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Ainda estagiou na RTP, no programa Regiões, mas o entretenimento roubou-a ao jornalismo. Entrou
para a TVI depois de um curso de apresentação de televisão coordenado por Emídio Rangel. Estreou-
se como apresentadora nos diários do programa Big Brother. Seguiu-se o Diário da Manhã e o Você
na TV!, programa líder de audiências que conduziu durante 13 anos ao lado de Manuel Luís Goucha.
Uma Canção para Ti, A Tua Cara não Me É Estranha, Dança com as Estrelas e Apanha Se
Puderes são programas que também apresentou na TVI, antes de, em setembro de 2018, anunciar a
sua mudança para a SIC, naquela que foi, à época, a mais noticiada transferência televisiva de sempre
em Portugal – até que, em julho de 2020, se anunciou o seu regresso à TVI. Na área da comunicação,
tem ainda um blogue, o Daily Cristina, e uma revista em nome próprio, líder de mercado.
Foi considerada uma das mulheres mais influentes do país pelo Expresso, pela revista Sábado e pela
revista Forbes Portugal.
Em 2016, publicou pela Contraponto o livro de memórias Sentir, que bateu recordes de vendas e
alcançou a marca de 100 mil exemplares, e, em 2018, surpreendeu o país com a publicação do livro
intitulado Falar (Inglês) É Fácil.
Título: Pra cima de Puta
Autora: Cristina Ferreira
1.ª edição em papel: novembro de 2020
Edição: Rui Couceiro com Patrícia Reis
Revisão: Fátima Brito de Sousa
Design da capa e projeto gráfico: Diana Cordeiro
Foto da capa: Rui Valido
Contraponto.
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1
1500-499 Lisboa
www.contrapontoeditores.pt
contraponto@contrapontoeditores.pt
Tel. 217 626 000
ISBN: 978-989-666-293-6
À mudança. À empatia. Ao futuro.
PREFÁCIO
Longos Erros
A primeira vez que me insultaram nas redes, ainda no tempo dos blogues,
foi por haver declarado um amor profundo por Elza Soares. Um homem
comentou dizendo que eu era um porco e que não merecia passar perto de
uma mulher tão maravilhosa. Fiquei com dor de barriga o dia inteiro.
Naquela altura, discutíamos a legitimidade de partilhar uma fotografia sem
autorização do autor, um poema ou uma ligação do YouTube para uma
entrevista com Werner Herzog. As redes eram uma versão muito curricular
de nós mesmos, engalanadas com o melhor de que fôssemos capazes,
procurando catalisar amizades, fazer sociedade, participar, estar no tempo
do mundo e ser alguém digno de um emprego e da confiança dos outros.
Havia pudor e tudo era descoberta, porque se começavam a abrir as grandes
janelas virtuais a partir das quais se estreitariam distâncias e todos se
sentiam habilitados a uma mínima inscrição nisso a que se vinha chamando
de globalização mas que não passava de uma emanação dos mais fortes
sobre os mais vulneráveis (como segue sendo, na verdade).
Tive o ensejo de pedir que me falasse, esse que me insultou
sumariamente sem jamais me haver encontrado. Pensei em pedir-lhe que nos
telefonássemos para entender por que razão me desqualificava daquela
forma. Certamente se retrataria se desfizéssemos algum mal-entendido, um
equívoco que me prejudicava tanto ao seu olhar. Escrevi três vezes, com
toda a educação, solicitando que me desse a oportunidade de uma conversa.
Não obtive resposta. Apagou o perfil, virou ninguém. Covarde, deixou-me
saber que, por maior boa-fé que exista em mim, alguém algures me haveria
de devolver um ódio insanável, uma perturbação incontida pela minha
existência que não se permitia sequer a entrar em debate. Para a minha
cândida personalidade, aquilo era novo. Concebia a hipocrisia, mas nunca
havia concebido um ódio só porque sim. Inelutável e sem propósito. Só
porque sim.
Depois disso, aberrado, fui vendo a escalada programada do ódio nas
redes cada vez mais antissociais. Sobretudo a partir do império do
Facebook, o algoritmo favoreceu o desacato, entendendo inclusive que as
pessoas retornam à rede muito mais vezes se estiverem em fúria do que se
estiverem em paz. A fúria é obstinada, a paz, por definição, sente pressa
nenhuma. É instalação de calma e quer que assim continue pelo futuro fora.
Em todos os tempos a humanidade procurou controlar a informação para
dominar. Regulamentou-se todo o tipo de emissão. Quem pode, como pode,
quando pode, em todos os meios e por todos os efeitos, isso foi sendo
estabelecido pelos sistemas legais de modo a caminhar para um poder
sempre mais justo. O advento da Internet, por exceção, sendo o mais
poderoso meio de comunicação alguma vez inventado, talvez até por isso,
escapou largamente ao juízo da lei, estranhamente proporcionando um
território de impunidade que não só faz eco do pior que havia nos povos
como criou e motivou os povos a muito pior do que havia. O ódio, que não
era novidade alguma, passou a ser outra vez ensinado.
Todas as políticas prepotentes se impõem fraturando a sociedade.
Melhor estratégia para o domínio está no fomento do conflito entre cidadãos
gerando uma sociedade que se compromete pela emoção e não pela razão.
Movidas pelo irascível da constante ofensa, as pessoas fazem escolhas em
que se perigam na esperança tremenda de conseguirem punir aqueles por
quem se sentem atacados, sejam os vizinhos ou os políticos, os gordos ou os
carecas, os que ganham a vida a fazer cinema ou as mulheres que decidem
não casar, não calar, não comer espargos, não esperar por mais nada.
Numa sociedade movida pelas piores emoções tudo é perigo e qualquer
esplendor se põe a acabar. A razão é fundamental até para educar o coração.
Há uma necessidade intrínseca de inteligência no amor. Como há uma
estupidez natural em sucumbir ao ódio.
Menos de vinte anos passados desde me haverem chamado porco por
amar Elza Soares já fui insultado por escrever que dou o braço à minha mãe
quando passeamos na rua, por escrever que as mulheres são integralmente
parte do padrão humano e não convidadas no planeta para serviço dos
homens, que o meu cão me entende os humores, já me escreveram
lamentando que, ao celebrar o meu aniversário, não esteja a celebrar o
aniversário da minha morte. Fui insultado pelo que dizem as personagens
dos meus livros, pelo que pensa Einar, um islandês com lesões cerebrais que
inventei em A Desumanização. Fui insultado por anónimos e por alguns
jornalistas das praças mais importantes. Que nunca escrevi uma página
decente, não passarão os meus textos de uma bosta, sou insuportável por ter
cara de bom rapaz, tenho a mania só por fazer sucesso no Brasil, um parolo
que vive entre os pobres das Caxinas e se comove em público. Por vezes,
ainda me dói a barriga, mas já não procuro chegar à fala com ninguém.
Convenço-me de que, educadas para o ódio, as almas mais débeis exercem-
no como também coitadas. O que não invalida que, mesmo que o sistema não
opere e não se imponha, estas pessoas estejam, sim, no espectro do crime.
Num certo sentido, e muito claramente, abundam os criminosos. Gente que
pratica o que a lei penal proíbe e promete punir. Porque não o faz, não se
entende. Talvez só porque se popularizou de tal jeito que nenhum país teria
como julgar e encarcerar vinte ou trinta por cento dos seus cidadãos.
Sou, ainda assim, um felizardo. Os escritores pertencem ao mundo
esforçado daqueles que leem. Isso de ler é lento. Para nos enfurecermos com
um livro precisamos de ter uma cultura média, nem que não queiramos ler.
Só saber o nome de um escritor vivo já não é para qualquer um. Isso protege.
A vastidão de precipitados no ódio consome-se em universos mais
imediatos, como o da televisão, onde se convencem de ver tudo e saber tudo
o que representa uma pessoa. O caso de Cristina Ferreira, raríssima mulher a
quem os obstáculos não impediram de fazer mais do que a esmagadora
maioria dos homens, é sintomático. A sua exposição massiva, que é
ostensivamente benigna, sem ofício de maldade algum, sem mais do que
servir de interlocutora para tantos profissionais e gente que faz, que sente e
pensa, não a poupa dos piores insultos. Pessoas supostamente de bem que
não hesitam em usar as redes para os impropérios mais vis como numa arena
outra vez romana onde se deitavam os cristãos à fome dos leões. Que
miseráveis se os leões agora formos nós. Que miseráveis. E que miserável
haveria de ser o cristianismo e qualquer outra fé se for o avesso da
aceitação, da paz e do amor.
Não é inteligível a razão por que as pessoas consideram legítimo o
insulto, o boato, a agressão na Internet. Tudo quanto condenam na rua, no
trabalho, na mesa do café, legitimam no aparato virtual onde, afinal, tudo se
amplifica e eterniza. Porque escrevem nos murais o que jamais teriam
coragem de dizer na cara? O que jamais julgariam sequer adequado. Aquilo
que jamais considerariam justo que alguém lhes dissesse de volta. Este
desajuste entre o que as pessoas fazem e a ética que exigem dos outros é uma
corrupção de cidadania, uma espécie de perturbação mental coletiva, uma
que se está a generalizar. Não posso aceitar que se saiba o crime que é
insultar alguém e se insulte sob a estranha convicção de que num lugar
específico, o virtual, vale tudo. Liberdade de expressão não é impunidade
nem a grotesca maldade. Somos humanos porque concebemos o bem e
porque o podemos escolher. Aos bichos está reservada a única via de uma
sobrevivência feroz.
Portugal, como infelizmente muitos países, não suporta a evidência do
sucesso. Os bem-sucedidos são obrigados a manterem-se discretos, como se
houvesse a imediata assunção de que o sucesso é culposo. Em outros
lugares, como por exemplo nos Estados Unidos da América, os que cumprem
os seus sonhos são venerados. Não há culpa em ganhar prémios, comprar a
casa com melhor vista, colocar na orelha um diamante, casar com a modelo
mais cobiçada. Os norte-americanos encaram os que alcançaram o topo
como exemplos, espécie de heróis cujos passos querem seguir. Entre nós,
aqueles que lavarem a camisa três vezes já são perseguidos por humilharem
os que genuinamente não o poderão fazer, e os que na verdade não se
cansarão nunca por fazer seja o que for. Porque só quem faz pode estar a
fazer errado. Quem não faz nada não temos como avaliar, passa pela vida
como imprestável, um ruído apenas.
Quando o sucesso é ao nível de Cristina Ferreira, o prurido nos espíritos
acomodados torna-se retumbante. Por mais brilhante, temos infelizmente uma
cultura que tende a invejar o outro. A inveja, por sinal, é um sentimento que
mais do que revelar que também queremos algo, diz que nos é insuportável
que a outra pessoa tenha. Quer dizer: para o invejoso o mais importante é a
ruína do outro. Deveríamos ser mais cobiçosos. Cobiçar não implica o abate
da felicidade dos demais. Significa sobretudo que nós gostaríamos de ser
felizes também.
Lembro-me sempre de como a Cristina Ferreira se comoveu em resposta
às críticas torpes que sofreu dizendo que se precisar de voltar atrás ainda
sabe bem o lugar das estacas, fazendo uma referência aos tempos em que terá
acompanhado a família em trabalho à feira. Pois, também a mim me comove.
Também acompanhei a família à feira, ergui o quebra-cabeças das estacas,
das telas, os balcões, a beleza possível. E atendi as pessoas que vinham dos
campos e das periferias, à procura do melhor e do mais barato, sem
demasiadas peneiras, sobretudo com a educação e o brio de valerem por
histórias inteiras de trabalho e compromisso. Quando se percorre um
caminho tão extenso, do improvável de se chegar da feira à direção de um
canal de televisão, podemos entender a perplexidade mas jamais entenderei
a falta de solidariedade. O exemplo de Cristina Ferreira é o mais urgente de
todos. Ele tem de inspirar a larga maioria que é composta por quem vive do
seu engenho límpido, honesto, e sonha amplificar a sua segurança, o seu
bem-estar. Mais ainda por se tratar de uma mulher, essa pessoa que chega de
milénios de anos subjugada a uma cultura machista que não quis prever a sua
libertação, não quer ainda aceitar a sua libertação.
Este livro é um ponto de partida para o estudo desse fenómeno
desumano, criminoso, da agressão na Internet, mas é também um passo mais
no entendimento de como uma mulher, por se tornar uma heroína, é vista
enquanto ornitorrinco na cidade que se pensou ser dos homens. Alguém dizia
que as mulheres antes do 25 de Abril sonhavam com uma revolução que
aproveitasse ao menos aos homens. Uma democracia que chegasse nem que
apenas para eles. É nossa obrigação, conquistada esta democracia frágil e
tendenciosa, garantir que se divida em partes iguais com as mulheres, sob
pena de sermos mais um longo erro na história que se contará da
humanidade.
Recebi a mensagem que leram na página anterior no dia dos meus anos,
em setembro último. Chegou pela manhã, para simpaticamente me dar os
parabéns, para celebrar comigo o meu aniversário. Chegou para me recordar
que não basta fazer um caminho, é preciso batalhar. Li-a alto e bom som
durante o almoço de aniversário que reuniu alguns dos meus. Consegui
perceber que algumas pessoas se encolheram. Ficaram aflitas. E mais aflitas
ficaram com o meu riso.
O riso é uma ferramenta de sobrevivência? Não. É saber que posso estar
descansada, as agressões são gratuitas e não se encaixam em mim.
Resvalam. Caem ao chão. Tempos houve em que me deixei perturbar. Sentia-
me injustiçada. Hoje sinto-me exposta e consciente da minha pouca
liberdade.
Este livro é para isto. Para sermos todos confrontados com a impunidade
de agredir nas redes sociais, não interessa quem, sem que esse gesto tenha
consequências. Importa refletir, perceber este fenómeno. É urgente legislar.
Muitos considerarão que este livro é mais uma provocação. É verdade, é
uma provocação. Sou eu a dizer-vos que estas coisas me são dirigidas,
diariamente, e que ainda assim continuo em busca dos meus sonhos. Não me
desmoralizam. Não me esmorecem.
Esta maledicência, esta imensa maldade, num mundo que precisa tanto do
oposto, surge porquê? O que leva o ser humano a escrever este tipo de
comentários? Um dia, daqui a muito tempo, alguém pegará neste livro e
conseguirá entender como eram as redes sociais nesta década do século
XXI. Talvez encontre uma explicação.
Esta é abertura de caminho para uma análise sociológica que precisa de
ser feita. Não é para terem pena de mim. Ou da minha família. É para
entenderem que mulheres e homens atacam ferozmente. Na maioria das vezes
sem conhecimento de causa. Na maioria das vezes por inveja pura e simples
ou por qualquer outro tipo de sentimento que os especialistas saberão
identificar melhor do que eu.
A minha vida também se faz deste receber mensagens. Muitas delas são
bonitas, comoventes. Gosto disso e digo-o com sinceridade. Mas depois há o
oposto. Nesta altura em que voltei a casa, à TVI, as mensagens surgiram
mais agressivas do que nunca. As pessoas, nas redes sociais, põem em causa
uma escolha que foi minha, um caminho que eu escolhi para mim. Talvez
valha a pena perguntar o porquê de lhes importar tanto. E qual a razão para
tecerem tantas considerações e julgamentos.
Este livro surge assim: estava de férias e comecei a ler comentários
hostis, violentos, agressivos, mal-educados. Pensei: alguém tem de explicar
o porquê de as pessoas reagirem desta maneira. Importa pôr quem sabe a
falar disto. A maioria das pessoas que agridem gratuitamente mostra o rosto,
assina, tem perfis públicos. É gente que não se esconde, mas não me parece
que seja por valentia. É gente que ataca, parece-me, sem ter a noção de que o
está a fazer publicamente. E de um modo tão agressivo que não há dúvidas
de que não o fariam da mesma forma pessoalmente. Ninguém na rua me diz
aquelas coisas. Mas atrás de um ecrã de telemóvel ou computador, já é
diferente. Alguma coisa tem de existir aqui, para que estejamos a viver este
período.
Creio que posso deixar um testemunho. É uma parte da História e da
história das pessoas que, impunemente, optam por agredir.
Viver com estes comentários não é um exclusivo meu. A maldade grassa.
O fel destila. Assusta-me perceber que há pessoas que vivem desta maneira.
Pessoas que julgam os outros com facilidade e sem pudor. Dá a ideia de que
tentam punir quem é bem-sucedido. Ou de que não têm capacidade para
perceber que cada um de nós tem, felizmente, liberdade de fazer as suas
escolhas. De viver da maneira que entende. É evidente que o facto de se ser
uma figura pública expõe e sujeita à opinião alheia, mas estou convencida de
que há aqui uma grande falta de empatia. Mas como é que ela se cria? É um
problema cultural? É na escola que temos de ensinar às crianças que é bom
sabermos colocar-nos nos sapatos dos outros?
Não sou socióloga, não sou psicóloga, não sou psiquiatra, nem filósofa,
nem antropóloga. Mas quero que este debate se faça. Sou uma profissional
da área da comunicação e chego a muita gente. Quero usar essa influência
para tentar criar reflexão e discussão em torno de algo que não me afeta só a
mim, de algo que me parece que faz de nós, enquanto sociedade, gente menor
do que poderíamos ser.
Esta é uma análise que quero ajudar a fazer. A partir de comentários que
deixam nas minhas redes sociais, quero sugerir que se reflita. Existem
comentários idênticos noutras plataformas e há muita gente que vive o
mesmo que eu, que lê o mesmo tipo de insulto. Talvez nem todas as figuras
públicas sejam um alvo permanente, como eu sou, mas é evidente que quanto
maior a exposição, maior a sujeição à violência gratuita a que a Internet e as
redes sociais dão palco. Impressiona que uma ferramenta tão boa também
seja capaz de gerar tanto mal. Mas acredito que ainda vamos a tempo de
regular o seu funcionamento e de fazer os necessários ajustes à forma como
nos relacionamos com e num mundo – o da Internet – que, apesar de tão
presente nas nossas vidas, é uma invenção ainda relativamente recente e à
qual, enquanto sociedade, ainda nos estamos a habituar.
Este princípio de reflexão tinha de ficar escrito. Para impelir ao
pensamento. Para pararmos e considerarmos o que estamos a viver.
Neste livro, reuni também algumas figuras de diferentes áreas para me
ajudarem a analisar estes fenómenos. Não vêm aqui defender-me – tal como
eu não procuro, como repararão – mas expressam preocupações reais. Não
têm uma solução, é certo, mas são um testemunho que nos obriga também ao
repensar da realidade.
Sonhar sempre foi gratuito. Eu alimentei-me desse sonhar uma vida
inteira e ainda hoje, felizmente, tenho sonhos por cumprir. A dimensão de
encanto das redes sociais não é exclusiva. Existem coisas feias no mundo. É
importante mostrar como elas surgem. Talvez não esteja a exagerar se disser
que este livro é sobre a fealdade do mundo, dos corações e das mentes
humanas. É sobre a agressão e sobre a necessidade urgente de conseguirmos
mudar. Não custa ser melhor, não custa tentar todos os dias. O que custa é
reconhecer que o caminho mais correto é trabalhoso. Eu trabalho muito. Há
quem não entenda. Tenho pena, mas não irão conseguir fazer-me parar.
Leio comentários como estes e penso que, se as pessoas me
conhecessem, se entrassem pela minha porta, iriam perceber que não sou
convencida. Não tenho a mania. É claro que não as posso convidar para
minha casa (aliás prezo muito a minha privacidade e a dos meus) e que,
portanto, tenho de lhes mostrar alguma coisa. Será que sou o que mostro?
Por vezes, penso que tem de haver alguma coisa na condição humana que
leva a este tipo de reação. Ou então é um problema da nossa organização
social. Sinto, por isso, que todos temos de contribuir para que a sociedade
regule, para que a sociedade possa agir de maneira a que essas pessoas
percebam que estão enganadas. É educação. Quando vemos um filho a
cometer um erro, temos de lhe chamar a atenção. Está na hora de chamar a
atenção para este fenómeno, para quem comenta de maneira hostil. A
difamação, a injúria e a violência verbal gratuitas não podem ser
normalizadas. Que futuro terão os nossos filhos se aprenderem a agir assim?
Quem escreve este tipo de comentário só pode achar que aquilo não vai
ser lido, ou que não tem qualquer tipo de efeito. Ou será que espera outra
coisa? Mas o quê? Não consigo compreender.
Eu seria incapaz de escrever algo do género. E a maior parte das pessoas
jamais me diria este tipo de coisas na cara.
Estou convencida de que a maioria das pessoas seria incapaz de me ligar
para me chamar isto ou aquilo. Acharão essas pessoas que aquilo que
publicam, para toda a gente ler, não agride? Que não deve ser motivo de
julgamento porque é apenas escrito? Sentir-se-ão cobardemente protegidas
por um ecrã? Faz-me muita confusão. Como disse, eu seria incapaz, por
muito que não gostasse de uma pessoa, de escrever na sua página pública
aquilo que alguns me escrevem. Há quem diga que são pessoas infelizes, ou
que são pessoas que não têm vida. Mas não pode ser, é inaceitável. Porque,
a ser assim, haveria milhares de pessoas infelizes, milhares de pessoas que
não têm uma vida própria. Bom, se calhar é isso que se passa.
Mas tal coisa justifica que descarreguem em cima de outras pessoas? É
estranho. Tento pôr-me no lugar do maior dos infelizes e dos frustrados e não
consigo encontrar motivo para, em vez de estar insatisfeito comigo próprio,
achar que devo agredir alguém.
A um jovem, eu diria que é importante que tente conversar mais, que
tente ouvir os pais. Eu, com a idade, percebi que foi crucial crescer a ouvir a
minha família. Não havia telemóvel. E ainda bem.
Tenho uma família grande, tive essa sorte, e cresci a ouvir a constante
partilha das experiências dos outros, o que lhes aconteceu, como fizeram
nesta ou naquela circunstância, o que decidiram em determinadas alturas
mais ou menos importantes. Essa partilha foi importante. Hoje, os miúdos
não têm isto. Tenho algum medo desta geração, porque não sei que futuro vão
ter a nível emocional. Estamos a criar uma geração de gente fraca
emocionalmente. São incapazes de gerir os «nãos», as falhas, as rejeições.
Hoje, tudo é bonito, só mostram o que é bonito, escolhem a melhor
fotografia. Eu faço esta mesma seleção, dirão. E é verdade. Entre o belo e o
feio, é apenas humano optar pelo belo. Não há problema algum na beleza,
todos adoramos a beleza. Mas tenho a noção de que a minha geração, que só
tinha uma máquina fotográfica, guardou imensas fotografias em papel,
algumas delas terríveis. E sabemos que não há mal nenhum em serem
terríveis, porque são uma memória, porque nos recordam que não há
perfeição. A vida é imperfeita. O enquadramento pode ser perfeito, o
sorriso, a roupa, mas estará sempre a faltar alguma coisa à nossa vida. Até
aquilo que à partida pode ser difícil, e implicar sofrimento, é importante. É o
que nos constrói. Todos sentimos dor. Todos temos momentos em que não
estamos bonitos, bem vestidos. Ter um padrão de exigência tão grande fará
com que as novas gerações sejam mais felizes? Talvez sim, talvez não. Não
temos como responder.
Os contratos têm cláusulas. É este o mundo onde vivo, onde decidi fazer
o meu caminho. Eu cumpro com a minha palavra. Muitas vezes não cumprem
comigo. Sobre isso, sobre a vida nos bastidores, não se sabe nada. E eu sou
o alvo mais fácil. A impunidade desta hostilidade constante é um veneno na
sociedade de hoje.
Eu digo que proporciono sonhos, tal como outros fizeram e fazem, figuras
públicas que expõem a sua vida. É verdade que há essa dimensão, esse
desejo, o ser aspiracional. Isto não significa que tenhamos de validar a nossa
existência através de likes. Os mais novos precisam de entender que não são
melhores ou piores por terem muitos ou poucos likes, por terem comentários
melhores ou piores. Eu não me deixo afetar com os comentários de natureza
hostil. Escolho a indiferença e continuo o meu caminho. O facto de me
atacarem, como atacam tantas outras pessoas, é exemplo da maldade humana,
não belisca a minha identidade, não me retira poder, autoconfiança. Não
deixo de acreditar por me deitarem abaixo. As gerações mais novas
precisam de incorporar esta verdade: o que está nas redes não é quem somos
na totalidade, é uma parcela. A nossa vida, fazemo-la no dia a dia, gerindo o
bem e o mal, o bonito e o feio. É assim que aprendemos a processar o
fracasso, as desilusões, os momentos em que alguém se esqueceu de nos
destinar um final feliz.
Saí da TVI para a SIC. Agora voltei. As pessoas que me agrediram
quando decidi sair devem ser as mesmas que agora me atacaram. As
agressões são idênticas. Especulam. Falam do que não sabem.
Não há falsidade no meu percurso. Disso tenho a certeza. Há pessoas que
acham que podem mesmo julgar-me e, mais curioso ainda, tomar as decisões
da minha vida. Aonde é que nós chegámos? A televisão é o meu mundo e tem
muitas coisas maravilhosas. A Internet também. Mas sobre certas pessoas
exercem efeitos com consequências estranhas.
Quando vejo ataques gratuitos a outras figuras públicas, sobretudo se
forem pessoas das quais gosto, fico muito mais incomodada do que com as
coisas que dizem sobre mim. Compadeço-me. Penso: nós somos gente.
Não somos abstrações. Eu, por ser figura pública, não sou a capa de um
livro. Eu existo. As pessoas precisam de começar a ter noção desta
realidade. E é preciso estar atento, porque os ataques não são exclusivos e
dedicados tão-somente a figuras públicas. As pessoas agridem-se.
Genericamente. Qualquer pessoa escreve o que entender sobre outra. Insulta.
Estamos a ir por um caminho perigoso. O que significa isto? Em termos
sociais, que repercussões terá? Estas perguntas são importantes.
Somos nós que expomos as fotografias. Somos nós, figuras públicas, que
o fazemos. Mostramos um bocadinho da nossa vida. É verdade. Mas, no meu
caso, nem me podem acusar de expor muito a minha vida. Nunca mostrei a
minha família ou a minha casa, por exemplo. E tudo o que ponho nas redes
sociais tem um registo profissional. Até as férias, que exponho até certo
ponto, surgem por questões profissionais. Dir-me-ão que há trabalhos menos
difíceis. De acordo, mas lutei e trabalhei muito para aqui chegar e protegi
sempre a minha família e os meus da exposição mediática.
Durante muito tempo, nenhum dos meus familiares teve Internet. A minha
mãe, ainda agora, não tem e eu agradeço a Deus todos os dias por isso.
Recentemente, o meu pai rendeu-se e vê as notícias e comentários online
sobre a filha diariamente. Nunca me disse nada. Certa vez, a minha mãe
ficou muito chocada com uma capa de uma revista que sugeria que eu tinha
cancro. Dessa feita, e ao contrário da maioria das vezes, senti-me mesmo
triste e revoltada. Por um motivo: a minha mãe veio perguntar-me se era
verdade, se eu tinha cancro. A minha mãe estava com medo de que eu
estivesse a esconder-lhe que estava doente. Aquilo eu não pude admitir. Este
tipo de coisas eu não tolero. Fui com o caso para tribunal, porque existem
limites. Podem dizer o que quiserem de mim, mas não aceito que magoem a
minha família.
Quero muito que haja uma legislação que regule esta situação de
impunidade em que vivemos. Em que se pode escrever tudo. Há pouco
tempo, tive uma conversa com membros da Entidade Reguladora para a
Comunicação Social e perguntei: Quando é que começamos a olhar para
aquilo que acontece nas redes sociais? A responsabilizar as pessoas pelas
maldades que escrevem. E quando é que começamos a tentar perceber a
razão por detrás de tanta agressividade?
Não falo apenas de agressões cometidas por pessoas individuais.
Existem também sites que fazem, sem condenação alguma, qualquer tipo de
«notícia». Escrevem aquilo que bem entendem, inventam. E não há quem lhes
diga: isso é enviesado, isso é falso, isso está fora de contexto, não pode ser
feito dessa maneira.
Este sentimento de impunidade vai ter um resultado infeliz e pouco
digno.
Não será uma lei fácil de redigir e levará tempo. Temos de começar a
falar sobre o tema e a agir. Não posso ter seja quem for a escrever isto na
minha página de Instagram ou de Facebook: és uma grande vaca. Não posso.
Isso e todas as maravilhas que leram ao longo das últimas páginas. Mas
tenham a noção, por favor, de que isto são apenas alguns exemplos.
Poderíamos encher páginas e páginas com comentários destes. É claro que
há muitíssimos mais comentários positivos, mas o chocante é haver gente que
se dedica a escrever estas agressões totalmente gratuitas e, tantas vezes,
ofensivas.
Posso dizer que sou ambiciosa, que é uma palavra que rima com
gananciosa. Mas a rima não se estende ao sentido, é apenas fonética. A
ambição não precisa de ter uma conotação negativa. A ambição é apenas a
vontade de cumprir os meus objetivos, os meus sonhos. Em grande medida,
eu quero apenas perceber onde posso chegar, nesta escolha que fiz. Já o
disse, mas repito que quando as oportunidades me aparecem, tenho uma
capacidade: não olho para trás. Aparece uma oportunidade e, se eu achar
que sim, avanço e não olho para trás. Não olho mesmo.
Se me conhecessem saberiam que não é, nunca foi, o dinheiro a mover-
me. Se gosto de ter uma vida confortável e de dar uma vida confortável à
minha família? Claro que sim. Mas sinto que mereço cada cêntimo que me
pagam. Gosto de ter dinheiro. Como qualquer outra pessoa, mas mereço o
que consegui amealhar e o que ganho. Trabalho para isso.
Creio que estruturei o meu filho, desde o primeiro dia, para saber que a
mãe que ele tem em casa é a mãe de verdade. Ele não liga nenhuma à mãe da
televisão. Chego a casa e pergunto: viste a mãe? Ele encolhe os ombros, não
viu. Tento dar-lhe pistas das coisas que vou conquistando, do lugar onde
estou. Nunca quis que ele fosse apanhado de surpresa. Mas há um episódio
na vida dele que me deixou sossegada. Foi no dia em que entrou para o
quinto ano. Nos primeiros anos de escola, houve muita proteção. A
professora tomava conta dele a esse nível. No quinto ano, entrou numa
escola gigante, com crianças até aos 15 ou 16 anos, jovens que já sabem
quem eu sou. No primeiro dia, fui levá-lo à escola e estavam umas trinta
crianças no portão, a gritar: Cristina, Cristina, Cristina! Pensei: o meu filho
vai entrar ali sozinho e vai ter de levar com isto tudo. Ele entrou, seguiu em
frente e nem olhou para trás. E eu percebi.
Ele lê as notícias. Às vezes, pergunta: isto é verdade, mãe?, mas
geralmente não são perguntas sobre as questões mais complicadas. A esse
nível, passa-lhe tudo ao lado, tem uma estrutura que me deixa muito
confortável. Acho que percebeu como é que a coisa funciona. Sei que ele
nunca me vai julgar nem pensar que o que podem dizer de mim é quem eu
sou.
Escolho eliminar os rostos e os apelidos das pessoas cujos comentários
estão neste livro. Deixo apenas o primeiro nome, ou parte do nickname, para
que se possa identificar o género. É uma opção. Não quero vingar-me de
ninguém. Quero apenas que analisem o momento social que estamos a viver.
Não fixo os rostos seja de quem for, não visito o perfil quando me deixam
uma mensagem. Não preciso disso. Aquela mensagem é fruto da vida
daquela pessoa. E eu não conheço a vida daquela pessoa. O que pode ter
publicado no Instagram não é a vida dela. Não a conhecendo, retenho o que
me disse e faço a minha análise. Guardo apenas se é homem ou mulher. Há
uma disparidade muito grande. E essa avaliação também merece ser feita. A
grande maioria das pessoas que me atacam é composta por mulheres.
Leio tudo e passa-me ao lado. Tempos houve em que não me era
indiferente. Ganhar estofo também faz parte do percurso. O caminho faz-se
caminhando. Endureci. É a única opção possível, se queremos viver. Nunca
me magoou a ponto de eu achar que estava, de alguma forma, a agir mal.
Nunca me perturbou ao ponto de eu me pôr em causa. Hoje, em mim, tem
zero efeito. Às vezes, afeta mais as pessoas da minha equipa, que se
revoltam e ficam indignadas, do que me afeta a mim.
Quero deixar marcada esta realidade, bem vincada, e os livros sabemos
que são duradouros. Talvez alguém, daqui a muitos anos, encontre este livro
numa feira qualquer, ou num alfarrabista, se ainda os houver, e perceba que,
nesta época, era assim que se falava na Internet, era assim – ou era também
assim – que mulheres e homens se dirigiam a alguém.
Quero promover o debate sobre esta questão, sobre a impunidade de se
escrever o que se quer, de forma hostil e ofensiva. Convidei algumas
personalidades, de áreas distintas, a refletir e analisar a questão. Não são
figuras públicas, influencers, profissionais na área da comunicação.
Convidei uma jurista, Dulce Rocha. Uma filósofa, Joana Rita Sousa.
Dois psiquiatras, Júlio Machado Vaz e Pedro Strecht. E ainda uma socióloga,
Maria José da Silveira Núncio. Além do prefaciador, o escritor Valter Hugo
Mãe. Todos acederam ao meu convite de imediato, motivo pelo qual lhes
estou grata, e fizeram questão de não serem remunerados. Os textos que
poderão ler a seguir são importantes para começarmos o debate sobre o
bullying nas redes sociais. O meu exemplo é apenas isso, um exemplo.
O Discurso de Ódio
ou a Negação da Liberdade de Expressão
Dulce Rocha
JURISTA1
de comentar
Imagine que o seu epitáfio é o último comentário que fez numa rede
social
O que iria dizer esse epitáfio sobre si? Será que se iria reconhecer nesse
comentário?
Da próxima vez que pensar em escrever um comentário, pense mesmo
antes de o fazer. Que valor vai acrescentar ao seu dia e ao dia daqueles que
o vão ler? É informativo? É divertido? É respeitoso? É pedagógico? É um
ataque pessoal? O que significa? Se fizer estas perguntas todas é bem
possível que perca a vontade de comentar. Se isso acontecer, significa que
esse comentário não seria relevante. Acredite que eu própria inicio vários
tweets que acabo por apagar, sem chegar a enviar. Porquê? Aquele tweet não
vai acrescentar nada a ninguém, nem a mim. Possivelmente vai terminar
numa troca mais ou menos agressiva ou num diálogo monológico sem fim.
Escolha bem as suas batalhas. Seja responsável: publique e comente com
moderação.
[Agora que penso nisso, se o meu último comentário for um poop emoji,
o meu epitáfio dirá, enfim, «muito» sobre mim. ]
Pedro Strecht
MÉDICO PEDOPSIQUIATRA1
II
Escrevo este texto já depois de o livro estar paginado e pronto para ser
enviado para impressão na gráfica. É perturbador que, depois de reler todos
os comentários reunidos neste livro, ainda sinta o choque, o desconforto. Ao
voltar a ler esta seleção de agressões publicadas originalmente nas redes
sociais, percebo que se impõe a necessidade de fazer uma análise sobre este
fenómeno.
No dia a dia, já disse, passam-me ao lado. Mas, agora, aqui todos juntos,
impressionam-me. E, confesso, tento abstrair-me de que me foram dirigidos.
Um dia, gostaria de estar numa sala com quantos escreveram todos estes
comentários. Olhos nos olhos. Só para perceber o porquê. Para sentir.
Sei lidar com tudo na vida, menos com a maldade e com a ofensa
gratuita. Há um trabalho coletivo que precisa de ser feito a partir deste
momento que estamos a viver. Este livro faz-se a partir da minha persona
pública, mas poderia ser outra pessoa a criar o debate.
Cada um de nós já viveu uma qualquer situação de dor e de injustiça
provocada pelo julgamento de outros. Quis deixar esta análise por escrito
para que dure. Daqui a 100 anos, se este livro for encontrado por alguém,
essa pessoa saberá como as redes sociais, no seu início, trouxeram tanta
violência gratuita.
Nós somos pioneiros, estamos a viver a revolução tecnológica e a
tecnologia abre possibilidades que precisavam de controlo e de regulação.
Quero voltar a agradecer aos especialistas e ao prefaciador que se
juntaram a este ponto de partida, a este debate que, espero, possa continuar
para lá deste livro.
Quero acreditar que a partir daqui algo aconteça. Nem que seja a
discussão. É dela que nasce a luz.