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Regras do amor: um guia sobre os relacionamentos humanos

Dr. Paulo Pacheco


1ª edição — março de 2022 — cedet
Copyright © Paulo Pacheco, 2021.

Sob responsabilidade da editora, não foi adotado o Novo Acordo


Ortográfico de 1990.

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editor:
Ulisses Trevisan Palhavan

revisão:
Lucas Ferreira Lima

preparação de texto:
Letícia de Paula

capa:
Bruno Ortega

diagramação:
Gabriela Haeitamann

leitura de prova:
Tamara Fraislebem
Mariana Souto Baptista de Menezes
Juliana Coralli
conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo

FICHA CATALOGRÁFICA

Pacheco, Paulo.
Regras do amor: um guia sobre os relacionamentos humanos / Paulo
Pacheco — 1ª ed.
— Campinas, sp: Editora Auster, 2022.
ISBN: 978-65-87408-29-3

Pacheco, Paulo.
Regras do amor: um guia sobre os relacionamentos humanos / Paulo
Pacheco — 1ª ed.
— Campinas, sp: Editora Auster, 2022.
ISBN: 978-65-87408-29-3

cdd 158.2 / 155.2 / 158.1

índices para catálogo sistemático:


1. Relações humanas — 158.2
2. Psicologia individual e personalidade — 155.2
3. Aperfeiçoamento pessoal — 158.1

www.editoraauster.com.br

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer


reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica
ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução,
sem permissão expressa do editor.
Capítulo i
O fundamento de toda
relação

Q
uais são os fundamentos de uma relação? Quais
são os recursos de que você, leitor, precisa estar
dotado para viver adequadamente esse
fenômeno da condição humana? Qual é a fórmula
para que sejamos capazes de construir relações
melhores, realmente estáveis? Neste livro que você
tem em mãos eu responderei a todas essas
perguntas. Vou orientá-lo nessa jornada e, em cada
capítulo, proporei alguns exercícios práticos que, se
bem realizados, ajudarão a vencer certas
dificuldades. O principal propósito deste livro é fazer
com que você se torne mais consciente das
ferramentas que já possui e ensiná-lo como usá-las. É
hora de começarmos.

Ponto de partida
Comecemos com o ponto de partida: a
autoconsciência, a consciência que você tem de si.
Afinal, uma pessoa precisa, toda vez que vive um
relacionamento, ter presente para si a sua própria
pessoa nessa relação. Vale lembrar que esse ponto de
partida não é útil apenas para a experiência que você
tem do fenômeno dos relacionamentos: ele serve
para tudo. Mas nos limitemos por enquanto. Se você
aprender a reconhecer o fundamento, aqui, depois
ficará mais fácil aplicar o método nos demais âmbitos
da vida.

Pode parecer contraditório dizer que o ponto de


partida, a fim de entender como ter relacionamentos
saudáveis, maduros e humanos, seja a “consciência
que eu tenho de mim”, tendo em vista que você já
deve ter ouvido falar e já deve ter lido em algum
lugar que a maturidade humana tem algo a ver com a
capacidade de sair de si e se entregar pelo outro. Mas
não há contradição: obviamente, o ponto de partida é
o eu, a sua pessoa na relação; lembre-se, entretanto,
de que o ponto final não é a sua pessoa, e sim o tu da
relação. Assim, se você não souber quem é o seu eu
na relação, há um grande risco de ser movido por
expectativas, por uma sensação ou efeito ou ganho.
Quero que você aprenda a olhar, de fato, para o
outro, o que só será possível se, de verdade, você
souber a sua identidade e o seu papel na relação.

Afinal de contas, quem é você? O que é o seu eu?


Como entender mais e melhor o eu? Como prestar
atenção nessa coisa que é o seu eu, nessa entidade?
Esse é certamente o maior de todos os nossos
desafios, porque há o risco de, na medida em que
começar a prestar atenção em si, você ficar satisfeito
com uma atenção voltada aos detalhes das pequenas
motivações e dos movimentos da sua própria alma,
fixando-se na questão da disponibilidade para o outro
— e precisamos evitar isso.
Assim, você deve saber de antemão que é preciso
olhar para o “Eu”, aprender a reconhecê-lo. E é
importante que você saiba, a partir desse ponto da
leitura, que, para se voltar a qualquer coisa e
entender o que ela é, sempre serão necessárias três
disposições da sua parte: a de ser realista, a de ser
razoável e a de ser moral.

Realismo
Realismo é partir do pressuposto de que o “Eu” é
uma realidade que tem consistência não porque
você a pensa, mas porque ela é. Trata-se, pois, de
uma realidade que não consiste no que você pensa de
si, porque você não é aquilo que pensa sobre si
mesmo. E mais: o outro com o qual você se relaciona,
seja ele um familiar, seu marido, sua esposa, seu
filho, seu colega de trabalho, uma pessoa que você
encontra no transporte público ou Deus, é sempre
uma realidade, uma presença inexorável, e não algo
que está apenas na sua cabeça.

Mas alguém poderia se perguntar: “Como é possível


que o meu ‘Eu’ seja uma presença para mim?”. E esse
é um ponto para o qual eu quero que você preste
máxima atenção. Quando é que o seu “Eu” é uma
presença? Quando ele pode ser uma realidade para si
mesmo? Acompanhe-me pelas próximas linhas e
pense comigo: por acaso você é presente para si
quando está parado no seu quarto e resolve fazer
uma reflexão, uma análise de si próprio? Talvez você
chegue a dizer: “Sim, é verdade. Eu sou presença
para mim mesmo quando recupero da memória as
experiências vividas durante o dia”. Por exemplo,
quando você, ao fim do dia, resolve fazer um exame
de consciência e pára diante de cada um dos atos,
omissões, palavras que disse e deixou de dizer, pode,
quem sabe, concluir: “Sim, neste momento, estou
diante de mim mesmo”. É verdade! Mas veja que não
se trata, nesse caso, de um processo de mera
lembrança dos fatos. Aquilo para que você está
olhando não são os fatos acontecidos, não é nem
mesmo o seu pensamento; você está olhando para as
suas próprias atitudes. Você olhará para si quando
estava em ação, no instante em que estiver “agindo”
retroativamente, examinando-se, examinando a
própria consciência. Ou seja, você, naquele exato
momento, não reviverá os fatos acontecidos ao longo
do dia, mas estará diante de si enquanto se examina,
o que requererá de você, naquele mesmíssimo
momento, a sua presença total, porque somente a
sua presença total lhe permitirá julgar as atitudes do
dia como boas ou más, e estabelecer propósitos de
ação razoáveis para o dia que virá. Se você quer se
conhecer, se quer saber quem é, precisa olhar para si
mesmo agindo. Você estará presente para si na
medida em que testemunhar suas próprias ações.

Isso vale, certamente, para quando se fala também


do olhar que se dirige para o outro, ou para um
objeto, ou para uma determinada circunstância ou
evento da sua história. Neste primeiro momento, o
mais importante para mim é que você preste atenção
nisto: como é que você vai entender o que você
é? Estando presente para si mesmo. Pois, sem
consciência de si, você será como uma vaca que se
coça no pára-choque traseiro duma Ferrari.
Guarde bem isto! E, antes de avançarmos para o
próximo ponto, deixo-lhe um pequeno exercício, que
ajudará a dar os passos seguintes. Pare a leitura e,
por alguns instantes, recupere na sua memória como
foi o seu dia até agora. Preste atenção em cada
momento, em cada circunstância ao longo deste dia
até quando resolveu começar esta leitura. Como é
que você estava então? O que sentia? O que o moveu
à atitude tomada em cada circunstância? É difícil
fazer isso, não é? Então, que tal treinar em você a
capacidade de discernir o que o faz agir? Olhe para o
instante presente: como é que você está agora?
Coloque-se presente nisso que você está fazendo.
Você está confuso? As idéias ainda não estão claras?
Parece-lhe que o fio da meada se perdeu em algum
lugar lá atrás? Tem a sensação de que estava indo
numa direção e agora parece que está em uma
direção diferente? Você está se sentido meio
atrapalhado? Ou então você sente fome e, enquanto
lê, se dá conta de que sua barriga está vazia? Ou,
quem sabe, está cansado porque passou o dia inteiro
no trabalho? Ou está com um monte de preocupações
com o trabalho, a casa, os filhos, os familiares ou
amigos? O que você percebe de si mesmo nesse
instante? Vamos dar um passo a mais, a fim de nos
voltarmos para a situação presente: o que você
percebe de si mesmo em termos de expectativa com
esta leitura? Você resolveu parar tudo para ler este
livro, então qual é a sua expectativa em relação à
leitura? O que você está esperando? Muito bem!
Partindo do pressuposto de que você chegou a essa
“expectativa”, proponho que dê um outro passo e
pense o seguinte: essa sua expectativa é baseada em
quê? Sua expectativa quanto ao que você está
fazendo se funda no quê? De onde brota essa
expectativa? Anote tudo o que tiver encontrado em si.
Razoabilidade
Então passemos ao segundo elemento mais
importante para entender os fundamentos sobre os
quais são construídos todos os relacionamentos: a
razoabilidade. Esta pode ser resumida da seguinte
forma: a pessoa, nos seus relacionamentos, no seu
olhar para as coisas, não se contenta com o primeiro
impacto que elas lhe dão. Toda pessoa quer mais e
precisa entender tudo em profundidade. Diga se
não é verdade que a mera presença deste livro nas
suas mãos agora não é suficiente. Você precisa de
algo mais, da resposta para a pergunta, um tanto
estranha, mas que lhe aparece espontaneamente: o
que é, afinal de contas, isso que eu tenho na minha
frente? Quem — sim, “quem” — é essa coisa que eu
tenho na minha frente? Será que o autor é só aquele
homem careca que usa óculos, que tem um certo jeito
de falar que você já conhece? Será que ele se resume
às roupas que usa? O que é o autor, afinal de contas?
A realidade que está na minha frente, o que é? Eu,
que acabei de me tornar presente para mim mesmo;
eu, que acabei de me perceber nesta situação diante
do livro, lendo as palavras do autor — o que, de
verdade, eu sou? Eu sou só essa sensação que estou
experimentando agora, do ambiente em que estou?
Sou, portanto, essa sensação que experimento da
roupa no meu corpo? Sou a sensação da poltrona em
que estou sentado? Só tenho certeza do meu ser
porque isso que acabei de ler me causou um arrepio?
Só tenho certeza do meu ser porque estou pensando,
e, se penso, logo existo? O fato é que as respostas às
quais se chega quando se começa a olhar para si
mesmo, numa circunstância qualquer, nunca são
suficientes. Pense: quando você diz que é filho de
Fulano, neto de Beltrano ou irmão de Sicrana, fazendo
toda uma trajetória histórica, será que isso ajuda a
responder quem você é? Alguém poderia dizer: “Eu
sou advogado”, “Eu sou pai do Pedro”, ou “Eu sou
esposa do Roberto” — mas isso ajuda a pessoa a
realmente dizer quem ela é? É suficiente? É o
bastante dizer de um copo qual é a sua cor? Ou de
um prato qual é o material de que é feito? Ou de um
lápis, se é da fábrica tal ou qual? Parecem perguntas
estranhas e artificiais, no contexto da obra, mas o que
eu quero dizer para você quando falo de razoabilidade
é que carregamos dentro de nós algo a que
poderíamos dar o nome de “razão”, como é concebido
pelo senso comum (e não é minha intenção, aqui,
fazer uma longa ref lexão filosófica acerca dele). A
razão se resume a uma dinâmica de abertura, um
olhar esbugalhado, uma janela escancarada para o
real. Razão é isso: ela não se contenta com as partes,
quer tudo, quer o todo.

Alguém poderia objetar dizendo que é difícil demais


abarcar o todo. Estou de acordo, mas uma das
características definidoras da razão é seu escopo
ilimitado, que a tudo quer e tenta abarcar. Portanto,
quando tratamos da razoabilidade como segundo
elemento para entender um pouco mais e melhor
quem somos e por que temos de olhar para os nossos
seres, é porque esta é a base, o ponto de partida, o
fundamento em que se enraízam as nossas relações.
É você a raiz, o fundamento, o centro a partir do qual
as relações acontecem. Então você precisa entender
que a sua presença está sempre aberta à plenitude
dos fatores que compõem os dados da realidade. O
nosso ser é dotado dessa capacidade de abertura à
totalidade dos fatores. Toda vez que você olha para
algum dado da realidade, seja esse dado a sua
própria presença, uma caneta, uma árvore que
contempla na calçada, ou a pessoa com a qual se
relaciona, a razão se põe a funcionar e não se
contenta com a parcialidade, com a parte, com o
pequeno. Ela quer ir além. Assim, quando você olha
para esse fundamento que é parte constitutiva do seu
“Eu”, precisa reconhecer, antes de prosseguir, a
urgência de totalidade. E este é o exercício que eu
proponho agora: se quiser entender quem é, de
verdade, se quiser estar presente em si mesmo nas
circunstâncias, você terá de reconhecer que a sua
pessoa não se satisfaz com o que é apenas parcial.
Pensemos juntos: quando você decide escrever
alguma coisa, o seu movimento de escrever não
termina no ato de escrever propriamente dito, ou
quando busca se relacionar com alguém, não se
contenta com encontrar uma pele na qual possa
tocar, não se contenta com ver a reação daquela
pessoa — você quer mais, sim ou não? Você quer
olhar mais profundamente, porque a sua pessoa
anseia pela totalidade dos fatores que compõem cada
realidade.

Se você fez o primeiro exercício proposto, e percebeu


a própria presença, deve ter se dado conta de que
estar presente para si é ter um certo nível de
consciência da circunstância que está vivendo agora,
estar consciente do que agora lê, a ponto de concluir
que só consegue me acompanhar porque está
presente em si mesmo enquanto faz a leitura. Você
não conseguirá entender o que escrevi se não
comparar cada coisa lida com algo que já carrega
como experiência. Se não comparar o que está lendo
com uma expectativa de totalidade que carrega
consigo mesmo, que o define, ficará preso a detalhes
como um desvio de raciocínio, um descuido
ortográfico, um estilo de escrita de que gosta ou não
gosta, ou à imagem que tem de mim.

Toda vez que você perde de vista a totalidade dos


fatores e se ausenta do momento presente, acaba se
separando do vivido e deixa escapar a oportunidade
de se relacionar comigo, que estou aqui disponível
quando escrevo estas linhas. Se, pelo contrário, você
não se perdeu pelo caminho, deve já ter chegado a
esta conclusão: há algo do seu “Eu” que, se não for
dominado, se for ignorado, vai impedir que você viva
de verdade e o conduzirá a uma vida mecanizada.
Estar intensamente vivo pressupõe clareza quanto a
esse elemento que se chama razoabilidade, ou seja,
essa sede de totalidade, essa abertura à totalidade
dos fatores. Prestem atenção: esteja presente agora,
neste momento, e diga a si mesmo se não é verdade
que quer muito entender o assunto a respeito do qual
estou falando, entendê-lo profundamente.

Moralidade e afetos
Até este ponto, espero que você esteja me
acompanhando. Tratamos já do realismo e da
razoabilidade, agora vou introduzir o último elemento:
se a pessoa quer entender a totalidade dos fatores,
ela também, em alguma medida, espera que, no
processo de compreensão dessa realidade que ela
mesma é e da realidade para a qual está voltada,
todo o seu ser — sua capacidade de percepção, suas
capacidades sensíveis, seu afeto, sua razão, sua
vontade —, absolutamente tudo o que ela é esteja
dominado por isso. A pessoa não estará presente para
si mesma a não ser que tudo aquilo que a compõe
como pessoa esteja presente, sem que nenhum fator
seja jogado fora da situação.

Em outras palavras, o que quero problematizar com


você agora é se pode ser verdade que só haverá
conhecimento verdadeiro se — e somente se — não
houver nenhum envolvimento afetivo seu com essa
realidade que você é, se conseguir arrancar de si os
erros das suas percepções, ou se conseguir evitar
todos os conceitos previamente aprendidos acerca de
si. Não, pois é impossível conhecer o que quer que
seja da realidade se toda a sua pessoa não estiver
envolvida com isso, se todas as dimensões que
compõem a sua pessoa não estiverem em jogo: a
dimensão biológica, a dimensão psicológica e a
dimensão noológica. Se cada uma dessas dimensões
não está presente como unidade, você não
conseguirá entender quem você é. Você não pode
querer conhecer algo, a não ser que essa coisa o
toque e o afete em profundidade.

Enquanto você está lendo este livro, seu campo


visual abarca mais do que as folhas do papel; você
consegue ver a parede no fundo, perceber os
movimentos dos seus familiares em casa, perceber
que em torno de você há uma série de dados
perceptivos que chegam aos olhos, mesmo que esteja
atento ao livro. Você só conseguirá entender de fato o
que são esses códigos impressos na folha de papel
que está lendo se conseguir parar de olhar para o que
acontece ao seu redor. Você só obtém conhecimento
se a sua percepção se focar no que você quer
conhecer; é preciso estar física, afetiva e
intelectualmente envolvido.
Neste ponto da leitura, você talvez tenha pensado:
“Interessante o que diz esse autor!”, ou: “Nossa! Que
texto chato!”. Tanto numa frase como na outra, o que
está em jogo é uma questão de afeto. Quem não
gostou do texto pode ter pensado: “Eu quero ver o
que tem nesse livro”, e também nesse caso foi
movido pela afetividade. O nome dessa dinâmica, na
qual tudo o que somos se envolve, é moralidade.

Não é minha intenção trazer à tona um debate


filosófico sobre os conceitos em pauta. E, por isso
mesmo, peço que também você procure suspender
seus juízos, crenças ou descrenças. Apenas tente se
identificar partindo do ponto de vista da experiência,
ou seja, compare essas coisas que digo com a sua
vida, a sua experiência. Com a vista limpa, você
entenderá que, aqui, moralidade é a expressão de
uma unidade de tudo o que a pessoa é: a vida
biológica, a vida psicológica, a vida noológica. Com a
moralidade, tudo o que a pessoa é deve estar
presente, nenhum elemento pode ficar de fora. Se
algum elemento sai ou parece precisar sair, podemos
dizer que haverá algo a que é possível dar o nome de
imoralidade, porque é como se a pessoa tivesse de
tirar de cena alguma coisa para finalmente poder
estar inteira na circunstância. E se alguma coisa tem
de ficar de fora da jogada, você há de convir comigo
que a pessoa estará incompleta na relação com
aquela realidade. A pessoa é uma totalidade e, mais
do que isso, é uma unidade que é requerida por
inteiro. A pessoa inteira tem de estar voltada para a
realidade, ela inteira deve estar lançada na relação.
Se algo sai, ela será imoral, porque a moralidade é
amar a realidade do objeto mais do que amar aquilo
que se pensa acerca do mesmo objeto. O que isso
tem a ver com a questão da unidade a que eu me
referia? Só podemos conhecer quando o fenômeno do
amor se manifesta; só podemos conhecer quando,
antes do amor, o fenômeno do afeto se manifesta; só
podemos conhecer quando, antes do afeto, o
fenômeno da percepção se manifesta. Se não
conseguimos dizer “meu amor por este objeto que se
encontra na minha frente é maior e mais verdadeiro
do que qualquer coisa que eu possa pensar a respeito
dele”, não conseguimos ser morais. Contudo, só
vamos chegar a amar alguma coisa que se deu à
nossa percepção, que nos afetou, que nos tocou de
alguma maneira, se dissermos: “Quero conhecer isto,
olhar para o objeto tentando abarcar a totalidade de
seus fatores constitutivos”.

Antes de avançar, retomemos brevemente tudo o


que foi dito até aqui: primeiro, vimos que, se
quisermos nos relacionar mais e melhor, de forma
estável na vida, precisamos entender quem somos;
em seguida, entendemos que só saberemos quem
somos na medida em que estivermos presentes para
nós mesmos, prestando atenção em nossos próprios
seres e atos no instante da nossa relação, no agora,
entendendo quais são as nossas expectativas, o que
buscamos, o que esperamos; no passo seguinte,
esclarecemos que vamos entender quem somos
apenas quando percebermos que o “Eu” é uma
urgência, uma necessidade da totalidade dos fatores,
e que não conseguimos nos contentar com uma
parcialidade, ou com a mera aparência; e, finalmente,
tratamos do fato de que só é possível nos
relacionarmos com o outro quando entendemos que
toda a nossa pessoa é solicitada na relação.

Se você não entendeu ainda que isso é o que você é,


me responda o seguinte: o que sobra para você? Se
você não percebeu que esta estrutura é o lugar sobre
o qual você deve enraizar a sua vida e as suas
relações, o que sobra para você? Sobra para você a
expectativa de um gozo estrondoso e com fogos de
artifício com a sua amante; sobra a expectativa de
um casamento que durará porque você continuará
sentindo aquele arrepio que sentiu no dia em que viu
a sua esposa ou o seu esposo pela primeira vez;
sobra a expectativa de que tudo continuará de pé
para sempre, do jeitinho que estava quando vocês
tinham 22 anos de idade; portanto, o que sobrará
será apenas decepção e a certeza de que você é
assim mesmo.

Cada vez que nos esquecemos de que a nossa


pessoa é algo que busca a totalidade dos fatores (e
percebemos isso estando presentes para nós
mesmos, no que está acontecendo, segundo todo o
conjunto de aspectos e dimensões que nos
compõem); cada vez que fechamos os olhos para
isso, sobra-nos a decepção. Se queremos viver um
relacionamento maduro, precisamos entender este
primeiro fator.

A Verdade nos relacionamentos


maduros
Tudo isso sobre o que falamos guia o nosso olhar para
algo que poderíamos resumir em uma palavra, com a
qual normalmente nos atrapalhamos muito: Verdade.
A Verdade é o horizonte para o qual deve apontar
toda a dinâmica do relacionamento maduro. O que
quero dizer quando falo de Verdade é que ela é um
anseio nosso. O que buscamos, o que mais ansiamos,
o que nossa razão mais quer é alguma coisa que diga
respeito à Verdade. É como se, quando nos
relacionamos com as coisas, quiséssemos ter acesso
a tudo. Tudo na vida tem um pouco disso, em tudo o
que estabelecemos em termos de relações, queremos
ver para além daquilo que é visto.

Olhando agora para o livro, vocês não vêem a parte


de trás dele, conseguem ver apenas uma imagem
bidimensional. Mas não é impressionante que, se eu
perguntasse se este livro é bidimensional ou
tridimensional, para responder a essa pergunta, vocês
precisariam ter a certeza e a convicção de que tem
um lado de trás que no momento não está
evidenciado? Como é que se chega a esse lado de
trás? Por que podemos chegar a esse lado de trás?
Por que, sem ver o lado de trás, podemos afirmar que
ele existe? Porque não nos contentamos apenas com
o que vemos, queremos mais do que tudo o que está
na nossa frente, queremos a totalidade que
mencionei quando tratamos da razoabilidade. A
razoabilidade, em alguma medida, é o que nos move
nesse segundo ponto: entender quão importante é
construir os relacionamentos tendo como meta, como
direção, a Verdade que buscamos.

Pense em alguma pessoa com a qual você se


relaciona. Se tudo o que você é, no relacionamento
com essa pessoa, tem as características que
acabamos de anunciar, e você só chega a ela porque
está presente a si mesmo na relação; se tudo o que
você é não sossega, não pára, não fica quieto, não
interrompe o processo enquanto não chega à
Verdade, você consegue imaginar um ponto final em
que chegue a dizer: “Ufa! Agora eu sei quem é esta
pessoa”? Você consegue imaginar a possibilidade de
finalmente dizer: “Agora eu te conheço”? Você
consegue imaginar que seja possível olhar para essa
pessoa e dizer que a conhece totalmente? Você
consegue imaginar a possibilidade de você dizer para
si mesmo: “Eu me conheço”? E todo o horizonte de
possibilidades que está aberto para você? E o que
está aberto para o outro? E todas as infinitas
surpresas que você pode ter na relação com essa
pessoa? A Verdade é o que ansiamos, o que
buscamos. Um relacionamento será tanto mais
maduro quanto mais o que nos mover na relação com
o outro for a Verdade dele, quanto mais o tivermos
como fim, ou seja, como finalidade do nosso
movimento: querer se relacionar com a sua Verdade,
com o que o outro é verdadeiramente. O que a
pessoa é verdadeiramente não é apenas aquilo que
se apresenta e se dá a você. A pessoa é todo o seu
conjunto de possibilidades.

Quando você olha para alguém, não vê só o que está


na sua frente; nem sequer deveria olhar só para o que
está na sua frente; deveria, sim, olhar para o que está
em volta; olhar para o que está escondido em volta
dessa pessoa que você vê na sua frente — as
potencialidades, o campo de possibilidades, as
latências, o que não está evidente, que é somente
latência. Porque a Verdade do outro implica em todo
um campo de possibilidades: o seu filho não é esse
moleque que faz birra, o seu marido não é esse
homem vagabundo, a sua esposa não é essa mulher
que reclama, o seu amigo não é esse cara que
gagueja, o seu colega de trabalho não é esse sujeito
que tem mau hálito, Deus não é de jeito nenhum o
arrepio que você sente quando faz determinada
oração, você não é apenas a dor que experimenta
quando a vida parece perder o sentido.

Se você quer ser maduro nas relações, entenda de


uma vez por todas que a sua busca só terminará no
momento em que você abraçar profundamente a
Verdade. O que você precisa entender é que o
fundamento de toda a possibilidade de vida
madura, estável e firme nos relacionamentos
tem as características de uma inquietude, de um
movimento constante que não pára, de uma busca
incessante, de uma expectativa que fica remoendo a
todo tempo no nosso interior e pedindo mais. Nós
queremos mais, precisamos de mais, precisamos de
uma vida estável. Entenda estabilidade, aqui, não
como um nirvana, mas como uma vida de
relacionamento em que não desabamos porque, de
repente, a pessoa com quem nos relacionamos nos
fez algum mal, não nos deu a atenção que queríamos,
não correspondeu ao nosso afeto do jeito que
esperávamos. Para vivermos uma vida madura temos
de entender que aquilo de que precisamos é a
Verdade da relação, porque no fundo o núcleo da
nossa pessoa, a coisa estável dentro de nós, aquilo
que quando vem à tona nada derruba, não se move
como se fosse um bambu ao vento e permanece
estável, sólido, firme, chama-se anseio, exigência,
sede de Verdade, sede de Sentido. Precisamos que o
nosso relacionamento responda à nossa urgência de
sentido; é urgente que o relacionamento seja vivido
no campo do Sentido. Do contrário, nos perdemos em
detalhes, nas parcialidades, na superfície, nos
acessórios.
Se você quer estabilidade, precisa entender que tudo
o que busca, tudo pelo que anseia, tudo aquilo de que
mais precisa é a Verdade dos relacionamentos, o
Sentido dos relacionamentos, a Beleza dos
relacionamentos. A sua estrutura fundamental, o seu
núcleo duro, o tutano da sua pessoa é a urgência de
Verdade.

Agora, é hora de colocar em prática tudo o que você


aprendeu. E o que eu quero propor, nas próximas
linhas, pode ser resumido na seguinte frase:
observar-se em ação. A idéia é simples. Comece a
tornar freqüente o olhar para si mesmo em ação; o
ideal é que isso aconteça no momento em que estiver
agindo, mas sei que isso é pedir demais; então,
experimente fazê-lo com alguma freqüência. Por
exemplo, você sai para ir ao trabalho e se encontra
com o seu colega, e antes mesmo de você entrar em
relação com ele, antes de começar qualquer coisa
prática, do cotidiano de trabalho, pare um segundo e
se pergunte seriamente: “Agora, neste movimento
que vou empreender na relação com ele, o que eu
desejo? Qual é o meu anseio?”. Observe-se ali,
naquele momento, sinceramente. Você pode querer
que ele responda a uma necessidade do trabalho,
porque se ele não fizer tal coisa, você não vai
conseguir também fazer a sua parte. Eu quero que
você se observe em ação e vá mais longe, vá de
forma um pouco mais exaustiva, para além dessa
resposta primeira, pragmática e verdadeira. O que
você espera desse cara, dessa pessoa com a qual
está se relacionando no trabalho? Se você se vê como
alguém que quer mais da realidade do que só o que a
aparência lhe mostra, é verdade que você se
satisfaria com o seu colega de trabalho mera e
simplesmente lhe entregando os resultados do
serviço dele? Você quer apenas isso? Você que é
sede, urgência de totalidade dos fatores, se
contentaria com isso? Olhe para você mesmo em
ação. Por que ao entrar num ônibus você
cumprimenta o motorista? É só por civilidade, por
educação? Mas por que você é civilizado? Por que
você é bem-educado? Você pode dizer que é porque
quer ser um bom cidadão ou porque sua mãe lhe
ensinou a ser assim. Então, isso é extrínseco? Essa
motivação vem de fora? O que você deseja quando
cumprimenta o motorista? Como esse relacionamento
rápido, em que são trocadas duas palavras, é capaz
de corresponder à sua exigência de Verdade nos
relacionamentos? Pare para refletir sobre o que você
realmente quer de cada uma das suas relações.

Há um pequeno recurso prático que ainda quero


ensinar: trata-se de uma espécie de diário, mas um
diário um pouco diferente do que as pessoas
costumam usar. Crie o hábito de andar com um
caderninho no bolso e faça pequenos registros, ao
longo do dia, das suas atitudes, das coisas que
acontecem, dos eventos. Não somente registros do
que chega até você, faça um registro de dados das
suas relações, de elementos que poderiam ser vistos
e confirmados por uma testemunha exterior. Portanto,
tenha objetividade no relato do fato, da circunstância,
e não se deixe levar por impressões momentâneas.
Olhe menos para a impressão e mais para o fato, olhe
mais para a realidade; esta é a proposta prática, a
motivação que você deve ter. Olhe para aquilo que
está na sua frente, o objeto — objectus (de ob-, que
significa “diante de”, somado ao verbo iectare, cujo
significado é “lançar”). Então, olhe para os eventos,
não fique olhando para as reações, para os
sentimentos causados dentro de você, para aquilo
que é subjetivo — subjectus (de sub-, que significa
“por baixo de”, somado ao verbo iectare). Você se
observará tanto mais em ação quanto mais estiver
presente para si mesmo nas circunstâncias objetivas,
nos fatos, nos eventos ocorridos, para o que está na
sua frente.

Capítulo ii
Sobre a maturidade

F alamos, no capítulo anterior, sobre o fundamento


de todo relacionamento e chegamos a vincular um
adjetivo a esta palavra em várias ocasiões: dissemos
que nosso tema é o relacionamento “maduro”. Antes
de avançarmos numa abordagem mais ampla e
cuidadosa desse tema, é prudente que nos
dediquemos a um rápido exame pessoal e, sobretudo,
nos debrucemos sobre as conseqüências da
imaturidade que identificarmos.

Premissa
O ponto de partida, nesse caso, tem que ver com a
necessidade de identificarmos as possíveis causas da
imaturidade, e penso sobretudo no lugar que ocupa a
estruturação de um modelo de relações sociais
caracterizado pela superficialidade e pelo
egocentrismo como um fator causal dos mais
importantes. Com efeito, dito de outra forma, é
preciso que você saiba que a sua imaturidade não
é só problema seu: a sua imaturidade traz
conseqüências que não terminam só em você, mas
que afetam também o tecido social que o rodeia. A
forma como você estabelece as relações, se você for
imaturo, deixa rastros no seu entorno, e esses rastros
são a criação de um padrão cultural, de
relacionamentos sociais marcados pela
superficialidade, principalmente pelo egocentrismo. A
pergunta que cada um de nós tem de se fazer é:
“Qual é a possibilidade de que a minha imaturidade
transborde para o tecido social?”. Justamente porque
você vivencia a sua imaturidade, em primeiro lugar,
naquele nível de relacionamentos mais básico da sua
vida, naquela célula do tecido social que é a família.
E, se você vive a imaturidade na família, viverá os
seus relacionamentos familiares também segundo a
lógica da superficialidade, segundo a lógica do
egocentrismo, esperando o tempo inteiro que lhe
dêem atenção.

Essa maneira de se relacionar com a família


transborda para o tecido social, e gera um movimento
de perda dos valores: os valores passam a não existir.
Na clínica, um dos trabalhos iniciais que faço com os
meus clientes é o de exploração de alguns dados da
história, da biografia do sujeito, e um ponto sobre o
qual me detenho é o da identificação dos valores que
ele recebeu de sua família. Se esse sujeito vive a
imaturidade no relacionamento familiar, é claro que,
ainda que sua família esteja construída sobre valores
sólidos, esses valores não vão lhe dizer respeito, não
vão lhe interessar e ele vai se deixar guiar o tempo
inteiro pela lógica do egocentrismo e do
superficialismo. E, então, o que restará dele será uma
forma de se relacionar marcada pelo que poderíamos
chamar de subjetivismo: que é aquele modo de agir
segundo o qual a régua usada para medir tudo o que
acontece é a subjetividade e, conseqüentemente, a
perda de uma referência objetiva em valores e em
autoridade.

Subjetivismo
Quando somos subjetivistas, inevitavelmente
rompemos com os critérios objetivos e agimos o
tempo inteiro segundo a lógica da subjetividade: “Me
agrada? ou não me agrada?”. Vemos isso quando
deixamos de adotar como critério de ação as
tradições (princípios e valores objetivos universais e
permanentes, que são sólidos e consistentes, o chão
em que pisamos).

Há gravíssimas conseqüências para as pessoas que


abrem mão de seus valores e preferem aderir a
critérios fundamentados no desejo. Muitos casais que
fazem isso começam logo a dizer que não querem ter
filhos e que sua intenção é única e simplesmente
curtir a vida. Outros alegam que este mundo é cruel
demais para que mais pessoas nele vivam, ou que
crianças geram gastos e são, do ponto de vista
financeiro, meros estorvos. Isso está errado. Quem
costuma falar assim acredita que a experiência
familiar depende de algum tipo de preparo ou de
alguma estrutura pré-existente, como se houvesse
um curso técnico ou universitário para ser pai ou
mãe. A ausência de maturidade no trato com os
relacionamentos familiares faz a imaturidade se
alastrar por todos os âmbitos, prejudicando as
famílias, a sociedade e as pessoas em suas
individualidades. É preciso dar à família a devida
atenção. Sobretudo porque hoje os casais se casam e
resolvem viver como adolescentes: unem-se em
matrimônio, todavia agem como se fossem
namoradinhos que não querem ter de cuidar dos
próprios filhos, delegando os cuidados aos avós e à
escola.

Vejamos mais de perto as conseqüências do


subjetivismo. Pense nos seus relacionamentos, na
família como você a entende. Preciso que todos leiam
este livro e avaliem as próprias vidas e que não
utilizem as ferramentas contidas aqui para julgar e
acusar os outros.

Hedonismo
Quando uma pessoa assume o subjetivismo como
norma de vida, acaba por buscar o tempo inteiro
somente o que é agradável e dá prazer. Veremos isso
nas relações familiares das mais diversas formas,
como as do casal recém-casado ou já com um tempo
de casado que resolve se separar por motivos bobos.
Já escutei, no consultório, por exemplo, um cônjuge
dizendo que queria se separar do outro porque não
agüentava seu mau-hálito. E o mais tragicômico —
para não dizer que é apenas trágico — foi o conjunto
de justificativas dadas em seguida: “Mas, veja bem,
não posso ficar com essa pessoa, porque o mau-hálito
é só um probleminha que esconde um problema
muito maior. Como é que vou viver a vida ao lado de
uma pessoa que não cuida de si mesma e que,
certamente, por conta disso, não será capaz de cuidar
de mim ou dos nossos filhos?”. Então, o prazer na
relação foi transformado em critério. Se as coisas são
agradáveis para a pessoa, ela permanece com o
outro; se são desagradáveis, dá um jeitinho de se
afastar dele ou afastá-lo de si.

O sujeito imaturo age de maneira hedonista quando


deixa a cargo de terceiros o dever de civilizar os
próprios filhos. Geralmente quem faz isso argumenta
que se esforça muito e dá o sangue para educar os
filhos ao pagar para que estudem em escolas caras.
Justificativa “nobre”, não? Isso apenas revela uma
coisa: essa pessoa não quer se envolver a sério com a
educação dos filhos. O máximo de seu envolvimento
é falar com o diretor da escola ou com os professores
como quem se dirige a um balcão de reclamações, a
fim de apresentar queixas porque seu hedonismo não
foi plenamente satisfeito. É impressionante como não
nos damos conta da nossa imaturidade nas relações,
pois sempre queremos o que é mais agradável.

Olhe para si mesmo e, tal como fizemos no capítulo


anterior, verifique se você não é hedonista nos
relacionamentos: avalie se não é mais uma dessas
pessoas que estão sempre com a expectativa de que
sejam satisfeitos os seus anseios por prazer, de que
sejam satisfeitas o tempo inteiro as suas
necessidades, de que tudo lhes seja agradável. Essas
coisas não se resumem à esfera das relações
familiares e se alastram por toda a sociedade, onde
predominam o hedonismo e o egocentrismo.
Relativismo moral
A segunda conseqüência possível é justamente o que
poderíamos chamar de relativismo moral, ou seja, a
pessoa passa a agir na vida de acordo com critérios
circunstanciais: em determinada circunstância, “tudo
bem!”; numa outra, “não!”. É o famoso “dois pesos e
duas medidas”: o tempo inteiro, o que se usa como
critério de avaliação do movimento, bom ou mau, que
irá realizar, não é a análise do bem ou do mal
segundo um critério objetivo, universal, permanente e
sólido. As pessoas dizem coisas como “eu contei essa
mentirinha para você, mas, no fundo, fui movido por
uma boa intenção, estava preocupado com o fato de
que o senhor talvez ficasse chateado com
determinada situação em que me envolvi”. Isso é um
filho falando para um pai, mas um pai ou uma mãe
também podem se relacionar com os filhos de forma
relativista, do ponto de vista moral, quando em casa
estabelecem critérios de dois pesos e duas medidas.

Quando se lida com as coisas de forma relativista,


sem um critério justo, claro, que permita sermos
justos, o que sobra, evidentemente, é um critério
relativo à circunstância, a um detalhe do
relacionamento, a alguma lógica de maioria: “Todo o
mundo pensa assim, por que comigo será diferente?”.
É como o filho que chega em casa e diz: “Pai, eu
quero um iPhone 13”. O pai pergunta: “Por que,
filho?”. E o filho responde: “Porque todos na escola
têm um”. Então o pai, para evitar dores de cabeça,
movido pelo hedonismo, responde: “Ah, então está
bem, lhe darei um iPhone”. O critério da “lógica da
maioria” é relativista. Toda vez que somos
subjetivistas, hedonistas ou relativistas
estabelecemos como critério alguma coisa que é
sempre circunstancial: mudam-se as circunstâncias,
muda-se a lógica da maioria, portanto mudará
também o critério de avaliação.

Superficialidade/frivolidade
Finalmente chegamos ao que se costuma chamar de
superficialidade, ou, usando uma outra palavra mais
dura, frivolidade: nesse ponto, passa-se a estabelecer
as relações segundo a lógica do que é frívolo (palavra
originada do verbo latino friare, que significa quebrar
em pedaços, indicando exatamente a inutilidade e
insignificância dos pedaços). O homem e a mulher
frívolos são as pessoas que vivem o cúmulo da
superficialidade: olham para os pedaços da realidade
que mais chamam atenção, o que lhes interessa são
efemeridades, coisas que vão e vêm sem jamais se
fixar. Ou seja, trata-se aqui de um tipo de
relacionamento familiar onde está em jogo fazer ou
ter alguma coisa, e não ser algo. Trata-se de uma
atividade incessante e sem proveitos.

A pessoa frívola não se apega a nada de forma


profunda, não cria raízes. Usando uma expressão
empregada num certo grupo de intelectuais, é tudo
rizomático, superficial como musgo — bateu o sol,
seca: uma pessoa frívola é alguém que, se tomar um
solzinho um pouco mais forte, seca, fica marrom,
cinza, perde a cor; tudo só funciona se estiver úmido,
se estiver molhado, gostoso, se for agradável. Hoje
vemos famílias serem construídas segundo a lógica
rizomática, do voluntarismo, na qual todo o mundo
faz um monte de coisas, deseja ter um monte de
coisas e ninguém quer ser nada. Se na célula do
tecido social essas três coisas estão presentes, você
há de concordar comigo que a mesma coisa estará
presente na vida social. E qual é a conseqüência
disso? Pense bem, se a pessoa age assim nos
relacionamentos com aqueles que lhe são mais
próximos, que são a sua família, o que lhe sobra na
vida como motivo e razão para se mexer? Sobra
apenas o que ela quer, o que deseja, o superficial e
agradável. Assim, tudo o que é mais exigente e tudo
o que pede mais empenho e energia é abandonado. O
sentido da vida se esvai, vão-se embora quaisquer
possibilidades de se ter bons relacionamentos. Se a
pessoa vive o tempo inteiro esperando uma resposta
aos próprios desejos, o que sobra é uma vida
desprovida de sentido.

A imaturidade nos relacionamentos gera


ausência de sentido nesses mesmos
relacionamentos, e a ausência de sentido nos
relacionamentos gera falta de sentido na
própria vida. Então, o resultado será um sujeito que
fica o tempo inteiro esperando a satisfação da opinião
pública, alguém que se deprime e fica ansioso porque
tem de defender a todo custo uma imagem; será
alguém que vive um angústia existencial e não
consegue ficar dois minutos em silêncio diante de
outra pessoa. Se você quer que a sua vida ganhe
plenitude de sentido, comece a cuidar da sua
maturidade.
Para amadurecer
E como fazer isso? Para a pessoa madura a
experiência do tédio e da rotina, com toda sua
repetição, não resume a vida nem dá seu sentido
último. Você logo entenderá o que estou dizendo.
Prossigamos.

Certamente, caro leitor, você sabe muito bem o que


é essa experiência de rotina e de tédio, que é igual
para todos os seres humanos. Os dias de todas as
pessoas nesta terra são marcados por ações repetidas
e obrigações que devem ser cumpridas: levantar,
arrumar a cama, escovar os dentes, tomar banho.
Para quem é casado, tem sempre presente também a
rotina do casal, a dos filhos. Uma pessoa madura não
vive a vida de um jeito diferente, sem rotina e sem o
risco do tédio. A questão é que, para a pessoa
madura, a rotina e o tédio não são a palavra final e,
tal como qualquer outra pessoa, também a madura
pode fracassar, ter experiências de mal-estar,
desanimar-se. Ou seja, maturidade não é sinônimo de
coisa irretocável, a pessoa madura não é infalível.

A grande diferença é que a pessoa madura aprende


de todas as fontes possíveis, sobretudo do que ela
vive no cotidiano, então mesmo os erros são
elementos que permitem a ela um aprendizado.
Podemos até pensar no corolário: para a pessoa
madura, de certa maneira, na medida em que
ela é capaz de

absorver ensinamentos de todos os meios


disponíveis, há sempre presente alguma
novidade na vida. Sim: para a pessoa madura
existem o tédio, a rotina, os erros e fracassos, como
para quaisquer outras pessoas; a diferença é que,
para ela, essas coisas não constituem toda a imagem
da vida humana, são apenas aspectos dela.

Características da pessoa madura


Antes de começar a falar da primeira condição para a
maturidade, quero enumerar as características da
pessoa madura. Mas veja que não se trata de uma
somatória de características: “Se tenho três das sete,
sou maduro”. Não! Trata-se de uma descrição de
elementos ideais; são pontos para os quais você deve
mirar no momento em que decidir trilhar o caminho
da maturidade nas relações.

Integração

Na pessoa madura, os componentes da vida estão


todos integrados. E aqui falamos de pensamentos,
sentimentos, ações, quereres e desejos; das
dimensões biológica, psicológica e noológica (para
usar a descrição antropológica feita por Viktor Frankl).
As ações dessa pessoa jamais são mecânicas ou
reativas.

estabilidade

Outra característica é a estabilidade. Com isso nos


referimos a uma vida interior estável. A pessoa
madura tem vida interior, o que pode ser constatado
de diversas maneiras: pela forma como ela fala e
desenvolve o seu raciocínio, pelo modo como age.
Você vê isso justamente quando consegue perceber
uma integração entre as várias dimensões, porque o
que confere a integração é uma vida interior estável.
Esse sujeito maduro é alguém que gasta tempo com a
própria vida interior, que pára diante dos problemas a
fim de resolvê-los.

Consciência dos próprios limites

A pessoa madura também é aquela que sabe muito


bem quais são os seus próprios limites, de onde pode
tirar suas melhores e mais consistentes energias para
a realização das tarefas que precisa realizar. Ela
percebe que a vida é feita desses altos e baixos.

Conhece o humano em si

As pessoas maduras também pensam nas outras de


maneira justa, reconhecendo nelas as características
propriamente humanas, sem as condenar, por
também conhecerem-se a si mesmas. A justiça dos
juízos não é medida pelo efeito que o juízo teve sobre
o outro (pois não estamos falando de agradar e
afagar com elogios), mas sim pela forma como a
pessoa madura percebe que o juízo descreve
adequadamente o outro e a situação, mesmo que
toque numa ferida. No entanto, veja que interessante:
toca numa ferida mas não diz que ela é tudo; pelo
contrário, levanta, ergue a pessoa, coloca-a para
cima, tira o imaturo do caminho desandado e coloca-o
nos eixos. O convívio com a pessoa madura é sempre
benéfico, pois ela como que corrige com o olhar, com
a emissão de juízos, os erros daqueles que se
encontram ao seu redor. Ela consegue ver as
potencialidades do outro.
segurança e serenidade

Podemos dizer também que a pessoa madura é


serena, não porque esteja sempre com cara de santa,
com uma auréola na cabeça. Pense no rosto de
pessoas que se divertem num carrinho de montanha-
russa, por exemplo: aqueles não são rostos serenos.
Ali não há uma experiência de serenidade. É claro que
isso é uma metáfora, mas na pessoa madura
percebemos essa serenidade, porque ela é segura de
si, sabe o caminho que escolheu e como encarar as
questões da vida.

Compromisso e prudência

O sujeito maduro sabe que toda tarefa exige uma


determinada quantidade de esforço e empenho
pessoal para ser realizada. O trabalho é um
compromisso que nos exige por inteiros. Quem é
maduro, para além de começar bem o trabalho, é
constante até o fim. Não podemos olhar para uma
pessoa que começou alguma coisa e não terminou e
dizer: “Tem maturidade aqui!”. Não faz sentido
atribuir maturidade àquele tipo de pessoa que enrola
no trabalho e empurra tudo com a barriga; esse é o
famoso “ansioso improdutivo”, que deixa para a
última hora o seu dever, até não poder fazer mais
nada; tem uma cobrança no trabalho, mas não
entrega o que precisa entregar. A pessoa madura
sabe a intensidade de que precisa para começar, a
quantidade de energia necessária para ser constante
e, sobretudo, entende como é importante se dedicar
laboriosamente para que a tarefa seja terminada da
melhor maneira possível. O homem maduro é alguém
que faz do seu trabalho uma obra de arte. Alguém
que quer sempre cumprir bem o seu trabalho, de
modo a não apenas entregar um produto que esteja
em conformidade com o que foi pedido — entregará
um produto que tenha certo ar de obra de arte,
mesmo que seja um engenheiro.

prontidão para servir

E, finalmente, a última característica da nossa


enumeração: o sujeito maduro está sempre aberto
aos outros, sempre disponível e disposto a servir.
Agora você consegue entender um pouco melhor toda
a insistência de tantas pessoas para que estejamos
dispostos a servir aos outros. Esse é um sinal
bastante evidente de maturidade. Se você quer
amadurecer, comece a colocar em prática o já famoso
adágio repetido pelo Dr. Italo Marsili: “Trabalhe,
sirva, seja forte e não encha o saco”. Essas
quatro palavrinhas-chave são fundamentais no
processo de amadurecimento.

O caminho da maturidade
Avancemos, voltando um passo: qual é, então, a
primeiríssima condição necessária para que alguém
realize um trabalho que conduza ao amadurecimento?
A primeira condição para que possamos todos
amadurecer é uma disposição para aprender da
própria experiência. Mais do que aprender,
portanto, de um certo conteúdo conceitual qualquer.
Entenda: se você tem uma disposição para aprender
um conteúdo conceitual, mas não transforma esse
conteúdo em experiência, pode saber de cor e
salteado, de trás para frente a obra completa de
Platão, saber tudo sobre Tomás de Aquino, ter lido o
Catecismo da Igreja Católica de trás para diante,
saber toda a história da filosofia, e ainda assim não
ser uma pessoa madura; saberá apenas, na melhor
das hipóteses, repetir um monte de palavras vazias,
um monte de moralismos, e convenhamos, isso nada
tem que ver com maturidade.

Vejamos alguns exemplos que, embora banais, nos


ajudam a entender o assunto mais rapidamente.
Pensemos em uma criança. Ela não tem lastro
histórico nenhum e seu conhecimento em geral virá
da experiência. Sempre me lembro de um
acontecimento, ao pensar nisso: quando meu filho
mais velho nasceu, nós morávamos em um
apartamento muito pequeno. Nessa época tínhamos
uma cozinha minúscula e eu, que sempre gostei de
cozinhar, passava boa parte do meu tempo lá. Pois
bem: meu filho estava ainda aprendendo a andar,
entrou na cozinha enquanto eu fazia alguma coisa no
forno, então o fogão estava quente. O pequeno foi
direto com as duas mãozinhas até o forno e de pronto
se assustou com o fato de que o forno estava quente.
Nós já havíamos falado tantas vezes para ele não ir
até a cozinha, para não fazer aquilo… Guardem o
exemplo para que vocês possam entender. Por mais
que disséssemos para ele: “Não vem, vai queimar! O
forno quente machuca!”, a falta de lastro histórico
não lhe permitia pura e simplesmente compreender
isso de forma conceitual.

A pessoa precisa encarnar algumas coisas,


experimentá-las na pele, para que possa chegar a
algum tipo de juízo. É claro que um menino de dois
anos de idade não faz grandes juízos filosóficos, mas
o fato é que, depois desse acontecimento, sempre
que meu filho entrava na cozinha enquanto
estávamos mexendo no forno, ele se aproximava com
as costas das mãozinhas viradas para onde se
encontrava o fogo, a fim de ver se estava quente
antes de se aproximar, mas de forma mais segura. Ele
“amadureceu”, aprendeu com a própria experiência.

Aprender com a experiência não é só aprender como


o meu filho aprendeu, mas é também adquirir
conhecimento indiretamente, das pessoas que vieram
antes de nós. Se a pessoa consegue aprender certas
coisas e tem consciência histórica, é claro que ela vai
agir na vida mais facilmente, iluminada pelas
experiências daqueles que a antecederam e que
servem de guias para os seus atos e gestos. Eis aqui
um fator importantíssimo.

Há também um outro jeito de olhar para essa mesma


questão, que é pela capacidade que temos de escutar
as pessoas mais velhas. Quem é que ainda as escuta?
Tudo bem que temos um problema de base, porque,
hoje, escutar as pessoas mais velhas não é
necessariamente escutar pessoas maduras, que de
fato tenham aprendido com as próprias experiências.
Então ficamos como ostras que vivem coladas em
pedras e delas se aproveitam ao máximo, sem tomar
consciência de nada.

Se nem com as nossas experiências conseguimos


aprender de maneira automática, o que dirá aprender
com as experiências alheias, daqueles que são
próximos a nós ou que nos antecederam e
contribuíram com a tradição. Quero que você termine
esta leitura entendendo que, se intenta amadurecer,
vai ter de se dispor a aprender com a experiência,
tirar lições de suas vivências, aproveitar-se das
próprias faltas e delas parar de reclamar. Errou?
Fracassou? Levante-se, veja onde errou, aprenda
com o erro.

Para que isso realmente aconteça, você já deve ter


chegado a uma conclusão: é preciso cultivar a vida
interior. É com esse cultivo que cada erro seu se torna
objeto de reflexão e de análise, de auto-avaliação.
Você olha para si mesmo e reconhece: “Errei!”.
Precisamos aprender a fazer isso. Se não tivermos
vida interior, não olharemos para os nossos erros,
colocaremos a mão em todos os fogos que
aparecerem em nossas vidas e não aprenderemos
nunca. Quem quer amadurecer precisa cultivar em si
uma disposição que o obrigará a se examinar, a se
auto-avaliar tanto quanto for possível. Em tudo isso
que tratei com você até agora, há uma palavra que
esteve presente todo o tempo: aprender. A pergunta
que você pode estar se fazendo agora é: “Como é que
eu sei que aprendi? Como é que eu, que vivi uma
determinada situação, sei que aprendi?”. Você saberá
que aprendeu porque, ao final da experiência, tendo
passado por ela, dirá alguma coisa acerca do que
viveu. E, mais uma vez, trata-se de uma luta contra
uma tendência que todos nós temos hoje. Existe uma
dinâmica de acharmos que aprendemos porque
dominamos um conceito, fruto da educação formal
pela qual a grande maioria de nós passou, que nos
deixou como legado a idéia de que sabemos que
sabemos por que tiramos uma boa nota na avaliação.
No entanto, esse “dizer alguma coisa acerca do que
viveu” chama-se, com uma palavra, juízo. É a um
juízo que devemos chegar. Grosseiramente falando,
poderia definir essa palavra como uma conclusão,
que se pretende sólida e universal, a respeito de
alguma coisa experimentada.

Para que isso ocorra — ou seja, para que você


chegue a um juízo —, mais do que querer explicar
cada experiência vivida, será necessário deixar uma
pergunta em aberto: “O que, no fundo, foi isso que
experimentei?”. Só assim — “no fundo” —, depois de
cada experiência, se consegue aquela disposição de
aprendizado, que, nesse caso, se evidencia quando a
pessoa consegue dizer o que houve de sólido,
universal e permanente em sua experiência. Nunca se
esqueça das experiências dos outros, do que a
tradição deixou como legado. Você terá ao alcance de
sua mão, a partir desse momento, algo como uma
estaca sobre a qual poderá se apoiar — e ela não será
externa a você, mas estará em seu interior. Essa
estaca, o juízo, precisará estar sempre à mão, e quem
é que preserva sua solidez e permite retomá-la
quando for necessário? Onde se preserva esse
aprendizado? Na memória: a memória é o custódio, é
a guardiã das nossas experiências. E memória
não é o mesmo que lembrança. Quer ver? Quando
você diz a alguém: “Olha que pôr do sol bonito!”, se a
pessoa a quem você se dirige está verdadeiramente
interessada, vai acabar lhe perguntando por que você
diz que é bonito; você, então, se verá diante da
obrigação de emitir um juízo. Poderá dizer, nesse
caso: “Porque me lembra como a vida é transitória e
como, ao mesmo tempo, essa transitoriedade não a
define. O pôr do sol é bonito porque me lembra que o
dia se finda e eu sou obrigado a fazer um exame a
respeito do que vivi, a entender que esse declínio do
dia é um sinal da minha morte, mas que amanhã terei
uma nova chance”. Quando você diz uma coisa como
essa, o que está dizendo? Está dizendo o que
aprendeu. Mas quem o escuta pode dizer: “É verdade!
Eu nunca tinha parado para pensar nisso”. E aí, no dia
seguinte, essa mesma pessoa a quem você se dirigiu
vai até a praia para se sentar na areia e ver o pôr do
sol, puxa um amigo que está ao lado dela e diz o
seguinte: “Você já prestou atenção em como isto é
bonito?”. E, de repente, o outro começa a dizer: “É
verdade!”. Percebe o que aconteceu aqui? Tudo girou
em torno de um juízo iluminado por razões claras.
Isso é aprender com a experiência e chegar a um
juízo, que inevitavelmente fica custodiado pela
memória. A memória guarda isso, ela é o anjo da
guarda das nossas experiências, dos nossos juízos,
dos juízos que nascem da experiência. Uma
lembrança, a nostalgia daquele momento efêmero no
fim do dia anterior, com seu amigo, não o teria
movido a, no dia seguinte, dizer o que aprendeu. Uma
lembrança dura até você chegar em casa e encontrar
sua esposa de cara feia, seu filho chorando ou o
marido cansado e reclamando. Portanto, caro leitor,
se você quiser ter vivas para você as experiências de
seus juízos, alimente a sua memória, alimente-a
profundamente. A memória aqui é nada mais nada
menos do que essa coisa que nos move. A lembrança,
não. Quando a pessoa vive as coisas sem chegar aos
juízos, ela vive tudo esteticamente, fica só com o
sentimento de nostalgia. Isso é lembrança, não vale
de nada, não ensina nada. O que ensina é o juízo, o
que a memória preserva, porque o que é guardado na
memória sempre implica em uma mudança de
direção. Mas atenção: não use a memória como
recurso para justificar suas atitudes, por exemplo,
dizendo que agiu de uma forma ou de outra porque a
situação ou a pessoa o irritaram. Ao proceder assim,
você se afunda ainda mais na rede das sensações. A
memória não preserva sensações difusas, não guarda
sentimentos, que sempre são circunstanciais — ela
custodia juízos.

Proponho um exercício. Pense nas situações em que


você normalmente lançaria mão de uma justificativa
como a que exemplifiquei no parágrafo anterior.
Agora, tente inverter um pouco a posição que você
sempre adotou: em vez de identificar no outro a
causa da sua irritação, pergunte-se, por exemplo, se
essa mesma situação não fala de você, de algo em
que você tenha errado, do seu jeito de agir ou reagir.
Coloque-se na posição de responsável, de
protagonista de sua própria vida. Você não está na
vida para reagir — como um bicho — ao que
acontece, mas sim para agir como pessoa. Todos
somos indivíduos humanos, portanto temos de ser os
protagonistas de nossas vidas. Dessa forma, podemos
repetir, quase como uma máxima, que “a pessoa
precisa aprender com o resultado das próprias
vivências”. Olhe para todo o conjunto, tente fazer um
exame de consciência da vida como um todo,
pegando alguns elementos que são, sobretudo, os
que mais o incomodam. A proposta é que você
aprenda com o que experimentou. Conclua essa
análise com um juízo que lhe permita constituir um
lastro mais sólido para a sua própria identidade, de
maneira que — continuando com o exemplo da ira —
você possa chegar à conclusão de que, na verdade, o
problema talvez seja a sua impaciência, que advém
da soberba de querer que os outros correspondam às
suas expectativas. Nesse ponto você chega à
experiência do juízo.
Capítulo iii
O Zelig que há em você

N otema
último capítulo fiz uma pausa na reflexão sobre o
desta obra. Mas veja, não foi uma pausa sem
razão, e espero que você tenha entendido. Antes de
avançar no caminho dos relacionamentos, não tenha
dúvida de que um problema se impõe, em primeira
pessoa, para você: o seu amadurecimento. E é bom
que você se comprometa com essa tarefa o mais
rápido possível. Trataremos agora da maturidade nos
relacionamentos.

Antes, uma premissa


Normalmente a imaturidade é caracterizada por um
certo movimento guiado pelo que é externo ao
sujeito. Poderíamos resumir isso em uma expressão
simples: o imaturo é aquele que segue a “filosofia do
próprio gosto”. Ele está o tempo inteiro agindo de
acordo com as próprias birras e sensações. Essa idéia
de seguir a filosofia do próprio gosto está presente na
obra de Viktor Frankl: ele não usa o conceito de
maturidade e imaturidade, mas fala que muitas vezes
acabamos sendo conformistas. O imaturo é uma
pessoa que se conforma muito fácil e rapidamente
com as demandas externas, a tudo aquilo que é
dinâmica externa, àquilo que o seu entorno pede,
solicita dele. É uma pessoa que está o tempo inteiro
atrás das imagens que os outros constroem, das
imagens que faz de si mesmo, das expectativas que
cria acerca do que as pessoas esperam dele, ou seja,
está o tempo inteiro querendo ser agradado e
agradar, se conformar ao que se espera dele — é
movido pelas próprias aspirações sentimentais.

O Zelig
É interessante ver uma imagem clara, caricatural
talvez, de alguém que é movido pelo padrão descrito
acima: alguém movido por aspirações baixas,
superficiais, planas. O cinema criou um personagem
que é o verdadeiro paradigma disso tudo, Zelig, que
aparece num filme de mesmo nome, dirigido pelo
cineasta norte-americano Woody Allen.

O filme conta a história de Zelig, “o homem


camaleão”, uma pessoa que não tem identidade. O
personagem carece de personalidade, não tem
espinha dorsal. Trata-se de uma pessoa semelhante a
um slime, que toma a forma que você der para ele; se
você o enfia em um copo quadrado, ele fica
quadrado, se o enfia em um copo redondo, ele fica
redondo, se o achata no chão, ele fica achatado — é,
tal como o diz G. K. Chesterton, um invertebrado. Ao
longo da comédia, o personagem mostra quem é, ou
melhor, quem não é, porque a dinâmica se repete,
cena após cena: Zelig começa a conversar com uma
pessoa e, aos poucos, se torna aquela pessoa. A
aparência dele se modifica e ele fica igual à outra
pessoa. Essa é a vida dele, que está em constante
mudança. O vento sopra para lá e ele vai para lá, o
vento sopra para cá e ele vem para cá.

Trata-se de um personagem que não tem substância.

Assim é o imaturo: escravo do politicamente correto,


é determinado o tempo inteiro pela tirania do que se
espera que seja a melhor atitude a assumir na vida. É
conformado. Encontrar alguém assim é
desconcertante. Todo mundo que já teve contato com
alguém assim vai se dar conta da absurda dificuldade
para entabular algum diálogo, porque se trata de uma
pessoa que sempre tem na ponta da língua o que se
espera que ela diga, alguma frase pronta.

Mas nos libertamos disso? De novo, o Zelig nos


apresenta uma solução bastante interessante para o
problema da imaturidade. Na história do Zelig, ele
começa a se envolver com sua psiquiatra, Eudora
Fletcher, que o acompanha e passa a ser como uma
consciência externa dele. Ela passa a estar presente
todo o tempo onde o Zelig está, justamente para
ajudar as pessoas a entenderem a natureza desse
homem camaleão. Nessa relação, de repente Zelig se
descobre apaixonado. Este ponto nos permite avançar
e chegar a uma solução para o problema da
imaturidade concebida como uma relação com a vida
marcada pelo conformismo.

Qual é a solução? O que é preciso começar a


conceber como saída desse processo é justamente
uma identificação clara da própria personalidade, e
isso pressupõe a presença para si mesmo, de que já
falamos. Não é por meio de nenhum tipo de
meditação sobre sua natureza profunda que a pessoa
descobrirá quem de fato é. Ela só saberá quem é
quando surgirem perguntas, e não quaisquer
perguntas. Há uma pergunta em especial que precisa
estar presente para nós — e aqui está não só a saída
da imaturidade como também um exercício para todo
mundo, para que, em alguma medida, cada um de
vocês possa, identificada a própria imaturidade,
empreender um caminho rumo à maturidade. Vale
dizer que é um caminho que não pára. Sempre haverá
alguma questão por responder. E que tipo de
pergunta dispara o processo que nos permite
identificar, com um pouco mais de clareza, a
personalidade? Estamos falando de um tipo de
pergunta fundamental: para que eu vivo? Qual é a
razão de ser da minha vida? Se não nos debruçarmos
séria e concretamente sobre esta pergunta — e
quando digo concretamente quero dizer na
circunstância que somos chamados a viver, isto é, no
trabalho, na relação com a família, na relação com a
esposa, com o esposo, com os filhos, com os amigos
etc. —, não chegaremos à maturidade. Então
comecemos por esse ponto, porque, se o conformista
é carente de identidade, o ponto de partida para
uma experiência de maturidade é justamente a
clareza de compreensão da sua própria
identidade. Porém a pessoa jamais saberá qual é a
sua identidade se não refletir sobre o sentido da
própria vida (um sentido que precisa estar presente
em cada coisa que ela vive, porque, do contrário, ela
estará à mercê dos ventos, do próprio gosto). Você
não deve pensar: “Estou lendo o que o Pacheco
escreveu, e não me agrada; por isso, vou abandonar a
leitura, não gostei disso que ele escreveu”. Isto é
estar à mercê, o tempo inteiro, do próprio gosto.

Pois bem, vimos que um meio eficaz de se lutar


contra a imaturidade é fazer-se perguntas a respeito
do sentido da própria vida. Por que o Zelig nos aponta
uma saída? Porque essa pergunta acerca dos motivos
da existência tem um pressuposto: você jamais será
capaz de olhar para si mesmo em profundidade, a
não ser que alguém o faça e identifique, no meio
daquela personalidade de slime, de gelatina que se
conforma a tudo, algo de sólido, que mostre a
essência da sua personalidade. Tenho certeza de que
você sabe identificar na própria vida, na narrativa da
sua história — e, se não sabe, precisa saber —, como
é a experiência de ser olhado dessa maneira. Esse
olhar é amoroso. Quem olha para nós assim, para
além da nossa imaturidade, e identifica um núcleo de
solidez, é alguém que, quando nos olha, o faz
amorosamente, para além da capa de superficialidade
que assumimos como nossa própria identidade — é
um olhar que não está preso à superfície. Eis o que
nos ensina Zelig.

O que acontece no envolvimento de Zelig com a


doutora Fletcher é que ele, aos poucos, descobre em
si mesmo algo absolutamente inusitado naquela
personalidade camaleônica que havia assumido para
si: o amor. Ele descobre que é amado e que pode
amar. Isso faz com que ele, de repente, no meio
daquela série infinita de falsificações da própria
identidade, descubra que existe uma verdade nele
mesmo, algo que é substancial, sólido, consistente e
que o eleva. Uma verdade que surge quando ele
percebe que é amado. Nesse ponto o Zelig se vê
obrigado a dizer: “Não consigo mais sustentar uma
máscara, não é mais possível sustentar uma máscara
o tempo inteiro”. Ele se vê obrigado a deixar emergir
exatamente a sua espinha dorsal.
Tirando conclusões
Temos então um primeiro problema, que é: se ser
amado é uma condição para que eu saiba quem sou,
alguém poderia objetar dizendo que não é amado por
ninguém e que isso, para ele, torna impossível o
amadurecimento. Na nossa vida, talvez não tenhamos
experimentado o amor de certas maneiras. Caso você
tenha, para entender se de fato é amado, como
referência apenas a sua expectativa, certamente dirá,
em algum momento, que não foi amado, e, portanto,
encontrará uma justificativa para a própria
imaturidade. Tudo bem, isso pode até ser verdade.
Partindo disso, precisaríamos refletir mais
profundamente e tirar conclusões importantes sobre
as nossas próprias biografias.

Nós somos
No início da nossa existência, da nossa vinda à
existência, não tivemos a escolha de ser ou não ser.
Não, ninguém nos deu uma escolha. Alguém nos
conferiu o ser, que não foi de nossa invenção. O nosso
ser é um dado com que nos deparamos em um
determinado momento da nossa história, e a nossa
atitude, em relação a ele, é de reconhecimento.
Você precisa reconhecer que não se dá por si mesmo,
que sequer pode decidir acordar amanhã. E,
certamente, essa experiência de não se construir ou
se definir já é algo que tem força suficiente para que
você, em algum momento, possa dizer com todas as
letras: “Sou amado e fui amado”. É verdade que isso
muitas vezes não é suficiente, e é preciso, de fato,
contar com o olhar de uma Eudora Fletcher para que
tornemos esse “amor primordial” uma memória. Esse
amor primordial é o d’Aquele que nos deu o ser e
disse: “Eu quero que você exista. Para mim, é
bom que você exista”. Amar é afirmar exatamente
isso para alguém.

E o fato incontestável é que já houve uma afirmação


como essa, Alguém já afirmou isso para nós. Na nossa
vida é preciso encontrar rostos, olhares como o de
Eudora Fletcher para Zelig. Depois desse olhar, somos
despertados com a pergunta: “Quem sou eu? Para
que vivo? Para que cada uma das circunstâncias me é
dada?”.

Responsabilidade pessoal
Mas avancemos. É preciso lembrar que o
conhecimento não é nada se não se transforma
em algo que nos modifique. Certamente é muito
louvável a sua preocupação com a própria formação
intelectual, mas precisamos entender que esse tipo
de formação, se não servir para que de alguma forma
sejamos transformados, será inútil. De nada serve,
por exemplo, ler esta obra ou outras tantas e assistir
a milhares de filmes para formar o próprio imaginário
e construir o edifício de uma intelectualidade, se tudo
não passar de um amontoado de tijolos desconexos.
Você pode fazer a si mesmo as perguntas mais
cruciais, estudar os livros mais importantes da
literatura universal e o que há de mais consistente
em termos de pensamento da história humana, mas,
se não se engajar nesse projeto de amadurecimento,
tudo terá sido em vão. E você vai se angustiar ainda
mais. Aqui começa a sua responsabilidade.

Realismo
E por falar em angústia, acredito que seja importante
pensar em outra conseqüência trazida pelo que
dissemos no início do capítulo: esse sentimento tão
freqüentemente encontrado entre nós é auto-
referente, ou por outra, a pessoa se vê como o centro
do mundo e como medida de todas as coisas. Você
pode diagnosticar quão maduro ou imaturo é pelo
nível do seu realismo, pela capacidade de avaliar as
situações objetivamente.

O realismo é um fator dos mais importantes quando


se trata de maturidade. O grande problema do
imaturo é que ele se prende a um certo conjunto de
ideais que carrega consigo, geralmente fantasiosos.
Não estamos falando de prescindir do idealismo
(palavra que, aliás, estou usando ao modo do senso
comum, sem vinculação com correntes filosóficas),
mas de aliá-lo ao realismo, porque se fôssemos
realistas crus, sem nenhum idealismo, seríamos como
Macunaímas, pessoas que não querem nada além de
aproveitar o momento e fugir das dificuldades. E se,
pelo contrário, formos só idealistas, sem nenhum pé
na realidade, acabaremos nos transformando em Dom
Quixotes que enfrentam mundos fantasiosos sem
olhar para a realidade propriamente dita.

E agora?
Com o que você leu até aqui e com o diagnóstico —
talvez angustiante — a que talvez tenha chegado,
imagino que deva estar se perguntando como é que
pode usar essas conclusões a seu favor, para
amadurecer e construir relacionamentos mais
estáveis, e que queira saber o que fazer para deixar
de ser auto-referente como o Zelig, a fim de assumir
uma perspectiva mais realista e objetiva.
Continuemos.

A paciência
O primeiro recurso que podemos usar para aprender a
ser realistas chama-se paciência. Porém, preciso que
você esqueça as referências à filosofia moral e
enfoque o assunto por seu lado existencial. É assim
que você deve entender a paciência: como uma
virtude externa, que a pessoa toma para si de
maneira um tanto quanto alienada. Quero que você
entenda a paciência como um recurso que lhe
permitirá se encaixar mais adequadamente na sua
relação com as circunstâncias, com o mundo, com
tudo e todos que o rodeiam.

É certo que podemos descrever a paciência como a


capacidade de sofrer com heroísmo as vicissitudes da
vida, mas o que mais interessa é o seguinte: se
entendermos a paciência como algo que nos permite
mais exatidão na maneira de avaliarmos o que nos
acontece, como um certo rigor na capacidade de
avaliação das circunstâncias, inevitavelmente
compreenderemos que a demora na realização dos
nossos anseios faz parte da vida. Um olhar preciso
sobre a vida nos ensina muito rapidamente que não
dá para ficarmos esperando que as coisas aconteçam
segundo as nossas vontades e segundo o projeto e os
tempos que estabelecemos. A paciência nos impõe
que aceitemos a existência de um tempo para que as
coisas aconteçam, e que as outras pessoas também
têm seus tempos. Não podemos querer que o outro se
encaixe perfeitamente nos nossos projetos. Saber
esperar nos torna, existencialmente falando,
pacientes. É claro que este é um exercício e, portanto,
uma virtude; e esse foi o motivo por que insisti que
não podemos conceber as virtudes apenas como
tábuas de valores ou conjuntos de regras a serem
obedecidas cegamente. É preciso entendermos o
exercício das virtudes como algo que encarnamos e
que nos modifica.

Quem trilha um caminho na vida necessariamente


tem de compreender que é impossível chegar à
maturidade e deixar de ser um escravo das próprias
fantasias sem essa paciência histórica e a
compreensão de que as coisas podem demorar a
acontecer. Temos de entender que não é assim que a
vida se desenrola. Nossos tempos não são os tempos
de Deus.

A prudência
O segundo recurso necessário para se desenvolver o
senso de objetividade é a prudência. Segundo a
definição aristotélica, é a capacidade que temos de
emitir um juízo acertado sobre o que se deve fazer
aqui e agora. Portanto, a prudência exige uma
capacidade de avaliação. Ao falar de paciência eu
também falei dessa capacidade, certo? Contudo,
entre essas duas virtudes há uma diferença: a
paciência tem algo de passividade, ao passo que a
prudência é prática, tem um quê de atividade que se
caracteriza pela capacidade de emitir juízos
acertados no aqui e agora. Resta saber o que é um
juízo acertado. Para tanto, devemos falar de
algumas características: em primeiro lugar, um juízo
será acertado se nascer da nossa disposição a
aprender com as nossas próprias experiências; em
segundo lugar, será caracterizado também pela
perspicácia, ou seja, por uma capacidade de estar na
circunstância e, sagazmente, avaliar o que está
acontecendo, com flexibilidade para se adaptar e não
ficar enrijecido em uma posição que, normalmente, é
ansiogênica e mais se parece com o medo do que
com a prudência; uma terceira característica do juízo
prudente é a circunspecção, que não é outra coisa
senão a capacidade de olhar (specere) ao redor
(circum) e, assim, ser previdente, quebrando as
pernas de suas expectativas e projetos mesquinhos;
e, finalmente, podemos dizer que um juízo prudente é
o que nasce ou pode nascer da disponibilidade de
pedir e aceitar conselhos de pessoas mais sábias e
experientes — ou seja, é uma virtude que depende da
humildade.

A aceitação
Por fim, para aprendermos a ser objetivos,
precisamos aceitar o que somos, isto é, entender
nossas limitações, que é pequena a nossa capacidade
de avaliação e que nossas opiniões no mais das vezes
são falhas.

Em geral, o brasileiro acha que é especialista em


tudo, de futebol a religião, passando por leis,
medicina e saúde pública. Está sempre dando o
famoso pitaco, mesmo quando sua opinião não é
pedida. No entanto, esse problema é mais amplo e
não se restringe apenas aos brasileiros, afetando a
todas as pessoas imaturas: acreditar que as próprias
opiniões, em especial aquelas não especializadas,
valem alguma coisa, quando são absolutamente
inúteis. Se você soubesse que é incapaz e que suas
opiniões são limitadas, abriria a boca o tempo todo?
Não seria melhor fazer um voto de silêncio e escutar
quem de fato tem algo a dizer? Veja, caro leitor, a
capacidade de aceitar-se a si mesmo tem esse
interessante efeito sobre o tecido social: livramo-nos,
todos, de opiniões que beiram o ridículo. Avalie-se,
aceite que é incapaz, que não tem condições de
opinar sobre a maior parte dos assuntos, e siga só o
que é dito por quem realmente tem algo a dizer.
Assim você experimentará a liberdade.

Por que não fazemos isso? Porque não aceitamos não


saber das coisas. Fere-nos, de alguma maneira, tão-
somente imaginar que é desinteressante e desprovido
de valor o que temos a dizer. Mas, por incrível que
pareça, não nos sentimos afetados com o fato de
“não valermos pelo que somos”. E é esta a brecha
que se abre em nós para que nos tornemos
camaleões: se não valemos pelo que somos, cremos
que valeremos pelo que temos, pelo que repetimos,
por nosso conformismo.

A aceitação de si é sobretudo o entendimento de


que, para além do fato de ser limitado, você
carrega em si algo que é e deve ser valorizado
por você mesmo: um conjunto de recursos que, se
empregado na vida corrente, será muito benéfico.
Agora, se você não aceita a si mesmo e
quixotescamente fantasia lutas contra dragões que
são moinhos de vento, sabe o que vai acontecer?
Você nunca entenderá quem de fato é.

Fora disso, sobram apenas corpos frágeis e vidas


afetivas instáveis. Muitas vezes tiramo-nos de campo
para jogar a responsabilidade sobre os outros,
sobretudo os grandes entes, o poder público, as
instituições. O que essas entidades fazem é apenas
zelar pelo bem comum, porém a responsabilidade
pelo que acontece na sua vida é somente sua. Se
você não assumir agora que tudo isso sobre o que
tratamos aqui não é só um conhecimento para ficar
anotado, para depois ser mostrado como um indigno
troféu, pare a leitura, porque de agora em diante
exigirei muito mais empenho de quem me lê.

Por isso, proponho outro exercício: olhe, agora


mesmo, para o estado de sua vida — o conjunto de
circunstâncias que determinam o que e quem você é
hoje. Por exemplo, o fato de ser uma pessoa casada e
ter responsabilidades para com o seu cônjuge, para
com os seus filhos; o fato de ser um profissional e ter
responsabilidades para com aqueles que dependem
do seu trabalho; e o fato de ser uma pessoa que
abraça uma religião e que deve cumprir com uma
série de práticas fundamentais. Diante do
reconhecimento dessas obrigações, sugiro, agora, que
você se debruce sobre as responsabilidades que tem
em cada uma dessas situações da vida. Enumere-as.
Faça esse exercício por escrito, com uma tabela, onde
consiga visualizar tudo de forma rápida e objetiva. Se
o fizer bem, notará que as responsabilidades são
muito bem delimitadas e que pertencem a um
espectro de ação bastante limitado. Após chegar a
esse ponto, você estará pronto para reconhecer não
só os seus próprios limites, como também o seu
conjunto de potenciais ainda mal-empregados, cujo
emprego solicitará um maior empenho da sua parte.
É preciso lutar contra o seu Zelig interior, que o faz
querer ser, na verdade, não você mesmo, mas algo
diferente, alguém que você jamais poderá ser. Como
eu disse antes, um conhecimento não é nada se não
se transformar em algo que modifique o sujeito que o
obteve. A maturidade sobre a qual tratamos nos
últimos capítulos é um trabalho cujas conseqüências
se perceberão sobretudo nos seus relacionamentos.
Capítulo iv
Relacionamento familiar
Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como
flechas vivas. O arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica
com toda a sua força para que suas flechas se projetem, rápidas e
para longe.

Que vosso encurvamento na mão do arqueiro seja vossa alegria: pois


assim como ele ama a flecha que voa, ama também o arco que
permanece estável.

— Gibran Khalil Gibran

S erelação
pegarmos a estrutura familiar como um todo — a
entre cônjuges, entre pais e filhos etc. —,
veremos o mesmo padrão de imaturidade que
descrevemos nos capítulos anteriores.

Se o primeiro grupo de relações, o familiar, não for


mudado, a sociedade também não mudará.

Em minha atuação clínica, tenho visto muito


recorrentemente, do ponto de vista da dinâmica
familiar, uma queixa de insatisfação com o outro
aparecendo entre os cônjuges. Quando o problema
não é o marido ou a esposa, acaba sendo o filho.
Quando não são os filhos o alvo da reclamação, sobra
para os pais. A lista é extensa e se resume numa
palavra: egoísmo. Parece-me muito evidente, pela
minha experiência, a necessidade de aprender a
enfrentar os relacionamentos humanos no seio
familiar, e fazê-lo de uma perspectiva madura, mais
saudável, que tire de cena as pretensões auto-
referentes que costumamos ter. Mas não quero lhe
oferecer um diagnóstico genérico ou uma panacéia
ambiciosa. Quero que você encontre, neste capítulo,
os primeiros elementos para conseguir se examinar e
mudar de verdade.

Antes, uma premissa


Se qualquer pessoa parasse alguns minutos para
pensar sobre a própria existência, reconheceria muito
rapidamente uma dinâmica que é recorrente e que
nos ajuda a entender como estamos na vida: trata-
se simplesmente do fato de que estar vivo significa
participar de alguma coisa que nos é dada de
antemão. Pergunte-se seriamente: como estou
vivendo agora? Como percebo a mim mesmo neste
momento? Se você for minimamente sincero consigo,
terá de reconhecer que viver é participar de alguma
coisa que não é você quem faz; estar vivo é tomar
parte em algo que não está nos seus planos, nas suas
pretensões. Amplie o horizonte: o que diria se eu
introduzisse nesta ref lexão a existência do próximo,
desse que está aí ao seu lado? Se estendermos isto às
outras pessoas, entendendo-as também como
existências que fogem do nosso controle,
começaremos a compreender melhor esta premissa.

Se você quer viver os relacionamentos afetivos de


forma adequada e madura, é preciso ter isto em
mente: a sua vida não é algo que você constrói, que
você dá a si mesmo; você não decide como deve ser
sua vida, nem como devem ser as das outras
pessoas. A vida é um dom, algo que nos foi dado.
Isso é o que eu quero que você guarde como primeiro
ponto fundamental. Não é você quem se sustenta no
ser. Essa é a premissa e sem ela você não conseguirá
entender o resto. E, mais do que entender
conceitualmente, é preciso que isso seja entendido
como experiência, e que você diga para si mesmo,
agora: “Sou sustentado no ser; o ser não é uma
decisão minha”.

A família como primeiro lugar da


experiência de ser
Se é verdade que a sua vida lhe é dada, em qual
esfera de relações se pode, primeiro, constatar que
algo já existia antes de você vir ao mundo? Não é
preciso pensar muito para responder que é na família.
Pense que cada pessoa entrou nessa existência para
fazer parte de algo anterior a ela, uma sociedade e
uma cultura que a precedem. A família é, pois, o
primeiro lugar em que vemos que a vida nos foi dada,
porque entramos em uma família que já tem
tradições, crenças, formas de se relacionar,
posicionamentos políticos, características físicas,
dentre outras coisas. E temos de nos adequar a todas
essas dinâmicas de relacionamento. Entramos em
uma família que não foi escolhida por nós e que nos
acolhe. É na família que todos são acolhidos pela
primeira vez. Entender isso é importantíssimo. Agora
exploraremos três pontos relativos a essa acolhida.
Ser acolhido é ser amado
Quando uma pessoa abraça outra, não apenas toca-a
fisicamente, mas comunica-lhe uma afirmação, de
que a presença dela, ali, é agradável. O acolhimento
da família nos faz saber o que de fato é ser e se sentir
amado. Se você foi amado, sabe amar. Sim, está tudo
aqui. O sujeito que é acolhido é capaz de amar o
próximo porque já foi amado por outros. Pensando
dessa forma começamos a perceber onde erramos
nas pretensões e expectativas que voltamos aos
nossos cônjuges e filhos.

Quando somos amados precisamos entender que a


experiência não acontece segundo as nossas
expectativas. A experiência de “não ser acolhido”
causa uma ferida, e o que fere, no fim das contas, é o
fato de que esperamos e ansiamos por ser amados e
às vezes não o somos. O ser humano sempre quer ser
amado, não há escapatória disso. A ferida que surge a
partir da quebra da expectativa de ser amado não é o
ponto final da vida; pelo contrário, mostra como é
urgente que amemos cada vez mais. Somos
chamados, portanto, a um tipo de juízo acerca das
relações que vivemos na família, e não podemos
adotar uma postura vitimista, de coitadinhos. Temos
de saber evitar a fixação nos extremos do “fui amado
como queria” ou “não fui amado como queria”.

Acolhidos, perdoamos as diferenças


A idéia de “perdoar as diferenças” tem a ver com o
fato de que, quando você acolhe a pessoa com quem
convive, deixa de lado as próprias expectativas e
pretensões. Não sabemos como será a vida do outro,
ela não nos pertence. Lembrando a epígrafe do início
deste capítulo, somos como o arco na mão do
arqueiro; os nossos filhos são como a flecha. A
mesma coisa se aplica ao relacionamento com o
cônjuge, com o pai e com a mãe: muitas vezes temos
a pretensão de ser o arqueiro, de querer corrigir o
outro, sem aceitar o fato de que ele é diferente de
nós e pode ter o próprio caminho.

Amado pelo que sou: uma pessoa


A pessoa humana é relacionamento com o infinito. “O
arqueiro mira o alvo na senda do infinito”: nós temos
como destino o infinito, temos como horizonte todas
as possibilidades. O fato de que tenhamos uma
pretensão como, por exemplo, querer que um filho
seja médico, famoso, tenha muito dinheiro, seja
casado com uma bela mulher, é pequena demais
perto do que nós somos como pessoas. Devemos ver-
nos uns aos outros sob a perspectiva das latências,
não do que já está dado, mas do que ainda existe
como potencialidade.

Você saberá que foi acolhido quando as pessoas


olharem para você e disserem: “O que vejo, quando
olho para você, é um campo de possibilidades infinito;
o que vejo quando o amo, quando o acolho, é algo
muito maior do que aquilo que sou capaz de dar”.
Veja a grandeza do que está sendo dito. A maior parte
das nossas queixas acerca dos nossos cônjuges, dos
filhos, dos pais, no fundo deve ser filtrada por essa
peneira.

É muito fácil você se virar para o seu terapeuta ou


confidente e se queixar de que seus familiares fazem
ou deixam de fazer determinadas coisas. É muito fácil
jogar sobre o outro a responsabilidade da sua
insatisfação. O mais importante é que aqui está a
possibilidade de você melhorar a forma como se
relaciona no seio familiar. Você já tem os meios
necessários para avaliar como efetivamente acolhe
seus familiares, e sabe que só pode fazer uma
avaliação adequada quando entender que sua própria
vida é um dom divino e um anseio por relacionar-se
com Deus.

As chaves: liberdade,
condescendência e amor à dor
Para que você seja capaz de acolher adequadamente
as pessoas e fazer com que elas experimentem as
três coisas sobre as quais acabamos de falar, é
condição imprescindível a liberdade, quer dizer, você
não pode estar em relacionamento algum se não
estiver livre, se não tiver a possibilidade de ser você
mesmo. Liberdade tem a ver com a possibilidade de
ser o que se é. Não pode haver possibilidade de
acolher o outro se você não experimentou em si
mesmo uma possibilidade concreta de ser quem você
é, de não precisar estar à mercê das expectativas do
outro. E aqui não é “liberdade de” alguma coisa, mas
“liberdade para” agir na relação com o outro. O
primeiro ponto fundamental, portanto, é fazer a
experiência de ser livre no relacionamento, o que não
é a mesma coisa de fazer o que quiser.

Além da liberdade, é preciso ter uma segunda chave:


se você quiser acolher o outro, precisará abrir mão de
si mesmo, ser condescendente. Essa
condescendência não quer dizer que você fechará os
olhos para os males praticados pelo outro, mas sim
que você abrirá mão das suas expectativas e das suas
medidas e se abrirá inteiramente a ele. Quando isso
não acontece, não há relacionamento.

E finalmente chegamos à terceira chave. Se você


tem alguma expectativa ou pretensão em sua relação
com o outro, o que inevitavelmente acontecerá? Você
acabará por se sentir ferido porque esperava que as
coisas acontecessem de um jeito e elas aconteceram
de outro totalmente diferente. Devemos sempre ter
em mente que as pessoas não se adequam ao que
pensamos delas. O tempo todo precisamos estar
dispostos a ceder à realidade que está na nossa
frente — e isso dói. Se você quer ser maduro, precisa
estar disposto a essas três coisas: ser você mesmo,
condescender e amar a dor.

Veja que continuo vinculando a maturidade ao tema


do relacionamento humano: construir
relacionamentos é se tornar mais maduro. Você, como
pai ou mãe, como filho, como esposo ou esposa,
precisa ter essa maturidade e, na medida em que
cresce, precisa também experimentar a mesma
maturidade no relacionamento com a sua família. Por
isso, mais uma vez proponho um exercício, que deve
ser registrado por escrito. Em primeiro lugar, quero
que você pense nas pretensões que tem acerca dos
seus familiares (pais, cônjuge, filhos): podem ser
pretensões como aquelas que nascem, por exemplo,
quando você está voltando do trabalho no fim do dia
e quer chegar em casa e encontrar seus filhos todos
dormindo, o seu jantar na mesa, a casa toda
arrumadinha, os pratos lavados. Ou então você que
espera chegar da escola e ver que sua mãe deixou a
sua cama arrumada e o almoço pronto em cima da
mesa. Pense em como você espera que o seu irmão
ou a sua irmã seja melhor nisso ou naquilo. Pense em
todas as pretensões que você tem. Anote-as numa
folha de papel, encare-as. Não tenha medo de ser
sincero.

Porém o exercício não é para que você se massacre


com a constatação de suas pretensões, ambições e
vaidades, com o seu orgulho. Há um passo exigido a
partir do reconhecimento dessas expectativas, e é a
melhor parte, mas também a mais exigente: agora,
ao longo de pelo menos um dia — comece com um
dia e, depois, amplie a experiência para mais e mais
dias —, experimente em pelo menos uma
circunstância abrir mão das suas pretensões. Como?
Dou exemplos: você chega em casa, da faculdade,
querendo encontrar a cama arrumada, o seu prato
pronto, mas o que encontra, na verdade, é tudo como
deixou ao sair mais cedo. Bem, ao invés de começar a
desfiar o novelo de reclamações e maus
pensamentos, levante-se e aja no sentido de fazer as
coisas que você — e mais ninguém — deveria ter
feito. Ou, em lugar de murmurar contra a sua esposa
porque ela não deixou a casa arrumada do jeito que
você queria e não lavou os pratos como era esperado,
se levante e vá, você, lavar os pratos e deixar as
coisas em ordem. De maneira geral, o que proponho é
que você experimente viver intensamente o fato de
que, se tenciona ser maduro, terá de amar a dor que
sente ao descobrir que as pessoas não se adequam
às suas expectativas. Experimente pelo menos uma
vez abrir mão, concretamente, das pretensões que
tem em relação a familiares contra os quais você tem
alguma implicância ou queixa.

Capítulo v
Relacionamentos amorosos

P ara falar dos relacionamentos amorosos, quero


contar uma história. Na verdade, quero apresentar
a história que foi contada por um poeta e dramaturgo
russo chamado Oscar Milosz, na sua peça Miguel
Mañara, que é um dos dramas mais belos que já li.
Nessa peça, Milosz conta a história daquele que,
segundo ele, seria o “Don Juan histórico”, um
personagem que de fato existiu e que tinha todas as
características do Don Juan: era um grande sedutor
que acabou se apaixonando, e essa paixão mudou a
sua vida.

Há, no início da peça, um trecho em que Mañara


dialoga com Girolama, a mulher que vira a sua vida
do avesso. E, numa altura desse diálogo, o
apaixonado diz: “Sim, Girolama, dizeis a verdade. Não
sou como era. A luz externa não tem muito valor, não
é ela que nos ilumina. Acendestes uma lâmpada no
meu coração. Agradeço-vos infinitamente, Girolama”.

Miguel Mañara foi mudado por uma luz que foi acesa
no seu coração pelo encontro com uma mulher, um
encontro amoroso. Este é o ponto que eu quero que
você tenha em mente ao longo de toda a leitura deste
capítulo.

Quem já viveu um relacionamento amoroso há de


reconhecer, nos movimentos acontecidos nessa troca
entre si e o seu amor, algum tipo de circunstância na
qual as vicissitudes comuns aos relacionamentos
também aparecem: traição, distração, indiferença,
distância. E, no rol dessas vicissitudes, sem dúvida
alguma o tema da traição está em primeiro lugar,
trazendo consigo todo um conjunto de chavões
aprendidos, como o famoso “eu perdôo tudo, menos
traição”. Acontece que não nos damos conta de que
engolimos essas frases, ao modo de máximas e
verdades incontestáveis, sem nunca termos parado
para entender nem mesmo o que está dito nelas. No
fim, infelizmente, mecanizamos as relações,
conformando-nos a tudo, sem pensar.

Vamos às premissas
Não é possível haver um relacionamento
verdadeiramente humano sem amor. Parece um
pouco óbvio como juízo, mas é exatamente isso e,
ainda que pareça óbvio, precisamos explicar e
desenvolver melhor a idéia. Todo relacionamento
humano deve ser uma correspondência entre “Eu” e
“Tu”, o que implica necessariamente no fato de que
devemos mirar, o tempo inteiro, a totalidade do outro,
o “Tu” do outro. Se aquilo com o que estamos nos
relacionando é uma particularidade do outro — seu
corpo, seu dinheiro, seu nome —, o “Tu” do outro
deixou de ser o protagonista da cena e passou a
compor, quando muito, o cenário de fundo. Pense nas
inúmeras situações em que você se relacionou com
outras pessoas e direcionou sua atenção a um único
detalhe. Quando agiu assim, foi como se estivesse se
relacionando com um copo: você não amava o copo,
só precisava que ele fosse útil. O outro, então, deixou
de ser um “Tu” para se transformar num “Isso”.

Qual é a forma suprema de amor? Quando podemos


dizer que amamos de verdade? O amor autêntico é
livre de todo cálculo, de toda espera por recompensa.
Quando a pessoa se relaciona com o outro eliminando
os cálculos e a expectativa por ser recompensada,
consegue amar de verdade. Essa forma suprema de
expressão do amor se manifesta quando você se
relaciona com o outro querendo não algo para si, mas
para o outro, um bem para o outro. Como eu não
estou falando do relacionamento entre mim e você,
entre mim e um amigo, entre você e o seu vizinho,
entre você e o seu colega de trabalho, mas sim do
relacionamento que há entre você e seu amor, a
pessoa que você ama, a pessoa a quem você quer
entregar a sua vida, é preciso entender um detalhe:
toda experiência de amor que há no relacionamento
entre homem e mulher se caracteriza por um dar-se
ao outro com comoção. Duas expressões
importantes, dar-se e comover-se com o outro. Não é
preciso ir muito longe para falar sobre isso, porque
certamente você entende o que significa dar-se a
outra pessoa, uma doação que tem todas as
características de intimidade, de disponibilidade total
para o outro. Se houver amor, haverá disponibilidade
para dar-se integralmente, e isso tem uma
conseqüência: quem se dá para o outro
inevitavelmente se dispõe a perdoá-lo; isso mesmo, a
palavra perdão vem de “doar para”, ou seja, o ato
supremo da doação de si para o outro é justamente
oferecer para ele a possibilidade de, diante do erro,
dar a mão para ele se levantar, dar-se inteiro em
nome do bem dele. É isso o que significa perdoar. A
experiência de dar-se para o outro pressupõe a
capacidade de perdoá-lo também.

Mencionei, além da doação ao outro, a comoção. O


que introduz um aspecto dos mais importantes na
própria experiência do perdão: não será um perdão
concedido por dever moral, ou porque você tem de
salvar a aparência do seu casamento, ou porque lhe
disseram que se você não o fizer irá para o Inferno, ou
porque está escrito na Bíblia que você tem de perdoar
setenta vezes sete, ou ainda porque seu psicólogo lhe
disse que sem o perdão ficamos doentes. Por mais
adequadas que possam parecer todas essas razões, o
perdão não será adequadamente motivado se o que
estiver em jogo forem essas justificativas de vitrine. O
perdão deve ser comovido e ter todas as
características da afeição pelo outro: estar comovido
é isso, mover-se com o outro. E quando você estiver
disposto a perdoar, quando descobrir em si a
comoção de que falamos, notará então que prestará
menos atenção nos erros dele. O problema é que
sempre que pensamos em traição, pintamos um
quadro dantesco na nossa cabeça. Mas não, a traição
também aparece na sua distração, no seu
esquecimento, na série de televisão que você resolve
“maratonar”, nas repetidas atualizações feitas nas
redes sociais para ver o que há de novo, na recusa a
assumir publicamente o amor que experimenta por
aquela pessoa na sua frente. Quando você começar a
perceber que a traição não é um requisito dele ou
dela, mas algo que você carrega, nessa hora você
descobrirá em si uma capacidade de comoção,
constatará as próprias limitações e, por isso mesmo,
concluirá que precisa dar mais de si, para que o casal
se eleve.

Condições do relacionamento
amoroso
Quais são as condições para que haja um
relacionamento amoroso? Para essa pergunta eu darei
quatro respostas. A primeira delas: as premissas que
mencionei acima. Sim, esses pontos de partida
estabelecem as condições para que você se torne
mais capaz de amar. Ao se relacionar amorosamente
com outra pessoa, você necessariamente precisa
estar disposto a amar, a contemplar o outro na
totalidade dele, e isso permitirá dar-se de forma
comovida.

A segunda condição é imprescindível e, sem ela, não


conseguiríamos falar de um relacionamento amoroso:
quando você entende que esse desejo de atenção
pela totalidade do outro começa a se aprofundar,
percebe que não pode parar na superfície.
A terceira condição fundamental é começar a
perceber não mais a relação ou o outro, mas
perceber-se na relação. — “Como assim, Pacheco?
Agora, você deu um nó na minha cabeça: quer dizer
que tenho de olhar para mim na relação? Não me
diga que você vai me falar também que preciso me
amar…”. Não é disso que estou falando, caro leitor.
Esta terceira condição gira em torno destas
perguntas: “Como me vejo na relação? O que é
exigido de mim?”. Pense o seguinte: você, numa
relação, se manifestará como um “Eu”, como alguém
disposto a se doar. Observe-se em movimento, nos
seus atos. Quando sabemos que o nosso “Eu” está
vivo? Quando ele se move. Sabemos que estamos
presentes quando vemos um movimento, uma
atitude, uma ação.

Portanto, a terceira condição da experiência do


relacionamento amoroso é exatamente que, de tudo o
que tratamos até agora, surja em você um
movimento dirigido para o outro, um tipo de ação
em favor do outro, em razão do outro. E aqui
podemos pensar em ilimitadas possibilidades, desde
um gesto simples como, por exemplo, abrir a porta do
carro para a namorada, uma certa carícia que a sua
pretendente lhe faz, e outras coisas que, hoje, soam
estranhamente démodé — como se o amor precisasse
estar na moda. O amor é absolutamente ridículo e
tem de ser assim, no sentido de que não está preso a
padrões sociais ou modismos típicos de momentos
culturais.

É preciso que você seja capaz de, por meio dos


gestos, mostrar que ama de verdade. Imagine que eu
me relacione com a minha esposa dizendo sempre
para ela e para todo o mundo que a amo, mas um
terceiro pode ver como me comporto no meu
relacionamento com a minha esposa e não notar
gestos meus que revelem o amor que sinto por ela.
Pelo contrário, ele pode testemunhar gestos meus de
distração, esquecimento, traição. Como só sabemos
que o “Eu” está vivo quando ele se move, é preciso
que mostremos isso no relacionamento, movendo-nos
em razão do outro. Cada um de nós precisa aprender
a fazer aqueles gestos simples de olhar amoroso, de
contemplação amorosa, levando para casa uma f lor,
cuidando da roupa do namorado ou do esposo, e
outros tantos gestos simples que fazem com que um
terceiro diga: “Nesse relacionamento há amor”.

A quarta condição é quase uma conseqüência da


terceira, porque o seu gesto, o seu movimento pelo
outro precisa ter uma razão de ser: as suas atitudes
devem visar à salvação da pessoa que é o alvo do
seu amor. Você precisa se envolver num
relacionamento com o outro para salvá-lo. Mas o que
quer dizer isso? Quer dizer pagar o preço pelo bem do
outro. Você precisa se sacrificar por ele. O seu
movimento na relação com o outro tem de mirar o
bem, o crescimento, a plenitude dele. Um
relacionamento amoroso que não tenha no horizonte
essa possibilidade do outro ser o que ele é sequer
poderá ser considerado um relacionamento.

Essas quatro condições criam um novo problema,


pois o seu relacionamento dependerá da sua
capacidade de avançar além da superfície e penetrar
nas profundidades para contemplar tudo o que no ser
amado é não só ato mas também potência. O seu
relacionamento será tanto mais maduro quanto mais
disponível você se mostrar para a outra pessoa, e
nessa disponibilidade está implícita a idéia de
sacrifício. A liberdade do outro exige que nos
sacrifiquemos. A palavra sacrifício vem de “trabalho
sagrado”: quando estamos diante do outro,
contemplando o que é insondável. Não dá para
colocá-lo dentro dos limites do que esperamos, ele é
muito maior do que tudo quanto pensamos e
desejamos.

Para finalizar este capítulo, como venho fazendo


desde o início, proponho um exercício que o ajudará a
não ficar mais preso a superficialidades no seu
relacionamento. A verdade é que sempre será
necessário se esforçar para transpassar a capa de
superficialidade sob a qual todos os relacionamentos
acabam envoltos. No início é tudo cor-de-rosa, porém
o encanto acaba rápido e, com o passar do tempo, a
atenção se volta aos defeitos e detalhes
desagradáveis. O exercício consiste em,
primeiramente, tentar ver todo o conjunto de
problemas que atrapalham a relação e se tornaram,
passado o período da lua-de-mel, seus focos de
atenção.

O segundo passo deste exercício é rememorar os


acontecimentos do início da relação. É ou não é
verdade que a pessoa com a qual você decidiu ficar
por toda a vida hoje lhe parece diferente e, em alguns
momentos, o oposto do que era antes? O que você
contemplou no início da relação não estava na
superfície da personalidade da outra pessoa. Naquele
instante, não tenha dúvida, entraram em cena
aquelas quatro condições de que falei. Só depois é
que você deixou de lado as boas recordações e
passou a se concentrar nos defeitos e faltas do outro.
Alargar o coração é trazer de volta à memória aquelas
coisas que, no início, o impactaram no
relacionamento com a pessoa que você ama. Por isso,
o que lhe proponho, nesse segundo momento, é a
retomada daquela certeza experimentada no início do
relacionamento, quando você pôde divisar todas as
potencialidades do ser amado. Após esses dois passos
do exercício, você verá renascer a liberdade perdida.
Reconquistar a liberdade é ver que você não está
mais se anulando nem reduzindo o outro às suas
expectativas e desejos. Você reencontrará a pessoa
por quem se apaixonou no começo da relação. Se
pudesse resumir a proposta do exercício, diria que se
trata de estar diante da pessoa que você ama e
rememorar tudo o que os dois viveram juntos,
resgatando os bons momentos.

Conte essa história por escrito. Registre tudo.

Capítulo vi
Relacionamento com o
trabalho
Na simplicidade do teu trabalho habitual, nos detalhes monótonos de
cada dia, tens de descobrir o segredo — para tantos escondido — da
grandeza e da novidade: o Amor.

— Josemaria Escrivá

Q
ue problema está relacionado ao trabalho?
Normalmente, quando as pessoas chegam à
terapia com queixas sobre seus trabalhos, essas
queixas quase sempre estão vinculadas à maneira de
encará-lo e de vivê-lo, e apresentam uma concepção
reduzida do trabalho: elas concebem o trabalho como
um modo de produção inevitável, algo como
escravidão. Há quem diga que o próprio significado da
palavra tem a ver com tripalium (que era um
instrumento de tortura). Podemos até ver o trabalho
assim, e há quem o viva dessa forma, mas esse é um
problema que precisamos saber enfrentar. A
maturidade no trabalho certamente vai depender da
maneira como o concebemos.

Vamos à premissa
Para falar do relacionamento com o trabalho, há um
ponto de partida fundamental, que nos orientará ao
longo desse capítulo: você precisa entender que o
trabalho é uma necessidade, mas não em sentido
estritamente materialista. Essa necessidade deve ser
entendida como um impulso no sentido da realização
integral da nossa pessoa. E a seguinte frase do
Evangelho resume muito bem essa premissa: “O que
pode aproveitar o homem se ganhar o mundo inteiro
e arruinar a sua própria vida?” (Marcos 8, 36) Ou seja,
viver o trabalho como uma necessidade —
entendendo a necessidade como algo que tem a ver
com esse impulso de realização — é entendê-lo como
algo que não prejudica a sua vida.
Meio trabalho é meia realização
Se o trabalho é necessário para que nos realizemos, e
se a realização não é outra coisa senão a plenitude,
não podemos imaginar que nos realizaremos fazendo
algo pela metade. Então, ao falar do impulso de
realização, estamos falando de algo que tem caráter
de totalidade.

Você se realizará no seu trabalho apenas quando o


fizer como algo que o leva a uma experiência de
plenitude. Isso nos obriga a perceber que o trabalho
não pode ser única e simplesmente aquela
experiência pontual que tem que ver com ir ao
espaço de trabalho e bater o ponto, bater metas.

Compromisso
Se é preciso haver uma realização plena, deve haver,
da sua parte, um compromisso pleno com o
trabalho. Uma pessoa não pode estar mais ou menos
no trabalho, pois assim o resultado também será
parcial. Com uma entrega incompleta, você não se
realizará plenamente. É preciso trabalhar da melhor
maneira possível.

Quando você se compromete plenamente e realiza o


trabalho consciente de que não se contentará com
parcialidades, a conseqüência é fazer do trabalho
vivido uma busca de totalidade. É mentira aquela
história de que trabalhar com coisas que o agradam
não é cansativo. O trabalho de verdade é árido e
fatigante. Quem trabalha fora, chega em casa
cansado; quem trabalha em casa, chega ao fim do dia
esgotado. É cansativo trabalhar, mas o seu
compromisso com o trabalho, vivido com a
consciência de que você anseia por uma realização
total, faz com que, em alguma medida, você trabalhe
em busca de totalidade e, portanto, de sentido.

Expressar quem eu sou


Sendo assim, o trabalho é o lugar de expressão da
pessoa que você é, porque é nele que você se
realiza e se expressa totalmente. Se você está no
trabalho expressando tudo o que você é,
inevitavelmente fará disso uma ação que impõe
ordem ao caos do mundo. Com o seu trabalho, você
se torna partícipe da criação do mundo.

Ao fazermos bem o nosso trabalho, fazemos a


mesma coisa que o Criador fez quando criou o
mundo. No livro do Gênesis, da Bíblia, está escrito
que, após cada novo detalhe da criação, Deus
terminava e dizia: “Isso é bom”. Dizia que era bom
porque fazia tudo bem feito e imprimia em sua
criação o que Lhe é próprio: a Bondade. Nós também,
ao colocarmos a nossa personalidade no trabalho,
imprimimos nele Bondade, Verdade e Beleza.

Vamos trabalhar? Proponho um novo exercício: quero


que você olhe para cada gesto seu ao longo de um
dia inteiro, como lavar um prato, tirar o lixo da
cozinha, arrumar a cama, colocar as coisas no lugar
em casa, sair com os filhos, escovar os dentes, trocar
a fralda do filho, dentre outras coisas. Considere cada
um desses gestos parte do seu trabalho,
contemplando-os como realizações. Quero que você
aprenda a contemplar os seus gestos enquanto se
pergunta: “Como é possível que este meu gesto
coopere com o Criador? Como é possível que ele seja
co-criador? De que forma ele confere mais Bem,
Beleza e Verdade ao mundo?”.

Capítulo vii
Relacionamento com a
realidade

T ratemos,
realidade.
agora, do relacionamento com a
No mito de Ícaro podemos encontrar
uma comparação interessante. Segundo o que se
conta, certo dia, Ícaro estava preso com seu pai,
Dédalo, num labirinto, na Ilha de Creta. Para sair
daquela situação, eles fizeram asas com penas e
cera. O pai, mais experiente, diz ao filho: “Olha, por
essas asas serem de cera, é melhor que nos
limitemos a voar apenas até certa altura, nem muito
baixo nem muito alto, caso contrário não
conseguiremos sair daqui”. Porém, o impetuoso Ícaro
não agüenta e, quando começa a voar, se dá conta de
que aquilo é muito bom, resolvendo ir cada vez mais
alto. Resultado: as asas derretem com o calor do sol e
o jovem despenca lá de cima, para a morte certa, no
Mar Egeu.

Dédalo é alguém que podemos definir como um


homem realista: por mais que tenha sonhado com
algo um tanto impossível — como o sonho de voar —,
manteve isso dentro dos parâmetros e limites do que
a realidade permitia. A capacidade de voar não foi
dada ao homem como dom natural, mas graças a
uma técnica isso é possível, e foi disso que ele se
utilizou. Mas seu filho, no fim das contas, se
comportou como uma pessoa pouco realista, porque
não se relacionava com a realidade da maneira
correta, segundo o que ela é.

Algumas pessoas vêm ao meu consultório com


queixas a respeito da vida e, ao falarem dos
problemas que enfrentam, revelam que, para elas, a
realidade é o que está em suas cabeças, algo
puramente mental. Quando uma pessoa assume um
posicionamento assim, acredita que seus
pensamentos são mais reais do que os fatos
propriamente ditos, como se suas idéias explicassem
o mundo. Também há quem acredite que é real
apenas o que lhe passa pela mente.

O primeiro problema parte de uma posição idealista,


na qual a realidade é o que se conhece acerca dela:
se você fosse um idealista, tendo este livro em mãos,
só diria que ele é real porque tem uma idéia a
respeito dele. Mas, supondo que ninguém soubesse o
que é um livro, o idealista diria que livros não
existem. Então, para ele, este livro só existe na
medida em que se torna uma idéia. Já o segundo
problema parte de uma posição cética, segundo a
qual pode-se até ver o livro e tê-lo em mãos, mas sua
existência é posta em dúvida.

Na relação com a realidade acabamos assumindo


uma dessas duas posições, sobretudo quando somos
imaturos. Toda vez que abandonamos a relação com o
real, acabamos correndo o risco de nos afogarmos
como o próprio Ícaro. Você talvez tenha uma lista
bastante ampla de situações nas quais caiu em uma
dessas duas posições, e isso precisa ser evitado. A
nossa relação com o real não deve deslizar para uma
negação da realidade, mas devemos, pelo contrário,
voltar-nos a ela. Não podemos, portanto, incorrer no
mesmo erro de Ícaro.

A nossa premissa
A realidade, que não está dentro da nossa cabeça,
mas é aquilo que nos circunda, sempre nos chama
e nos provoca. As coisas que acontecem no mundo
— a vida, os eventos, os relacionamentos — são uma
provocação feita ao nosso mundo interior. Tudo o que
nos acontece é uma solicitação do real, um chamado.

Responder inteligentemente
Assim, se o real nos chama, provoca, solicita, isso nos
impõe justamente o quê? Qual é o passo que
devemos dar? Devemos responder à provocação
do real. A essas solicitações só responderemos
adequadamente quando formos capazes de
interpretar adequadamente a provocação. Então, a
seqüência é: a realidade o provoca, você precisa dar
uma resposta, e para responder, não pode
simplesmente reagir. Por exemplo, vamos supor que
você esteja no metrô e alguém tenha pisado no seu
pé (provocação do real). O que você poderia pensar?
“Vou responder ao fato de que alguém pisou no meu
pé mandando a pessoa para aquele lugar”. Mas assim
você estaria reagindo. Respostas não são reativas,
elas têm um caráter completamente diferente: são o
resultado de uma interpretação das entrelinhas da
provocação. Você precisa olhar para a provocação e
“ler dentro” dela.

A expressão “ler dentro” poderia ser traduzida por


uma palavra muito conhecida: inteligência. A
inteligência vem da junção de “intus”, que significa
dentro, e “legere”, cujo significado é ler. Uma pessoa
é inteligente porque lê dentro das coisas, lê dentro da
realidade, lê as entrelinhas da realidade, vê o que não
está manifesto evidentemente, mas que está dito,
escondido. Portanto, você só responderá
adequadamente à provocação do real se for capaz de
ler dentro da circunstância que se apresentou, se for
capaz de parar diante dela e não ficar preso à
atratividade que a aparência dos eventos lhe causa,
procurando descobrir o que está sendo dito ali: qual é
a natureza real daquela provocação, qual é o seu
significado profundo? Se alguém nos faz uma
pergunta mas não a entendemos, não conseguimos
respondê-la de maneira adequada. Isso só será
possível entendendo a pergunta que foi feita, e esse
entendimento não ocorrerá por meio da soma de
palavras. Você entenderá qual é a pergunta
efetivamente quando ouvir o conjunto inteiro das
palavras presentes na frase.

Se a inteligência é a capacidade de ler dentro, eu lhe


pergunto: Quem você acha que será mais inteligente,
uma pessoa com qi alto ou uma que tenha boa
capacidade de atenção e observação? Esta é a
questão que, para mim, é a mais importante, porque,
como pessoas, somos todos dotados de inteligência e
experimentamos a realidade. Contudo, a capacidade
de inteligir o real não é definida pela capacidade de
cognição, e sim pela capacidade de usar
adequadamente estes dois recursos: experiência e
inteligência. E é preciso usá-las nesta ordem, porque
a experiência é um recurso que todos têm,
independentemente de terem estudado até o
doutorado ou de não terem estudado nada: a
experiência é a capacidade de estarmos diante das
circunstâncias e percebermos que estamos lançados
nelas e que elas nos provocam, é a capacidade de
nos surpreendermos dentro do real.

A inteligência é o elemento que usamos em seguida;


logo depois que nos surpreendemos, a inteligência é o
que nos possibilita a compreensão. Compreender, no
fundo, é também encontrar uma certa ratio, uma
proporção adequada. Essa proporcionalidade nos
permitirá um “domínio” da realidade, chegar à razão.
Mas a nossa inteligência, que tem a marca da
racionalidade também, quer mais dados, não fica
presa às pequenas coisas. O que ela quer, na
verdade, são todos os dados.
O que acontece quando respondemos às
provocações? Uma pessoa que está diante do real e
ouve a sua provocação inevitavelmente vai se dar
conta de que, estando na realidade e tentando
responder às suas provocações, precisa de um critério
para entender se a leitura que faz está correta ou
não. Se ela não consegue verificar isso, qual é o
risco? Que ela dê uma resposta inadequada.

Pensemos em uma conversa entre duas pessoas.


Será que a pessoa x entendeu o que a pessoa y falou?
Será que a pessoa x entendeu qual é a dúvida da
pessoa y ? Se elas não sabem responder a isso,
inevitavelmente terminarão o diálogo. Como você
pode entender o que está lendo aqui? Certamente
não será entendendo palavra por palavra do que está
escrito, mas pegando todas elas e colocando-as
dentro de algum critério que permita avaliar se isto
que estou escrevendo se parece com algo que você já
viveu em termos de experiência, se faz algum
sentido, se tem alguma lógica interna. Estes são os
recursos que utilizamos ao tentar entender as
provocações do real.

Dou mais um exemplo. Uma pessoa, em uma


circunstância qualquer, sai de carro para ir encontrar
um amigo e, no meio do caminho, um pneu estoura.
Isso é a realidade se pondo diante daquela pessoa,
provocando-a, convocando-a, solicitando uma
resposta. A pessoa, então, tem algumas alternativas:
1) pode se estressar, chutar o carro e decidir não
encontrar mais o amigo — e isto se chama reação, o
sujeito simplesmente chutou o balde; 2) ela pode
responder à realidade de maneira inteligente. A
pessoa se deparará com o pneu furado enquanto
percorre o caminho rumo à casa do amigo, mas isso
não a paralisará, e ela começará a pensar em
soluções para o problema; verificará se tem um step e
um macaco, se ambos estão em condições
adequadas de uso, em que parte o pneu estourou, se
ela tem um telefone com bateria para pedir ajuda,
dentre outras coisas.

A experiência mais elementar


Então, como a pessoa naquela circunstância, com um
pneu furado, no caminho para a casa do amigo, pode
resolver o problema? Numa situação como essa, o
que a levaria a se mover no sentido de responder
àquela provocação? O fato de o encontro com um
amigo ser muito mais importante do que um pneu
furado. Desse modo, para obter o que se deseja, é
preciso dar uma resposta.

A “experiência elementar” é aquilo a que Viktor


Frankl chama de sede de sentido. Um dado
fundamental que não foi você quem inventou nem foi
a sociedade que impôs. Ela é uma urgência na vida,
uma exigência do Bom, do Belo e do Verdadeiro, ou
seja, o Bem último, a Beleza última e a Verdade
última; aquela coisa sem a qual não podemos viver,
que é imprescindível para que possamos dar qualquer
passo na vida.

No relacionamento com a realidade, leremos o real


adequadamente, ao invés de somente reagir a ele,
quando começarmos a descobrir, a acusar em nós
uma urgência de que a vida tenha sentido, de que
aquele evento do pneu furado tenha algum sentido.
Cada circunstância precisa estar vinculada ao Bem
último, à Beleza última e à Verdade última por que
tanto ansiamos. Quando fazemos isso, a nossa
relação com o real se modifica, porque nos damos
conta de que precisamos abrir mão do que acontece
dentro das nossas cabeças e contemplar a realidade
com o olhar da sede de sentido. Há uma frase de um
médico francês chamado Alexis Carrel que resume
muito bem tudo isso:
Na enervante comodidade da vida moderna, o conjunto de regras que
dá consistência à vida se reduziu a mingau. A maior parte dos esforços
que o mundo cósmico impunha desapareceu e com eles desapareceu
também o esforço criativo da personalidade. A fronteira entre o bem e
o mal se desvaneceu, a divisão reina em toda parte. Pouca observação
e muito raciocínio conduzem ao erro. Muita observação e pouco
raciocínio conduzem à verdade.

Quando fazemos uso desse feixe de exigências,


quando estamos na relação com as coisas e
queremos que elas façam sentido, somos chamados a
abrir mão de tudo o que pensamos sobre o real, e
abrimos mão, portanto, de uma posição idealista,
para pôr em curso uma refinada capacidade de
observação. Isso é o que faz com que abramos os
olhos e sejamos personalidades.

Teste de relacionamento com a


realidade
Se o que está em jogo é justamente que você seja
capaz de responder mais do que reagir, de observar
mais do que pensar; se é, portanto, a capacidade de
empregar a sua razão e a sua experiência valendo-se
deste critério fundamental, nuclear e elementar que é
a sede de sentido, o que vai acontecer é que, neste
momento, vai nascer em você uma disponibilidade de
viver o real com intensidade. Se o que você quer é
que a vida faça sentido e sabe que a tudo deve
responder de maneira adequada, acaba se dispondo a
viver a realidade com uma intensidade totalmente
nova — você se torna protagonista da sua própria
vida. Responda: eu estou disponível para viver o real?
Eu estou disponível para estar profundamente
envolvido com a circunstância que a realidade trouxe
a mim? Se você está disponível, estará diante do real
com uma posição de quem quer entendê-lo e
encontrar uma resposta dentro das várias
circunstâncias da vida. Logo, você estará disposto a
fazer uma pergunta a respeito da experiência que lhe
foi colocada como provocação. Normalmente nós não
fazemos isso, costumamos responder ao real com
projeções, idéias, raciocínios montados em nossas
cabeças. Fomos educados assim.

O teste que vai lhe permitir entender se você está ou


não preparado para viver um relacionamento
adequado com o real é justamente perceber se você
está disposto a estar diante das provocações
enquanto se pergunta o que há nelas de Bom, Belo e
Verdadeiro, porque isso é tudo o que queremos. Se
você está com uma pergunta na ponta da língua, em
vez de uma resposta pronta, inevitavelmente estará
disponível para viver um relacionamento adequado
com o real. O resultado disso é que o real se tornará
um lugar de encontro com o mistério da vida, não se
limitará mais às coisas concretas com as quais
lidamos. O real será o lugar de comunicação do
ministério, de comunicação do sentido, de
comunicação do Bom, do Belo e do Verdadeiro. Isso é
imprescindível e muito desejável, não tem nada a ver
com sentimentalismo. Na verdade, tem a ver com
uma resposta ao anseio de sentido que carregamos.
Quando começamos a perceber isso nascendo em
nós, finalmente podemos nos erguer como
personalidades maduras. É uma coisa libertadora.

Comece, a partir de agora, a prestar atenção nas


circunstâncias impostas pela vida ao longo do dia,
desde uma vontade de assistir a algum filme até a
louça que está na pia para ser lavada, passando pela
fralda do filho que precisa ser trocada ou o relatório
que você tem de entregar no trabalho. Olhe para cada
circunstância do real e, antes de enfrentar
circunstância, pare e se pergunte: o que, neste
momento, essa realidade provoca em mim como
necessidade? Como é que eu posso enfrentar essa
realidade como protagonista, sem me deixar reagir
pelas coisas? Pare um minuto diante de cada
circunstância, não é pedido nada além disso. Pare e
observe-se no real; surpreenda-se dentro do real.

Por exemplo, pode ser que você queira assistir a um


filme com a sua esposa e os seus filhos, mas há uma
louça na pia para ser lavada. A realidade está
gritando para você e tem duas coisas competindo: o
seu desejo e o dever de lavar a louça na cozinha. O
que você vai fazer? Como responderá a isso? Pare
diante dessa circunstância e procure uma resposta
para a pergunta, mas uma resposta que tenha aquele
caráter de inteligência que acabei de descrever. Este
é um exercício de consciência.
Capítulo viii
Relacionamento consigo
mesmo

Eu, eu mesmo...

Eu, cheio de todos os cansaços Quantos o mundo


pode dar. — Eu...

Afinal tudo, porque tudo é eu, E até as estrelas, ao


que parece, Me saíram da algibeira para deslumbrar
crianças... Que crianças não sei...

Eu...

Imperfeito? Incógnito? Divino? Não sei...

Eu...

Tive um passado? Sem dúvida... Tenho um presente?


Sem dúvida... Terei um futuro? Sem dúvida...

A vida que pare de aqui a pouco... Mas eu, eu...

Eu sou eu, Eu fico eu, Eu…


— Álvaro de Campos

A maior parte das pessoas que


psicoterapia, em geral, diz querer
procuram a
se conhecer
melhor, entender quem de fato é. Essa é uma
demanda que eu considero das mais importantes
quando se trata do processo terapêutico, e quero,
neste capítulo, justamente mostrar o porquê disso.
Apesar de eu ser um pouco avesso à idéia de
autoconhecimento da psicologia moderna, considero
necessário que se comece a mobilizar as pessoas no
sentido de elas entenderem um pouco melhor quem
são. Continuemos.

Mas, antes, uma premissa


Nesse caminho de autoconhecimento, é preciso que
você tenha como ponto de partida uma convicção
fundamental: qualquer um que queira saber de
verdade qual é a dimensão exata do seu “Eu”
precisará examinar qual é a imagem que tem da
pessoa humana. Ou seja: se você não souber o que
é a pessoa humana, dificilmente saberá quem é você.
Ninguém saberá o tamanho do próprio “Eu” caso não
compreenda esse fenômeno. Se você não for capaz
de chegar a essa clareza de compreensão, de nada
adiantará o seu esforço pessoal para conhecer a si
mesmo: toda imagem que tiver do seu “Eu” será
definida, inevitavelmente, por algum “poder” (da
mídia, da moda, do poder político, da escola, da
ideologia). Portanto, isso já impõe, logo de cara, um
problema: o que é a pessoa humana?

O “Eu” negligenciado
Essa pergunta requereria, numa abordagem diferente
da que venho adotando aqui, que nos debruçássemos
sobre questões filosóficas e antropológicas. No
entanto, seguirei a proposta que vem nos guiando
desde o início: não responderei teoricamente a esta
pergunta, mas o ajudarei a chegar à resposta.

E começamos esse caminho de forma negativa.


Quero que, antes de chegarmos a alguma conclusão,
você seja capaz de perceber sobre o que está
sustentado o problema da relação consigo mesmo. E
há um primeiríssimo problema que precisa ser
apontado, porque este é o seu problema: para que
alguém possa chegar a uma imagem adequada de si
mesmo, deverá saber dizer a palavra “eu”.

Parece óbvio, mas não é. Parece quase uma


banalidade; contudo, não estamos falando da
capacidade de articular duas vogais e emitir o som
que nasce dessa articulação, tampouco da
capacidade de, em se deparando com essas duas
vogais inscritas numa folha, saber traduzir o símbolo
expresso através delas e dizer “eu”. Então, o que
significa saber dizer “eu”? Quando você diz “eu”, do
que está falando? Normalmente, usamos a palavra
“eu” para falar de um dado da realidade — da mesma
forma que usamos a palavra “copo” para nos
referirmos ao recipiente que usamos para beber
líquidos. Usamos a palavra “eu” como um indicativo
de algo. Mas a pergunta que devemos fazer, de fato,
quando estamos diante desta palavra indicativa é se
ela é suficiente para definir o que nós somos, ou seja,
se ela indica, na forma como a usamos, o valor que
temos. Por isso a premissa acima é tão importante,
porque se você entende que a pessoa é, por exemplo,
um objeto — ainda que isto não tenha se constituído,
para você, em conceito com lucidez teórica, mas
apenas de forma implícita, no seu agir ordinário —, a
palavra “eu” que você usar certamente indicará o
objeto que você entende ser, algo que não tem nem
profundidade nem altitude, uma realidade
bidimensional. Não é verdade que, normalmente,
quando você usa a palavra “eu”, o faz para definir
essa coisa de carne e osso que anda de um lado para
outro, que reage ao mundo, se comportando aqui e
ali, em conformidade com as provocações das
circunstâncias? O fato é que, ao usar a palavra “eu”
somente como um indicativo, é como se
negligenciássemos a profundidade e a altitude. É
como se olhássemos apenas para um aspecto da
nossa realidade. Precisamos dar passos de altitude e
de profundidade para entendermos quem somos,
porque, do contrário, não estaremos nos relacionando
adequadamente com o que somos, mas tão-somente
com um aspecto, um dado, um detalhe de uma
realidade muito mais ampla, que não conhecemos.
Você percebe, agora, como isso pode ser fonte de
inúmeros sofrimentos? Percebe como nem tudo é tão
óbvio? Um copo certamente não se sentiria
desvalorizado se você se aproveitasse dele para
recolher e prender um mosquito que estivesse
atrapalhando a sua refeição. Mas não há dúvida de
que você “muda o valor” do copo ao usá-lo dessa
maneira. Posso chamar isso de negligência? Não.
Apenas como recurso argumentativo. Porém, o
mesmo não podemos dizer quando é a nossa pessoa
que está em jogo, quando somos usados e o que se
negligencia é o nosso valor como pessoa.

Se você não quer negligenciar o seu “Eu”, precisará


dar alguns passos no sentido de uma compreensão
apropriada de quem é, e isso não acontecerá a não
ser que você se observe em ação. Não será porque
você venha a fazer horas de meditação, nem por
força de um processo psicoterapêutico, que
conseguirá chegar a essa compreensão. Para sair
dessa negligência é preciso uma atenção a si
mesmo em ação. Pergunte-se, então, caro leitor,
agora mesmo: qual é a estatura do meu “Eu”? Qual é
o valor que eu dou ao meu “Eu”? Qual é a imagem
que tenho da pessoa que sou? Responda a essas
perguntas sem descurar do seu “Eu”, isto é,
observando-se em ação, não esquecendo do valor
que você tem de acordo com o “uso” que faz de si
mesmo.

Há uma conseqüência negativa dessa negligência ao


olhar para o próprio “Eu”: olhando para a própria
experiência, quando você negligencia o seu “Eu”,
começará a perceber também uma dificuldade para
saber quando este “Eu” é suprimido nas
circunstâncias. Por exemplo, você entra no ônibus
cheio e alguém pisa no seu pé: é mais fácil que você
reaja a essa situação, porque lhe criou um incômodo
momentâneo, do que dar uma resposta ao fato de,
todos os dias, ser tratado como um bicho, sem
capacidade de inteligir a realidade, pela televisão ou
pelos perfis de redes sociais que “comercializam” os
mimos da pós-modernidade. O fato é que, ao
negligenciar o próprio “Eu”, você anestesia a
dor de não ser tratado como pessoa humana.

Na medida em que você não consegue dizer “eu”


adequadamente, também não consegue se observar
em ação e, não conseguindo isso, não sabendo quem
é, autorizará qualquer pessoa com um poder um
pouco maior do que o seu a escravizá-lo. O problema
é que essa pessoa que tem um poder um pouco maior
do que o seu muito dificilmente será uma
personalidade forte, madura, inteira. Em geral, esse
“pouco de poder” de que é dotado o poderoso é
aplicado justamente no sentido de massacrar ainda
mais o “Eu”. Não bastasse o conformismo a que nos
referimos antes, ficamos à mercê do totalitarismo
daqueles que vivem segundo a lógica da vontade de
poder.

Além disso, outra conseqüência dessa


negligência precisa ser apontada: é que nos
esvaziamos, nos confundimos, experienciamos
o vazio e o niilismo — uma experiência segundo a
qual absolutamente nada faz sentido e nada dá conta
de responder ao anseio que define a vontade de
sentido.

Entenda, caro leitor: se você não vive uma relação


adequada consigo mesmo, não só se perderá como
também verá se perdendo qualquer possibilidade de
reconhecimento de sentido. Quantas experiências de
tristeza, quantos suicídios, quantas automutilações e
experiências de dores e sofrimentos indizíveis que
partem de um vazio como esse, experimentado
quando não conseguimos olhar para nós mesmos do
jeito certo.

Dessas experiências surgem também a ingratidão e


a violência em relação ao outro: quando você
pensa que o seu “Eu” não vale nada, restringindo-o
aos sentimentos experimentados, começa a julgar o
outro com essa mesma régua. É a partir disso que
nasce a violência, o uso e a instrumentalização do
outro.
Mas, será esta a palavra final?
Se você estava anestesiado, esta leitura é a chance
de sair dessa anestesia e experimentar uma crise
desejável, que vai lhe permitir ver nascendo em você
mesmo uma coisa chamada pergunta ou pedido.
Quando percebemos em nós uma dor, perguntamos:
o que é isso que estou experimentando? Para que isso
está acontecendo? O que é isso que está acontecendo
comigo? O que faço com essa dor? Nós pedimos
ajuda, nos dirigimos a alguém, voltamos o nosso “Eu”
para um “Tu”.

Em geral, o mero ato de voltar-se para um “Tu” já é o


início de uma abertura das portas da vida para algo a
que se dá o nome de encontro: é quando você pede,
pergunta, abre as portas para encontrar alguém a
quem dirigir seu pedido. Basta que você pergunte
com sinceridade e a possibilidade de encontrar uma
presença que faça emergir em si uma urgência de
mudança acontecerá. Basta que você perceba a dor
da insuficiência para já notar em si uma
disponibilidade a encontrar presenças e não mais
poderes ou prazeres; encontrar homens e mulheres
que despertam aquele desejo enorme de que a vida
se transforme.

A vida só vale alguma coisa se for diante da


presença de pessoas verdadeiramente inteiras para
as quais você possa olhar e dizer: “Mesmo com todas
as coisas erradas existentes neste mundo, a vida vale
a pena”.

O exercício que proponho agora é muito simples e,


no meu entender, talvez seja o mais necessário deste
livro. Trata-se de um exercício em etapas. Comece
olhando para si mesmo, atento às coisas que o
incomodam: não é para se vitimizar reclamando da
vida, de cara feia, dizendo que o calor incomoda, o
cansaço incomoda, o seu chefe incomoda. Eu quero
que você, primeiro, preste atenção no incômodo,
porque ele é o que gera a crise. O mal-estar faz com
que você sinta, pelo menos, cócegas nessa urgência
de que a vida tenha sentido. É nesse momento que
entra a segunda etapa: quero que você olhe para o
incômodo e não pare nele, mas se pergunte “qual é o
meu anseio nessa situação? Do que eu tenho
urgência nessa situação incômoda?”.

Capítulo ix
Relacionamento com Deus
F oram vários os motivos que me fizeram tratar por
último do relacionamento com Deus. Porém, basta
que você saiba, em primeiro lugar, que o assunto
tratado no capítulo anterior está intimamente ligado
ao que abordaremos nas próximas páginas; em
segundo lugar, você já deve ter percebido em si, e
nas pessoas que o cercam, o ressurgimento do
interesse pela experiência religiosa, o qual não
se trata de mera curiosidade mas tem a ver, isso sim,
com a busca por sentido.
O senso religioso
O retorno a que me referi não é uma novidade. Isso
acontece com certa freqüência na história da
civilização. O problema é que muitas vezes as
pessoas procuram retornar à fé mas o fazem
equivocadamente. A onda do mindfullness, que
tomou conta dos consultórios de psicologia e virou
moda entre empresários, os quais gastam pequenas
fortunas para, todos os dias, na hora do almoço, ficar
alguns minutos em salas sem janelas, ouvindo sons
da natureza ou mantras cantados em alguma língua
oriental esquecida, é um exemplo disso. Vemos,
também, grupos pretensamente religiosos apelarem
ao sentimentalismo, convidando pessoas a terem
“sensações religiosas” no mais das vezes
histeriformes. Há, ademais, os grupos tradicionalistas
cujos membros pensam ser os únicos portadores ou
defensores da doutrina religiosa e de toda a tradição.

Se pensarmos na dinâmica da busca por sentido, da


qual falamos no capítulo anterior, veremos que ela é
parte da natureza humana e que existe desde o início
dos tempos. Compreenderemos isso melhor nas
próximas páginas, e o faremos com o auxílio de
alguns textos de literatura e filosofia, a começar por
um escrito pelo poeta e dramaturgo inglês T. S. Eliot,
a poesia dramática Coros de “A Rocha”, escrita em
1934.

Se prestarmos bastante atenção à história humana,


perceberemos que essa busca por sentido sempre
existiu: os homens de todos os tempos sempre
buscaram sentido para suas vidas, e disso
nasceu, efetivamente, a experiência que chamamos
de religião. Com efeito, as experiências religiosas, em
toda a história humana, foram tentativas
empreendidas para encontrar respostas. Os
resultados eram sempre negativos. Mas uma hora o
jogo virou, e os homens que estavam sempre com o
olhar voltado para cima, buscando respostas, de
repente viram a dinâmica se inverter:
E adveio então, num instante predeterminado, um momento no tempo
e do tempo.

Um momento não fora do tempo, mas no tempo, a que chamamos


história — seccionando, dividindo o mundo do tempo.

Um momento no tempo, mas não como um momento do tempo. Um


momento no tempo, mas o tempo foi criado a partir daquele
momento, pois não há tempo sem significado, e aquele momento deu
sentido ao tempo.

Os homens que estavam ocupados com o mistério da


vida, perguntando-se sobre o sentido de suas vidas e
da história, viram acontecer esse evento sem
precedentes, e então a busca mudou: o próprio
Sentido da vida passou, então, a se dirigir ao coração
do homem, buscando sua disponibilidade. Não é mais
a pessoa que, pela religião, busca encontrar alguém
que lhe diz por qual caminho seguir, qual norma
moral cumprir, qual comportamento adotar.
Repentinamente aparece, como um “raio” no meio da
história, Alguém que diz de Si: “Eu sou o Caminho”,
dividindo o tempo em antes e depois. Não apenas o
tempo da história humana, mas o meu e o seu tempo:
obrigando-nos a uma tomada de posição. Seja você
cristão, judeu, muçulmano, budista ou agnóstico, seja
você ateu ou crente, o fato é que todos conhecem
bem essa história que, concebida do ponto de vista
antropológico-histórico, nos interessa quando falamos
de relacionamento com Deus.
Pareceu então que os homens deveriam proceder de luz em luz, na luz
do Verbo. Através da paixão e do sacrifício, salvos apesar de seu mal.

Bestiais como sempre, carnais, egoístas, interesseiros e obtusos como


desde sempre o foram, porém sempre em luta, sempre reafirmando,
sempre retomando sua marcha sobre o caminho iluminado pela luz;
freqüentemente parando, perdendo tempo, desviando-se, atrasando-
se, retornando, porém nunca seguindo outro caminho.

Qual caminho seguir? O caminho do esforço


solitário e triste? Ou o caminho que se apresenta na
pessoa d’Aquele que diz ser “o” caminho? O caminho
bestial, carnal, egoísta, interesseiro e obtuso do seu
voluntarismo e do seu esforço de virtude, tantas
vezes só de fachada, ou o caminho iluminado mas
estreito e exigente d’Aquele que Se propôs como via
e modelo de perfeição? O problema é que, para nós,
homens e mulheres hiper-modernos, o
relacionamento com Deus muitas vezes não passa de
uma superficialidade repleta de sentimentalismo.
Trata-se, na melhor das hipóteses, de um
relacionamento com uma expectativa nossa, um
desejo nosso, um sentimento nosso, em que
direcionamos nossas atenções não a Deus, mas a
projeções. Por isso, ainda que digamos seguir ou
querer seguir “o” caminho, estamos, quando muito,
seguindo o nosso caminho: parando, perdendo tempo,
desviando-nos, atrasando-nos, retornando, mas nunca
seguindo “o” caminho.

O relacionamento com Deus — marca do que


chamamos de senso religioso — é necessariamente
um relacionamento com uma pessoa. Eu vinha
falando, até o capítulo anterior, do relacionamento
com realidades que se fazem presentes muito
concretamente. Se aquilo com que nos relacionamos,
quando estamos falando de Deus, é o conjunto de
coisas que temos dentro da nossa cabeça — como
projetos, afetações ou sensações —, trata-se de algo
com que não podemos nos relacionar, sendo apenas
pensamentos. Caso queiramos falar do
relacionamento com Deus, devemos falar do
relacionamento com Alguém que toma uma
iniciativa para conosco e não com alguma coisa
que inventamos em nossacabeças.

A imagem acima descreve, de maneira plástica e


visual, o que tratamos até este ponto do capítulo: a
linha horizontal poderia ser concebida como a linha
do tempo, da história. As setas apontando para cima
são os homens de todos os tempos buscando uma
resposta para o mistério do sentido da vida. Mas, em
certo momento, o Mistério entra na história e, a partir
de então, não é preciso mais que alguém nos diga
qual é o caminho, porque Ele mesmo diz isso de si,
estabelecendo, de uma vez por todas, o método para
chegar ao Sentido: o encontro. É Ele quem entra no
relacionamento, trata-se da experiência de Alguém
que toma a iniciativa conosco. Todavia, nessa mesma
história começa a acontecer uma mudança, sobretudo
a partir dos últimos 400 ou 500 anos: um movimento
de supressão desse desejo de sentido que marca a
condição humana deixa o coração dos homens sob
escombros, e assistimos atônitos ao apagamento, em
nós, do desejo de nos movermos sob o influxo da
sede de sentido:
Mas parece que algo aconteceu, que antes jamais acontecera, embora
não saibamos com certeza quando ou por que, ou como ou onde.
Os homens não renunciaram a Deus por outros deuses

— dizem eles — mas por Deus nenhum, e isso jamais acontecera antes
de que os homens renegassem tanto os deuses quanto a sua
adoração, professando antes de tudo a razão e depois o dinheiro, o
poder, e o que chamamos vida, ou raça, ou dialética.

Que haveríamos de fazer, senão quedar-nos com as mãos vazias,


espalmadas para o alto numa idade que aos poucos parece sempre
retroceder?

Mais à frente, no mesmo poema, Eliot diz que os


ídolos que foram escolhidos como substitutos de Deus
podem ser resumidos em três palavras: usura, luxúria
e poder. Os homens passaram a cultuar ídolos,
tornando-se escravos deles. Você se lembra do que
tratamos acima, quando dissemos que, se um
relacionamento não tem como alvo um “Tu”, o que
sobra é o relacionamento com uma coisa: não
estamos mais diante de um relacionamento humano,
e sim diante de alguma coisa que é considerada útil.

A pergunta que poderia surgir a partir disso é a


seguinte: como e quando isso aconteceu na história?
Não pretendo ser historicamente preciso para
responder a essa pergunta, mas poderíamos traçar
um movimento a partir de três momentos históricos
muito significativos, nos quais foi oferecida uma
resposta menor para esse anseio de sentido que tanto
moveu e move os homens na história humana.

A negação do senso religioso


Falemos do humanismo. Esse movimento cultural
mostrou sua face já no final da Idade Média e fez com
que o homem substituísse o ideal da perfeição por um
ideal de idolatria das capacidades humanas. “Eu sou
capaz”, eis a frase que poderia ser usada para
designar o modo como pensavam os humanistas. Mas
esse não é um problema do homem de 500 anos
atrás: também você, hoje, em pleno século xxi ,
acredita que é capaz de fazer qualquer coisa, e
acredita nisso ainda mais do que aqueles homens que
aos poucos descobriam o conforto.

Não sei se você já teve a oportunidade de entrar


numa igreja gótica medieval: a experiência vivida ali
nos coloca diante de algo misterioso, grandioso, do
sagrado, do divino. Por outro lado, quando você entra
numa igreja renascentista, como a Catedral de São
Pedro, no Vaticano, inevitavelmente se pergunta:
“Caramba! Como fizeram isso?”. É impressionante,
porque vendo uma obra arquitetônica como aquela
você acaba dando mais valor à capacidade humana
do que ao mistério divino. Quando você entra numa
igreja renascentista, o que fica evidente é a
capacidade humana de construir coisas belas. O
problema é que essa mesma experiência cria uma
substituição: passamos a não querer mais o
transcendente, e sim uma especialização de alguma
capacidade nossa, de algo que podemos construir.

O segundo movimento histórico para o qual gostaria


de chamar sua atenção é o que vem logo em seguida
ao humanismo: o racionalismo científico do século
xvii . Esse movimento cultural e filosófico fez o homem
acreditar que, sendo capaz de conhecer a natureza
com precisão, ele poderia perceber que suas
capacidades dependem exclusivamente de sua
natureza humana. “Faz aquilo que queres, porque o
homem é naturalmente levado a praticar atos
virtuosos”, escreveu, nas vésperas desse momento
histórico, o pensador francês François Rabelais. O
racionalismo de fato criou os fundamentos para essa
idéia segundo a qual o Bem último da humanidade é
natural em todos nós. Rabelais esqueceu, porém, de
algo que Ovídio deixou cunhado em pedra: “Eu vejo o
melhor e faço o pior”. É exatamente o que acontece
conosco: queremos ser bons mas agimos mal. O
racionalismo, com sua sanha de correção e rigor
metodológico tirou de cena a possibilidade de vermos
o homem como um ser passível de falhas.

Como terceiro movimento histórico, depois do


humanismo e do racionalismo científico, aparece no
Ocidente a imagem da razão entendida como medida
de todas as coisas, construída sobretudo pelo
iluminismo, no século xviii . Este é um dos pontos dos
mais complicados nessa trajetória, conforme
começamos a entender que a razão é a medida de
todas as coisas, tudo o que ela não consegue alcançar
deixa de ser digno de atenção, e se perdemos a
oportunidade de poder olhar séria e concretamente
para algum dado da realidade, acabamos por mutilar
nosso pensamento e eliminar uma possibilidade.

Não é de se estranhar que justamente nesse período


da história tenha surgido a idéia de educação estatal
e universal. A educação passou a ser entendida como
recurso de manipulação, de homologação das
pessoas a um certo ideal, a uma ideologia, a uma
perspectiva estatal laicista de compreensão de tudo
quanto existe. Seu laicismo poderia ser descrito como
uma espécie de desmonte da realidade, cujo âmbito
da materialidade se torna o único importante — é
uma profanação da realidade. Entenda-se
“profanação” como o movimento que tira a
sacralidade da coisa, colocando-a fora do espaço
sagrado (o fanum). É — usando a imagem poética de
Adélia Prado — “olhar pedra e ver apenas pedra”.

Querendo ou não, todos nós fomos profundamente


afetados por esse laicismo e pelos outros dois
movimentos. Pense se não é verdade que em algum
momento da sua vida ou agora mesmo, enquanto lê
esse livro, você não preferiria ser escravo do poder de
uma determinada ideologia ou uma opinião comum a
precisar depender de Deus. Talvez você até diga:
“Não, eu prefiro depender de Deus”. Mas aí eu
pergunto: quem é Deus para você? E arrisco a pensar
que você vai começar a enumerar, minuciosamente,
toda uma série de valores, normas e comportamentos
que guiam os seus atos; porém, para que falemos de
um relacionamento com Deus, é preciso que
estejamos falando de Alguém que toma uma iniciativa
conosco e não de alguém que nos impõe um conjunto
de atitudes que devemos assumir.

Retomada do senso religioso


Se é para falar de um relacionamento com Deus, é
preciso que você abra mão dos deuses aos quais
aderiu; aqueles deuses a que se refere Eliot, o deus
da razão, do dinheiro, do poder, do sexo, do conforto,
dentre outros. Este é o ponto de partida para
entendermos como é possível reconstruir um
relacionamento com Deus, não mais um simulacro de
religião.
Caso aceitemos ser escravos desses deuses, quais
serão as conseqüências? Platão, no seu diálogo
Timeu, conta uma história que pode ajudar a
entender isso: Sócrates estava conversando com um
grupo de quatro discípulos, e num determinado
momento do diálogo eles começam a falar de
Atlântida, que é descrita como um continente no qual
os homens tinham atingido um grau de
desenvolvimento civilizacional fora do comum. Ou
seja, haviam chegado ao cume do desenvolvimento
da razão, o que, segundo os interlocutores, os levou a
abandonar todo tipo de idolatria: eles não tinham
nenhum tipo de relação com deus algum, chegando
mesmo a quebrar todas as estátuas de todos os
deuses. Estes, então, fizeram uma partilha dos
continentes sob seus domínios e coube a Poseidon
ficar com Atlântida. O deus se irou quando viu que
aquelas pessoas haviam progredido em capacidade
intelectual, racional, militar, e, no entanto,
abandonado a obediência aos deuses. Poseidon reúne
os deuses para decidirem juntos qual iniciativa tomar
com relação a Atlântida, e todos escolhem destruí-la.
E essa é a história do continente inteiro que afunda
no oceano. Eis aí a conseqüência de vivermos a
experiência do relacionamento com Deus numa
perspectiva reduzida ou abandonando o que é capaz
de responder ao nosso anseio de sentido — se assim
fazemos, afundamos. Veja o que diz Friedrich
Nietzsche, uma pessoa que vem muito bem a calhar
neste contexto, sobretudo acerca do que ele mesmo
fez: “Certo dia, o viajante fechou atrás de si a porta e
chorou. Depois disse: ‘Este ardente desejo da
verdade, este ardente desejo da realidade, da não
aparência, da certeza. Como o odeio’”. Isso é o que
acontece conosco, passamos a odiar aquilo que
define o que nós somos; passamos a odiar, portanto,
a única coisa que pode nos ajudar a ter um
relacionamento adequado com Deus. Já no final da
Antigüidade, Cícero disse: “Não é torpe que os
filósofos duvidem de coisas de que nem os
camponeses duvidam?”. Quantos de nós não
duvidamos de coisas de que nem os camponeses
duvidam? Esse “de que nem os camponeses
duvidam” não se trata de uma atribuição de
incapacidade aos camponeses, mas sim de uma
constatação da nossa incapacidade de estar na
realidade. Isso tira de nós a capacidade elementar
que o ser humano possui de fazer perguntas. Se não
pedirmos, se não “nos quedarmos com as mãos
vazias, espalmadas para o alto numa idade que aos
poucos parece sempre retroceder”, o que nos
restará? Essa “idade que parece sempre retroceder” é
a idade da simplicidade de quem olha para o alto e
espera que, na verdade, o movimento não seja de
ascensão voluntarista nossa, mas de espera d’Aquele
que toma iniciativa conosco e deposita a moeda da
misericórdia em nossas mãos.

Quer se relacionar com Deus? Relacione-se com


Alguém, com uma Pessoa que toma a iniciativa com
você, respondendo ao seu anseio profundo por uma
vida cheia de sentido. Mas você só vai entender isso
quando perceber em si mesmo a existência desse
anseio. E como viver esse relacionamento com Deus?
Deve ser a pergunta que você está fazendo neste
momento. Façamos um exercício. O que vou lhe
propor, agora, não é uma invenção moderna da
psicologia ou uma técnica inovadora. Na verdade, é
fruto de uma longa tradição.

Antes, uma observação importante: Sófocles, na sua


peça Antígona, chama a atenção para o seguinte fato:
“Não carregar no teu espírito a idéia, solitária, de que
a verdade seja tua e de que ninguém mais seja
verdadeiro. Quem está convencido de que só ele tem
bom senso, de que só ele tem a palavra ou a alma,
tão logo o descobre, vê que é vazio por dentro. Mas
para um homem, mesmo sábio, aprender, depor a
obstinação nunca é desonroso”. A primeira tarefa,
neste exercício, é “depor a obstinação” de
permanecer “vazio por dentro”, assumindo, desde
agora, a necessidade de recuperar o bom senso e, por
isso mesmo, aprender o uso da palavra e a ter como
ponto de partida, na relação com Deus, a alma,
aquele ponto da sua humanidade onde se inscreve
mais evidentemente o fato de você ser. Sim, a
palavra é a voz do seu ser, a linguagem é o lugar no
qual o seu ser se revela: “A linguagem é a casa do
ser, e ao habitá-la o homem existe, pertencendo à
verdade do ser e a custodiando”, segundo o filósofo e
teólogo italiano Emilio Baccarini. Em outras palavras,
o que vou lhe propor agora é uma forma de dialogar,
certo de que o diálogo se situa no nível do que é
próprio da pessoa, e não no nível dos esquemas
mentais ou das categorias de pensamento. E essa
forma especial de diálogo, que remonta a uma
antiqüíssima tradição, chama-se “oração”.

Chamei sua atenção, ao longo de todo esse capítulo,


implícita e explicitamente, para o fato de que o
relacionamento com Deus deve ser o relacionamento
com uma pessoa. Agora, ao lhe propor o exercício
final, disse-lhe que pessoa é o lugar próprio do
diálogo. No entanto, a maior parte dos
relacionamentos humanos não acontece, pelo menos
conscientemente, no nível pessoal, como vimos ao
longo de todo este livro: lidamos com os outros como
se fossem indivíduos, como se fôssemos indivíduos. E
o problema é que, no individual há apenas o “Eu”,
mas não há ainda o “Tu”. Ao passo que, segundo
Emmanuel Mounier,
a pessoa se desenvolve apenas ao se purificar do indivíduo que há
nela; e a isso chega não tanto com a atenção contínua sobre si
mesma, mas sobretudo se tornando sempre mais disponível, portanto
mais transparente a si mesma e aos outros. E então acontece como,
se apenas naquele momento, não estando ocupada de si, ela se
tornasse capaz de ver os outros e atingisse o estado de graça.

Purificar-se do indivíduo que há em você é purificar-


se do egoísmo, da tendência a conceber o mundo, as
pessoas e Deus como seus devedores. Purificar-se do
indivíduo que há em você é chegar a tocar esse ponto
central da sua pessoa — a alma — e ver a sede de
verdade que é a centelha de cada movimento seu.
Uma sede que se manifesta sob a forma de busca
pela verdade, cuja implicação se encontra bem
descrita na expressão agostiniana verum facere se
ipsum, que poderia ser traduzida livremente por
“somente quem é verdadeiro diz a verdade”. Oração
é uma forma de diálogo na qual o que se comunica é
a si mesmo, a verdade de si, para receber do
Interlocutor a Verdade que Ele é: na oração, mais do
que em qualquer outro diálogo que venhamos a
entabular na vida, comunicar é comunicar-se.

Mas o que comunicar de si? Há sete coisas que


comunicam a verdade do nosso ser: 1) nossa
necessidade de amar; 2) nossa necessidade de um
lugar para ser; 3) nossa necessidade de uma
referência para ser; 4) nossa necessidade de um
sustento para ser; 5) nossa necessidade de perdão; 6)
nossa necessidade de um auxílio para continuar
sendo e 7) nossa necessidade de libertação. Você
deve ter notado que repeti — e o fiz
propositadamente — a palavra “necessidade” sete
vezes. De fato, somos, antes de tudo o mais,
necessidade, somos mendicantes. Por isso, a melhor
oração é a que, confiante, pede humilde e
atentamente.

Quero que, ao final deste capítulo, você se decida a


começar ou a retomar a vida de oração. Faça-o, por
ora, da forma mais simples possível: use, como
recurso de oração, o Pai-Nosso, porque nessa oração
estão presentes exatamente as sete necessidades
que afligem sua alma, como a alma de toda pessoa
humana:
Pai nosso que estais nos céus, santificado seja o Vosso Nome (1),
venha a nós o Vosso Reino (2), seja feita a Vossa vontade (3), assim na
terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje (4), perdoai-
nos as nossas ofensas (5), assim como nós perdoamos a quem nos
tem ofendido, e não nos deixeis cair em tentação (6), mas livrai-nos do
mal (7). Amém.

Medite sobre cada pedido que faz ao dialogar com


Deus através dessa oração: faça você os paralelos
entre as sete petições do Pai-Nosso e as sete
necessidades que apontei antes. Mas nesse primeiro
momento não interessa ainda que você faça uma
meditação. Primeiro estabeleça, ao longo do seu dia,
três momentos nos quais você vai parar tudo o que
estiver fazendo e ler — isso mesmo: “ler” — a oração
do Pai-Nosso. Faça uma cópia dela numa folha de
papel e, com hora marcada, pare e dedique os poucos
segundos necessários para isso à leitura da oração
anotada. Mas leia com atenção! Leia sempre nos
mesmos horários: pela manhã, antes de sair de casa
ou de iniciar suas tarefas; à tarde, depois de ter
almoçado; e à noite, antes de dormir. Use o seu
celular para colocar um alarme. Faça apenas isso,
todos os dias — de domingo a domingo —, por no
mínimo 3 meses. Transforme isso em um hábito.
Depois desse período, acrescente ao seu dia dois
momentos de silêncio, de no máximo dez minutos,
inicialmente: um pela manhã, logo depois de se
levantar da cama, arrumá-la e se trocar, e outro no
fim do dia, antes de se preparar para dormir. Nesses
dois momentos, eu lhe sugiro a seguinte estrutura:
tenha à mão um livrinho chamado Imitação de Cristo
ou os livrinhos chamados Caminho, Sulco e Forja, de
São Josemaria Escrivá; você vai notar que eles são
compostos de centenas de pequenos parágrafos
numerados; nos minutos antes de dormir, leia um dos
parágrafos, e passe o restante do tempo pensando
sobre o conteúdo do que leu; quando for dormir, se
esforce por manter aquele conteúdo bem presente
para você; na manhã seguinte, no tempo destinado à
oração, retome o mesmo parágrafo que leu antes de
dormir, e procure responder a algumas perguntas no
restante do tempo que lhe sobrar (“o que devo pensar
sobre esse assunto apresentado nesse trecho que li?
Que conclusões práticas devo extrair dessa leitura?
Quais os motivos que tenho para ter chegado a essas
conclusões? Como tenho agido no que diz respeito a
este assunto sobre o qual li? O que devo fazer para
melhorar? Que obstáculos devo remover para
melhorar? Que meios devo empregar para conseguir
melhorar?”); extraia desse tempo de silêncio e de
oração uma pequena frase, anote-a e, ao longo do
dia, retome essa frase quantas vezes for possível.

Aumente, semana após semana, o tempo destinado


a essa oração, até conseguir dedicar 30 minutos pela
manhã e 30 minutos no fim do dia. Não abandone,
porém, o hábito adquirido de ler o Pai-Nosso três
vezes por dia.
Depois que conseguir se habituar a essas duas
atividades, você sentirá necessidade de dar outros
passos. Desse momento em diante, sugiro que
procure um diretor espiritual — alguém que tenha
uma vida interior bem estruturada e estável — que o
guie no caminho do aperfeiçoamento da intimidade
com Deus.

Capítulo x
Aplicando tudo o que
dissemos

H á,somos
na vida social, inúmeros momentos nos quais
como que convidados a iniciar relações. A
vida cotidiana é feita de encontros: não há um
momento do nosso cotidiano em que não sejamos
provocados a sair da nossa concha. Alguns, mais do
que outros, a depender do temperamento, do nível de
maturidade e da história pessoal, aceitam mais
rapidamente essas provocações. No entanto,
especialmente às vésperas das festas de fim de ano,
o relacionamento se torna um problema para a
maioria das pessoas: é um momento em que,
inevitavelmente, somos postos diante da necessidade
de responder ao problema dos relacionamentos, na
família, no trabalho, na relação amorosa, na realidade
que, de todos os lados, traz à tona o tema, na
experiência religiosa que, aqui e ali, é convocada de
alguma maneira. Em minha experiência clínica é
muito freqüente que no fim do ano diversas crises
sejam suscitadas, porque muitos são aqueles que não
sabem como “sobreviver” às comemorações, quando
têm de lidar com familiares, conhecidos, vizinhos,
amigos e colegas que acabam sendo vistos como
indesejáveis e inconvenientes.

Luigi Giussani, certa vez, provocou um grupo de


universitários, dizendo: “Temos de vencer a
imaturidade, essa rigidez que nos mantém presos a
um esquema. O nosso verdadeiro problema é sair da
imaturidade e reconhecer que não se trata de algo a
fazer, mas de uma metanóia”.

Para alguns a palavra metanóia pode parecer


estranha, mas significa conversão, uma mudança de
vida. O que Giussani está nos dizendo é que a
imaturidade é o nosso problema. Vencê-la não é fazer
alguma coisa, mas transformar-se, converter-se,
mudar o jeito de nos envolvermos com as questões
da vida e com os relacionamentos. As festas de fim de
ano, com os encontros que todos fazemos, trazem à
tona de uma série de dores, rancores, amarguras,
medos, coisas que não queremos enfrentar. É
provável que você também já tenha experimentado
isso, sem saber ao certo o que fazer.

Premissa
O grande problema dos momentos de encontro
familiar, como os que acontecem nas festas de fim de
ano, tem a ver com o tema da autoridade: esta é uma
palavra que muitas vezes soa mal aos nossos
ouvidos, mas o que me interessa aqui é que se saiba
que, ao usá-la, me refiro menos à idéia de poder ou à
idéia de temor do que à experiência de estar diante
de alguém que testemunha como é real a
possibilidade do sentido da vida. A autoridade, com
efeito, é alguém para quem a vida tem sentido: você
saberá que uma pessoa é uma autoridade não porque
ela está revestida de um papel de poder, mas porque
reconhece nela pretextos de ação próprios de quem
adere ao sentido, traços de quem entende que a vida
tem sentido. Essa é a característica mais importante
da autoridade.

Ao definir a autoridade dessa forma, estou definindo


também outra coisa fundamental: nas vidas que têm
sentido o Bom, o Belo e o Verdadeiro se realizam e
são testemunhados. Portanto, se o fator mais
importante do grupo familiar é a autoridade, você
precisa saber identificar quem é a pessoa que
coagula em torno de si esse agrupamento de
pessoas chamado família, não porque seja o
patriarca ou a matriarca, e sim porque é uma
autoridade com as características que acabei de
descrever. Esse mesmo raciocínio se aplica aos outros
âmbitos da vida dos quais fazem parte as relações.

Seguir quem ama o Bom, o Belo e o


Verdadeiro
Tendo identificado a autoridade na sua família, a
pergunta que surge é esta: o que fazer para seguir
essa autoridade? Se existe uma autoridade — palavra
que vem do latim auctoritas, aquele que dá a mão e
orienta, guia —, o impulso inicial, após seu
reconhecimento, é segui-la.

Esse certamente é um dos problemas mais


importantes, porque seguir uma autoridade é ser
filho dessa autoridade. O que, por óbvio, não quer
dizer que a autoridade, no cenário familiar a que me
referi no início desse capítulo, necessariamente seja o
seu pai ou a sua mãe. A autoridade, neste caso, é o
sujeito que se apresenta como portador de uma
promessa — a de que a vida pode ter sentido.

A relação com a autoridade é libertadora e possibilita


que sejamos quem de fato somos. É assim que
tomamos forma e nos tornamos pessoas. E quando
falo de forma, me refiro a um conceito filosófico muito
específico, ao qual não dedicarei longas explicações.
Basta que você saiba que esse conceito tem a ver
com a idéia de potência: nascemos com a capacidade
de ser pessoas e, com o tempo, atingimos nosso
potencial. Assim, seguir a autoridade é ter diante dos
olhos aquela personalidade que mostra como é
possível se tornar pessoa de modo pleno.

A autoridade é a nossa casa


Podemos concluir que só será verdadeira autoridade
aquela pessoa que fizer explodir em você a
experiência de liberdade, que tornar viva a sua
consciência e, portanto, a possibilidade de ser
verdadeiramente responsável. Você precisa saber
identificar na vida aquela pessoa que fez ou faz brotar
em você, de um jeito estrondoso, a certeza de que é
verdadeiramente possível ser você mesmo, ter
consciência de si e ser responsável.

Se a autoridade é a guardiã da nossa liberdade, será


com ela que todos aqueles que estão ao seu redor
experimentarão conforto. Haverá naquele
agrupamento de pessoas alguém que o fará sentir-se
em paz. É natural que isso aconteça: onde você se
sente mais à vontade? Certamente é em um
relacionamento no qual você pode ser você mesmo e
se sentir em casa. Aliás, a sua casa não é o espaço
físico no qual você reside, é o relacionamento que
você estabelece com a pessoa em cuja
companhia você se sente livre, e isso é a
experiência de um lar, de uma família.

Você é convidado a ser autoridade


Tendo em vista o que foi dito até aqui, talvez você
pense que há um problema, porque não vê na sua
família nenhuma autoridade. Mas saiba que você
mesmo pode ser uma autoridade caso encontre
alguém que o ajude a renascer como pessoa. Se você
tem um modelo em que pode se inspirar e percebe
que ele é marcado pelo Belo, pelo Bom e pelo
Verdadeiro, tendo portanto uma vida repleta de
sentido, você quase que automaticamente se torna a
autoridade em seu grupo familiar e em outros
relacionamentos. Você será, então, o fator mais
importante do grupo. Caso você queira sobreviver às
reuniões familiares, especialmente as que acontecem
no fim de ano, estando inteiro nas relações, precisará
contemplar alguém que seja uma autoridade e aponte
o caminho.

O último de todos os exercícios que proponho não


tem como objetivo ajudá-lo a “sobreviver” às festas
de fim de ano, mas fazê-lo viver integralmente esse e
outros momentos nos seus diversos relacionamentos.
O exercício é o seguinte: não se preocupe em
sobreviver às festas, esqueça isso — apenas tente
ajudar os outros a viverem melhor. As comemorações
de fim de ano, se vividas com esta perspectiva que
descrevemos, podem constituir momentos riquíssimos
(não quer dizer que sejam momentos marcados por
uma harmonia artificial, de vitrine). O que faz com
que esse momento e esse encontro sejam benéficos é
a possibilidade de você ser um vetor do Belo, do Bom
e do Verdadeiro para os seus familiares; que eles
olhem para você e voltem a acreditar que a vida tem,
sim, um sentido.

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