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Como escreve

Adilson José Moreira

Entrevista a José Nunes de Cerqueira Neto,

publicada em: comoeuescrevo.com

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?

Tenho uma rotina diária estruturada. Acordo por volta das sete horas. Saio cedo

para trabalhar dois dias da semana. Leciono e passo o resto da manhã na biblioteca

lendo ou preparando aulas. Faço uma caminhada de uma ou duas horas nos outros

dias. Vou para a biblioteca depois disso ou então fico em casa quando estou escre-

vendo e preciso consultar meus livros.

Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual

de preparação para a escrita?

Eu produzo melhor pela manhã e à noite. Meu cérebro funciona a pleno vapor

entre oito horas da noite às três da manhã. Bem, eu só começo a escrever depois de

ter elaborado toda a argumentação do texto mentalmente. Passo horas e horas cami-

nhando e formulando o texto na minha cabeça. Quase fui atropelado por estar inteira-

mente imerso nos meus pensamentos. Meus textos são “escritos” durante as minhas

caminhadas. Eu sento e escrevo um esquema que tem início com as particularidades e

implicações jurídicas de um determinado problema. Ele prossegue com os principais

tópicos que serão tratados nas partes ou capítulos. Eu preciso estar em um local silen-

cioso. Tomo um copo de água, tiro os sapatos, pego a minha coleção de 47 lapiseiras

e começo a trabalhar.

Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você

tem uma meta de escrita diária?

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Isso depende do momento de elaboração do texto. Tem dias que não escrevo

nada porque estou apenas lendo, fazendo fichamento ou preparando um esquema do

que eu pretendo escrever. Passo o dia inteiro escrevendo quando tudo isso já foi feito.

Preparo as minhas aulas durante a semana pela manhã e escrevo à noite e nos finais

de semana. Eu dedico semestres ou anos à elaboração de um projeto. Faço leituras

sobre outros assuntos, mas a maior parte do meu tempo é dedicada à leitura de obras

relativas ao que estou escrevendo. Estabeleço alguns objetivos que poderão ser alcan-

çados em um dia ou em uma semana. Tudo depende da complexidade do argumento

que estou desenvolvendo.

Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas sufi-

cientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?

Não começo a escrever a partir de notas. Começo a escrever a partir de um es-

quema detalhado de todos os tópicos que serão tratados em cada uma das partes do

texto. Esse esquema é produto de toda a pesquisa bibliográfica anterior à elaboração

do artigo ou livro. Não tenho problemas com a escrita. Na verdade, ela é bem rápida.

Gasto a maior parte do tempo elaborando as ideias mentalmente, e isso depois de

longas discussões com colegas sobre o assunto.  Os fichamentos dos livros e deci-

sões judiciais não são a fonte principal da minha escrita; ao contrário de muitos auto-

res brasileiros, meus textos não são meras paráfrases dos textos de outros autores.

Sempre quero estar certo que sou eu, Adilson, que está falando. Eu estabeleço con-

versas com os autores.

Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo

de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos lon-

gos?

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A procrastinação acontece quando os argumentos ainda não estão suficiente-

mente claros na minha mente. Tenho colhido material para um pequeno livro sobre ra-

cismo recreativo ao longo dos últimos três anos. Já escrevi dois livros nesse período,

mas só agora consegui terminar esse projeto porque a argumentação ainda não estava

clara na minha cabeça. Aliás, não é uma “falta de clareza”, mas sim uma demora em

sentar e organizar todos os tópicos do assunto. É uma pesquisa interdisciplinar: esse

livro sobre racismo recreativo toca temas jurídicos, sociológicos, filosóficos, psicanalí-

ticos. Há toda uma filosofia do humor com a qual eu não estava familiarizado.

Penso que o medo de não corresponder às expectativas decorre de problemas

de caráter metodológico. Leciono metodologia científica e sei quais são os obstáculos

que as pessoas enfrentam. A ansiedade com a escrita decorre basicamente da falta de

planejamento. A escrita não me causa ansiedade alguma. É, para mim, um momento

de grande tranquilidade.

Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão pron-

tos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?

Creio que todos os textos passam por um processo de gestação. Estou traba-

lhando em dois artigos no momento. Um faz uma crítica racial do debate sobre uniões

entre pessoas do mesmo sexo e o outro uma crítica sexual da discussão sobre ações

afirmativas. Apresentei as ideias centrais desses textos em um evento no qual partici-

pei no início do ano passado. Anotei as sugestões feitas pelos outros membros da

mesa e pela audiência presente. Escrevi grande parte dele e os deixei de lado. Li mais

artigos e livros sobre o assunto e voltei a trabalhar neles recentemente. Sinto que estão

suficientemente amadurecidos para serem submetidos aos meus colegas.

Tenho longas conversas sobre meus trabalhos com meus colegas e alunos. Co-

ordeno um grupo de leitura com os professores da faculdade de direito na qual leciono.

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Também coordeno um grupo de estudos. Esse diálogo é muito importante. As pessoas

no Brasil sofrem com a escrita porque não compartilham seus trabalhos, porque não

discutem suas ideias. Eu as discuto com pessoas que são especialistas e também com

aquelas que não têm conhecimento sobre o assunto sobre o qual estou escrevendo. A

escrita só acontece depois que já debati o tema e o esquema da argumentação que

pretendo desenvolver com um número significativo de colegas. Não produzo nada so-

zinho. A produção científica é um parte de um diálogo que está em andamento. Essa é

uma coisa boa que aprendi com os norte-americanos: a escrita é um projeto coletivo.

Observo uma grande mediocridade na produção jurídica do país e isso se deve ao fato

de que as pessoas não têm e não procuram interlocutores. Bem, isso não é culpa de-

las. Não somos educados dessa forma. Isso não faz parte de nossa cultura acadêmica.

Eu incluo as sugestões dos meus interlocutores e só depois envio para publica-

ção, o que acontecerá depois de várias revisões. Levarei em consideração a clareza da

proposição do problema, da hipótese, do marco teórico e da argumentação. Também

observarei se o material de análise realmente oferece elementos suficientes para sus-

tentar o que estou dizendo.

Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascu-

nhos à mão ou no computador?

Escrevo tudo à mão. Leio o que escrevi e depois passo para o computador, o

que é um momento de revisão do texto. Fico mais concentrado quando estou escre-

vendo à mão, meus textos escritos dessa forma são sempre muito melhores.

De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para

se manter criativo?

Bem, sou um jurista e escrevo sobre temas referentes à realidade social do nos-

so país. Estabeleço tópicos sobre os quais pesquisarei durante um determinado perío-

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do de tempo. Sou especialista em direito de minorias e procuro abordar uma dimensão

dos problemas enfrentados por esses grupos em cada um dos meus trabalhos. Consi-

dero que não tenho mais contribuições significativas a dar para o debate sobre os di-

reitos de minorias sexuais no momento. Estou interessado no racismo no judiciário.

Aliás, acabo de terminar um artigo sobre criminologia. Esse será o tema da minha pro-

dução durante os próximos anos.

O jurista não trabalha com inspirações no sentido comum do termo. Nossa pro-

dução não é movida pela atuação das musas, embora alguns juristas escrevam com a

mesma elegância que muitos poetas. Não tenho o mesmo espaço para criatividade

que um poeta ou um prosador tem. De qualquer forma, sempre procuro utilizar meto-

dologias de pesquisa que permitam abordar os temas de minha pesquisa de forma

inovadora. É o caso do meu texto sobre epistemologia racial chamado “Pensando

como um negro”.

O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos

anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?

Minha experiência acadêmica nos EUA teve um impacto tremendo na forma

como escrevo. Meus textos são bem mais objetivos e rigorosos. Escrevo para o públi-

co em geral e não apenas para o meio jurídico. Sigo à risca o modelo norte-americano

e creio que isso fez com que meu trabalho se tornasse muito melhor do que antes. O

que eu diria para mim mesmo se pudesse voltar à escrita da minha tese? Planejamen-

to, planejamento, planejamento.

Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro

você gostaria de ler e ele ainda não existe?

Bem, ainda quero escrever um livro sobre meu bisavô João Pereira da Gama.

Ele era um homem negro que lutou na Guerra do Paraguai. Seria ótimo escrever uma

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obra que faça uma relação direta entre a história da minha família e um dos episódios

mais trágicos da história do Brasil. Quero ler um livro sobre o envolvimento das mulhe-

res negras na história dos movimentos políticos do nosso país.

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Adilson José Moreira é doutor em direito pela Universidade de Harvard.

José Nunes de Cerqueira Neto é doutorando em direito na Universidade de Brasília.

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