre outras, que encontrou e ainda enfrenta dificuldades para conquistar reconhecimento e igualdade de direitos é a das mulheres, fato que repercutiu intensamente em sua relação com a literatura. O tratamento ingrato concedido constantemente pela crítica literária às mulheres é inegável. Ao falar da “orientação masculina da discussão sobre livros e autores na imprensa”, Úrsula K. Le Guin (2011, p.88) menciona denigração, omissão, exceção e desaparecimento como técnicas comuns, consciente ou inconscientemente utilizadas, para marginalizar a escrita feminina. Os casos em que as obras de mulheres são ignoradas ou diminuídas não são raros. Na produção portuguesa feminina do século XVII há alguns exemplos marcantes, como Maria Mesquita Pimentel e Bernarda Ferreira de Lacerda, que conseguiram publicar em circunstâncias desfavoráveis à sua recepção, porém não conquistaram o reconhecimento devido sobre a qualidade de suas obras. Embora o debate teórico sobre as epopeias estivesse acalorado durante o período, não há reflexão estética sobre os textos delas pertencentes ao gênero, sendo valorizados apenas em uma dimensão didática. Outra poeta que, apesar de abundantemente premiada, foi mais lembrada por ter trabalhado um tema considerado inadequado à sua condição de religiosa do que pela qualidade de sua escrita, foi Violante do Céu. Assim, mulheres eram afastadas dos holofotes do ofício da pena, enquanto homens em condições semelhantes permaneciam aclamados. O pouco de reconhecimento que era concedido ao sexo feminino vinha através de alegações de intervenção divina ou da elevação a qualidades viris, não por mérito próprio ou respeito à condição de mulher das escritoras. Porém, essa relação, entre as mulheres e a literatura, ainda que guiada por um domínio geral masculino, não foi sempre inerte. Dentro de um passado que em nada favorecia o aprendizado da escrita pelas mulheres, ainda encontramos marcas de suas vozes através da recuperação de alguns textos inesperados. Em uma sociedade majoritariamente orientada por um pensamento patriarcal, que reforçava a superioridade masculina, os interesses estavam voltados para a manutenção dos papéis de gênero, cabendo ao homem espaços financeiros, intelectuais, físicos, políticos, enquanto a mulher permanecia circunscrita ao lar. Mas foi dentro dessa mesma configuração que as demandas foram mudando, forçando o reconhecimento da necessidade do ensino da leitura (e algumas vezes até da escrita) para fazer das mulheres melhores mães e religiosas. Essa abertura forneceu a oportunidade necessária para o surgimento dos textos que hoje revisitamos para compreender a história e a contribuição das diversas expressões femininas em literatura. Em parte de sua pesquisa sobre a cultura das relações sociais e interpessoais na Península Ibérica no período de 1450 até 1700, Maria de Lurdes Correia Fernandes (1995) traça um perfil do papel que ocupa a mulher naquele tempo. A imagem da mulher do século XVII é acessível quase que inteiramente através do ponto de vista masculino, já que o discurso feminino sobre sua própria vivência é um registro escasso. Luis Vives, Juan Rodriguez, D. Álvaro de Luna, Fr. Martin de Córdoba e Cristina de Pisano são alguns dos nomes que deixaram escritos manuais de comportamento, nos quais é possível basear-se para vislumbrar as expectativas em torno das quais viviam as mulheres da época. Embora as orientações variassem principalmente de acordo com o estado civil da mulher, dando às religiosas um pouco mais de acesso aos estudos e atividades intelectuais, a educação feminina era voltada para “as funções conjugais, o governo da casa e as práticas espirituais” (Fernandes, 1995, p.101). O aprendizado da leitura pelas mulheres começou a ser defendido através desses manuais de comportamento para que elas tivessem contato com modelos ideais de virtude, devendo inspirar-se neles para cumprir melhor com seus deveres de esposa e mãe. Eram, em determinadas circunstâncias, até incentivadas a ler, mas apenas evangelhos, epístolas de São Paulo, hagiografias e sermões de padres, leituras que visavam o fortalecimento da moral cristã. Gêneros literários menos edificantes, como novelas de cavalaria, eram proibidos para as damas, por apresentarem modelos de comportamento condenáveis. Através das instruções dos manuais deram-se os primeiros passos da inserção feminina no universo das letras, resultando mais tarde na criação de obras até hoje pouco conhecidas, porém com qualidade estética considerável. Mas o trabalho de revisão do papel das mulheres na produção literária não se resume à ficção, seja em prosa ou poesia. Passa pelas manifestações de escrita em gêneros cotidianos, como as cartas, que podem não entrar para o cânone, mas fornecem pistas que dão um vislumbre do ponto de vista feminino em um contexto dominado pela perspectiva masculina. Dentro da nobreza, no século XVII, não era incomum que mulheres aprendessem a ler e escrever, para melhor educar seus filhos, preparando-os para os papéis importantes que ocupariam futuramente na corte, e preparando-se para as eventualidades em que eram levadas a assumir posições geralmente ocupadas por homens. D. Luísa de Gusmão, rainha durante o período da restauração da coroa portuguesa, que estava saindo do comando da Espanha, foi uma das mulheres na história de Portugal que precisou assumir funções socialmente delegadas aos homens durante sua regência. Enfrentou não só as dificuldades da instabilidade política do momento, mas também os desafios de cumprir um papel de autoridade masculina dentro das expectativas de comportamento feminino, equilibrando as duas esferas sociais. Apesar de oficialmente unificados no mesmo império pelo governo do rei espanhol, Felipe IV, parte da nobreza e principalmente da população portuguesa desejava retomar sua independência, resistente às tentativas de aproximação das culturas, buscando preservar sua identidade. Outra fonte de insatisfação era a cobrança de altos impostos por Espanha, utilizando-os para sustentar as guerras que travava, ainda que, segundo os termos da unificação, devesse reverter a receita arrecadada em Portugal para os interesses dos portugueses. Monique Vallance (2012) conta que, em uma tentativa da administração espanhola de aproximar o povo português da coroa, D. Luísa de Gusmão, nascida em território espanhol, membro de família nobre, foi oferecida em casamento a D. João, nobre português, ainda duque na época da união. Deixando sua primeira casa através do matrimônio, D Luísa assumiu o posto de duquesa e a nova nacionalidade com ele, sem olhar para trás nem vacilar em sua lealdade. Segundo Vallance (2012), vários relatos confirmam seu apoio total quando, mais tarde, iniciou-se o movimento de independência e a restauração da coroa portuguesa, com seu marido escolhido através da linhagem para assumir o trono. Aproveitando-se do momento da revolta da Catalunha, que concentrava a atenção e a força bélica da Espanha em combate, o movimento de restauração declarou o duque de Bragança seu rei, D. João IV, levando sua esposa naturalmente ao posto de rainha. A instabilidade da coroa portuguesa durou ainda muitos anos, tanto internamente, enfrentando a relutância da parte de nobres que apoiavam o governo anterior, quanto externamente, com as tentativas de Espanha de retomar o comando através da força. D. João IV faleceu sem ver o fim dos conflitos, passando para sua esposa a regência do trono. D. Teodósio, o príncipe mais velho, falecera anos antes, deixando não só os pais como o país de luto com a perda do herdeiro, e transformando D. Afonso, uma criança doente, despreparada, e jovem demais, no próximo da linha de sucessão. Portanto, coube a D. Luísa assumir a responsabilidade e manter a situação sob controle até que seu filho estivesse pronto para a tarefa. Com base em Vallance (2012), a formação de D. Luísa foi condizente com a expectativa do período, voltada para torná-la uma adequada administradora do lar, como mostra o perfil construído por Maria de Lurdes Fernandes (1995) da mulher ideal no século XVII. A educação de D. Luísa abarcou o aprendizado de idiomas e provavelmente as leituras religiosas recomendadas na época, divergindo da maior parte da nobreza apenas por ter sido realizada no interior, longe da corte. Mas mulheres não eram efetivamente preparadas para o governo, e quando as circunstâncias as levavam a tal função, era sob autoridades masculinas que exerciam. O poder de D. Luísa como regente vinha da confiança que recebeu do falecido marido D. João para dar continuidade a seu trabalho, e de seu papel de mãe do herdeiro e protetora do legado do filho. Portanto, o esperado por sua corte era que o mesmo direcionamento geral já seguido anteriormente pelo marido fosse adotado em seu governo, e assim ela o fez, buscando garantir a estabilidade da linhagem no trono, conquista recente, portanto ainda frágil. Ainda que tivesse talento para a tarefa, ou a convivência com o marido e a vivência como rainha pudessem ter lhe ensinado algo sobre a administração de um reino, nem habilidade nem experiência seriam o bastante para garantir sua independência como governante em um contexto no qual estava fora de seu papel social. Portanto, a solução para que não fosse contestada nas decisões que precisava tomar como governante, pertencentes a uma área de ação vista como masculina, era ressaltar suas atitudes apenas como continuidade de sua maternidade. As cartas de D. Luísa mostram traços da execução consciente do poder através de uma autoridade que na verdade pertencia ao seu filho homem, como as convenções sociais do período exigiam. D. Luísa compreendia isso muito bem; como se comprova pelos seus documentos de Estado. Todas as suas cartas oficiais começavam sempre com a frase <<Eu, o rei>> e ao longo das missivas referia-se sempre a si mesma como se fosse D. Afonso. (Vallance, 2012, p.122)
Como Vallance (2012) demonstra, o reforço da sua feminilidade, nas
configurações da época, como boa viúva que honrava o marido cumprindo com seus desejos depois de morto, boa religiosa, sempre devota e fiel à sua espiritualidade, e boa mãe, trabalhando pelos interesses do Estado e em favor da sucessão do filho, foi o que garantiu a D. Luísa o apoio necessário da nobreza para exercer sua regência. E por muito mais tempo que o habitual, já que a maioria dos herdeiros infantes assumia a coroa ao atingir os 14 anos de idade, mas a subida definitiva de D. Afonso foi adiada. O despreparo do rapaz, seu pouco interesse na administração de Portugal, seu envolvimento com más companhias e as alegações de que as sequelas de uma doença grave enfrentada por ele ainda criança não eram apenas físicas, reduziram qualquer potencial pressa que a corte pudesse ter para finalizar o período de regência, estendendo a regência de D. Luísa por um total de 6 anos. Apesar de D. Luísa ter oferecido apoio total ao filho quando o mesmo decidiu enfim subir ao trono, como atesta uma das cartas de seu epistolário dirigida a ele, discordâncias e interesses políticos a mantiveram cada vez mais afastada dos assuntos do governo a partir da coroação de D. Afonso até o dia de sua morte, quando já morava separadamente do rei e do príncipe. Suas últimas cartas aos filhos refletem um claro e forte tom de autoridade maternal na manifestação dos últimos desejos. Em todas as últimas cartas, D. Luísa começa seu texto realçando o pouco tempo que lhe resta, colocando-se desde o início na posição de autoridade que a proximidade com a morte concede, ressaltando assim a seriedade com que suas palavras devem ser levadas, sendo as últimas. Deixa sua bênção aos filhos, desejando-lhes a proteção de Deus e muitos anos felizes, mas essa é sua única demonstração escrita de afeto. A sua maternidade não é expressa através de carinho explícito, como seria de se esperar em uma correspondência particular aos filhos, tornando-se fonte de autoridade e fundação para solicitações que se assemelham mais a exigências e cobranças, formuladas, quando não como ordens diretas, como direitos inegáveis de uma mãe zelosa em seu leito de morte. Foram deixadas para D. Afonso, como rei e homem mais velho da família, as responsabilidades práticas de pagar os últimos débitos da mãe, como demonstra o seguinte excerto de sua carta: peço-vos que depois de fazer o que deveis pela minha alma, pagueis por mim o muito que eu dev aos que me acompanhão, & juntamente, que nas minhas fundaçoens acabeis de fazer o que eu não pude, pois Deus assim o quer. (Vallance, 2012, p.254)
A religiosidade de D. Luísa, sempre incentivada nas mulheres do período, se
destaca tanto na evidenciada preocupação com a alma na hora da morte, quanto através da alegação da vontade divina como argumento para a realização de seu pedido. Mas a principal base para sua demanda de reconhecimento é a autoridade de materna, à qual recorre mais de uma vez nas poucas linhas que contém sua carta, como demonstra o trecho reproduzido: “tudo vos digo lembrando-vos que sou vossa mãe, & tudo espero de vós quando reconheçaes as obrigações com que nasceste” (Vallace, 2012, p.254), reforçado ao final com a frase “advertindo que me não ha Deus de me pedir conta de não tratar sempre a V.M. como filho”(Vallance, 2012, p.254). A sua última missiva para D. Pedro, seu filho mais novo, é ainda mais curta, levando suas recomendações diretas aqui replicadas: “vos encomendo sempre o temor a Deus, & a obediencia de vosso irmão, em que vos fica tudo: & ultimamente, que depois da minha morte, vos lembreis de minha alma”. A religiosidade da rainha vem marcada novamente, através das encomendas ao temor de Deus e à lembrança de sua alma. Reforça também para ele seu papel materno e sua autoridade, recordando “sou vossa mãe” (Vallance, 2012, p. 254), logo nas primeiras linhas da carta, e utilizando as palavras “que tudo deveis a mey amor” (Vallance, 2012, p.255) para persuadi-lo a acatar seus desejos. Muito do que foi visto nas cartas aos filhos homens está também na curta missiva que escreveu para D. Catarina, sua filha mais velha. A benção, os apelos à proximidade da morte e ao amor conquistado em vida para ter a alma lembrada depois de sua partida, também foram dirigidos a ela. A mesma fidelidade espiritual expressa em algumas citações anteriores é demonstrada e recomendada na frase “sois filha da Igreja Catholica, ainda mais que minha” (Vallance, 2012, p.255). Talvez por tratar-se de uma mulher, de quem era cobrado ainda mais proximidade com a fé em relação aos homens, a religião apenas aqui é posta abertamente acima da maternidade humana. Outro destaque que vale mencionar transparece no trecho: “lembrandovos com ella [a carta] o lugar em que estaes, & as obrigações com que fostes para ele” (Vallance, 2012, p.255). O lembrete a posição da filha, casada com Carlos II para selar a aliança entre Inglaterra e Portugal, pode sugerir tanto a compreensão que só uma rainha poderia oferecer a outra, sobre as responsabilidades de uma mulher em um contexto social tão complexo, quanto um alerta para que se mantivesse firme em seus deveres, independente da dificuldade que os mesmos impusessem. O trecho parece espelhar mais uma relação entre mulheres em um mesmo patamar hierárquico, do que o aspecto da maternidade. Postura que condiz com a despedida das duas, quando a filha foi para a Inglaterra viver com o marido, depois de seu casamento por procuração, “D. Catarina tentou beijar a mão de D. Luísa, mas esta não o permitiu, pois a filha era agora ela própria uma rainha” (Vallace, 2012, p.178). No século XVII, a correspondência que hoje consideraríamos íntima, como a familiar, não era algo tão privado. As cartas passavam em diversas mãos, e muitas vezes eram lidas abertamente para pessoas a quem não foram endereçadas. Portanto, seu conteúdo pode não corresponder de forma totalmente honesta aos sentimentos e pensamentos do autor, especialmente tratando-se de uma mulher com uma reputação para assegurar. Há quem especule, por exemplo, que, conhecendo as falhas de D. Afonso como governante, D. Luísa fosse favorável a tomada de poder de D. Pedro, que acabou por realizar-se de fato mais tarde, apenas após a morte da mãe. A ideia baseia-se, em Vallace (2012), na nomeação de D. Pedro como príncipe herdeiro de D. Afonso realizada por ela e na concessão que a rainha fez, antes de seu afastamento, de sua própria casa em favor do filho mais novo, nomeando nobres importantes para apoiá-lo. Apesar das considerações, não há nenhum registro que comprove um suporte direto a retirada de D. Afonso do trono, talvez pela preservação da linhagem, que não podia suportar conflitos internos ainda instável como estava, talvez por discrição, já que era de conhecimento geral que a correspondência podia ser lida por terceiros, ou talvez simplesmente por que a rainha não desejasse a queda do filho mais velho. O fato é que, apesar de não ser possível reconstituir com total fidelidade as nuances sociais e políticas que podiam existir além do registro documental, as cartas de D. Luísa dão suporte para entender um pouco mais, não só sobre como o horizonte de expectativa da época a respeito das mulheres influenciava seu comportamento, mas também como, dentro do contexto complexo que a cercava e a partir de sua personalidade, ela escolheu expressar-se. Referências bibliográficas
Fernandes, M. L. (1995). Capítulo III – A “educação” feminina. Em M. L.
Fernandes, Espelhos, Cartas e Guias – Casamento e Espiritualidade na Península Ibérica 1450-1700 (pp. 101-142). Porto: Instituto de Cultura Portuguesa – Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Guin, U. K. (2016). Desappearing Grandmothers. Em U. K. Guin, Words Are My Matter (pp. 88-94). Small Beer Press. Vallance, M. (2012). A rainha restauradora – Luísa de Gusmão. Círculo de Leitores.