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O MÍNIMO QUE VOCÊ

PRECISA SABER
SOBRE SAÚDE
M E N TA L
O mínimo sobre psicologia para pensar
sobre você

Paulo Aguirra
Copyright © 2023 Paulo Aguirra Gameiro

ISBN: 9798396741263
Todos os direitos reservados
CONTENTS

Title Page
Copyright
Agradecimentos
Contato
Sobre o Autor
Introdução
Um argumento egoísta sobre a gentileza
Autossabotagem e a idealização da perfeição
Use muletas para fazer coisas novas
Parar evita que você pare
O tempo da mudança
Profecias auto-realizadoras
Longo prazo é um luxo que se conquista fazendo o básico
O vício em finanças: uma carta endereçada a quem possa
interessar
"No pain, no gain”?
A busca do propósito
Dinheiro não traz felicidade
Nem sempre alcançamos sucesso ganhando
Responsabilidade e culpa
A ilusão do melhor método
O mundo não está contra você…
O que sucesso demanda?
Saber pedir ajuda é fundamental para qualquer coisa
Guidelines: Produtividade em paz
Porque eu me importo…
O limite ao cuidar do outro
Seja gentil
AGRADECIMENTOS
Eu sou o tanto que aqueles que me ajudaram permitiram
que eu pudesse ser.

Quem me ajudou não precisou de nada de mim mas


espero que, com essa publicação, eu consiga ajudar a
quem precisa.

E que, com isso, estes possam ajudar outras pessoas.


CONTATO
Instagram: instagram.com/ninho_psi
Youtube: youtube.com/ninhopsicologia
E-mail: paulo@ninhopsi.com.br
SOBRE O AUTOR
-De Priscilla Leonel

Paulo Aguirra iniciou sua carreira acreditando que, se conseguia


aplicar as teorias estudadas na universidade em sua própria vida,
talvez ele pudesse ajudar a mais pessoas.
Por isso, hoje não só as atende, mas é professor e faz supervisão
de novos psicoterapeutas, entendendo que ajudar uma pessoa de
cada vez tem sido pouco em sua trajetória.
Para o Paulo, a psicologia pode servir a mais pessoas - e é por isso
que tem se dedicado enquanto comunicador em saúde também.
A tradução científica tem sido valiosa para que o autor convença as
pessoas de que elas podem se beneficiar da psicologia. As
metáforas surgem em sua escrita como ferramentas
potencializadoras dessa comunicação. Elas substituem termos
técnicos que, segundo Paulo, apenas geram uma suposta “ilusão”
de que passamos a “saber o que temos” - e de que, portanto,
teremos o controle sobre aquilo.
Para o autor, estes termos podem até facilitar a comunicação entre
pares da psicologia, mas os demais não precisam acessar esse tipo
de conhecimento.
Por isso, ele segue apostando na linguagem simples e
representativa para facilitar a compreensão das pessoas sobre
fenômenos complexos do cerebelo sem precisar de muito lenga-
lenga.
INTRODUÇÃO
Esta publicação vem de um apanhado de textos escritos para o site
de educação financeira Bastter.com, onde atuo como moderador de
saúde.
Ela é produto do acúmulo de percepções da experiência clínica com
centenas de pacientes em condições graves de adoecimento
psicológico e da vontade de conseguir comunicar saúde mental de
forma prática e sem rodeios para o público leigo.
Boa parte do meu trabalho é entender o que as pessoas de fato
precisam - e traçar estratégias que produzam resultados. Portanto,
estes textos representam mais uma tentativa de transformar ideias
em mudanças.
Lembro que não pretendo esgotar qualquer tema aqui abordado.
Diferentemente do que acontece na atuação acadêmica, ou na
realizada na clínica, acredito no trabalho do comunicador em saúde
como de grande relevância para levantar temas que afetam nossas
realidades e iniciar reflexões sem buscar necessariamente encerrá-
las.
Um outro caminho faria mais mal do que bem aos propósitos aqui
almejados.
Por fim, esta é uma publicação sobre saúde, com propósitos de
refletir sobre o que pode melhorar a qualidade de vida das pessoas.
Saúde é uma busca que se faz durante uma vida, projeto que acaba
na morte. Proponho, então, um declÍnio na escolha de focar no
adoecimento. Não há possibilidade de ficar saudável olhando só
para a doença. A busca da saúde é uma busca em si mesma.
Vamos lá.
UM ARGUMENTO
EGOÍSTA SOBRE A
GENTILEZA

A h, os “realistas”... Jamais se diriam “pessimistas”. Mas parte


daqueles que se identificam como realistas são, na
verdade, as pessoas mais inconformadas do mundo. O
lado bom nisso é que o inconformismo não é ruim. Pelo contrário,
ele é parte da engrenagem que possibilita a mudança de condições
ou situações que não podemos aceitar como dignas.
De outro lado, temos aqueles que gastam parte de suas vidas em
extremo alerta, prontos para uma briga, em constante julgamento
das coisas e pessoas, afoitos para tecer opiniões críticas sobre elas.
Quase sempre reclamam daquilo que nunca lhes parecerá bom.
Parte desses inconformados costuma se sentir um tanto injustiçado.
Pouco estão gratos pela existência, pouco são compassivos com
aqueles que estão em volta, pouco apreciam aquilo que é novo e
quase sempre “despercebem” as pequenas coisas boas da vida. O
que é uma pena porque, pelo que sabemos, da melhor ciência que
temos, viver em gratidão e compaixão faz muito bem para a saúde.
Mas eu queria trazer aqui um outro ponto, porque não é só que "não
agradecer" não faz bem. O problema mesmo é que viver em
estresse faz mal.
Como se sabe, o humano é uma “máquina” de fazer mais ou menos
coisas. O pensamento geral é o de que nós somos eficientes em
fazer essas coisas. E tal pensamento é verdade em algum nível,
mas apenas nele.
A diferença entre quem pratica esportes e quem não pratica
esportes é apenas que um faz mais ou menos esportes que o outro.
Mas eles não são isso. A todos os instantes eles se tornam isso.
Quem faz esportes está se tornando mais eficiente em fazer
esportes. Quem não faz, está se tornando eficiente em fazer outra
coisa.
O tempo todo nos transformamos em alguma coisa. A metáfora de
sermos máquinas é limitada porque não somos máquinas prontas.
Estamos em uma perpétua transformação e nos construímos
enquanto pessoas a partir daquilo que vivemos.
De novo, então: quanto mais vivemos algo, mais nos tornamos uma
ferramenta ótima para aquela situação. Pode ser qualquer situação.
Por isso a humanidade tem tanta diversidade de culturas, hábitos,
modos, técnicas e formas de fazer as coisas. Cada coisa que
aprendemos transforma o mundo, mas, acima de tudo, modifica o
humano que vive nele.
Se você toca violão repetidamente, você se torna uma ferramenta
melhor em fazer música no violão. O violão depois de dois anos de
treino é basicamente o mesmo que era no dia zero de treino. Quem
mudou foi você. Você se tornou uma ferramenta melhor em tocar
violão. Os dois são "ferramentas" da música.
A ideia do violão é um exemplo, mas ela pode ser aplicada
basicamente para tudo o que nós fazemos: trabalho, namoro,
amizade, relação com os pais, hobbies etc.
E aí voltamos aos reclamões de plantão. Quem é crítico - e aqui falo
de quem julga e reclama a todo o tempo - transforma-se, a cada
ação, em uma ferramenta melhor em julgar. Inclusive quando a
ferramenta não tiver necessidade de julgar, ela ainda será muito boa
naquilo, será quase automático. Como um violão que certamente
fará barulho quando alguma pessoa bater nele - embora aquilo não
soe como música.
Mas o comportamento crítico tem seus custos. Nos dias ruins, não
saber ser uma "ferramenta" mais carinhosa vai nos atacar em
nossos momentos mais vulneráveis. Não saber ser esse
instrumento compassivo vai fazer falta nas relações com os outros.
Mas, pela minha experiência de consultório - por mais que seja uma
experiência anedótica - vai fazer mais falta para nós em nossa
relação com nós mesmos.
Quem acusa os outros de preguiça por não trabalhar ou estudar no
fim de semana vai sentir falta de auto-empatia quando estiver perto
de um burnout. Quem acusa os outros de maus hábitos vai sentir
falta de ajuda no dia em que um dos vários maus hábitos que possui
cobrar a conta. Quem se porta como juiz do certo e do errado com
os outros, sem perceber os tons de cinza da vida, não vai saber se
acolher no próprio erro. O juiz pessoal vai ser implacável.
Então, mesmo que por uma premissa egoísta, é necessário
construirmos um pedaço da vida aprendendo sobre amor,
compaixão, empatia e perdão em relação aos outros. A partir
dessas relações, aprenderemos a ser uma ferramenta mais gentil
com nós mesmos.
Isso faz parte, aliás, do que chamamos de autocuidado: quando
tudo der errado, a primeira pessoa com quem nós vamos poder
contar é com nós mesmos. Ter essa habilidade em nossa caixa de
ferramentas vai permitir que trafeguemos bem melhor pelas
estradas acidentadas da vida.
AUTOSSABOTAGEM E A
IDEALIZAÇÃO DA
PERFEIÇÃO

A autossabotagem é um processo psicológico em que, diante


de um objetivo, decidimos caminhar próximos a armadilhas
que dificultam o progresso dessa jornada, muitas vezes
adicionando a esse fluxo algum sofrimento desnecessário ou até o
próprio abandono do objetivo.
Existem diversas formas de autossabotagem, e aqui eu gostaria de
oferecer atenção a uma em específico: a idealização da perfeição.
Por ser um processo psicológico, é um processo bio-psico-social.
Isso significa uma troca entre a biologia, uma história e uma cultura.
Ou seja: o processo de um indivíduo como um todo, que possui uma
trajetória de vida. Todas essas camadas influenciam em como
existimos psicologicamente no mundo.
A idealização da perfeição é um processo comum e se manifesta,
principalmente, quando começamos uma nova atividade. Quando
definimos uma meta, quase sempre nos vinculamos a uma ideia
perfeita dela, muitas vezes ilusória, em que a atividade até lá só tem
valor se atuamos dentro dos parâmetros da perfeição.
"Só vale a pena fazer o curso se for pra tirar nota máxima e fazer
todas as matérias". "Quem quer de verdade, de verdade mesmo, vai
arrumar um jeito de fazer”. "O que você faz de meia noite às 6, meu
caro?". "Só depende de você”. "Dê 100% de você na coisa".
Essas frases são reflexo de ilusões de perfeição e escondem a
realidade das limitações humanas, muitas vezes nos levando a
pontos de ruptura. Ou, também, ao desenvolvimento de crenças
ilusórias sobre o "sucesso", além de uma ideia rasa sobre o que é a
vida de alguém “bem sucedido”.
Em resumo, você pensa que precisa agir com perfeição em uma
atividade o tempo inteiro, independente do que aconteça. E, se você
falhar, a culpa é sua. Geralmente, essas crenças fazem a pessoa se
distanciar do bem estar bio-psico-social. Tais pensamentos
aumentam a carga de estresse no corpo, que passa a trabalhar
além do recomendado, deixa de dormir bem, pode passar a comer
mal, entre outras consequências.
Esses pensamentos afastam a pessoa também das atividades de
bem estar psicológico, como hobbies, diversão e lazer, e a
distanciam do seu grupo social de apoio: amigos, família, pessoas
importantes, mentores, etc.. Isso acaba por afetar, ainda, a
capacidade do sujeito em pedir ajuda.
O “social”, aliás, é extremamente importante, por isso faz parte do
tripé Bio-psico-social. É bem mais provável que alguém que se acha
independente não tenha percepção adequada da importância do
social e do que de fato seja ser independente, aliás. Também não à
toa as pessoas por trás do marketing multinível (MMN), das
pirâmides de vendas e das seitas sempre buscam desvincular a
pessoa de seus próprios grupos sociais, para então “catequizá-las”
segundo um outro universo.
Mas, bem, retornando àquilo que viemos: a inabilidade, mesmo que
momentânea, de estar próximo às pessoas e ações que poderiam
nos ajudar na jornada até nossos objetivos - além de tudo o mais
que pudemos identificar como gerador de pensamentos, ações e
sentimentos que nos afastam daquilo que estamos tentando fazer -
são reais e geram duras consequências.
Temos como exemplo os pensamentos de desqualificação: "Eu
não consigo", "eu não vou chegar lá nunca", "eu não dou conta",
"fulano consegue fazer, por que então eu não consigo?". Somos, a
partir disso, invadidos por sentimentos e emoções negativas
como ansiedades, tremores, raiva, tristezas, frustrações,
insatisfações, sensação de fracasso, além da famosa "síndrome do
impostor".
Acabamos, a partir disso, agindo em direção oposta ao objetivo.
Como? Nos afastando da atividade, procrastinando, promovendo
atrasos, obtendo pouca percepção de que precisamos de ajuda e
encontrando dificuldades no ato de pedir ajuda em si. Esse é o
caminho para acreditar que se tem dificuldade na resolução de
problemas e para buscar ações em atividades opostas, novamente,
como chutar o balde na dieta.
A boa nova é que pode-se perceber mudanças importantes na
trajetória de muitas pessoas no consultório, o que nos anima com as
pessoas também fora dele. Fica claro, ali, que todos podemos
melhorar nossas condições bio-psico-sociais. E temos alguns
caminhos clássicos e imbatíveis, como buscar manter a vida em
ordem (o bio). De forma geral, as situações que demandam
aprendizagem já são difíceis e dolorosas o suficiente. Acrescentar
fome, sono, brigas, estresse, saudades, distanciamento afetivo e
outras coisas não vai facilitar.
Outro ponto importante é selar o compromisso com uma vida
minimamente saudável. Dormir, praticar alguma atividade física (o
que não significa exatamente ir para a academia, mas se
movimentar mais durante o dia), comer bem, ficar perto de quem a
gente ama ou de quem sentimos que gosta de nos ter por perto.
Tudo isso são hábitos que podem gerar cenários consideravelmente
melhores do que os de pessoas que não conseguem manter a
saúde em ordem. Qualquer atividade que demande abrir mão do
sono, da alimentação saudável e de alguma atividade física por
longos períodos, aliás, tende a nos levar para o adoecimento.
Buscar ter um grupo de apoio (o social) é outro caminho
interessante, como vimos. São pessoas com quem podemos trocar
sobre nossas dificuldades, medos e problemas. Ele pode nos ajudar
a seguir em frente sem nos sentirmos julgados ou ameaçados.
Geralmente, são familiares, amigos, colegas de profissão ou de
atividades afins.
Outra necessidade básica para manter-se bem é buscar aprender a
lidar consigo (o psico). Desenvolver compaixão e entregá-la aos
outros é uma ótima forma de aprender a conviver com as suas
dificuldades, aliás. Todos estamos no processo de aprendizagem e,
quanto mais nós julgamos o outro, mais fortalecemos a voz que vai
nos caçar em nossos erros. Desenvolver a habilidade de lidar com o
erro alheio vai provavelmente fazer com que lidemos melhor com os
nossos.
Criar metas razoáveis é indispensável para manter-se equilibrado
também. Mesmo que sejamos incríveis em alguma atividade, o
provável é que em todas as outras nós sejamos apenas normais. E
ser normal é a regra. Converse com pessoas que conhecem a
atividade e procure entender qual o progresso normal daquela
atividade, portanto.
Após quatro semanas na academia, por exemplo, você começa a
perceber o resultado dos exercícios no seu corpo. Em oito semanas,
pessoas próximas começam a perceber o resultado daquilo em
você. Em doze semanas, as pessoas que não são tão próximas
percebem também. E demora cerca de um ano até o corpo ganhar a
definição esperada das pessoas que frequentam a academia
diariamente. Conhecer os marcos de desenvolvimento em uma
atividade permite que você alinhe o curso da jornada com o
desenvolvimento saudável.
É importante também esquecermos o mito das 10.000 horas. Ainda
que seja verdade que precisamos nos dedicar muito para sermos
especialistas em algo, precisamos de pouco mais de 20 horas para
aprender o básico de qualquer coisa, e algo em torno de 50 e 100
horas para começar a fazer algo rotineiramente. A ambição e a
perfeição impedem que sejamos amadores razoáveis naquilo que
não almejamos ser profissionais.
E é claro que repetirei: aprender a pedir ajuda é chave. Manter em si
a sensação de que especialistas fazem coisas sem ajuda - quando,
na verdade, eles são os que mais sabem pedir ajuda das pessoas
corretas - é uma perda de tempo. O superindividualismo é uma
ilusão que geralmente serve para os predadores te colocarem em
situação de vulnerabilidade (aqueles das pirâmides e das seitas,
lembram?)
Por fim, é preciso nos dedicarmos a nossas vidas como um todo.
Ela é maior que qualquer atividade que possamos colocar em
prática. Quase nenhuma ação isolada é definidora de nada. Nós
temos espaço para errar e tentar de novo em outro momento.
Precisamos de espaços de vida para viver.
USE MULETAS PARA
FAZER COISAS NOVAS

E u só conheço uma única forma realmente comprovada de


aprender: por meio da exposição repetida a algo. Quanto
mais você se expõe a situação que te fará aprender algo,
mais você vai aprender sobre aquilo.
O melhor exemplo disso é o curso de inglês versus a escolha de
fazer um intercâmbio. Seja de que forma for, a exposição contínua a
uma língua fará qualquer pessoa aprender aquela língua. Mas a
dificuldade em aprender uma nova língua mora em como se manter
exposto a ela fora do lugar em que ela é falada.
Eu sei que, muitas vezes, fazer coisas novas é frustrante e difícil,
por isso existe tanta picaretagem no mundo desde que ele existe.
As pessoas adoram vender facilidades falsas. Quando eu era
criança, os vendedores ofertavam cursos de inglês em que
deveríamos aprender enquanto dormimos. Quase um
charlatanismo.
A exposição precisa ser ativa, a gente precisa fazer coisas. A gente
precisa mexer a boca para aprender a falar, e perguntar para
aprender a ouvir. Não existe aprendizado passivo. E está tudo bem
se precisarmos usar “muletas” ou meios que nos ajudem a ficar na
atividade que queremos aprender por mais tempo. Isso é bom para
o nosso desenvolvimento.
Atendendo a adolescentes no consultório, observei como é
impressionante o tanto que eles se dispõem a aprender para
impressionar uma menina pela qual estão interessados. Violão,
skate, esportes, ciências - eu já vi de tudo. A namorada um dia pode
até ir embora - mas o aprendizado fica. Saldo positivo.
Após o sucesso de alguém, é normal que muita gente queira copiar
a fórmula do que fez essa pessoa chegar lá, mas quase nunca essa
gente quer trilhar o mesmo caminho dos que alcançaram o sucesso.
Por exemplo: alguns querem largar a faculdade porque o Bill Gates
e o Steve Jobs largaram - mas ignoram que ambos já eram ótimos
programadores antes de entrarem em Harvard e Reed College,
respectivamente, e já sabiam montar e desenhar hardwares, além
de já terem um grande espírito empreendedor. Portanto, se você
não tem essas habilidades e a faculdade é uma muleta ou um meio
para você aprendê-las e ainda adquirir outras, use-a.
E lembremos que é um erro achar que autodidatas aprendem
sozinhos. Eles usam livros, conversam com pessoas, tentam e
erram, buscam apoio quando não conseguem fazer algo sozinhos,
fazem matérias e cursos de coisas que precisam. Autodidatas
sabem usar as muletas que têm e procurar as que precisam.
Então, se ter uma companhia te ajuda a ficar na academia, vá com
uma companhia. Se você precisa do Google Translator para se
comunicar em outra língua, use o Google Translator. Se você
precisa da sua companheira te apoiando em um projeto, peça apoio.
Se você precisa comprar uma coisa que facilite que você se
movimente, compre. Tudo o que facilitar te manter na atividade vai
te ajudar a aprender o que você precisa fazer para um dia não
precisar das muletas. Até lá, use as muletas.
PARAR EVITA QUE VOCÊ
PARE

U
pare”.
ma das minhas frases favoritas da psicologia é "mental
breaks avoid mental breaks", do norte-americano Stephen
Hayes. Buscando uma tradução: “parar evita que você

Sabemos que muitos de nós temos rotinas apertadas por diversas


razões, mas a principal é que estamos em um mundo cada vez mais
acelerado. Sim, o termo correto é “acelerado” mesmo. Hoje temos
mais informações circulando – e rapidamente temos mais notícias
disponíveis para chocar mentes curiosas, mais novidades para nos
manter antenados, mais certificações, mais especializações online,
mais chefes nos importunando em horários não comerciais via
WhatsApp, mais, mais e mais.
Isso no mundo humano. Já no mundo das coisas, o dia continua
com 24 horas, e um ano continua sendo um ano. Nosso tempo é
limitado. Tanto pelos dias quanto pelo tempo que temos nessa
existência. E tentar acompanhar um mundo que não pára, que cada
dia opta por seguir mais rápido e em rotações diversas, vai fazer
seu motor fundir. Você vai parar, de um jeito ou de outro. Mas é
interessante construir caminhos para parar quando a vida ainda faz
bem.
Não é parar para entrar em ócio produtivo ou criativo. É parar
simplesmente para parar. Parar para ser produtivo gera o efeito
paradoxal do "não pense em um elefante rosa". É impossível. Se
você parar para ser produtivo, vai ficar o diabinho da produtividade
aumentando seu cortisol, monitorando o seu nível de atenção, o que
tem para ser feito, o que poderia ter sido feito, a culpa do descanso,
dos que não podem descansar... É o caldo que alimenta a
ansiedade.
No início da pandemia, devido ao home-office, vários pacientes
meus relataram culpa porque fizeram pausas de trabalho para jogar
videogame no sofá. É o tipo de coisa que sentimos quando não nos
apropriamos do nosso bem estar e começamos a nos destituir de
tudo o que não é “produtivo”.
Atividades produtivas geralmente são demandas que exigem foco,
atenção, monitoramento constante, gasto de horas. Não permitem
que você saia delas, entre outras coisas. Esse é o desenho do
estresse.
Tudo isso desgasta o corpo, a mente e provavelmente desgastará a
sua vida se for feito sem pausas. O efeito desse quadro é tão
intenso que a nossa produtividade cai quanto mais tempo
estivermos na lógica dela. Afinal, a real produtividade é sobre
aumentar sua capacidade de produção em uma hora, em duas
horas. Não é adicionar uma hora ou duas horas na sua rotina de
trabalho.
Então, se você está tentando resolver um problema há mais de uma
hora sem avançar com a resolução do desafio, é muito provável que
você precise parar. É bem possível que você tenha chegado no
limite quanto àquele problema naquele instante. A chance de você
resolvê-lo ali já caiu muito e, quanto mais você ficar na atividade,
mais próxima ao zero a atividade ficará também.
É uma visão de túnel psicológica. Como se você colocasse um
antolho em si mesmo – aqueles óculos usados em cavalos, criados
para reduzir a visão lateral dos mesmos. Sabe quando, às vezes,
tentamos repetitivamente procurar algo em um local específico,
mesmo já tendo checado que aquilo não está mesmo lá? Como
quando procuramos uma chave 10 vezes em um lugar onde já
sabemos que ela não está. Em puro desespero. Ou seja: em
estresse.
Atividades de ócio, por sua vez, podem demandar foco de forma
dispersa. Você não precisa de atenção e monitoramento constante.
Você pode fazer pausas, entrar e sair da atividade sem prejuízo.
Essas atividades são extremamente necessárias para o corpo. É
quando o corpo assimila as informações que viveu, forma novas
conexões com coisas antigas, passa a olhar o todo ao invés de ficar
preso no específico. Essas atividades permitem novas ideias
(mesmo que ruins - porém é melhor do que as ruins que já sabemos
que não funcionam), diminuem o cortisol, estabilizam hormônios,
aumentam neurotransmissores "bons" e mais um monte de
“fenômenos” interessantes.
O recado já tem sido dado há algum tempo, mas eu vim aqui para te
dizer isso de novo, já que você não entendeu nada: é importante
saber parar! E é importante saber fazer pausas longas.
Especialmente em atividades que demandam pouco de você.
O que é pouco? Varia. Para um ciclista não treinado pode parecer
ser um treino pesado, mas, para o treinado, é simples e pouco. Se
você estiver começando pode ser uma pedalada
descompromissada. 30 a 40 minutos é o mínimo. E mais que 1h30
já é uma outra atividade (que pode ou não ser benéfica).
As mais comuns são: atividades físicas, caminhadas, meditação,
leitura leve, ouvir música, desenhar, pintar, hobbies que você já
tenha, caça-palavras/sudoku/afins, cochilar… Cochilo é uma coisa
divina. Qualquer coisa que seja simples, que você possa abandonar
sem prejuízo, e que não seja mais um estresse.
Tiktok, Instagram, Facebook, Tinder e Youtube (o conceito, não a
coisa em si) não são pausas. Eles são desenhados para sua mente
funcionar nas armadilhas do foco e da atenção. Eles te inundam de
informações curtas, digeríveis e sedutoras justamente para
manterem o ciclo do estresse rodando. Por isso somos capazes de
nos perder por horas neles e nem reparar. Atuam como os tais
antolhos utilizados para dificultar a visão do cavalo.
Como não paramos, mesmo precisando, ficamos vulneráveis a esse
tipo de sistema. Sim, eles são horríveis por serem desenhados para
isso, mas aqui ganhamos, mais uma vez, nosso pé de
responsabilidade para evitar esses terríveis óculos, cuidando de nós
mesmos. Estejamos presentes em nossas escolhas. E boa sorte pra
nós.
O TEMPO DA MUDANÇA

A nossa qualidade de vida determina o tempo em que as


mudanças que queremos acontecerão. Mas, o que é ter
qualidade de vida para os propósitos deste texto? Seria
algo relacionado a ter hábitos saudáveis. Mas o que são hábitos
saudáveis?
Que tal…
● Sono e rotina de sono saudáveis;
● Alimentação e nutrição saudáveis;
● Prática de atividades físicas;
● Bom círculo de amizades;
● Uma rotina minimamente organizada, sem uma só pauta
ocupando a vida inteira da pessoa;
● O não uso de drogas.
Eu falo o mínimo possível sobre os meus pacientes, então não vou
aqui dar exemplos bem detalhados sobre o porquê das conclusões
às quais cheguei sobre eles. Mas minha experiência atuando como
psicólogo, clínico, supervisor e professor me leva a crer que, em
média, qualquer mudança significativa na vida de uma pessoa
demora aproximadamente seis meses para se acomodar. Tanto faz
se o caso é complexo ou simples, um adoecimento grave ou
mudanças mais simples. Demora em média seis meses para a
mudança acontecer.
A qualidade de vida da pessoa sempre aparece, de novo e sempre,
como a maior responsável por facilitar, ajudar e inclusive determinar
a melhora de um paciente. Muitas vezes é mais importante do que a
terapia em si. Em vários casos onde isso já está firmado na vida de
uma pessoa, eu, como psicólogo dela, só preciso sugerir um norte –
e a pessoa segue sozinha.
Normalmente, a primeira sessão de alguém comigo é sempre
espaço para escuta e também para que eu faça orientações gerais
sobre o problema da pessoa, identificando com ela alguns
caminhos. E quem tem essa tal qualidade em seus hábitos diários
geralmente só precisa dessa sessão. Depois de dois meses, é bem
possível que ela me mande uma mensagem de agradecimento.
Essas pessoas são capazes de, em aproximadamente dois meses,
resolverem até problemas complexos ou de risco.
Pessoas normais levam em torno de seis meses.
Já pessoas com hábitos de risco levam mais de um ano. E demora
tanto porque precisam de vários meses para "instalar" os hábitos
saudáveis que estruturam a mudança.
É inquestionável, portanto, que manter-se na zona saudável facilita
absolutamente tudo que pode acontecer em sua vida.
Os que insistem que são maiores que a realidade; aqueles que
bebem contra todas as evidências e insistem que o álcool é
saudável; aqueles que acham que brigar é uma forma de
comunicação razoável, aqueles que insistem em não regular a
qualidade e tempo do seu sono… ah, para esses, o tempo de
mudança levará bem mais tempo.
PROFECIAS AUTO-
REALIZADORAS
os que escolhem sofrer

"A gente sempre prefere a dor que conhece”, alguns acreditam. E,


por isso, passam a agir dentro da premissa. Nessas horas,
penso em quantas armadilhas comportamentais estão à disposição
no mundo, prontas para nos engolirem, se deixarmos.
Essas armadilhas são uma das coisas que eu mais acho
interessantes na psicologia, aliás. Tratam-se geralmente de um
conjunto de comportamentos que, quando atuam juntos, ou em
série, geralmente levam a pessoa para maus lugares.
Como trata-se de um conjunto de comportamentos, a pessoa não
percebe, pois ela não tem um ponto específico para dar
causalidade. O mal vem do acúmulo de ações ao longo prazo, tipo
juro composto. A coisa anda devagar, parece que tanto faz, mas, de
repente, explode.
Um desses conjuntos vem das “profecias auto realizadoras”.
Quando a pessoa parte de uma crença genérica infundada e atua
como se ela fosse verdade, acabando por, de fato, causar o mal que
a crença afirma.
Complicou? Explico: o ciúmes normalmente funciona nesse sistema,
e quase que fatalmente acaba por causar um efeito "maléfico" para
o casal ou para indivíduos. Joãozinho está em uma relação com
Mariazinha. Em algum momento, Joãozinho fica pirado na crença de
que Mariazinha vai traí-lo com Zezinho, o colega de trabalho dela.
Como eu que estou inventando essa história, eu sei que, mesmo
que Zezinho quisesse ficar com Mariazinha, Mariazinha amava
Joãozinho e jamais o trairia com Zezinho. Ela era feliz com ele,
passava o dia no trabalho pensando em voltar para casa para
ficarem juntos.
Mas Joãozinho, em delírio na crença profunda da traição,
transforma tudo em assunto sobre Zezinho. Não deixa Mariazinha
em paz um segundo. Antes, ligava para saber onde iriam jantar.
Agora, liga para saber onde está Zezinho. Em resumo, a relação,
que antes era de Joãozinho e Mariazinha, virou um trisal – e a
pessoa mais importante dela aparentemente é o Zezinho.
Mariazinha, que agora tem medo de atender às ligações e
cobranças de Joãozinho, já fica preocupada com a hora de voltar
para casa. Não consegue trabalhar direito e, nesse contexto, acaba
se aproximando de Zezinho, com quem bate papo um dia, durante
confraternização da equipe de trabalho.
Se os dois acabarão juntos ou não é irrelevante. A profecia já se
realizou. Maria já se afastou de João e agora tem medo de estar
perto dele.
Tudo isso para desenhar que, muitas vezes, quando agimos
baseados em premissas de futuro e “profecias” desse tipo, assim
como Joãozinho fez, acabamos sendo os responsáveis pelo
prejuízo que causamos às nossas próprias vidas.
Quando vivemos a crença de que o "mal trágico" vai acontecer a
todo o instante, ele acontece mesmo. Oras, passar o dia com
ciúmes se preocupando com Zezinho, esquecendo que o
relacionamento é com Maria – e que, portanto, é preciso cuidar
deste relacionamento – não vai levar a coisa boa.
Da mesma forma, alimentar uma crença que genericamente diz que
“o mundo está contra a gente”, e que precisamos gastar toda
energia nos defendendo dele, não o deixando ‘tomar vantagem da
gente” também tende a gerar maus bocados. Deixar de ser feliz por
causa de 10 reais no frete. Encomendar produtos da China e,
depois de 3 meses esperando, receber um treco de péssima
qualidade por causa de 50 reais. Estragar o almoço de família
porque o cunhado pediu um suco de 25 reais.
Tudo tentando, a qualquer preço, evitar uma dor que nem conhece.
Prefere ficar com a dor que tem: o medo. Não consegue largar o
medo. E só age para evitar “o mal”. Mas fato é que evitar este “mal”
não causa o bem. Na maioria das vezes, eles sequer estão
relacionados.
Para lacrar, a pessoa culpa a China, o cunhado, o banco, a loja, o
padeiro, o Zezinho. Só não olha para si para ver como construiu a
dor sozinho. Não entende que Mariazinha estava feliz e que ela
achava Zezinho chato. Que foi João quem traiu Mariazinha, já que
foi ele que deixou de zelar pela sua relação com ela. Tudo para não
ser "passado para trás", "feito de trouxa".
Agora, tá lá, Joãozinho. Virou um babaca que pouca gente suporta.
Escolheu um mundo onde o foco é sofrer. Causou o mal que queria
evitar.
Nesse sentido, sugiro: para as profecias auto-realizadoras, digamos
não.
LONGO PRAZO É UM
LUXO QUE SE
CONQUISTA FAZENDO O
BÁSICO

T odos os planos grandes ou de longo prazo podem ser


fracionados em partes ou reduzidos a conquistas menores.
É uma tática bastante utilizada, facilmente executável, e não
acho que seja novidade para a maioria das pessoas: faculdades são
divididas em semestres.
Treinos de corridas, em blocos menores. Livros são divididos em
capítulos. Construções são divididas em etapas. Isso é bem fácil de
entender.
Dividir grandes tarefas em partes menores facilita a vida. Conquistar
pequenos objetivos aumentam sua motivação para perseguir os
outros blocos da “tarefa maior”.
Mas, de alguma forma curiosa, o parcelamento da nossa própria
vida não funciona. Ela não é uma tarefa. No longo prazo, nossas
motivações, ansiedades, tristezas, ânimos, ou disposição continuam
nos sabotando apesar dos nossos melhores planos e de nossas
pequenas metas.
Geralmente, uma das coisas que mais atrapalham os planos de
longo prazo é pensar apenas nas ações diretamente ligadas ao
plano, ignorando o básico. O básico é a base da pirâmide que
sustenta as nossas ações, que garantem estabilidade nas nossas
ações apesar dos erros, das falhas, dos fracassos, do
desconhecido. Quando abrimos mão do básico de forma contínua,
toda a nossa capacidade de tomar decisões para o futuro tende a
zero e nos tornamos imediatistas.
Alimentação, sono, saúde, contato familiar ou com pessoas que se
importam, estabilidade de moradia e possibilidade de locomoção
geralmente são as necessidades básicas mais comuns de uma
pessoa. Fazem parte do rol das coisas sobre as quais não
prestamos muita atenção diariamente, se está tudo bem com elas.
Mas, se na nossa vida há a ausência de uma dessas coisas, os
efeitos dessa falta serão terríveis.
É por isso que a situação fica ruim se não apenas uma, mas várias
dessas coisas estão comprometidas. Abrir mão continuamente e por
longos períodos de nossas necessidades básicas, ou ser submetido
a isso, é causa direta de diversas formas de adormecimento físico e
mental.
Essa é uma das razões pelas quais houve tanta gente perdendo a
cabeça quando houve a greve dos caminhoneiros e a consequente
falta de gasolina. As pessoas agiam em torno da gasolina como
viciados agem em torno das drogas. Da mesma forma é sempre
uma dor de cabeça quando o chuveiro queima, a geladeira estraga,
o carro quebra, ou fazemos mudanças de moradia. São coisas
básicas, que não damos atenção, mas fazem falta.
Esses eventos influenciam diretamente em nossa capacidade de
tomar decisões, planejar o futuro, capacidade de atenção,
capacidade de descansar, humor, ansiedade, vontade, entre outras
coisas - ainda mais quando vários deles acontecem de uma vez.
Quando transformamos nossa vida em uma sequência de tarefas,
aliás, em uma agenda a ser cumprida, muito frequentemente,
também abrimos mão do básico. Negociamos aquilo que é
necessário em troca da meta do dia, da semana. Esticamos o
trabalho, pulamos o almoço, deixamos a família e as pessoas
queridas de lado.
Não existe longo prazo que possa ser sustentado se suas
necessidades de curto prazo estão em falta. Não dá para sustentar
isso no longo prazo. Não tem motivação de metas pequenas que
nos permita deixar de ser humanos. Que possamos abrir mão das
necessidades humanas.
Então, de novo: se você quer ter o luxo de um plano de longo prazo,
é importante manter o básico rodando. Dormir bem, manter a casa
funcional para nossas necessidades, praticar atividades físicas,
encontrar pessoas queridas. Viver a parte positiva da vida.
Manter-nos perto dessas coisas aumenta muito as chances de que
qualquer plano, longo ou curto, dê certo. Ou pelo menos evita que
quebremos de vez caso seja um plano que dê errado.
O VÍCIO EM FINANÇAS:
UMA CARTA
ENDEREÇADA A QUEM
POSSA INTERESSAR

U ma coisa que é difícil de entender, e que muita gente ainda


não entendeu, é que o vício não é uma coisa simples.
Ninguém fica viciado em Instagram porque o Instagram é
malvado. As pessoas se viciam nele porque têm relações ruins com
as coisas e com as pessoas - entre outros motivos inerentes à
sociedade em que vivemos.
Essa relação meia boca é um mal social que empurra as pessoas
para o vício, para métodos mágicos que prometem resolver
problemas de casamentos, de empregos, para seitas, e até mesmo
para as pirâmides financeiras.
(Aliás, você já percebeu o senso de comunidade que um grupo de
pirâmide consegue criar? Eles fazem você se sentir muito especial,
um enviado pelos deuses para vender suco de uva, colchão e milk
shake ou o que eles quiserem. É impressionante).
Mas, voltemos aos vícios, aqueles que atacam naquilo que nos falta.
Nas dificuldades que nós nem sabemos que temos. Eles se
alimentam de hábitos ruins e dos vazios que muitas vezes impedem
que construamos vidas saudáveis.
A grande maioria das pessoas vai entrar em contato com o álcool e
as drogas durante a vida. A probabilidade é que você já tenha
entrado em contato com isso mais de uma vez. Talvez até passe um
tempo lá usando essas substâncias, mas a vida vai chamar de volta.
O problema é que, se você não tem uma vida que te chame de
volta, poderá ficar no vício.
Quando o vício é em finanças, você poderá achar que está brigando
contra o mercado financeiro. Achar que estar agora sem dinheiro
para cuidar da família é culpa dos influencers que te iludiram com
previsões erradas de investimento. Mas a verdade é que não foram
eles. Eles nem te conhecem. A mensagem deles bateu em você e
bateu na sua dor. Mas eles falaram para ninguém - eles estavam
falando com uma tela.
"Mas, se eu não investir, não vou ficar rico, estarei perdendo as
oportunidades, estarei deixando a possibilidade de ganhar. Vou ficar
nessa vida. Vou ter que ficar nessa vida". Essa história é parecida
com a do viciado em crack que quer me explicar sobre como usar
crack moderadamente acaba melhorando a vida dele.
Mas, geralmente, isso é só medo. Medo da falta. Do desconhecido.
E dá medo mesmo. Mas chega uma hora que o vício prescinde que
aceitemos ajuda. Procure-a.
"NO PAIN, NO GAIN”?
Esqueça a dor, escolha propósito

“S em dor, sem ganhos”. De quando em quando eu ouço


essa frase por aí. Ela se junta a outras tantas que
engordam a lista da valorização do sofrimento.
Mas existe alguma verdade nisso. Há alguns anos, a psicologia
contemporânea abandonou os ideais de consertar o mundo, ou o da
perfeição. Abandonou a ilusão de uma vida sem dor e adotou o
"abrace o caos". Um dos motivos disso é que a vida dói mesmo. O
sofrimento faz parte da existência. Assim como a felicidade, os
amores e tudo de bom que tem nela.
A partir dessa compreensão, outras coisas foram melhor
entendidas, como, por exemplo, o fato de que viver uma vida
fugindo do sofrimento te leva a uma não-vida. Outra coisa que já se
sabe é que existem formas de lidar com o sofrimento. E, o que nos
mantém no caminho, apesar do sofrimento, é a noção de um
propósito.
Isso é bem diferente do que muitos palestrantes por aí defendem ao
apostar em um caminho de produzir dor para viver bem, para buscar
o desenvolvimento pessoal, para o crescimento, ou seja lá para o
que for. Jejum, andar descalço na pedra, na brasa, banho frio,
dormir no chão, vestir mil casacos e ir pelado para a neve são
exemplos, mas não apenas eles.
A vida é dor. Não precisamos produzir mais dor. Andar dói, você só
está extremamente acostumado com isso e não sente, mas dói. Não
é a dor que te mantém andando. E se você insiste no caminho dela,
uma hora você quebra. E quando quebrar, já era. Ou seja: se tudo
que você fizer for na base da dor, quando acabar a sua barra de
energia, você só vai ter resistência - mas, sem força, você não vai
conseguir prosseguir.
Produzir dor não vai nos ajudar a enfrentar a dor mais tarde, vai nos
fragilizar e nos botar em risco. Tanto risco quanto fugir das dores
comuns da vida. A cultura masculina, então, adora idolatrar a dor. E
quase todas as pessoas que eu encontrei em sofrimento profundo
fizeram essa escolha, seja fugindo ou idolatrando essa dor.
Ao final, ficaram só com ela. O que torna claro um dilema: não
podemos escapar do sofrimento e nem podemos ficar com ele. A
saída que a psicologia encontrou foi olhar para o que nós
escolhemos além da dor. Ou seja: se a dor é condição natural da
vida, qual busca faz sentido pra gente para além dela?
Um propósito. Ele é uma busca pessoal que mantém nossas ações
orientadas para determinado foco. Aquele que nos mantém em um
caminho que possivelmente trará dor, ansiedades e tristezas, mas
que nos dará, também, a resiliência necessária para enfrentar o que
precisa ser enfrentado enquanto desenvolvemos as habilidades que
precisamos, além de possíveis conquistas e alegrias.
A BUSCA DO
PROPÓSITO
escolha uma batalha infinita

É um consenso forte na psicologia contemporânea que a


vivência humana não é estável e nem sempre é
confortável. O conforto é um lugar que construímos apesar
das dificuldades da vida e existe uma batalha constante para manter
esse lugar em pé.
Sentir-se bem, feliz, amando, amado e confortável são estados
psicológicos também vinculados à nossa capacidade de construir
uma vida que faça sentido e que nos permita seguir em frente. Vem
da noção psicológica de segurança apesar de todas as confusões
da vida.
Uma pessoa sem alternativas é uma pessoa desesperada, sem
esperança, sem perspectiva de futuro. Quem todos os dias batalha
as necessidades básicas no presente não tem tempo de construir o
futuro que deseja.
Muitas pessoas vivem assim. Algumas conseguem sair dessa,
outras não. A maioria vive em condições de miséria, com a
necessidade de resolver problemas no presente a todo o instante.
Alguns não vão conseguir mudar muito o quadro, apesar dos
melhores esforços.
O provável é que os melhores esforços favoreçam a próxima
geração daquela família. Várias famílias fizeram grandes esforços
em relação aos filhos que hoje são a primeira geração que concluiu
uma faculdade.
Isso nos lembra que a regra é que a vida é uma batalha que não
tem fim nela mesma. São batalhas infinitas e nem por isso precisam
ser batalhas ruins. Viver é verbo, são ações. Não se conquista vida -
você está vivo e suas ações também determinam a qualidade dessa
vida.
As melhores batalhas geram condições melhores para o futuro. Eu
dei o exemplo das gerações que terminaram a faculdade graças à
batalhas de gerações anteriores e podemos aplicar a mesma lógica
para a nossa vida individual.
Nós podemos escolher um propósito que favoreça o nosso “eu”
futuro. Saúde, família, tranquilidade financeira, parentalidade (ser
mãe ou pai), conhecimento e outros são batalhas da vida que não
tem fim. Não existe um momento em que você conquista saúde.
Não tem um prêmio, estátua, certificado ou momento em que você
vira uma pessoa saudável.
Você pode ter hábitos saudáveis, mas, se parar de fazer o que faz
para ser saudável, provavelmente sua saúde irá piorar. Também é
verdade, infelizmente, que, apesar dos melhores hábitos, não há
uma garantia de que você não terá problemas de saúde. A escolha
do propósito de saúde é uma escolha para o seu “eu” futuro, sendo
este futuro longo ou não. É o máximo que dá para fazer.
O mesmo se aplica à família, filhas e filhos, felicidade, amor ou
qualquer coisa que seja importante para si. Nada disso se conquista
e ponto final. Isso é o reflexo das suas ações no mundo tentando
construir uma vida em que elas possam continuar existindo apesar
das dificuldades do mundo.
Ou seja: não dá para ser feliz em absoluto neste mundo, mas é
possível construir uma vida pra si mais cercada de felicidade se
você construir isso em volta de você, com os seus, com as suas
coisas. Alguns dias estarão longe da felicidade, outros dias estarão
mais perto. Coisas bem ruins vão acontecer, mas quase sempre dá
para, ao menos, tentar favorecer a felicidade no dia de amanhã.
Talvez ela não aconteça amanhã, mas, se você fizer o melhor,
mesmo que pouco, você já aumentou as chances de acontecer em
algum amanhã.
DINHEIRO NÃO TRAZ
FELICIDADE

A Saúde trabalha com a perspectiva de fatores de risco e de


proteção. São condições, situações e eventos que ocorrem
durante toda a nossa vida - e não há um momento
específico em que o risco ou a proteção sejam completos. Eles
existem e variam durante toda a nossa existência.
Fatores de risco são aqueles que afetam a vida das pessoas de
forma que a expectativa de vida em relação ao lugar delas é
diminuída; a possibilidade de manutenção e desenvolvimento do que
é esperado a cada estágio da vida também, e é possível, ainda, ver o
aumento de eventos traumáticos por meio desses fatores.
Já os fatores de proteção são os que afetam a vida das pessoas
aumentando a expectativa de vida delas e a possibilidade de
manutenção e desenvolvimento do que é esperado delas. São
também os que nos afetam diminuindo os efeitos de eventos
traumáticos que possamos viver.
Beber, ser agressivo, ter apanhado na infância, ser reativo, trabalhar
mais que 55 horas por semana, não dormir, usar drogas, dirigir em
alta velocidade, não ter amigos, não ter relações de intimidade, estar
desempregado, não ter primeiro grau, não ter segundo grau, não ter
faculdade, viver no sedentarismo, fazer uma má alimentação e
outros milhares de situações ou comportamentos são tidos como
fatores de risco na sociedade em que vivemos.
Algum deles é a garantia de que você vá morrer amanhã? Depois de
amanhã? Daqui a dez anos? Não. Esses dados de saúde são
produzidos estatisticamente e não podemos aplicar ao indivíduo a
redução de dados estatísticos que retratam uma população.
O que dá para saber é que, se você precisa que aquele objeto
chamado “dado”, que tem seis lados, esteja com o número 1 na face
superior dele, terá uma em seis chances de conseguir o número. Se
você rolar ele um milhão de vezes, a chance é 99.99...% de você
conseguir tirar pelo menos uma vez o número 1.
Isso quer dizer que, se você se expuser a mais fatores de risco (jogar
um número maior de dados numa jogada só, por exemplo) e por
mais tempo (jogar os dados mais vezes), mais chances você terá de
aumentar os riscos medidos pelo fator de risco em questão.
Portanto, quanto mais você se expõe a risco, mais provável a chance
do mal acontecer. Se uma pessoa passa vinte anos bebendo,
fumando, usando drogas, brigando na rua e dirigindo bêbado para
casa, a gente pode não saber exatamente como ela vai morrer. Mas,
se alguém tivesse que apostar em algo, não apostaria que essa
pessoa morreria aos 90 anos, na própria cama, ao lado da família,
em uma mansão localizada em Mônaco.
É possível sugerir que há probabilidade que a pessoa morra de
cirrose, câncer de pulmão, enfisema, acidente de trânsito, violência
urbana, overdose, etc., desamparada, sozinha, e em condições ruins
de saúde na rua ou nos corredores do Sistema Único de Saúde.
Ela pode morrer com o amor da família na mansão em Mônaco?
Pode. Mas ninguém razoável criaria expectativa nisso.
Em termos de Saúde, como trabalhamos na perspectiva de
prevenção, se pode afirmar que a pessoa “vai” morrer nessas
condições de risco, como se o risco fosse real, por mais que seja um
erro estatístico afirmar isso. Mas é que não se deve esperar a
pessoa ficar diabética para sugerir mudanças e é preciso trabalhar
para evitar que ela fique diabética.
O mesmo serve para os fatores de proteção. Quanto mais a gente se
aproxima deles, mais próximo dos indicadores "positivos" de saúde a
gente se aproxima.
◆ ◆ ◆

“Mas, afinal, esse texto não era sobre o dinheiro trazer ou não a
felicidade, Paulo?”
Primeiro que o dinheiro não faz nada. Dinheiro é um pedaço de
papel. As propriedades do dinheiro vem da possibilidade de trocas e
acessos às outras necessidades que ele facilita. Dinheiro também
não tem virtude, e, portanto, aceita acesso a fatores de risco ou
proteção. O dinheiro que paga a academia é o mesmo que paga a
comida, o álcool ou a droga.
Então digamos que o dinheiro pode facilitar igualmente fatores de
proteção ou de risco.
Pobreza e miséria são fatores de risco gigantes. A todo e qualquer
momento, em qualquer estágio da vida, a miséria é uma das coisas
mais terríveis que podem ser vividas. Se “o poder tende a corromper,
e o poder absoluto corrompe absolutamente", a miséria já é um
caminho que corrompe as estruturas das pessoas sem ser absoluta.
Na minha visão, como a miséria corrompe estruturas importantes, ela
tende a ser sempre absoluta. E, sim, como o dinheiro possibilita
acesso a necessidades básicas que fazem falta a quem está em
miséria, ele é fator protetivo de vida.
◆ ◆ ◆

“Então, dinheiro traz felicidade, Paulo?”


Não. Dinheiro pode mitigar fatores de risco. Dinheiro só é definitivo
como fator de proteção em situações de pobreza e miséria. Até
porque, em situações de miséria, qualquer melhora é significativa,
não é somente sobre ter dinheiro. Ter roupas, casacos, entre outros
pertences que agasalhem também é fator protetivo grande em frente
à miséria. Mais do que o dinheiro, muitas vezes.
Mas, novamente: frente à miséria, o dinheiro também deve servir. É
por isso que as políticas públicas viabilizam recursos financeiros para
minimizar as mazelas da pobreza. Em casos para além da miséria,
existem dezenas de estratégias e outros fatores de proteção mais
efetivos do que o dinheiro.
Em https://youth.gov/youth-topics/youth-mental-health/risk-and-
protective-factors-youth, baseado no livro "Preventing Mental,
Emotional, and Behavioral Disorders Among Young" de O'Connell,
Boat, & Warner temos os seguintes exemplos de situações de risco
e proteção em contextos sociais amplos para jovens:
Fonte: Risk and Protective Factors for Youth | Youth.gov

Na coluna à esquerda, vemos os fatores de risco. No meio, vemos o


contexto (individual, familiar ou social). Na coluna da direita, vemos
os fatores de proteção. As cores apresentam o risco de
desenvolvimento de diferentes tipos de adoecimento mental.
Ainda que a pobreza seja um fator de risco, nenhum dos fatores de
proteção envolvem entregar dinheiro para um adolescente. Não que
entregar dinheiro não possa ser feito pela permanência deles na
escola, pela busca do pré-natal e pela busca de vacinação. Nesse
caso, o dinheiro é usado para diminuir riscos da criança sair da
escola, para aumentar o engajamento de pessoas vulneráveis nos
fatores de proteção realmente importantes.
Outros fatores sociais de proteção são o engajamento escolar; a
estabilidade de renda para a família; trabalhos estáveis; segurança
alimentar; estabilidade e segurança de moradia. Todos são fatores
protetivos de longo prazo.
Não adianta ter dinheiro e criar uma situação de competitividade
escolar que limita a noção de sucesso dos alunos, instabilidade
social ao ameaçar um adolescente da promessa de uma vida
fracassada quando ela não consegue uma nota, de desamparo
social caso não atinja as expectativas dos pais e da escola.
Com ou sem dinheiro, isso é uma ataque frontal à vida e à saúde do
adolescente.
E não tem papel – dinheiro – que proteja um adolescente disso. As
necessidades humanas estão dentro das relações com seres
humanos. Dinheiro pode mediar relações, dar acesso, mas não é fim.
Se você trabalha mal, não come direito, e não tem boas relações em
casa, não tem dinheiro que resolva, você vai viver mal e em risco. As
coisas realmente importantes ao longo prazo são sobre como você
se posiciona sobre sua vida e a sua saúde.
O quadro acima fala dos aspectos individuais. Vejam como para
dezenas de fatores de risco, existem 6 fatores de proteção. Nenhum
deles é dinheiro. Todo dinheiro ajuda, mas nenhum desses fatores é
relativo a capital. Alguns dos fatores de risco podem ser agravados
por dinheiro, inclusive. Nesses casos, dinheiro é fator de risco.
Já o quadro acima nos mostra que, ser uma pessoa consistente na
criação dos filhos, além de ser presente, ter relações estáveis e
pacíficas com os outros cuidadores, sempre com foco nas
necessidades da criança, é fator de proteção para toda essa lista de
possíveis riscos. Dinheiro não tem a capacidade de comprar as suas
relações pessoais de parentalidade (ser pai ou mãe).
Inclusive, em situações de pobreza e miséria, o importante é
desenvolver essas habilidades de cuidado protetivo juntamente com
a ampliação de acesso a dinheiro. Por isso, programas como Bolsa
Família oferecem renda condicionada ao cumprimento de ações da
família. Ou seja, a família só tem acesso ao dinheiro (que é usado
como incentivo, e não fim) após se engajarem nas atividades
protetivas (geralmente relativas a saúde e educação).
Ve?
Dinheiro é uma ferramenta. É um bisturi que pode salvar uma vida ou
pode matar uma pessoa. O que fazemos com ele é o que traz ou
deixa de trazer felicidade às nossas vidas. Cuidemos delas, portanto,
evitando os riscos que pudermos e desenvolvendo fatores de
proteção quando possível, inclusive na parte financeira. Mas
lembrando que não é ela que vai trazer a felicidade.
NEM SEMPRE
ALCANÇAMOS SUCESSO
GANHANDO

A vida é uma coletânea de jogos. E essa não é uma metáfora


nova, eu nem lembro quando foi a primeira vez que a ouvi.
Mas é possível encarar a vida como um conjunto de jogos.
De fato, muitas pessoas fazem isso mesmo sem saber.
Todas as vezes que, na busca de novos hábitos, lemos um livro de
auto-ajuda, de um estatístico famoso ou de um filósofo inovador,
estamos procurando ali as regras desconhecidas do jogo da vida.
Queremos saber como produzir mais, como ganhar mais, como ter
uma segunda renda, como melhorar o relacionamento, como fazer
apresentações, como se portar em reuniões de trabalho, como fazer
vendas, como melhorar a corrida: o que queremos é jogar.
Queremos melhorar nosso desempenho. Queremos ganhar o jogo.
Queremos saber quais regras devemos seguir para ganhar o jogo. E
passamos a vida entrando e saindo desses jogos, muitas vezes sem
saber.
Por isso olhamos para nossos dias na época do segundo grau
escolar ou na faculdade e não entendemos o que fazíamos. Não
entendemos como deixamos as oportunidades passarem. Se
tivéssemos feito isso ou aquilo, talvez tudo fosse melhor hoje.
Poderíamos ter falado mais, saído menos, saído mais, estudado
mais, estudado menos.
Fora do jogo e, principalmente, depois que já o terminamos,
percebemos como estávamos perdidos em regras que não faziam
sentido. Eu não sei contar em quantas guerras de relacionamentos
entrei. Daquelas que perduram por semanas, meses, ou, algumas
vezes, até anos, perdendo o sentido quando um dos dois foi
vitorioso (lembrando que, em relacionamentos, geralmente, quando
um só ganha, os dois perdem).
Quanta briga por louça - e no final só sobrou a louça para lavar.
Quanta briga com os filhos - e depois de anos eles se tornam
apenas pessoas que às vezes convivem juntos com os pais, mas
que não formam exatamente uma família.
Tudo por conta de regras estranhas de jogos estranhos. “Se eu
cozinho, o outro deveria lavar a louça”. “Se eu fui na casa dos pais
do outro, agora ele também me deve um favor”. “Se as crianças não
acordam, eu tenho que brigar com elas”. “Se não fazem o dever de
casa, merecem castigo”. “Se a ação cair e eu tiver prejuízo, eu
errei”. “Se eu não beber até cair, não sou homem”. “Se a casa não
estiver arrumada, está tudo errado”. “Se me fecharem no trânsito,
preciso buzinar, oras”.
E assim vamos, seguindo “regras” de jogos que nem sabemos mais
que estamos jogando. Pois, segundo muitos, essas são as regras
do jogo e elas já foram ensinadas pra gente - e para esses muitos -
há muito tempo.
Vivendo eternamente até o fim de uma reunião de sexta-feira.
Ninguém sabe mais o que está fazendo ali, o que está sendo
discutido, nem qual é a relevância daquilo para o trabalho. No fim
das contas, todo mundo quer achar uma forma de ir embora (o
ganho de um é o fim de todos, lembra?). Mas todos devem ficar ali
fazendo anotações, balançando a cabeça, fazendo um ou outro
comentário.
Em situações como essa, muitas vezes percebemos que as regras
não fazem muito sentido, mas não podemos agir. Pelo menos não
no momento. Isso não significa que não podemos agir em momento
nenhum. Os jogos existem - pelo menos nessa metáfora - e somos
obrigados a jogá-los.
Algumas pessoas não curtem muito essa ideia (ou metáfora) porque
não gostam da perspectiva de que há algo às controlando ou as
manipulando como em um tabuleiro. Preferem acreditar que são
absolutamente livres e que tomam todas as decisões em plena
consciência e razão de suas ações.
Odeio contradizer os muitos que assim pensam, mas as teorias da
psicologia dizem o contrário. Mesmo assim, proponho uma trégua
que talvez permita que as pessoas considerem essa alegoria. Digo
a elas: “você pode escolher o jogo”. Sim, a qualquer momento, você
pode escolher quais jogos quer jogar. Na maioria das vezes, você
pode escolher um novo jogo e uma nova regra.
A imposição de regras de jogo não exige uma postura literal sobre o
mundo, nem uma percepção absoluta de si, nem um ataque ao ego
- que tentamos proteger a qualquer custo.
Quando vamos para a cadeia do jogo “Banco imobiliário”, não
somos obrigados a agir como prisioneiros, a trocar nossas roupas
ou a ficar no canto da sala. Enquanto estamos sob a égide das
regras daquele jogo, escolhemos jogos de amizade, de piadas, de
bem estar. Pedimos para outra pessoa jogar o dado enquanto
fazemos comida ou pegamos água.
Ou também podemos ficar extremamente chateados por que
perdemos oportunidades e ficamos para trás. Acabamos agindo
como prisioneiros. Mas a regra de três rodadas na cadeia não
determina o que você faz enquanto está naquele canto do tabuleiro.
Quando alguém escolhe agir como prisioneiro das regras é que
começam as famosas brigas por se perder um jogo onde só um
pode ganhar. É a “regra do jogo”, afinal. Por tentar ganhar a
qualquer custo, limitado às regras determinadas e impressas em um
pedaço de papel por pessoas que você nunca viu, todos perdem.
Diferente de um pai que sofre um gol de um filho propositalmente,
escolhendo jogar “paternidade” ao invés de jogar futebol. O filho
está brincando de futebol, o pai está sendo pai. Existem dois ou
mais jogos acontecendo juntos. Eles cooperam, cada um no seu
jogo, e os dois ganham. O pai não perdeu o jogo de futebol, você
não pode perder em um jogo que não está jogando.
Na vida de jogos, é importante saber quais jogos você está jogando,
com quais regras você quer compactuar e que tipo de jogo está
jogando. Jogos absolutos de “tudo ou nada” como o “War” ou o
“Banco Imobiliário” podem acabar em discussões entre os
participantes pela natureza das regras. Em um jogo de cinco
pessoas, você poderá perder a maioria das vezes. Talvez escolher
apenas ganhar e depositar a sua energia nesse sentido seja um
caminho ruim. A grande maioria das vezes você vai perder. Não tem
como só ter sucesso nessa empreitada.
E assim funcionam vários jogos na vida:
Quem limita seu trabalho à “tarefa” do trabalho acaba frustrado,
sozinho, sem perspectiva e confuso sobre seu próprio valor.
Quem limita sua vida à regra de “sucesso profissional” quase
sempre termina se questionando sobre o valor da vida.
Quem limita seu casamento à rigidez de regras escolhe obediência
em detrimento da relação e do desenvolvimento individual ou não
das pessoas durante a relação.
Quem limita os funcionários a seguirem ordens gera equipes pouco
criativas, disfuncionais e adoecidas.
“Tudo ou nada” geralmente acaba em nada. Para você ganhar
nesses jogos, todos os outros devem perder. E mesmo que você
ganhe… parabéns! Você é o campeão mundial do bairro dentro de
um jogo de papelão chamado War. Para ganhar, de fato, entrou em
“guerra” com o mundo à sua volta.
Mas, lembre-se: você pode escolher outros jogos mesmo jogando
War: pode eleger a companhia das pessoas. As piadas durante as
perdas e ganhos dos caminhos apresentados pelo jogo War. As
risadas. O companheirismo. O bem-estar.
Todos esses jogos e muitos outros estão disponíveis a quase
qualquer tempo. Existem diversas pessoas no mundo jogando esses
jogos agora. Em quase qualquer lugar, se eu começar a jogar
“gentileza”, aparecem outros jogadores de “gentileza”.
Os jogos cooperativos. Um jogo que ou todos ganham ou todos
perdem. Ou jogos de jornada/sandbox, onde o fim não interessa
muito, e de preferência eles nem têm fim. Jogos que são sobre
permanecer no jogo.
O Frescobol é meu jogo metafórico favorito. Porque acredito que ele
não trabalha com pontos, não tem um fim. A única regra é manter a
bola de um lado para o outro o máximo de tempo possível.
Estressar o jogo do frescobol é uma escolha dos participantes,
quando querem, porque querem, e da forma que quiserem.
Não que a natureza do jogo determine o resultado. Muitas pessoas
jogam o jogo da raiva cooperativamente. E talvez jogos cooperativos
não sejam os melhores para resultados imediatos. Basta citar o
nome de algum político e aparecem algumas dezenas de pessoas
para jogar esse jogo, aliás.
Já jogos de “tudo ou nada” são bons para situações de crise. Na
crise, a possibilidade do “nada” é material, então pode-se justificar a
tomada de decisão de risco, afinal, não há muito mais a perder.
Como exemplo, lembremos do goleiro saindo do gol para tentar
cabecear o último lance do jogo, em busca da vitória. Mas a atitude
não faria sentido no primeiro minuto de jogo.
Antes, é importante entender os jogos, suas regras e seus fins. E,
de novo: é possível escolher o jogo onde entramos e as regras dele.
E que bom que o façamos - pois eles serão jogados de um jeito ou
de outro. Mas, sem escolhê-los, podemos acabar em jogos com
regras e fins que nos levam a caminhos diferentes dos que nós
buscamos.
RESPONSABILIDADE E
CULPA

D iscussões sobre “culpa” são recorrentes nos atendimentos


que faço enquanto psicólogo. Possivelmente o tema que
mais aparece. “Qual é a culpa? Qual é a causa? Qual é a
razão?”. As pessoas que levantam essa preocupação geralmente
sofrem do mesmo vício: achar a culpa ou o culpado por alguma
situação. Assim, talvez o sofrimento possa acabar.
Mas essa forma de pensar é complicada por algumas razões:
1. A culpa, seja de quem for, está no passado. Dificilmente há algo
no presente que possa ser feito para mudar algo que ocorreu no
passado. Encontrar o culpado atende a interesses sociais, da
justiça, ou do seu chefe. Ao culpado é atribuída a pena e o
afastamento.
Mas e daí? Quem vai lidar com os produtos daquilo que foi feito?
Ainda que toda a culpa possa ser atribuída a algo, quem vai assumir
a responsabilidade de reparar o que foi feito?
Se a criança derruba o copo de água, a culpa é dela, mas de quem
é a responsabilidade de ajudá-la e apoiá-la no futuro para fazer
diferente? Brigar, atribuir a culpa e penalizar a criança em nada
muda o fato, tão pouco muda o fato de que a criança poderá
derrubar o copo de novo no futuro caso não conte com ajuda.
2. Mais importante do que imputar uma culpa, é assumir e discutir
as responsabilidades de cada um sobre os caminhos que querem
seguir. Independentemente da culpa. Esta não vai mudar em nada a
responsabilidade individual de cada um após o fato. 99% dos
eventos são multifatoriais ou não precisam de uma análise de
culpa/causa. Gastar tempo buscando a causa ou culpa muitas vezes
é completamente irrelevante para a mudança.
Ajudar a pessoa a empoderar-se e a falar de sua história, a falar de
si para os outros de uma forma saudável, e ajudá-la a buscar apoio
de um círculo social protetivo pode fazer mais sentido.
O desafio dos problemas que trazem sofrimento quase nunca
influenciam o que precisa ser feito para resolvê-los. São processos
independentes. Fazer diferente, seja lá para o que for, exige
aprender novas coisas, se expor a situações diferentes, tentar fazer
coisas não iguais. Isso está no campo da responsabilidade
individual, do que se pode fazer apesar do que foi feito contigo.
Buscar a culpa ou a causa infinita do problema consome o tempo
que você poderia estar fazendo as coisas que de fato poderiam
resolver o problema.
3. Saber as razões de algo não significa que você seja capaz de
mudar algo, ou que algo vá mudar por causa disso. Um dos motivos
pelos quais a culpa é recorrente dentro de um consultório de
psicologia vem da ilusão de que, se soubermos a origem do
problema, seremos capazes de mudá-lo. Essa afirmação é falsa,
pelos motivos que já vimos.
Quando nos deparamos com a incapacidade de mudança, dizemos
que a culpa/causa está errada e buscamos uma nova razão. Isso
pode produzir uma busca infinita. E, se eu não interromper um
paciente que está nesse processo, é possível que ele um dia fale
sobre a origem dos átomos na busca dessas razões ou culpas.
Mas buscar culpa infinitamente é a ansiedade falando contigo.
Situações impossíveis são resolvidas assumindo a responsabilidade
do que pode ser feito e construindo uma nova vida.
4. Buscar essas razões e culpas pode te transformar em um juiz de
um mundo que não está pedindo o seu julgamento. Pessoas que se
orientam por culpa geralmente criam um senso de justiça pessoal
bastante cruel consigo e com os outros, onde a toda hora uma pena
deve ser atribuída a quem faz algo errado.
Passam horas e horas pensando ou discutindo com os outros sobre
o erro e sobre quais as penas a serem distribuídas. É um processo
destrutivo.
Buscar sua responsabilidade com o que de fato pode ser feito a
partir daí, e negociar o caminho com quem quer construir uma
saída é um caminho juntos é bem melhor. Dá trabalho, mas pelo
menos é possível chegar onde se quer sem passar uma vida
procurando fontes, culpas e porquês.
A ILUSÃO DO MELHOR
MÉTODO

U ma pessoa que busca uma forma de fazer algo como uma


dieta, aprender programação ou motivação para fazer
exercícios vai encontrar mais de 250 métodos de se fazer
a mesma coisa. O próximo passo é perder por horas para descobrir
qual método é o mais correto.
Mas, deixa eu adiantar: não existe nada que seja essencialmente
correto ou melhor. O que é possivelmente "correto" ou "melhor"
depende de, pelo menos, três coisas.
Uma delas é o objetivo. Não existem intervenções sem objetivos.
Então é preciso ter clareza do que se espera no final. E, de
preferência, o que se espera deve ser atingível, algo material no
mundo real. Quanto mais concreto ou possível de ser medido,
melhor.
Por exemplo: perder seis quilos é possível. Fazer um joguinho de
jogo da velha, aprender a brincar com seu filho, colocar o azulejo no
banheiro, seguir uma dieta saudável por seis meses, etc.
Outro fator importante que define o “melhor” método para você
conquistar seu objetivo é balizar a precisão do que você precisa.
Ou seja: qual o campo de acerto e qual o campo do erro? 99% das
coisas que fazemos são muito simples, mas os dilemas humanos
dificultam o processo.
Quando digo que algo é “simples”, quero dizer que aquilo permite
várias formas de acerto e uma margem de erro também grande.
Então tanto faz.
Por exemplo: você encontra um obstáculo na rua e precisa mudar a
rota. Para a direita, você deve aumentar a rota em 6.3 quilômetros.
Para a esquerda, em 6.5. Essa diferença provavelmente é
irrelevante e não faz, de fato, diferença nenhuma. O que vai fazer
diferença são suas preferências pessoais em relação a isso.
O mesmo vale para academias, faculdades, cursos, ler no kindle ou
ler em um suporte de papel (livro). Exceto se o seu objetivo é muito
específico, tanto faz. Não faz a menor diferença. A maioria desses
métodos são igualmente ruins ou bons. O que define mesmo são
suas preferências pessoais.
Aliás, não existe o melhor método para lavar louça - sinto te
informar. A sua preferência em relação a isso é válida, mas, tanto
faz. De forma geral, evitar se tornar um gestor da lavação de louça
pode ser um bom caminho. Se colocar nesse lugar, provavelmente
deixa sua ansiedade tomar conta de você.
Isso é uma recomendação literal e metafórica. A maioria das coisas
não exige um método perfeito. Você gostaria que sim, mas não é
assim. É muito diferente de um objetivo que necessita de precisão
cirúrgica. Nesse caso, o objetivo é super específico, o acerto é muito
difícil e o erro é perigoso. Nesse caso, são necessários métodos
muito bem desenhados e protocolos devem ser seguidos. Bem
diferente da gestão de louça. A louça tanto faz.
Ou seja: o terceiro fator importante para a definição do “melhor”
método é entender o quanto você já é capaz de executar aquele
método (o quanto você já está preparado para executá-lo ou o quão
fácil é aprender o que você precisa aprender pra fazer aquilo).
Se você precisa voltar a praticar esportes e sempre gostou de andar
de bicicleta, provavelmente essa é a melhor intervenção para você.
Porque 1- a melhor intervenção é a que atinge seu objetivo e 2-
pedalar está dentro da precisão e 3- você consegue fazer.
É tão bom quanto qualquer outro, mas a melhor para você.
Se você não gosta de esportes, mas é uma pessoa que cumpre
agendas marcadas, a melhor intervenção é procurar um personal
trainer ou um amigo que possa fazer contigo. Se só consegue fazer
as coisas com ajuda dos outros, ache alguém que precisa do
mesmo que você e ajude a pessoa. Desde que isso aumente as
chances de você executar o que precisa executar, é uma boa
intervenção.
Muitos querem começar a realizar seus feitos do jeito mais rápido -
porém também mais difícil. Querem parar de comer tudo ao mesmo
tempo, querem aprender tudo hoje, querem ler o livro inteiro de 600
páginas em pouco tempo, etc.
Isso porque o processo de mudança é naturalmente chato,
incomoda e frustrante. Mas começar pelo mais rápido e difícil
aumenta nossas chances de erro. Não se coloca o filho de seis anos
para fazer o vestibular. É importante não se colocar à prova das
coisas que não se sabe fazer também.
Dentro de um objetivo de emagrecimento, por exemplo, existem
intervenções traumáticas como clínicas de perda de peso,
internação, restrição absoluta, cirurgia bariátrica, etc. - e talvez
esses métodos todos sejam importantes em casos de risco de vida
ou quando os objetivos precisam ser atingidos imediatamente.
Mas, para a maioria das coisas, fazer isso é quase certeza de
fracasso, então, novamente: busquemos começar 1- pelo que atinge
o objetivo, 2- pelo que está dentro da margem de precisão e 3 - pelo
que você sabe fazer.
O mais difícil vai ficar mais fácil depois disso.
O MUNDO NÃO ESTÁ
CONTRA VOCÊ…

O mundo nem sabe que você está lá. A bem da verdade,


provavelmente o mundo é mais generoso do que
conseguimos compreender. Frequentemente, ele permite
que cometamos erros, que sejamos nossa pior versão, e nos dá a
chance de tentar amanhã de novo.
Não é porque alguém não atendeu a sua necessidade que essa
pessoa esteja contra você.
Não é porque você se frustrou com as suas expectativas que as
pessoas estão objetivamente te atrapalhando. Provavelmente
ninguém acorda de manhã planejando foder a sua vida. Pouca
gente tem tempo pra isso. Tá todo mundo correndo, todo mundo
tentando pagar as contas.
Se você reclama do trânsito buzinando, lembre-se que você é parte
dele. Você é o trânsito, e está lá atrapalhando todo mundo que quer
chegar no trabalho ou buscar o filho.
Mas, de novo: todo mundo tá no corre. Todo mundo tá tentando, de
um jeito ou de outro.
A gente vive como se houvesse uma porta entre a gente e o mundo.
Passamos o dia reclamando que ninguém abre a porta pra gente.
Que as pessoas deveriam abrir a porta para, então, sermos a nossa
melhor versão.
O outro deveria ser gentil, o outro deveria me ajudar, o outro deveria
me atender, minha esposa deveria me dar bom dia.
Enquanto esperamos, criamos todo o tipo de maluquice. Chateados,
magoados, criando maluquices e teorias de maldade, e más
intenções sobre um mundo que nem lembra da gente. Acredite:
pode ser que você não seja tão importante assim a ponto de que o
mundo pare e planeje um ataque individual contra você.
O mundo pode ser um tanto melhor, mas só quando você parar de
esperar e começar a fazer parte das coisas boas do mundo. Quando
você abrir a porta, entender que o custo dos outros te ajudar é o
mesmo custo que você tem para ajudar.
E que, para te ajudar, todo mundo está saindo do próprio caminho, é
um favor que estão fazendo. Não adianta passar a vida reclamando
que ninguém te ajuda, enquanto você tá parado olhando para a
porta.
O esforço que gastamos pensando na maldade no mundo é
exatamente o mesmo - embora menos proveitoso - que ser
empático e entender que as pessoas também estão lutando as lutas
delas.
“Everyone you meet is fighting a battle you know nothing about”. Be
kind. Always. - Autor desconhecido
O QUE SUCESSO
DEMANDA?

E u adoro ouvir pessoas extremamente dedicadas aos seus


projetos falarem sobre eles. Eu sei que parece um hobby
meio esquisito. Mas as pessoas que tornaram-se mestres
em seus trabalhos obviamente produziram coisas incríveis. A arte
me interessa menos do que o artista.
A “paixão” pelo ofício, por falta de palavra melhor, me impressiona
mais do que a obra. Sejam matemáticos, atores, artistas, artesãos,
cozinheiros, engenheiros, tanto faz. É sempre muito bonito poder
ser apresentado a um pedaço do mundo que eu nem imaginava
existir. Geralmente, eles conseguem traduzir uma ação como algo
indissociável de suas próprias vidas. Talvez daí venham os
constructos de vocação e destino.
Pessoas que descrevem relações e eventos iniciados na infância,
atropelados por eventos da juventude e de inúmeras relações
pessoais que parecem dar um sentido único às suas vidas. Eles têm
a vida tão entrelaçada com o que fazem que dá a impressão de um
mundo construído para que eles cheguem ao ponto em que
chegaram.
Ainda assim, não acho que seja destino, prefiro achar que é paixão.
Outro dia, eu ouvi uma entrevista onde o autor britânico Neil Gaiman
falava sobre como escreveu uma de suas obras. Ele disse que teve
a ideia aos 25 anos, escreveu o primeiro capítulo em seu escritório,
o colocou de lado e disse: “a ideia é boa, mas eu não sou bom o
suficiente. Talvez em 5 anos, quando eu for melhor, eu volte nela”.
Demorou 20 anos. E, por 20 anos, ele visitou cemitérios, coletou
informações, objetos, paisagens, e prédios para construir um livro.
Acima de tudo, ele permaneceu escrevendo. Depois de todos esses
anos, ele disse pra si mesmo: “Eu sou tão bom quanto eu posso ser,
talvez valha a pena tentar".
E tá lá. “Graveyard Book - Livro do cemitério” é um livro
maravilhoso. Tem a pretensão de ser o Mogli (o livro da selva) que
acontece em um cemitério. E foram 20 anos para tentar fazer uma
cópia. 20 anos sem se sentir bom o suficiente, e ainda assim se
dedicando ao ofício e à ideia. É paixão.
Nesse caso, não estou falando de uma percepção metafísica do
sentimento, mas da dedicação prolongada, assim como algumas
pessoas são apaixonadas por uma vida inteira por seus times de
futebol.
Algumas pessoas passam a vida esperando que uma paixão
aconteça e que mude radicalmente seus caminhos, enquanto os
apaixonados se entregaram a andar um caminho. Com medo,
falhando, sem saber o que estavam fazendo e duvidando de si.
Um relacionamento amoroso de 50 anos não é um relacionamento
sem problemas, frustrações ou decepções. É um relacionamento
que tem sobrevivido a despeito de todos esses problemas. Para
outros que não chegaram lá, pode haver a dedicação de continuar
buscando uma boa relação mesmo após o término definitivo.
O sucesso de uma profissão não se conquista com dez anos de
carreira, nem acaba em um ano ruim. A publicação de um livro não
encerra a vida do escritor, muitas vezes é só o começo de uma nova
jornada. O cuidado com os filhos não se encerra no primeiro ano
nem no trigésimo ano. Uma jornada que persiste, mesmo quando
um dos dois não pode mais caminhar.
O que eu vejo no relato de pessoas que se destacam em suas
ações é o desejo em criar, produzir e se responsabilizar por isso.
Mesmo que demore 20 anos. Mesmo que elas ainda não sejam
boas o suficiente. Mesmo que a coisa ainda não exista.
Explico: não se pode entender o sentido de um casamento de 60
anos sem ter vivido 60 anos de casamento. Talvez com 45 ou 50.
Mas boa parte do caminho é um exercício de fé, uma entrega
pessoal para um caminho, a paixão que se sustenta até que as
peças do quebra cabeça se encaixem e, a cada pequeno bloco, a
figura ganhe mais sentido e fique mais fácil entender o lugar de
cada peça.
Mas precisa de tempo, dedicação e entrega. Paixão.
SABER PEDIR AJUDA É
FUNDAMENTAL PARA
QUALQUER COISA

P edir ajuda é importante para seguirmos nossa história.


Também é importante assumirmos que, se nós vivemos em
sociedade, nós dependemos dos participantes dela.
Reconhecer essa dependência evita que façamos pedidos de ajuda
impositivos, na crença de que os outros são obrigados a atender às
nossas necessidades pessoais.
Aprender a lidar com a dependência social e a pedir ajuda se
constitui em algo essencial para o nosso bem estar psicológico e
social. E podem haver algumas formas mais fáceis de entender que
ajuda é essa que precisamos e como pedi-la de forma mais efetiva.
Antes de entrarmos nisso, também é interessante lembrarmos que a
autossuficiência é uma ilusão social mantida por sistemas como
dinheiro, hierarquia, acordos sociais, etc.. Tratam-se de sistemas
que nos guiam com uma falsa sensação de independência.
De tempos em tempos, algum desses sistemas se quebra e a nossa
dependência social fica mais explícita, como aconteceu no auge da
pandemia de covid-19, e no momento da crise de abastecimento
causada pela greve nacional dos caminhoneiros em 2018. Quase
todas as pessoas foram afetadas física e psicologicamente a partir
desses eventos e precisaram de mais ou menos ajuda para se
adaptar à nova estrutura em mãos.
Ali, lembramos que dependemos uns dos outros. Mas a ilusão de
autossuficiência não é perigosa por si só. Em certo grau, ela é
benéfica, já que nos permite viver mais tranquilos e focar em coisas
que são mais urgentes em nossas vidas privadas.
Entretanto, repito: qualquer um que viva em uma sociedade
organizada é dependente da ajuda de outras pessoas. A verdade é
que você só consegue ler esse texto porque milhares de pessoas
trabalham ativamente.
Várias atividades cotidianas como tomar água, ir ao banheiro e ter
comida em casa são completamente dependentes de outras
pessoas. Não há escapatória. Toda e qualquer ação que você
execute é direta ou indiretamente dependente de outras pessoas e
você precisa da ajuda delas para viver.
E mais: existem sistemas sociais que são utilizados para facilitar
que outras pessoas cooperem com nossos pedidos de ajuda, mas,
infelizmente, acabam criando uma falsa sensação de poder ou
direito sobre a ação dos outros, ou sobre o mundo. Ao invés de
pedir ajuda, exigimos que o outro faça as nossas vontades.
Por exemplo, com relação à dinheiro: “Acredita que eu paguei para
tal coisa acontecer e ela não aconteceu como eu queria?”. Ou “Eu
pago o condomínio e a assembleia decidiu algo que não era da
minha vontade”. Ou “O motorista do uber não quis correr até o
aeroporto, mesmo eu pagando para que corresse mais. Fiz uma
reclamação”, “Não quiseram trocar x item do prato no restaurante”.
Essas exigências também podem ter a ver com hierarquia: “Minha
diarista não limpou as coisas como eu queria. Reclamei com ela e
ela não gostou, pode isso?”. Ou "Acredita que o porteiro sempre
pede a minha identificação mesmo eu indo lá todos os dias?”. Ou
mesmo: “Chamei meus funcionários para um esporro coletivo
porque não atingiram a meta”.
Temos, ainda, exigências entre acordos sociais: “A minha esposa
não faz as coisas que ela deveria fazer”. “Briguei com meu marido
porque ele lavou a louça errado”. “Meu pai/minha mãe não faz o que
eu quero que eles façam”. “O meu filho não me obedeceu quando
eu mandei ele limpar o quarto”. “Me cortaram no trânsito, fui lá
correndo atrás do motorista buzinando e brigando”. Ou “Eu pago
meus impostos, então posso gritar o que eu quiser no meio da rua”.
Lembro aos leitores que eu não estou questionando a justiça ou
legitimidade dessas ações, só estou tentando trazer atenção ao fato
de que todas essas coisas são pedidos de ajuda velados,
transformados em exigências. Todas essas frases, e tantas outras,
escondem um pedido de ajuda sobre necessidades pessoais das
quais você é dependente dos outros.
Não reconhecer a dificuldade e fazer o pedido de ajuda correto nos
faz usar essa comunicação que traz uma exigência como base. Ela
até funciona, porque os sistemas dos quais falamos antes (dinheiro,
hierarquia etc) são desenhados para que as pessoas cooperem com
você, mesmo que nos comportemos de uma forma desagradável ou
agressiva.
Mas, a longo prazo, essa comunicação é prejudicial e pode ser
causa de afastamento sociais, dificuldades na resolução de
problemas, ou, ainda, resultar em situações mais graves como
crises de agressividade, ansiedade e depressão.
Ao invés de, impositivamente, nos comunicarmos para que alguém
resolva nossos problemas, podemos agir melhor e, simplesmente,
pedir ajuda. Podemos optar por aproximar as nossas relações,
apresentar a vulnerabilidade da situação, aumentar a sensação de
pertencimento, segurança e apoio. Fatores bem conhecidos de
proteção psicológica e social.
Para pedir ajuda de uma forma mais efetiva, podemos começar por
reconhecer a nossa necessidade ou dificuldade em comunicá-
la, já que a telepatia não é uma habilidade humana. Antes de
comunicá-la, precisamos de clareza quanto ao que queremos. Se
não sabemos o que queremos, vai ser muito difícil para alguém agir
de acordo com o que precisamos.
Quanto mais específico formos naquilo que precisamos, maior a
chance de sermos atendidos. Há um mundo de necessidades
possíveis, como alimento, carinho, companhia, ter a casa limpa,
tempo para cuidar de si, ajuda com um trabalho, sexo, atenção,
escuta, resolução de problemas, que hajam com paciência,
desconto, agilidade em algo, entre outros.
Outro fator que pode tornar o pedido de ajuda mais efetivo são as
pessoas que você escolherá para te ajudar. Portanto, fazer uma lista
daqueles com quem poderá contar para sua necessidade
específica, e que também tenham disponibilidade para tal, pode
fazer a diferença. Afinal, um pedido de ajuda para alguém vai
demandar do tempo desse alguém - será que ele tem? Mas, antes
de buscar saber disso, é importante escolher alguém que terá
habilidades para te ajudar naquilo que você precisa, afinal, ninguém
vai no encanador pedindo ajuda para pintar a parede.
Outra coisa importante é: implique-se na sua necessidade. A
necessidade é sua e de mais ninguém. Não existe necessidade
universal. Você quer alguma coisa. É comum que usem o coletivo
para esconder uma necessidade individual. Dependendo do que for,
pode até ser uma verdade, mas “esconder” que é individual também
dificulta muito a comunicação, levando a confusões desnecessárias.
Em relacionamentos amorosos, é super comum a exigência de
telepatia e o uso do “acordo social” para esconder o que se precisa -
e essa é uma das maiores causas de discussões e brigas que
conheci no consultório. Portanto, busque usar o “EU quero”; “EU
gostaria”; “EU preciso”; “EU estou com dificuldades em x situação”.
Evite o “todo mundo faz x”; “maridos/esposas deveriam fazer x”; “os
funcionários têm que x”. Também fuja do “você
TEM/DEVERIA/PRECISA”. A necessidade é sua, os outros não têm,
devem, precisam ou são obrigados a fazer nada.
Também é essencial estar aberto a negociar com o outro sobre
como ele pode te ajudar, já que é de suma importância respeitar as
limitações das pessoas que estão se disponibilizando para o nosso
apoio.
As pessoas tem seu próprio jeito de viver no mundo e fazer as
coisas. Se você está pedindo ajuda, é importante permitir ao outro
que o faça de uma forma que também seja conveniente para ele.
Ouça e negocie uma ajuda que seja boa para ele também. Ajude-o
a te ajudar.
Por exemplo: um pedido de carona pode ser resolvido chamando
um uber, caso haja recurso para tal. Um pedido de companhia nem
sempre vai acontecer na hora, talvez possa acontecer mais tarde. A
esposa ou o marido pode estar cansado de um dia de trabalho e
não te dar atenção, mas vocês podem negociar um dia calmo no
futuro próximo.
Se você está pedindo ajuda, vale lembrar também que esse pedido
pode ser negado ou apenas atendido parcialmente. Esteja pronto
para agradecer mesmo que a pessoa não possa te ajudar, ou não
possa atender você da forma que você julga ideal. Agir com
agressividade porque o seu pedido foi negado provavelmente vai
afastar as pessoas e dificultar que você seja ajudado em uma
situação futura, mesmo que você tenha sido atendido no presente.
Um pedido de ajuda tem mais ou menos esta forma: “Eu estou com
dificuldade X, e gostaria que você me ajudasse de forma Y, porque
me permitiria Z”. Essa matemática é sincera e poderá ajudar no seu
objetivo. Finalizo aplicando a forma a algumas situações, para
ajudar:
“Oi, marido. Eu estou atolada com as tarefas domésticas e não
estou conseguindo cuidar de mim direito. Preciso dividir um pouco
mais contigo essa carga para poder fazer algumas coisas para
mim”.
“Cara, amanhã de manhã eu tenho coisas super chatas para fazer
(exame, fila de cartório, banco), você poderia ir comigo? Ter alguém
na missão comigo seria ótimo e a gente pode aproveitar e botar o
papo em dia”.
“Amor, amanhã eu estou super atolada/o de trabalho, será que você
pode cuidar das coisas X, Y e Z? Eu não conseguirei e, se deixar
acumular para o fim de semana, a gente não vai conseguir curtir
junto”.
“Esse negócio de organizar viagem/festa/jantar me deixa muito
ansioso e controlador. Estou ficando estressado com isso, será que
você pode assumir as coisas X, Y e Z?”.
“Moço, o prato do meu filho veio errado, ele tem dificuldade para
comer e está com muita fome. Tem alguma coisa rápida que vocês
possam servir enquanto fazem o prato correto?”
GUIDELINES:
PRODUTIVIDADE EM PAZ

E xcesso de trabalho é fator de adoecimento e morte. Se


você tem que fazer mais do que 50 horas de trabalho por
semana, saiba que precisa ter um prazo de validade para
atuar assim, ou vai acumular riscos para a sua saúde. Quanto mais
você fizer, mais chance de dar errado.
Também sabemos que, em média, e no geral, precisamos de uma
hora para entrar na atividade que iniciamos. É preciso colocar
atividades de entrada que nos ajudem a entrar no "ritmo” ou
“estado" de melhor performance.
Funciona como o aquecimento anterior à malhação: literalmente,
você precisa se colocar em condição de atacar os problemas
difíceis. Ou vai começar se frustrando e abrindo chance para a
espiral do erro: começa errando, aí faz algo errado para arrumar o
erro, que gera mais um erro, e às 10h da manhã o dia já está uma
merda.
Tudo isso pra dizer que: atenção e produtividade têm limites.
Produtividade não é infinita nem brota do além.
Nunca recomendo mais do que 6 horas de atividade contínua. Isso
não significa que dá para fazer dois ciclos de 6 horas, somando 12.
Lembre-se: acima de 8 horas de trabalho, você começa a somar
risco para sua saúde.
Os ciclos devem durar menos ou serem iguais a 6 horas, com pelo
menos uma ou duas pausas para evitar saturação.
Isso varia diante do quão desgastante é a atividade, é claro, e pode
mudar também pelo tempo necessário para produzir algo naquela
atividade. Um ovo frito demora 3 minutos, um jantar francês precisa
de 5h de preparo. Situações diferentes têm demandas de atenção e
comprometimentos diferentes.
Carimbar papel é uma atividade de baixo custo de entrada, mas
cansa rápido. Tanto que digitadores precisam parar a cada 50
minutos, obrigatoriamente, por lei. Já os trabalhos criativos pedem
uma pista longa para você chegar no ponto. Criatividade precisa de
espaço, precisa errar, precisa bater cabeça. Criar coisas e soluções
que não existem exigem tempo, frustração, medo, raiva, e
comprometimento
Não se gera produto de criatividade em uma hora apenas. Todo
trabalho criativo, ou que demanda inovação precisa de espaço e
tempo para nascer. Você vai errar um bocado pela natureza da
atividade, e uma guilhotina de tempo só vai aumentar a chance de
você não resolver o que ninguém sabe como resolver.
Para um carro de corrida andar no máximo da performance
possível, ele precisa de uma pista reta também, sem cortes, sem
curvas. Se houver muita curva, o carro nunca vai chegar a 360
km/h. Ele até pode arrancar rápido, mas, se tiver uma curva em 20
metros, ele não chega no pico de performance.
Portanto, se você tem que transitar por muitas atividades em pouco
tempo, isso vai ter um custo na produtividade. Não dá para ser
produtivo se toda a hora você tem que atender o telefone, falar com
x pessoa, resolver problema y, etc. O custo de aceleração e
frenagem acabarão com o pico de performance e produtividade.
Então para ser produtivo…

1. Prepare-se, com atividade que te coloquem em rítmo de


produção, em detrimento de se jogar no desafio
2. Obedeça os ciclos de produção, evitando longas jornadas
que afetarão sua capacidade produtiva
3. Atente-se a necessidade de tempo que a atividade
demanda, não adianta tentar ser “produtivo” com leitura
dinâmica de um livro em 15min
4. Foco, por definição é numa coisa só, múltiplas atividades
sempre vão cobrar da sua produtividade.
PORQUE EU ME
IMPORTO…

R ecomendo fortemente que assistam este vídeo: Patrick


Speaks | Legendado |

Não é incomum eu dizer que devemos procurar pessoas com quem


podemos conversar. Um amigo, um líder religioso, alguém da
família, um psicoterapeuta. Não importa, desde que seja possível
haver uma troca, um lugar de confiança.
Pode parecer uma recomendação vazia, mas, na realidade, ela é
reflexo de um grande aprendizado sobre a importância da conexão
social para a organização da nossa psicologia.
Certa vez eu li algo mais ou menos assim: se uma pessoa
“brotasse” em uma ilha, sozinha, ela não desenvolveria linguagem,
não teria pensamentos verbais, não falaria. Afinal, ela falaria para
quem? Qual seria o sentido de falar, ou pensar - por derivação - se
ninguém iria ouvir nunca? Nossa existência estaria presa em um
mundo absolutamente complexo, calcado nas únicas coisas que
teríamos à nossa volta nesta ilha, e provavelmente seríamos
incapazes de nos relacionar com algo além do presente imediato.
A capacidade de conversar, ser ouvido, compreendido, e ser
orientado pelo laço vivencial, sentimental, emocional e histórico da
linguagem é uma porta que cria possibilidades infinitas nesse
mundo em que vivemos, nos mundos que foram e virão a ser, além
dos mundos que nunca serão.
Mas, infelizmente, eu encontro um número bem grande de pessoas
isoladas em suas próprias realidades, com dificuldades em utilizar a
linguagem para se conectarem com a imensidão da realidade a que
temos acesso ao compartilhar a existência com outras pessoas.
Como a história de uma pessoa surda que jamais aprendeu a usar
sinais para comunicar seus sentimentos, assim como nenhuma das
pessoas à sua volta aprendeu sobre como “escutá-los”.
Por isso, é bom que encontremos com quem conversar. Alguém em
quem confiamos, que nos ouça, que possa ser franco, que divida
conosco esse pedaço de existencial. No final das contas, as
partilhas e trocas são as coisas mais importantes que temos,
capazes de nos levar a universos outros e a trazer a compreensão
sobre os nossos.
O LIMITE AO CUIDAR DO
OUTRO

A ssim como muitas pessoas, eu gostaria de saber ontem o


que eu sei hoje sobre algumas coisas. Mas não deu tempo.
Aliás, eu só fui aprender o que escrevo aqui, agora, muitos
anos depois.
Eu fiz o começo da minha carreira com foco no atendimento de
pessoas que enfrentavam desafios de saúde mental graves e de
risco. Por motivos bem menos nobres do que parece a muitos, eu
acabei me tornando uma referência entre os pares que lidam com
casos difíceis, e era normal eu ser, no mínimo, o quarto psicólogo do
paciente com desafios grandes à frente.
Daí decorreram duas coisas: 1) eu precisei aprender a entender a
minha responsabilidade nas relações que formava em consultório -
e para fora dele e 2) eu precisei colocar um limite nessas relações,
tanto com os pacientes quanto na minha vida pessoal.
Ter algumas dezenas de casos graves ao mesmo tempo é um treco
complicado porque sempre (sempre) tem alguém em crise. Lógico
que o sofrimento da mãe da pessoa em atendimento é maior que o
meu. O sofrimento do pai, do irmão, do marido, ou da esposa dele é
maior que o meu. Esses familiares só tem aquela pessoa, não tem
outro irmão, filho, esposa, marido. Trata-se daquela pessoa em
atendimento e só dela.
Hoje, ainda atendo esses casos mais complexos. Mas eu vejo as
pessoas que atendo, no máximo, duas horas por semana. Seus
familiares normalmente veem a pessoa que é especial para eles
todos os dias.
Mas, seja como for, eu via dezenas de casos por semana, e aquilo
também me gerava um campo de atenção e preocupação sem fim.
Isso é extremamente complicado. Eu tenho responsabilidade por
essas pessoas. Dezenas. Grande parte delas fazendo coisas que
poderiam a qualquer momento levá-las para fins bastante
complicados. E isso afetou bastante o meu estilo de vida.
Depois de alguns anos, algumas estafas, alguns surtos e vários
problemas pessoais decorrentes disso, eu aprendi a seguir uma
linha de pensamento diferente com relação a essas relações -
inclusive levando este novo olhar para minhas relações pessoais - o
que melhorou muito minha qualidade de vida global. Entre os
entendimentos:
1. Eu só posso dar o que tenho sobrando

Eu preciso dormir, eu preciso comer, eu preciso de coisas. Eu


preciso fazer as minhas buscas pessoais, independentemente do
que está acontecendo. Se uma pessoa enfrenta um caminho difícil
ou está em um caminho de destruição, eu não poderei parar a
minha vida para cuidar dela, pelo contrário. Eu preciso da melhor
vida possível para ter como oferecer suporte a ela.
2. Eu só posso me responsabilizar pelo que eu faço

A minha responsabilidade está no meu campo de ação. Se eu fiz X,


Y ou Z por alguém, isso foi meu para a pessoa. Se eu levo a pessoa
nos Alcoólicos Anônimos (AA), a responsabilidade é a de,
justamente, levá-la no AA. Se eu falo/peço/levo alguém para praticar
esportes, eu só posso me responsabilizar por isso. E não pelo
andamento, ou resultado que vem disso.
3. Eu não posso responsabilizar a pessoa pelas minhas
expectativas
Todos os pacientes, inclusive os que não precisariam de
acompanhamento e fazem psicoterapia para desenvolvimento
pessoal, têm as buscas pessoais deles.
Eu tenho expectativas sobre os pacientes, de como eles podem
melhorar se fizerem X, Y ou Z, mas isso é responsabilidade minha.
A pessoa independe das minhas expectativas nelas.
4. Eu não sou responsável pelas expectativas delas.

O máximo que eu posso fazer é ouvir as expectativas, dizer (1) o


que eu tenho para dizer; (2) como eu posso me responsabilizar por
algo; e (3) aceitar que qualquer expectativa que eu tenha sobre isso
é minha. Qualquer coisa fora disso está fora do meu campo.
5. As pessoas são responsáveis por elas

Eu só posso apoiar no caminho. Eu mal consigo tomar decisões


sobre mim, eu já tenho as minhas próprias dificuldades de viver o
meu caminho e assumir a responsabilidade do meu caminho.
Portanto, não tenho como, por impossibilidade física, assumir o
caminho dos demais que compartilham dessa jornada. Eu posso
ajudar no caminho enquanto andamos em paralelo, mas é
impossível assumir a responsabilidade por outra pessoa.
Inclusive, eu posso aceitar também os erros dos outros, e agir para
mitigar os danos disso, mas isso não é responsabilidade minha.
6. Manter o mínimo é o bastante

Eu não posso assumir mais do que tenho, nem tenho como exigir
isso. Se fizer vou acabar cobrando o preço que eu paguei por fazer
o máximo.
Manter uma conversa em termos humanos, um almoço legal, um
espaço de saúde e sem problemas é muitas vezes a única coisa
que eu posso fazer. Sem brigas, sem julgamento, sem estresse. E a
outra pessoa determina o que quer fazer com isso. Eu só posso
fornecer a condição. Eu posso abrir a porta, mas a pessoa precisa
passar pelo batente.
SEJA GENTIL

P ode parecer estranho para alguns, mas existem muitos


motivos para um psicólogo falar da própria vida no
consultório com um paciente. Tanto pacientes quanto
psicólogos me perguntam sobre “mas a terapia é sobre o paciente,
porque falar da vida do psicólogo?”
Às vezes, pode ser feito apenas para alinhar pequenas coisas:
Atrasei por que meu carro quebrou; Preciso desmarcar por que meu
filho está doente.
Em outras situações pode ser usado como uma ferramenta
psicoterápica. O nome técnico é: Auto revelação.
Ela pode ser usada para atingir diversos objetivos, como quase tudo
na psicologia clínica, e se mal usada pode inverter os papéis e ficar
um papo bem chato. A psicoterapia é uma relação em benefício do
paciente. Se algo é feito, deve ser com o foco no paciente.
Eu já ouvi cada relato... provavelmente falaram o mesmo de mim
para outros psicólogos, nunca vou saber...
Acolhimento, sensação de compreensão, vinculação,
psicoeducação, e mais um monte de coisas. Talvez seja uma das
ferramentas mais amplas possíveis.
Explico, quando o profissional de psi sugere um livro, um filme, um
exercício é uma intervenção, ou deveria ser. Se eu posso trabalhar
alegorias de livros, filmes e outros tipos de obras paralelas porque
não posso usar a história que tenho mais conhecimento - a minha?
Desde que eu não force, ou crie uma situação em que a minha
história de vida é um modelo a ser seguido, que eu use a minha vida
como uma história a ser elaborada em conjunto com o paciente está
tudo bem.
É só uma história, assim como usamos personagens do livro Harry
Potter para ajudar os adolescente a descreverem suas percepções
de qualidades e defeitos.
Um uso que faço dessa técnica é para deslocar o “campo de
batalha”. Existem situações que são impossíveis de serem vividas,
especialmente as que causam muito sofrimento mas não tem
solução. Existem diversas situações em que em todas as
alternativas de presente existem prejuízos. Em que a parte boa da
vida só existe em um futuro distante das alternativas.
Assim como trazemos amigos para a nossa casa quando eles estão
mal, pq lá é um campo neutro, eu trago pessoas para lutarem no
meu campo. Um lugar onde não há vinculação emocional. Lá eles
podem explorar as alternativas de forma aberta e sem o medo do
prejuízo que fatalmente ocorre nas situações impossíveis.

Lógico que eu tenho que estar emocionalmente resolvido (se é que


isso existe) para manter o campo neutro. As minhas batalhas não
são deles para lutarem. Eu não espero concordância, elogios,
simpatia nem empatia. Eu espero o mínimo de respeito humano
pela minha história, mas saber se a pessoa é capaz de fazer isso é
uma responsabilidade minha, não dela.
Reitero, é uma ferramenta para que o paciente possa explorar as
alternativas sem a dor.
Recentemente, numa terça-feira qualquer, fez-se necessário lutar no
meu campo. A dor era imensa, as rupturas tanto físicas quanto
psicológicas eram gigantes. Um salto no abismo.
Na minha história, essa batalha já foi pacificada. Um mundo novo já
foi construído em cima daquilo que causou tanta dor. Ficou um
museu.
E assim conduzi a conversa, como um funcionário de museu
contando histórias de um passado. As lutas, os impactos, o que era
esperado, as decisões difíceis, os prejuízos, as perdas, as
conquistas e o preço da guerra.
Hoje eu já sei que a intervenção foi bem sucedida para o propósito
dela. Em termos de psicoterapia está tudo bem.
Não ficou tudo bem.
Em 2013, eu viajava pelos Estados Unidos e pude visitar o Museu
Nacional da Segunda Guerra Mundial em Memphis.
Eu já li, vi e estudei muito sobre a segunda grande guerra. Eu nunca
tinha visto. Ver é diferente de viver, mas eu não quero por nada na
minha vida viver aquilo.
A exibição da guerra do Pacífico acabou comigo.
Eu sabia mais do que eles mostravam, e percebi que saber me fez
ver muito mais do que havia ali. Eu tinha informação o suficiente
para preencher os espaços que não estavam lá. A nossa mente, tão
criativa, juntava automaticamente as informações.
A exibição seguia a ordem cronológica. Cada passo criava
materialidade às histórias que eu havia lido. A cada passo uma
tragédia que eu já sabia que viria se tornava real.
Foram dias difíceis.
Não ficou tudo bem.
70 anos depois foi difícil.
7 anos depois foi difícil visitar o meu museu.
Os itens de exibição eram de histórias que eu conhecia
profundamente. As roupas e fotos eram minhas, os personagens
dos relatos eram eus.
Na quarta-feira, o novo mundo construído naquilo que foi o campo
de batalha era cinza.
Foi um dia difícil. Não ficou tudo bem.
Business as usual. Eu segui da forma que deu, o novo mundo me
salvou. Não havia mais guerra. Na quinta-feira, a memória foi para o
fundo de um baú e os problemas da vida cotidiana me ocuparam.
Mas não é o que está acontecendo com os meus pacientes. Eles
ainda estão na guerra.
Na quarta-feira. Na quinta-feira, e mais alguns dias. Depois das
batalhas, com todas as suas perdas, ainda será necessário um
esforço para construir um novo mundo.
Apesar de não ser o objetivo da intervenção, visitar o museu
constantemente me lembra que a luta nunca é fácil. Mesmo
sabendo que acabou tudo bem, não é fácil.
É importante lembrar que eu faço pedidos difíceis de serem
atendidos. Não é falta de coragem, vontade ou resistência. Não é
falta de coragem, vontade ou resistência que me fragiliza ao visitar o
museu. Foi difícil. Mesmo sabendo hoje que “deu tudo certo” é
difícil.
É um pedido impossível em uma situação impossível. Algo que
chama a essência da virtude humana, seja lá o que for, em
continuar tentando, apesar da dor, construir uma vida melhor do que
ontem.
A tentativa frustrada e sem expectativa de sucesso é a batalha.
Nada relevante vai se resolver em uma única ação, nada do que eu
faça, ou que eles façam vai solucionar a dor hoje.
Em um misto de esperança e desesperança eles seguem tentando.
Sem saber se vai ficar tudo bem.
“Everyone you know is fighting a battle you know nothing about.
Be kind.
Always.” - Autor desconhecido

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