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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CURSO DE LETRAS – BACHARELADO

Ensaio sobre A hora da estrela, de Clarice Lispector

Professora: Bianca Campelo

Aluna: Ayesha Oliveira

Agosto - 2013

Recife - PE
Jogo de contrastes narrativos em A Hora da Estrela
Ayesha Oliveira Domingues da Silva

1. Introdução

Clarice Lispector é uma autora peculiar com uma obra que traz dificuldade a
toda a crítica por apresentar um alto nível de complexidade, ainda que em pequena
extensão. Com uma fórmula que desafia classificações, conceitos e parâmetros pré-
estabelecidos, marcou a literatura brasileira com seus trabalhos, deixando para o público
e para os estudiosos da literatura muitas dúvidas e poucas certezas. Trataremos aqui de
sua obra mais conhecida, o romance A hora da estrela – que desde o início com a
estratégia da elaboração de doze diferentes títulos referentes a passagens do livro
confunde o leitor – focando o aspecto dos contrastes internos entre os dois planos
narrativos utilizados pela escritora.

O universo literário criado dentro da obra é próximo ao do mundo real,


utilizando-se de fatores críveis dentro do cotidiano. A ausência de elementos fantásticos
ou mesmo de grandes exageros atesta essa verossimilhança no sentido Aristotélico da
palavra, conferindo ao livro um desprendimento menor do grau zero da diegese, a partir
do momento em que explora cenários, personagens, ideologias e comportamentos
próximos ao que cerca o leitor dentro da sociedade. Sendo verossímil em ambas as
formas, pois mantém coerência interna, harmonizando a progressão dos fatos, as ações e
percepções dos personagens em relações de causa e consequência, a narrativa do livro A
hora da estrela tem destaque na literatura brasileira, inclusive entre a crítica
especializada, por possuir uma estrutura complexa e conduzir a uma reflexão social
profunda.

2. Desenvolvimento

O narrador, Rodrigo S.M., conta duas histórias na mesma obra com métodos e
protagonistas distintos. Em um plano temos a narrativa da vida da nordestina Macabéa,
personagem que é uma invenção do próprio Rodrigo S.M., o protagonista da segunda
história, que trata da elaboração literária do livro e dos percalços que tal atividade, que
ele está determinado a cumprir, traz ao escritor.
No plano da narrativa da história da nordestina, o narrador conta tudo que
considera que é preciso para a compreensão da personagem e do que a ela ocorre. É
interessante observar que não temos extensas descrições de pequenos detalhes como é
comum na exploração da microestrutura de uma obra, porém simultaneamente há
poucas inferências deixadas para o leitor. Os ambientes que Macabéa frequenta, desde a
casa na terra natal – o nordeste – na qual vivia com a tia, o quarto da pensão que divide
com mais quatro colegas, o escritório onde trabalha como datilógrafa, os espaços nos
quais encontrava o namorado Olímpico ao local em que se consulta com a cartomante,
aparecem com os detalhes necessários para o desenrolar da ação, assim como os traços
da personalidade e os pensamentos que justificam suas escolhas, as personagens com
quem convive ou conviveu, a tia que a educou, o seu chefe, a colega de trabalho, o
namorado, as Marias com quem divide o quarto em que mora, a cartomante e até mesmo
o rádio que se torna, em grande parte, sua fonte de conhecimento e um meio de contato
com o mundo exterior ao seu universo particular, que é tão limitado. Não há compridos
relatos de detalhes menores como as cores das cortinas, ou as datas em que realiza cada
uma de suas tarefas, porém apresenta todos os pormenores necessários para o
desenvolvimento da trama.

Ao olhar para a outra história narrada, aquela em que ele explora o próprio
processo de criação do livro, encontra-se um número muito menor de fatos retratados,
em proporção inversa as reflexões expostas. Pouco se conhece realmente sobre o
narrador, apenas seu relacionamento com a obra que está escrevendo e com a
personagem que criou, que é a única coisa que parece ter alguma importância para ele.
Cabe ao leitor deduzir (ou não) através das poucas pistas deixadas quaisquer outros
aspectos do personagem. O cenário que o cerca, o círculo social a que pertence ou seus
relacionamentos pessoais, são todos fatos omitidos no livro, lacunas que se mostram
como traços característicos de uma macroestrutura mais elaborada, que dão a obra mais
possibilidades de sentido em certos aspectos, embora não falte a essência que conduz o
texto.

Tal distinção não impede que ambas as narrativas encaminhem o leitor a uma
reflexão social significativa, pois trazem profundidade de conteúdo. Rodrigo S.M. diz
que pensou na história de Macabéa a partir do olhar de uma nordestina que encontrou na
rua e com ela inicia um processo em que torna sua personagem símbolo da miséria
dessas vidas pobres e ignoradas, que não encontram perspectiva de mudança para
melhor – ainda que a protagonista nem enxergue sua própria infelicidade, tamanha é sua
ingenuidade ou ignorância –, entrando aqui em uma segunda proposta que discute o
papel do escritor na sociedade, que tem autonomia para criar, porém o dever de
denunciar, possuindo poder total sobre sua narrativa, porém impotente diante dos
grandes problemas que encontra no mundo real, vendo-se na posição de querer salvar a
personagem por que a ama e considera importante, porém de não poder apesar de todo
seu domínio sobre a sua criação por causa do relato fiel ao real que deve cumprir para
encontrar sossego com sua consciência acusando aquilo que merece ser visto. Em suas
duas narrativas trabalha respectivamente as temáticas referidas, das pessoas
abandonadas como Macabéa e da função social do escritor através do relato de sua
própria história.

O romance não é o modelo típico da narrativa daquilo que é memorável. A


epopeia cumpre mais esse papel, tendo caído quase que em desuso em termos de
elaborações atuais nesse gênero e podemos atribuir a tal consequência duas entre várias
causas históricas e sociais: a maior maleabilidade do gênero romance, que não possui
molde fechado e aparece com configurações diversas, mais ou menos próximas de
outros gêneros literários a depender do contexto e da função proposta, e a crise do
narrador contemporâneo, que busca o relato do memorável, mas não possui matéria
concreta para basear seu trabalho. A memória caracteriza-se pelo registro dos grandes
feitos que marcam uma população, dos eventos singulares em meio a história de um
povo, contrastando com a reminiscência, que trata-se do retorno a um exemplar em
meio a muitos parecidos, utilizado tipicamente na construção do romance. A vida
tornou-se banal na era da informação e as histórias se limitam ao cotidiano, que embora
tenha grande importância social como conjunto não se destaca em meio a diversos casos
semelhantes. Rodrigo S.M. é um narrador que exemplifica e traz tal discussão a tona,
vivendo o dilema de tentar tornar a existência de sua personagem significativa, porque o
sofrimento das pessoas que pertencem a classe esquecida que ela representa deve ser
significativo, porém ainda assim não é singular diante de tantos que se encontram em
situação semelhante. É uma perseguição ao memorável, ainda que ao fim a história se
configure como reminiscência.

A obra, como um todo, tem muita densidade, como mostra seu aspecto
introspectivo, verificado nas duas histórias contadas pelo narrador, mas ainda maior na
narrativa da construção do livro, em contraste com a pouca intensidade decorrente do
número pequeno de ações descritas em relação as reflexões feitas. As mudanças que
movimentam os enredos são todas de panorama, tendo as ações menor interferência nos
personagens, traços de romances psicológicos.

A introspecção da narrativa tem uma influência forte na sequência temporal dos


fatos. A história de Macabéa é contada de uma forma cronologicamente ordenada, ainda
que profundamente conectada com a personagem, assemelhando-se levemente ao tempo
de um romance linear, que normalmente tem um pouco mais de intensidade do que
densidade, mantendo uma progressão de fatos que acarretam consequências de forma
natural. Pensando na autorreflexão feita pelo narrador quando trata de seu processo de
criação, temos um contraste imenso nesse aspecto, defrontando-nos a toda hora com
questionamentos e projeções do que acontecerá com a personagem sobre a qual ele
escreve, assim como retificações em relação a informações antes colocadas que
posteriormente ele diz enxergar com mais clareza, variando com alguns retratos do
momento presente, em uma oscilação que percorre a obra do início ao fim. O tempo é
puramente psicológico, variando sua forma e ordem de expressão de acordo com o
emocional de Rodrigo S.M.

Rodrigo S.M. caracteriza-se, então, como um personagem redondo. Ao


acompanhar os dilemas com os quais se debate ao longo de sua narrativa e as oscilações
de manifestação emocional condicionadas pelo contraste entre seus próprios desejos e a
realização do que sente como dever, observamos os defeitos e qualidades desse
protagonista, que não é puramente certo ou errado, adotando diferentes posturas de
acordo com a circunstancia a que é exposto, vacilando em dúvidas e conflitos, em
algumas ocasiões contrariando as expectativas, de forma a manter o leitor no suspense
em relação a seus próximos passos. Já na história de Macabéa, a princípio os
personagens caracterizam-se como planos, definição que tende aos personagens tipo
com estereótipos já conhecidos pelo público, mantendo do início ao fim os mesmos
objetivos e comportamentos, não surpreendendo o leitor em suas decisões, moldando-se
de acordo com padrões comuns. Há, no entanto, um detalhe sobre a protagonista dessa
narrativa que vale ser mencionado. Desde o encontro com a cartomante até a hora de
sua morte, ao final da narrativa, opera-se uma mudança interior na personagem que dá a
ela uma nova perspectiva dos fatos e da vida. O processo da epifania, pelo qual passa
Macabéa, e que caracteriza a verdadeira reviravolta da obra, não condicionada por ações
de fato, mas sim por uma nova percepção das coisas, despertada por um fator externo
inesperado, talvez a deixe no limiar das definições, possivelmente até transformando-a
em complexa. É incerto o destino que teria a nordestina a partir de tal ponto,
considerando que o potencial início de sua transformação acompanha o fim de sua vida,
portanto o seu caráter ao final permanece indefinido.

Há, como antes mencionado, duas histórias sendo contadas pelo mesmo narrador
no livro A hora da estrela. Apesar de Rodrigo S.M. narrar as duas sequências, são aqui
explorados métodos e pontos de vista completamente distintos em cada uma das
narrativas, as perspectivas distintas criam uma divergência que dificulta a definição da
obra, tonando impossível classifica-la em um único molde.

Na história de Macabéa, temos Rodrigo S.M. como seu criador e único detentor
de poder total sobre o destino dos personagens. Caracterizamos, segundo a proposta de
Alfredo de Carvalho, o tipo de narrativa que ele adota como 3ª pessoa, por desenvolver-
se a partir de um narrador que não é personagem da história, sendo este plenamente
onisciente, equivalendo também tal posicionamento ao ponto de vista olímpico de
Komroff, no qual a autoridade do narrador é tão completa dentro da diegese que é
metaforicamente comparada a de um deus, pois este detém o conhecimento completo
dos personagens, seja externamente, com relação a suas ações e o contexto que os cerca,
seja internamente com relação a suas personalidades e pensamentos.

Em alguns casos, o uso de tal recurso pode conduzir ao apagamento do narrador


na obra, distanciando-o do leitor e fazendo sua presença quase imperceptível. Não
poderíamos encaixar a narrativa da história de Macabéa em tal percepção, porém há
momentos de construção de cena, nos quais o narrador abstém-se de contar a história –
ação que habitualmente compreende maior interferência inclusive na seleção do que
deve ser transmitido – para mostrar o que de fato acontece – postura que tende a criar
imagens mentais mais fortes e contínuas, levando o leitor acompanhar mais claramente
a trajetória dos personagens – quase que se ausentando da cena que relata, fielmente
descrevendo e expondo os fatos e transcrevendo as falas, como se assistisse o
acontecimento e desejasse conduzir o leitor até a mesma sensação. Há também o uso do
processo inverso, a sumarização, quando Rodrigo S.M. apenas conta rapidamente
eventos da vida de sua personagem sem deter-se em detalhes, principalmente quando
menciona, em flashbacks, passagens de Macabéa com a tia que a criou, da morte de seus
pais, da sua mudança para uma capital, usando de um breve relato que apenas transmite
o necessário para o caminhar da história ou para a explicação de algum ato da
protagonista, método que torna a influência do escritor na obra mais evidente.

O narrador relata todos os fatos da vida da protagonista e a percepção que ela


tem dos mesmos, atravessando também os pensamentos dos demais envolvidos na
trama em diversas ocasiões, mostrando assim uma visão por trás, na nomenclatura
sugerida por Pouillon, para o ponto de vista de Rodrigo S.M. que se configura como
múltiplo por contemplar uma variedade de personagens. E novamente de acordo com
Alfredo de Carvalho, também podemos dizer que a narrativa é interpretativa, por causa
da parcialidade com a qual é construída, tendo a opinião do narrador claramente
expressa durante o percurso da trama, discutindo sobre o caráter e as escolhas dos
personagens abertamente.

No tocante a narrativa sobre o processo de construção do livro, temos a


utilização de uma estratégia completamente diferente. O narrador permanece o mesmo,
Rodrigo S.M., mas o relato passa a ser em 1ª pessoa com o próprio narrador como
protagonista, consequentemente utilizando-se de um ponto de vista interno, por espelhar
dentro da obra seus próprios pensamentos, as emoções e as dúvidas. A visão com da
proposta de Pouillon também descreve o meio de contar a história de que então se fez
uso, perpassando apenas a mente de um dos personagens, um único ponto de vista,
nesse caso o narrador e protagonista.

A técnica por ele utilizada tem marcas que trazem sua personalidade para o
texto, lançando os pensamentos de forma pouco filtrada em relação ao conteúdo,
carregada de traços que conduzem o leitor a sentir-se dentro da consciência do
protagonista, orientando o discurso através de uma ordenação que parte de associações,
porém possui certa sequência lógica. O monólogo interior orientado é o modo em que o
fluxo dos pensamentos do personagem é exposto, porém possui certa medida adequada
de organização que propicia ao leitor uma maior facilidade de compreensão. Em um
exemplo como esse, o distanciamento entre o narrador e os personagens é mínimo, se
não inexistente – dúvida que fica por conta da divergência entre a experiência pura e a
que a linguagem é capaz de expressar, que pode alterar a distância entre o material bruto
e o que é transmitido, mesmo que apenas em consciência não verbalizada –,
considerando que o próprio passa a estar dentro do elenco. Caso ainda mais pessoal é o
de Rodrigo S.M., que é o único personagem concreto de sua própria história.
3. Conclusão

Com dois planos narrativos e uma multiplicidade de aspectos neles trazidos a


serem discutidos e compreendidos, A hora da estrela, de Clarice Lispector, é uma obra
que não se prende a simples conceitos. Ao apresentar duas narrativas contrastantes em
tantos sentidos a autora lançou um desafio a crítica que provavelmente nunca terá uma
conclusão definitiva.

Sem se prender as estratégias habituais de escrita, ela explora em tão curto


trabalho duas histórias, uma dentro da outra, moldando em suas estruturas narrativas um
jogo de relações íntimo sem abalar a singularidade do que define cada parte do
romance.

O fato é que há diversas características opostas dentro do livro, desde os


métodos narrativos às personagens construídas, que em uma composição habilmente
elaborada formaram uma obra literária genial que venceu o tempo e se tornou clássico
brasileiro.

Referências bibliográficas

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 1 ed. Pernambuco: Rocco, 1977.

CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol. A personagem de ficção. 12 ed. São


Paulo: Perspectiva, 2011. p. 11 - 80

MOISÉS, Massaud. A análise literária. 1 ed. São Paulo: Cultrix, 2007. p. 84 – 141

BENJAMIN, Walter. O narrador. p. 198 - 221

CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco narrativo e fluxo de consciência:


Questões de teoria literária. São Paulo: Pioneira, 1981. p. 1 - 62

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