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Jogo de Contrastes Narrativos em 'A Hora Da Estrela'
Jogo de Contrastes Narrativos em 'A Hora Da Estrela'
Agosto - 2013
Recife - PE
Jogo de contrastes narrativos em A Hora da Estrela
Ayesha Oliveira Domingues da Silva
1. Introdução
Clarice Lispector é uma autora peculiar com uma obra que traz dificuldade a
toda a crítica por apresentar um alto nível de complexidade, ainda que em pequena
extensão. Com uma fórmula que desafia classificações, conceitos e parâmetros pré-
estabelecidos, marcou a literatura brasileira com seus trabalhos, deixando para o público
e para os estudiosos da literatura muitas dúvidas e poucas certezas. Trataremos aqui de
sua obra mais conhecida, o romance A hora da estrela – que desde o início com a
estratégia da elaboração de doze diferentes títulos referentes a passagens do livro
confunde o leitor – focando o aspecto dos contrastes internos entre os dois planos
narrativos utilizados pela escritora.
2. Desenvolvimento
O narrador, Rodrigo S.M., conta duas histórias na mesma obra com métodos e
protagonistas distintos. Em um plano temos a narrativa da vida da nordestina Macabéa,
personagem que é uma invenção do próprio Rodrigo S.M., o protagonista da segunda
história, que trata da elaboração literária do livro e dos percalços que tal atividade, que
ele está determinado a cumprir, traz ao escritor.
No plano da narrativa da história da nordestina, o narrador conta tudo que
considera que é preciso para a compreensão da personagem e do que a ela ocorre. É
interessante observar que não temos extensas descrições de pequenos detalhes como é
comum na exploração da microestrutura de uma obra, porém simultaneamente há
poucas inferências deixadas para o leitor. Os ambientes que Macabéa frequenta, desde a
casa na terra natal – o nordeste – na qual vivia com a tia, o quarto da pensão que divide
com mais quatro colegas, o escritório onde trabalha como datilógrafa, os espaços nos
quais encontrava o namorado Olímpico ao local em que se consulta com a cartomante,
aparecem com os detalhes necessários para o desenrolar da ação, assim como os traços
da personalidade e os pensamentos que justificam suas escolhas, as personagens com
quem convive ou conviveu, a tia que a educou, o seu chefe, a colega de trabalho, o
namorado, as Marias com quem divide o quarto em que mora, a cartomante e até mesmo
o rádio que se torna, em grande parte, sua fonte de conhecimento e um meio de contato
com o mundo exterior ao seu universo particular, que é tão limitado. Não há compridos
relatos de detalhes menores como as cores das cortinas, ou as datas em que realiza cada
uma de suas tarefas, porém apresenta todos os pormenores necessários para o
desenvolvimento da trama.
Ao olhar para a outra história narrada, aquela em que ele explora o próprio
processo de criação do livro, encontra-se um número muito menor de fatos retratados,
em proporção inversa as reflexões expostas. Pouco se conhece realmente sobre o
narrador, apenas seu relacionamento com a obra que está escrevendo e com a
personagem que criou, que é a única coisa que parece ter alguma importância para ele.
Cabe ao leitor deduzir (ou não) através das poucas pistas deixadas quaisquer outros
aspectos do personagem. O cenário que o cerca, o círculo social a que pertence ou seus
relacionamentos pessoais, são todos fatos omitidos no livro, lacunas que se mostram
como traços característicos de uma macroestrutura mais elaborada, que dão a obra mais
possibilidades de sentido em certos aspectos, embora não falte a essência que conduz o
texto.
Tal distinção não impede que ambas as narrativas encaminhem o leitor a uma
reflexão social significativa, pois trazem profundidade de conteúdo. Rodrigo S.M. diz
que pensou na história de Macabéa a partir do olhar de uma nordestina que encontrou na
rua e com ela inicia um processo em que torna sua personagem símbolo da miséria
dessas vidas pobres e ignoradas, que não encontram perspectiva de mudança para
melhor – ainda que a protagonista nem enxergue sua própria infelicidade, tamanha é sua
ingenuidade ou ignorância –, entrando aqui em uma segunda proposta que discute o
papel do escritor na sociedade, que tem autonomia para criar, porém o dever de
denunciar, possuindo poder total sobre sua narrativa, porém impotente diante dos
grandes problemas que encontra no mundo real, vendo-se na posição de querer salvar a
personagem por que a ama e considera importante, porém de não poder apesar de todo
seu domínio sobre a sua criação por causa do relato fiel ao real que deve cumprir para
encontrar sossego com sua consciência acusando aquilo que merece ser visto. Em suas
duas narrativas trabalha respectivamente as temáticas referidas, das pessoas
abandonadas como Macabéa e da função social do escritor através do relato de sua
própria história.
A obra, como um todo, tem muita densidade, como mostra seu aspecto
introspectivo, verificado nas duas histórias contadas pelo narrador, mas ainda maior na
narrativa da construção do livro, em contraste com a pouca intensidade decorrente do
número pequeno de ações descritas em relação as reflexões feitas. As mudanças que
movimentam os enredos são todas de panorama, tendo as ações menor interferência nos
personagens, traços de romances psicológicos.
Há, como antes mencionado, duas histórias sendo contadas pelo mesmo narrador
no livro A hora da estrela. Apesar de Rodrigo S.M. narrar as duas sequências, são aqui
explorados métodos e pontos de vista completamente distintos em cada uma das
narrativas, as perspectivas distintas criam uma divergência que dificulta a definição da
obra, tonando impossível classifica-la em um único molde.
Na história de Macabéa, temos Rodrigo S.M. como seu criador e único detentor
de poder total sobre o destino dos personagens. Caracterizamos, segundo a proposta de
Alfredo de Carvalho, o tipo de narrativa que ele adota como 3ª pessoa, por desenvolver-
se a partir de um narrador que não é personagem da história, sendo este plenamente
onisciente, equivalendo também tal posicionamento ao ponto de vista olímpico de
Komroff, no qual a autoridade do narrador é tão completa dentro da diegese que é
metaforicamente comparada a de um deus, pois este detém o conhecimento completo
dos personagens, seja externamente, com relação a suas ações e o contexto que os cerca,
seja internamente com relação a suas personalidades e pensamentos.
A técnica por ele utilizada tem marcas que trazem sua personalidade para o
texto, lançando os pensamentos de forma pouco filtrada em relação ao conteúdo,
carregada de traços que conduzem o leitor a sentir-se dentro da consciência do
protagonista, orientando o discurso através de uma ordenação que parte de associações,
porém possui certa sequência lógica. O monólogo interior orientado é o modo em que o
fluxo dos pensamentos do personagem é exposto, porém possui certa medida adequada
de organização que propicia ao leitor uma maior facilidade de compreensão. Em um
exemplo como esse, o distanciamento entre o narrador e os personagens é mínimo, se
não inexistente – dúvida que fica por conta da divergência entre a experiência pura e a
que a linguagem é capaz de expressar, que pode alterar a distância entre o material bruto
e o que é transmitido, mesmo que apenas em consciência não verbalizada –,
considerando que o próprio passa a estar dentro do elenco. Caso ainda mais pessoal é o
de Rodrigo S.M., que é o único personagem concreto de sua própria história.
3. Conclusão
Referências bibliográficas
MOISÉS, Massaud. A análise literária. 1 ed. São Paulo: Cultrix, 2007. p. 84 – 141