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CRISTINA FERREIRA tirou o curso de Ciências da Comunicação com o objetivo de ser jornalista.

Ainda estagiou na RTP, no programa Regiões, mas o entretenimento roubou-a ao jornalismo. Entrou
para a TVI depois de um curso de apresentação de televisão coordenado por Emídio Rangel. Estreou-
se como apresentadora nos diários do programa Big Brother. Seguiu-se o Diário da Manhã e o Você
na TV!, programa líder de audiências que conduziu durante 13 anos ao lado de Manuel Luís Goucha.
Uma Canção para Ti, A Tua Cara não Me É Estranha, Dança com as Estrelas e Apanha Se
Puderes são programas que também apresentou na TVI, antes de, em setembro de 2018, anunciar a
sua mudança para a SIC, naquela que foi, à época, a mais noticiada transferência televisiva de sempre
em Portugal – até que, em julho de 2020, se anunciou o seu regresso à TVI. Na área da comunicação,
tem ainda um blogue, o Daily Cristina, e uma revista em nome próprio, líder de mercado.
Foi considerada uma das mulheres mais influentes do país pelo Expresso, pela revista Sábado e pela
revista Forbes Portugal.
Em 2016, publicou pela Contraponto o livro de memórias Sentir, que bateu recordes de vendas e
alcançou a marca de 100 mil exemplares, e, em 2018, surpreendeu o país com a publicação do livro
intitulado Falar (Inglês) É Fácil.
Título: Pra cima de Puta
Autora: Cristina Ferreira
1.ª edição em papel: novembro de 2020
Edição: Rui Couceiro com Patrícia Reis
Revisão: Fátima Brito de Sousa
Design da capa e projeto gráfico: Diana Cordeiro
Foto da capa: Rui Valido

© 2020, Cristina Ferreira e Contraponto


[Todos os direitos para publicação desta obra em língua portuguesa reservados por Contraponto.]

Contraponto Editores é uma chancela da Bertrand Editora, Lda.

Contraponto.
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1
1500-499 Lisboa
www.contrapontoeditores.pt
contraponto@contrapontoeditores.pt
Tel. 217 626 000

ISBN: 978-989-666-293-6
À mudança. À empatia. Ao futuro.
PREFÁCIO

Longos Erros

por Valter Hugo Mãe

A primeira vez que me insultaram nas redes, ainda no tempo dos blogues,
foi por haver declarado um amor profundo por Elza Soares. Um homem
comentou dizendo que eu era um porco e que não merecia passar perto de
uma mulher tão maravilhosa. Fiquei com dor de barriga o dia inteiro.
Naquela altura, discutíamos a legitimidade de partilhar uma fotografia sem
autorização do autor, um poema ou uma ligação do YouTube para uma
entrevista com Werner Herzog. As redes eram uma versão muito curricular
de nós mesmos, engalanadas com o melhor de que fôssemos capazes,
procurando catalisar amizades, fazer sociedade, participar, estar no tempo
do mundo e ser alguém digno de um emprego e da confiança dos outros.
Havia pudor e tudo era descoberta, porque se começavam a abrir as grandes
janelas virtuais a partir das quais se estreitariam distâncias e todos se
sentiam habilitados a uma mínima inscrição nisso a que se vinha chamando
de globalização mas que não passava de uma emanação dos mais fortes
sobre os mais vulneráveis (como segue sendo, na verdade).
Tive o ensejo de pedir que me falasse, esse que me insultou
sumariamente sem jamais me haver encontrado. Pensei em pedir-lhe que nos
telefonássemos para entender por que razão me desqualificava daquela
forma. Certamente se retrataria se desfizéssemos algum mal-entendido, um
equívoco que me prejudicava tanto ao seu olhar. Escrevi três vezes, com
toda a educação, solicitando que me desse a oportunidade de uma conversa.
Não obtive resposta. Apagou o perfil, virou ninguém. Covarde, deixou-me
saber que, por maior boa-fé que exista em mim, alguém algures me haveria
de devolver um ódio insanável, uma perturbação incontida pela minha
existência que não se permitia sequer a entrar em debate. Para a minha
cândida personalidade, aquilo era novo. Concebia a hipocrisia, mas nunca
havia concebido um ódio só porque sim. Inelutável e sem propósito. Só
porque sim.
Depois disso, aberrado, fui vendo a escalada programada do ódio nas
redes cada vez mais antissociais. Sobretudo a partir do império do
Facebook, o algoritmo favoreceu o desacato, entendendo inclusive que as
pessoas retornam à rede muito mais vezes se estiverem em fúria do que se
estiverem em paz. A fúria é obstinada, a paz, por definição, sente pressa
nenhuma. É instalação de calma e quer que assim continue pelo futuro fora.
Em todos os tempos a humanidade procurou controlar a informação para
dominar. Regulamentou-se todo o tipo de emissão. Quem pode, como pode,
quando pode, em todos os meios e por todos os efeitos, isso foi sendo
estabelecido pelos sistemas legais de modo a caminhar para um poder
sempre mais justo. O advento da Internet, por exceção, sendo o mais
poderoso meio de comunicação alguma vez inventado, talvez até por isso,
escapou largamente ao juízo da lei, estranhamente proporcionando um
território de impunidade que não só faz eco do pior que havia nos povos
como criou e motivou os povos a muito pior do que havia. O ódio, que não
era novidade alguma, passou a ser outra vez ensinado.
Todas as políticas prepotentes se impõem fraturando a sociedade.
Melhor estratégia para o domínio está no fomento do conflito entre cidadãos
gerando uma sociedade que se compromete pela emoção e não pela razão.
Movidas pelo irascível da constante ofensa, as pessoas fazem escolhas em
que se perigam na esperança tremenda de conseguirem punir aqueles por
quem se sentem atacados, sejam os vizinhos ou os políticos, os gordos ou os
carecas, os que ganham a vida a fazer cinema ou as mulheres que decidem
não casar, não calar, não comer espargos, não esperar por mais nada.
Numa sociedade movida pelas piores emoções tudo é perigo e qualquer
esplendor se põe a acabar. A razão é fundamental até para educar o coração.
Há uma necessidade intrínseca de inteligência no amor. Como há uma
estupidez natural em sucumbir ao ódio.
Menos de vinte anos passados desde me haverem chamado porco por
amar Elza Soares já fui insultado por escrever que dou o braço à minha mãe
quando passeamos na rua, por escrever que as mulheres são integralmente
parte do padrão humano e não convidadas no planeta para serviço dos
homens, que o meu cão me entende os humores, já me escreveram
lamentando que, ao celebrar o meu aniversário, não esteja a celebrar o
aniversário da minha morte. Fui insultado pelo que dizem as personagens
dos meus livros, pelo que pensa Einar, um islandês com lesões cerebrais que
inventei em A Desumanização. Fui insultado por anónimos e por alguns
jornalistas das praças mais importantes. Que nunca escrevi uma página
decente, não passarão os meus textos de uma bosta, sou insuportável por ter
cara de bom rapaz, tenho a mania só por fazer sucesso no Brasil, um parolo
que vive entre os pobres das Caxinas e se comove em público. Por vezes,
ainda me dói a barriga, mas já não procuro chegar à fala com ninguém.
Convenço-me de que, educadas para o ódio, as almas mais débeis exercem-
no como também coitadas. O que não invalida que, mesmo que o sistema não
opere e não se imponha, estas pessoas estejam, sim, no espectro do crime.
Num certo sentido, e muito claramente, abundam os criminosos. Gente que
pratica o que a lei penal proíbe e promete punir. Porque não o faz, não se
entende. Talvez só porque se popularizou de tal jeito que nenhum país teria
como julgar e encarcerar vinte ou trinta por cento dos seus cidadãos.
Sou, ainda assim, um felizardo. Os escritores pertencem ao mundo
esforçado daqueles que leem. Isso de ler é lento. Para nos enfurecermos com
um livro precisamos de ter uma cultura média, nem que não queiramos ler.
Só saber o nome de um escritor vivo já não é para qualquer um. Isso protege.
A vastidão de precipitados no ódio consome-se em universos mais
imediatos, como o da televisão, onde se convencem de ver tudo e saber tudo
o que representa uma pessoa. O caso de Cristina Ferreira, raríssima mulher a
quem os obstáculos não impediram de fazer mais do que a esmagadora
maioria dos homens, é sintomático. A sua exposição massiva, que é
ostensivamente benigna, sem ofício de maldade algum, sem mais do que
servir de interlocutora para tantos profissionais e gente que faz, que sente e
pensa, não a poupa dos piores insultos. Pessoas supostamente de bem que
não hesitam em usar as redes para os impropérios mais vis como numa arena
outra vez romana onde se deitavam os cristãos à fome dos leões. Que
miseráveis se os leões agora formos nós. Que miseráveis. E que miserável
haveria de ser o cristianismo e qualquer outra fé se for o avesso da
aceitação, da paz e do amor.
Não é inteligível a razão por que as pessoas consideram legítimo o
insulto, o boato, a agressão na Internet. Tudo quanto condenam na rua, no
trabalho, na mesa do café, legitimam no aparato virtual onde, afinal, tudo se
amplifica e eterniza. Porque escrevem nos murais o que jamais teriam
coragem de dizer na cara? O que jamais julgariam sequer adequado. Aquilo
que jamais considerariam justo que alguém lhes dissesse de volta. Este
desajuste entre o que as pessoas fazem e a ética que exigem dos outros é uma
corrupção de cidadania, uma espécie de perturbação mental coletiva, uma
que se está a generalizar. Não posso aceitar que se saiba o crime que é
insultar alguém e se insulte sob a estranha convicção de que num lugar
específico, o virtual, vale tudo. Liberdade de expressão não é impunidade
nem a grotesca maldade. Somos humanos porque concebemos o bem e
porque o podemos escolher. Aos bichos está reservada a única via de uma
sobrevivência feroz.
Portugal, como infelizmente muitos países, não suporta a evidência do
sucesso. Os bem-sucedidos são obrigados a manterem-se discretos, como se
houvesse a imediata assunção de que o sucesso é culposo. Em outros
lugares, como por exemplo nos Estados Unidos da América, os que cumprem
os seus sonhos são venerados. Não há culpa em ganhar prémios, comprar a
casa com melhor vista, colocar na orelha um diamante, casar com a modelo
mais cobiçada. Os norte-americanos encaram os que alcançaram o topo
como exemplos, espécie de heróis cujos passos querem seguir. Entre nós,
aqueles que lavarem a camisa três vezes já são perseguidos por humilharem
os que genuinamente não o poderão fazer, e os que na verdade não se
cansarão nunca por fazer seja o que for. Porque só quem faz pode estar a
fazer errado. Quem não faz nada não temos como avaliar, passa pela vida
como imprestável, um ruído apenas.
Quando o sucesso é ao nível de Cristina Ferreira, o prurido nos espíritos
acomodados torna-se retumbante. Por mais brilhante, temos infelizmente uma
cultura que tende a invejar o outro. A inveja, por sinal, é um sentimento que
mais do que revelar que também queremos algo, diz que nos é insuportável
que a outra pessoa tenha. Quer dizer: para o invejoso o mais importante é a
ruína do outro. Deveríamos ser mais cobiçosos. Cobiçar não implica o abate
da felicidade dos demais. Significa sobretudo que nós gostaríamos de ser
felizes também.
Lembro-me sempre de como a Cristina Ferreira se comoveu em resposta
às críticas torpes que sofreu dizendo que se precisar de voltar atrás ainda
sabe bem o lugar das estacas, fazendo uma referência aos tempos em que terá
acompanhado a família em trabalho à feira. Pois, também a mim me comove.
Também acompanhei a família à feira, ergui o quebra-cabeças das estacas,
das telas, os balcões, a beleza possível. E atendi as pessoas que vinham dos
campos e das periferias, à procura do melhor e do mais barato, sem
demasiadas peneiras, sobretudo com a educação e o brio de valerem por
histórias inteiras de trabalho e compromisso. Quando se percorre um
caminho tão extenso, do improvável de se chegar da feira à direção de um
canal de televisão, podemos entender a perplexidade mas jamais entenderei
a falta de solidariedade. O exemplo de Cristina Ferreira é o mais urgente de
todos. Ele tem de inspirar a larga maioria que é composta por quem vive do
seu engenho límpido, honesto, e sonha amplificar a sua segurança, o seu
bem-estar. Mais ainda por se tratar de uma mulher, essa pessoa que chega de
milénios de anos subjugada a uma cultura machista que não quis prever a sua
libertação, não quer ainda aceitar a sua libertação.
Este livro é um ponto de partida para o estudo desse fenómeno
desumano, criminoso, da agressão na Internet, mas é também um passo mais
no entendimento de como uma mulher, por se tornar uma heroína, é vista
enquanto ornitorrinco na cidade que se pensou ser dos homens. Alguém dizia
que as mulheres antes do 25 de Abril sonhavam com uma revolução que
aproveitasse ao menos aos homens. Uma democracia que chegasse nem que
apenas para eles. É nossa obrigação, conquistada esta democracia frágil e
tendenciosa, garantir que se divida em partes iguais com as mulheres, sob
pena de sermos mais um longo erro na história que se contará da
humanidade.

Caxinas, outubro de 2020


INTRODUÇÃO
NTRODUÇÃO

Feias, Porcas e Más

Recebi a mensagem que leram na página anterior no dia dos meus anos,
em setembro último. Chegou pela manhã, para simpaticamente me dar os
parabéns, para celebrar comigo o meu aniversário. Chegou para me recordar
que não basta fazer um caminho, é preciso batalhar. Li-a alto e bom som
durante o almoço de aniversário que reuniu alguns dos meus. Consegui
perceber que algumas pessoas se encolheram. Ficaram aflitas. E mais aflitas
ficaram com o meu riso.
O riso é uma ferramenta de sobrevivência? Não. É saber que posso estar
descansada, as agressões são gratuitas e não se encaixam em mim.
Resvalam. Caem ao chão. Tempos houve em que me deixei perturbar. Sentia-
me injustiçada. Hoje sinto-me exposta e consciente da minha pouca
liberdade.
Este livro é para isto. Para sermos todos confrontados com a impunidade
de agredir nas redes sociais, não interessa quem, sem que esse gesto tenha
consequências. Importa refletir, perceber este fenómeno. É urgente legislar.
Muitos considerarão que este livro é mais uma provocação. É verdade, é
uma provocação. Sou eu a dizer-vos que estas coisas me são dirigidas,
diariamente, e que ainda assim continuo em busca dos meus sonhos. Não me
desmoralizam. Não me esmorecem.
Esta maledicência, esta imensa maldade, num mundo que precisa tanto do
oposto, surge porquê? O que leva o ser humano a escrever este tipo de
comentários? Um dia, daqui a muito tempo, alguém pegará neste livro e
conseguirá entender como eram as redes sociais nesta década do século
XXI. Talvez encontre uma explicação.
Esta é abertura de caminho para uma análise sociológica que precisa de
ser feita. Não é para terem pena de mim. Ou da minha família. É para
entenderem que mulheres e homens atacam ferozmente. Na maioria das vezes
sem conhecimento de causa. Na maioria das vezes por inveja pura e simples
ou por qualquer outro tipo de sentimento que os especialistas saberão
identificar melhor do que eu.
A minha vida também se faz deste receber mensagens. Muitas delas são
bonitas, comoventes. Gosto disso e digo-o com sinceridade. Mas depois há o
oposto. Nesta altura em que voltei a casa, à TVI, as mensagens surgiram
mais agressivas do que nunca. As pessoas, nas redes sociais, põem em causa
uma escolha que foi minha, um caminho que eu escolhi para mim. Talvez
valha a pena perguntar o porquê de lhes importar tanto. E qual a razão para
tecerem tantas considerações e julgamentos.
Este livro surge assim: estava de férias e comecei a ler comentários
hostis, violentos, agressivos, mal-educados. Pensei: alguém tem de explicar
o porquê de as pessoas reagirem desta maneira. Importa pôr quem sabe a
falar disto. A maioria das pessoas que agridem gratuitamente mostra o rosto,
assina, tem perfis públicos. É gente que não se esconde, mas não me parece
que seja por valentia. É gente que ataca, parece-me, sem ter a noção de que o
está a fazer publicamente. E de um modo tão agressivo que não há dúvidas
de que não o fariam da mesma forma pessoalmente. Ninguém na rua me diz
aquelas coisas. Mas atrás de um ecrã de telemóvel ou computador, já é
diferente. Alguma coisa tem de existir aqui, para que estejamos a viver este
período.
Creio que posso deixar um testemunho. É uma parte da História e da
história das pessoas que, impunemente, optam por agredir.
Viver com estes comentários não é um exclusivo meu. A maldade grassa.
O fel destila. Assusta-me perceber que há pessoas que vivem desta maneira.
Pessoas que julgam os outros com facilidade e sem pudor. Dá a ideia de que
tentam punir quem é bem-sucedido. Ou de que não têm capacidade para
perceber que cada um de nós tem, felizmente, liberdade de fazer as suas
escolhas. De viver da maneira que entende. É evidente que o facto de se ser
uma figura pública expõe e sujeita à opinião alheia, mas estou convencida de
que há aqui uma grande falta de empatia. Mas como é que ela se cria? É um
problema cultural? É na escola que temos de ensinar às crianças que é bom
sabermos colocar-nos nos sapatos dos outros?
Não sou socióloga, não sou psicóloga, não sou psiquiatra, nem filósofa,
nem antropóloga. Mas quero que este debate se faça. Sou uma profissional
da área da comunicação e chego a muita gente. Quero usar essa influência
para tentar criar reflexão e discussão em torno de algo que não me afeta só a
mim, de algo que me parece que faz de nós, enquanto sociedade, gente menor
do que poderíamos ser.
Esta é uma análise que quero ajudar a fazer. A partir de comentários que
deixam nas minhas redes sociais, quero sugerir que se reflita. Existem
comentários idênticos noutras plataformas e há muita gente que vive o
mesmo que eu, que lê o mesmo tipo de insulto. Talvez nem todas as figuras
públicas sejam um alvo permanente, como eu sou, mas é evidente que quanto
maior a exposição, maior a sujeição à violência gratuita a que a Internet e as
redes sociais dão palco. Impressiona que uma ferramenta tão boa também
seja capaz de gerar tanto mal. Mas acredito que ainda vamos a tempo de
regular o seu funcionamento e de fazer os necessários ajustes à forma como
nos relacionamos com e num mundo – o da Internet – que, apesar de tão
presente nas nossas vidas, é uma invenção ainda relativamente recente e à
qual, enquanto sociedade, ainda nos estamos a habituar.
Este princípio de reflexão tinha de ficar escrito. Para impelir ao
pensamento. Para pararmos e considerarmos o que estamos a viver.
Neste livro, reuni também algumas figuras de diferentes áreas para me
ajudarem a analisar estes fenómenos. Não vêm aqui defender-me – tal como
eu não procuro, como repararão – mas expressam preocupações reais. Não
têm uma solução, é certo, mas são um testemunho que nos obriga também ao
repensar da realidade.
Sonhar sempre foi gratuito. Eu alimentei-me desse sonhar uma vida
inteira e ainda hoje, felizmente, tenho sonhos por cumprir. A dimensão de
encanto das redes sociais não é exclusiva. Existem coisas feias no mundo. É
importante mostrar como elas surgem. Talvez não esteja a exagerar se disser
que este livro é sobre a fealdade do mundo, dos corações e das mentes
humanas. É sobre a agressão e sobre a necessidade urgente de conseguirmos
mudar. Não custa ser melhor, não custa tentar todos os dias. O que custa é
reconhecer que o caminho mais correto é trabalhoso. Eu trabalho muito. Há
quem não entenda. Tenho pena, mas não irão conseguir fazer-me parar.
Leio comentários como estes e penso que, se as pessoas me
conhecessem, se entrassem pela minha porta, iriam perceber que não sou
convencida. Não tenho a mania. É claro que não as posso convidar para
minha casa (aliás prezo muito a minha privacidade e a dos meus) e que,
portanto, tenho de lhes mostrar alguma coisa. Será que sou o que mostro?
Por vezes, penso que tem de haver alguma coisa na condição humana que
leva a este tipo de reação. Ou então é um problema da nossa organização
social. Sinto, por isso, que todos temos de contribuir para que a sociedade
regule, para que a sociedade possa agir de maneira a que essas pessoas
percebam que estão enganadas. É educação. Quando vemos um filho a
cometer um erro, temos de lhe chamar a atenção. Está na hora de chamar a
atenção para este fenómeno, para quem comenta de maneira hostil. A
difamação, a injúria e a violência verbal gratuitas não podem ser
normalizadas. Que futuro terão os nossos filhos se aprenderem a agir assim?

É curioso como o sucesso dos outros (ou a imagem de um certo tipo de


sucesso) incomoda algumas pessoas. Não todas, claro. A maioria, quero
crer, não se incomoda com o que de bom acontece aos outros.
Eu trabalho. Trilhei um caminho. Fiz opções. Agarrei oportunidades.
Tenho uma capacidade que porventura nem todos terão: se acho que é para
avançar, avanço, não olho para trás. Ninguém me pode acusar de não
trabalhar. O desdém que os comentários mostram é apenas isso, desdém.
Estranho sentimento.

Os homens tendem a ser mais contidos a este nível, mas quando as


mulheres fazem comentários de cariz sexual, e insinuam que foi através de
favores sexuais que cheguei onde cheguei, confesso que isso me entristece
bastante. Não por mim, porque sei que não foi esse o motivo para a minha
ascensão profissional, mas por perceber que ainda há mulheres a
perpetuarem esse tipo de pensamento que limita tanto a igualdade entre
homens e mulheres, por ainda haver mulheres que pensam que, para serem
bem-sucedidas, as suas semelhantes têm de se deitar com alguém. Que triste.
Quando lancei o meu livro Sentir, no final de 2016, falei de um episódio
de assédio sexual. E contei a minha história para saberem que se pode dizer
«não» imediatamente, logo numa primeira abordagem. E ainda para
sublinhar isto: mesmo dizendo «não», foi possível chegar ao lugar que esse
homem estava a facilitar-me a troco de algo que eu não queria e não iria
nunca dar-lhe. É possível fazer seja o que for, sem ter de fazer favores de
espécie alguma, mas sobretudo sexuais. Nada diminui tanto uma pessoa,
nada diminui tanto as mulheres que se querem iguais.
Este tipo de comportamento dos outros, e de julgamento em relação a
mim, não é aceitável. E é preciso dizer outra coisa: os ataques também se
devem ao facto de eu ser mulher. Tenho notado muito, nos últimos anos, que
a questão do género é real. E eu não vou deixar que aconteça. Não vou calar.
Escrevi e disse que tenho mamas e vagina. Tenho poder. Como muitos
homens. Infelizmente, como poucas mulheres. Não peço desculpa por isso.
As pessoas acreditam que me conhecem e que, de certa maneira, eu lhes
pertenço. Faço parte da vida delas, portanto podem opinar e podem julgar
sem qualquer noção de limite. Leio os comentários para perceber. Gosto
muito de entender as pessoas que me seguem, que olham para mim, que se
interessam. Mas há quem não me entenda. Há uma mistura de comentários
muito bons com comentários muito maus. Existem pessoas que me veneram.
Não gosto disso. Acho estranho que alguém, não me conhecendo, tenha esta
capacidade de me amar a partir de um ecrã de televisão, de achar que eu
pertenço à família, que sou importante na sua vida. É uma imensa
responsabilidade. Qualquer coisa que eu faça, ou diga, já sei que existem
pessoas que vão sentir como algo feito ou dito diretamente para elas. Todos
os dias sinto essa responsabilidade e preciso de a honrar. E depois tenho o
avesso, tenho milhentas pessoas que dizem mesmo muito mal de mim. Sem
me conhecerem. Sem terem informação nem quererem ter.
Retomemos a questão dos comentários de cariz sexual. Se forem escritos
por homens, não me fazem diferença, porque em grande medida é uma coisa
que está muito explorada, existem livros sobre este tipo de comportamento.
Não fico admirada. Sabemos as razões para o comportamento masculino.
Conhecemos a origem do machismo. São homens que não evoluíram, por
isso não me faz diferença.
Conversei muito sobre o título deste livro. Não me ocorre nada mais
certo, mais justo. É ler os comentários. É perceber que não existe uma
fronteira, uma dignificação. Sou o que quiserem. Homens e mulheres
imaginam-me em situações, imaginam-me com pessoas. Objetificam-me.
Chamam-me tudo, chamam-me de tudo. Pra cima de puta.
As conquistas que as mulheres fizeram nos últimos anos são muitas, é
verdade, mas importa perceber o que nos ficou de um passado que ainda nos
está a impedir de olharmos para uma mulher e de nos sentirmos felizes com
as conquistas dela. Ou felizes por ter sido por mérito que chegou onde
chegou. Com os homens, a realidade é outra – trabalha bem, vai chegar onde
quer. Às vezes, para uma mulher, mesmo trabalhando de forma superior, é
muito difícil. Poucas vezes se diz que trabalha bem ou que vai longe. Eu
quero muito que se elimine esse estereótipo. Quero muito mostrar que sim, é
possível atingirmos os nossos objetivos da forma mais simples – a trabalhar.
Por isso, não tenho problema algum que continuem a dizer e a julgar as
minhas escolhas, porque sei o caminho que estou a fazer. Mas gostaria de
contribuir para mudar esta realidade que diz tão mal de nós enquanto
sociedade.
É engraçado como tudo é assunto. O corpo, a roupa, a maquilhagem, a
inteligência, a voz, as escolhas, a família, os amores, tudo. Na maioria das
vezes, as pessoas nem têm noção. Eu adoro ver-me sem maquilhagem. Aliás,
gosto muito mais de mim sem maquilhagem. Quando me mostro assim, e já o
fiz muitas vezes, é porque adoro ver-me dessa forma, exatamente como sou.
Aquela é cada vez mais a Cristina e é a Cristina que eu quero que comecem
a sentir, a perceber melhor.
Eu digo que estou mais gorda. Digo que estou inchada. Digo que tenho
rugas. Nos últimos tempos, fiz essa partilha com frequência, aliás nem
escondo que os níveis de stresse provocaram uma inflamação no meu corpo
que estou a tentar gerir. Os braços não estão bem? Levo uma manga
comprida, ou então mostro e digo. E já ajudei não sei quantas pessoas.
Porque consigo falar destas coisas, consigo expor as imperfeições, queixar-
me das mesmas dificuldades. Se gosto de me sentir bonita? Claro que sim.
Que mulher não gosta? Quem não gosta? Mas nunca fiz um tratamento ao
rosto, por exemplo. Nunca fiz uma massagem. Não tenho vida para isso. Mas
tomem nota: esta não é uma vida de princesa. Dá trabalho.
Também é curiosa uma certa obsessão com a minha vida conjugal,
sentimental e até íntima. Vivi uma história de amor muito bonita e muito forte
e não houve ninguém, até hoje, que tivesse aparecido para me levar a desejar
ter um novo companheiro. Estou no meu direito, não estou? No dia em que
tiver alguém, se quiser apresentar, apresento. Se não quiser, não o farei. Não
têm de saber o que se passa na minha vida, na minha cama. E muitas vezes
rio-me porque também não têm de me arranjar pessoas para estar comigo na
cama. Porque não é preciso.
Que estranho mundo este, em que mesmo quem nunca falou connosco ou
nos ouviu falar de determinado assunto conhece as nossas razões.
Foi traidora aquilo que mais me chamaram nos últimos tempos. Não
quiseram perceber que tudo o que disse foi sincero e de coração. A partir do
momento em que comecei a sentir que já não estava ali, disse-o
imediatamente. E isso nunca pode ser considerado traição. Mudar de
vontade não é traição.
Todos os dias sou traída profissionalmente. Para quem não conhece o
meio da televisão, e já o disse, é um mundo onde há muitas pessoas más. Há
outros semelhantes, igualmente difíceis, claro. Mas a televisão é um mundo
de egos, em que é preciso ser-se maior do que o outro. É inevitável surgirem
pessoas a tentar minar o nosso trabalho.
Costumo dizer que vesti o colete à prova de bala já há alguns anos. O
que me permite olhar, para ver de onde vem o ataque, sabendo que estou
protegida. Este olhar tem de ser feito com alguma inteligência, com uma
análise atenta das pessoas que estão ao lado. Sou observadora. Não faz mal
termos, ao nosso lado, essas pessoas que tentam minar o nosso caminho.
Porque são elas que nos dão a capacidade para estarmos sempre alerta. Para
se chegar onde eu cheguei, é preciso estar alerta até com a pessoa que,
supostamente, foi a nossa melhor amiga durante dez anos.
A visibilidade que tenho ajuda à imaginação maléfica de muitos.
Alimenta-a. Porquê? Podem imaginar o que quiserem, mas é pena que o
façam desta forma, com tanta violência. A minha vida tem uma dimensão
pública significativa. É inegável. Isso tem um preço. E eu pago esse preço
todos os dias.
Digo isto várias vezes: a Cristina que é pública está muito longe da
Cristina que existe desde sempre. Não é preciso ser muito perspicaz para
chegar a essa conclusão. Quando entro em casa, o lado público fica à porta.
Não quero com isto dizer que não seja a mesma. Sou sempre eu, mas existe
um lado público que importa gerir face aos outros. E há o lado privado, que
tentei preservar desde o início, e que não sabia até onde iria chegar. Sempre
quis manter um lado que ninguém conhecesse. Que fosse só meu e dos meus.
Um lado capaz de me proteger. É egoísta da minha parte? Talvez seja, na
opinião de alguns, mas eu acho que é sobretudo legítimo. Nunca partilhei ou
expus publicamente a minha mãe, o meu filho, o meu pai, as pessoas que me
são próximas. Não quero que ninguém fique com eles. São meus. São o
último reduto de privacidade, privacidade que não tenho em lado algum em
Portugal. Não posso ir seja aonde for, ou fazer o que quer que seja, sem que
as pessoas saibam que está ali a Cristina Ferreira. Se estou a comprar
batatas num supermercado, tenho algumas pessoas a olhar para mim e a
tentar perceber que batatas é que estou a comprar. Perdi muita liberdade com
esta escolha de vida que fiz e não quero que os meus percam também a
liberdade deles. Não seria justo.
Sou inteligente, sou esperta, sou tudo o que possam imaginar que é
preciso ser para chegar onde cheguei, mas manipuladora não sou. Sei que
cheguei até aqui porque sempre disse, na cara, o que tinha a dizer. Sou uma
pessoa frontal. Nunca escondi fosse o que fosse em relação aos outros. Não
posso ser manipuladora, quando sou uma pessoa que diz o que tem a dizer
sem rodeios. Essa frontalidade tem um preço, mas estou disposta a pagá-lo.
Não guardo nada. Não me fica nada preso cá dentro, nada por dizer. Alguém
efetivamente manipulador confronta-se comigo e eu digo-lhe: não gosto de ti
por isto e por isto, não confio em ti, não vais fazer certas coisas porque te
conheço, porque te estou a ver. Essa pessoa fica desarmada. Já aconteceu
muitas vezes.
Sou muito teimosa. É um defeito, mas também me tem levado a bom
porto. Tenho limado outra característica: achar que tenho sempre razão,
porque cresci com essa ideia de que a minha opinião estaria mais certa do
que a dos outros. Não é assim. Os outros têm opiniões, muitas vezes, mais
válidas do que as minhas. Com o tempo, passei a ouvir muito mais as
pessoas. Podem pensar que tomo as minhas decisões só por mim, mas a
verdade é que as tomo considerando as opiniões que ouvi. Gosto de ser
teimosa.
O empenho e a dedicação que as pessoas colocam em alguns comentários
dão-me muitas vezes a certeza de que estou no bom caminho. Só um trabalho
importante pode dar azo a tanta maldade. E eu não tenho medo. É uma das
minhas qualidades. Não tenho medo de nada. Quando criamos para nós este
lema de que tudo o que nos acontece na vida é porque alguma coisa melhor
está para chegar, ou está a ajudar a que algo melhor possa concretizar-se,
não temos medo. Até o pior nos motiva. Só me demoro 24 horas na tristeza,
raramente me toma mais tempo. Ultrapasso. Perguntam-me: tem coisas tristes
na sua vida? Sim, tive. Não me lembro delas. A minha mente apaga o que
não tem importância. Também é isso que me permite sorrir todos os dias
apesar de ver estas pedradas a virem na minha direção.

No que respeita à comunicação sobre sexualidade temos, não tenho a


menor dúvida, muito para evoluir. As pessoas não sabem lidar com a
sexualidade de forma saudável. Dificilmente falam sobre sexo com à-
vontade. Há pudor e, mesmo estando no século XXI, ainda existem
preconceitos. Escondemos o que pensamos sobre a sexualidade. Não é
saudável. Não tenho qualquer problema, ou medo, de falar sobre aquilo que
entendo que possa ajudar a fazer crescer o Outro. Fazer crescer o Outro é
provocar um pensamento, uma reação. Se as pessoas ficam a pensar, é sinal
de que fiz o meu trabalho. Gostava que cada mulher percebesse que é
merecedora de tudo, sem ter de fazer favores sexuais. Sem se deixar
manipular. Falo sobre a sexualidade, sobre a igualdade de género, sobre
assédio, sem qualquer pudor. A sexualidade é para ser vivida. A igualdade
de género é urgente, ainda agora. E o assédio precisa de ser denunciado sem
qualquer receio.
Há tempos, surgiram comentários a sugerir uma suposta intenção minha
de roubar o marido à Rita Ferro Rodrigues. Constituíram a maior estupidez
de todas. Nunca percebi. Apenas porque brincámos e nos vestimos de noivos
no programa. As pessoas não souberam separar as coisas. Não percebi as
reações. Podia ter feito aquilo com o Cláudio Ramos, com o Manuel Luís
Goucha, com outra pessoa. Não entendi por que motivo se geraram as
reações mais violentas. É assim tão grande a dificuldade de perceber que
uma mulher e um homem podem ter uma relação de amizade, que neste caso
é profissional, sem que a questão sexual seja invocada? É impossível que
não exista, pensam as pessoas. Em televisão, podemos encenar coisas, é até
suposto que assim seja. Isso não significa – aliás, quase nunca significa –
que as coisas tenham alguma ligação com a vida real. Há muitos homens com
os quais trabalho. Homens que são importantes para mim. Nada há de errado
nisto. Existem igualmente mulheres à minha volta, com quem trabalho, de
quem gosto muito. Não me metam na cama com pessoas, sei que me repito,
mas não façam isso. E este, claro, é um apelo às pessoas sensatas. Com as
outras não sei bem se vale a pena perder tempo, mas falemos sobre o
assunto. Talvez ainda tenham salvação.
No meu dicionário, não tenho definição para a palavra «falsa». Quem
está há 17 anos em televisão, como eu estou, já mostrou qual é a sua
verdade. Não podem dizer o contrário. Sim, tenho esta cara. E esta voz. E a
minha história não a escondi. Não sou falsa, não construí uma persona.
Aliás, estou certa de que muito do meu sucesso tem justamente a ver com
isso, com o facto de eu procurar uma forma distinta de fazer televisão,
primando pela descontração e pela autenticidade. E O Programa da
Cristina, com todo o seu êxito, foi o exemplo perfeito disto que digo.

Quem escreve este tipo de comentário só pode achar que aquilo não vai
ser lido, ou que não tem qualquer tipo de efeito. Ou será que espera outra
coisa? Mas o quê? Não consigo compreender.
Eu seria incapaz de escrever algo do género. E a maior parte das pessoas
jamais me diria este tipo de coisas na cara.
Estou convencida de que a maioria das pessoas seria incapaz de me ligar
para me chamar isto ou aquilo. Acharão essas pessoas que aquilo que
publicam, para toda a gente ler, não agride? Que não deve ser motivo de
julgamento porque é apenas escrito? Sentir-se-ão cobardemente protegidas
por um ecrã? Faz-me muita confusão. Como disse, eu seria incapaz, por
muito que não gostasse de uma pessoa, de escrever na sua página pública
aquilo que alguns me escrevem. Há quem diga que são pessoas infelizes, ou
que são pessoas que não têm vida. Mas não pode ser, é inaceitável. Porque,
a ser assim, haveria milhares de pessoas infelizes, milhares de pessoas que
não têm uma vida própria. Bom, se calhar é isso que se passa.
Mas tal coisa justifica que descarreguem em cima de outras pessoas? É
estranho. Tento pôr-me no lugar do maior dos infelizes e dos frustrados e não
consigo encontrar motivo para, em vez de estar insatisfeito comigo próprio,
achar que devo agredir alguém.
A um jovem, eu diria que é importante que tente conversar mais, que
tente ouvir os pais. Eu, com a idade, percebi que foi crucial crescer a ouvir a
minha família. Não havia telemóvel. E ainda bem.
Tenho uma família grande, tive essa sorte, e cresci a ouvir a constante
partilha das experiências dos outros, o que lhes aconteceu, como fizeram
nesta ou naquela circunstância, o que decidiram em determinadas alturas
mais ou menos importantes. Essa partilha foi importante. Hoje, os miúdos
não têm isto. Tenho algum medo desta geração, porque não sei que futuro vão
ter a nível emocional. Estamos a criar uma geração de gente fraca
emocionalmente. São incapazes de gerir os «nãos», as falhas, as rejeições.
Hoje, tudo é bonito, só mostram o que é bonito, escolhem a melhor
fotografia. Eu faço esta mesma seleção, dirão. E é verdade. Entre o belo e o
feio, é apenas humano optar pelo belo. Não há problema algum na beleza,
todos adoramos a beleza. Mas tenho a noção de que a minha geração, que só
tinha uma máquina fotográfica, guardou imensas fotografias em papel,
algumas delas terríveis. E sabemos que não há mal nenhum em serem
terríveis, porque são uma memória, porque nos recordam que não há
perfeição. A vida é imperfeita. O enquadramento pode ser perfeito, o
sorriso, a roupa, mas estará sempre a faltar alguma coisa à nossa vida. Até
aquilo que à partida pode ser difícil, e implicar sofrimento, é importante. É o
que nos constrói. Todos sentimos dor. Todos temos momentos em que não
estamos bonitos, bem vestidos. Ter um padrão de exigência tão grande fará
com que as novas gerações sejam mais felizes? Talvez sim, talvez não. Não
temos como responder.
Os contratos têm cláusulas. É este o mundo onde vivo, onde decidi fazer
o meu caminho. Eu cumpro com a minha palavra. Muitas vezes não cumprem
comigo. Sobre isso, sobre a vida nos bastidores, não se sabe nada. E eu sou
o alvo mais fácil. A impunidade desta hostilidade constante é um veneno na
sociedade de hoje.
Eu digo que proporciono sonhos, tal como outros fizeram e fazem, figuras
públicas que expõem a sua vida. É verdade que há essa dimensão, esse
desejo, o ser aspiracional. Isto não significa que tenhamos de validar a nossa
existência através de likes. Os mais novos precisam de entender que não são
melhores ou piores por terem muitos ou poucos likes, por terem comentários
melhores ou piores. Eu não me deixo afetar com os comentários de natureza
hostil. Escolho a indiferença e continuo o meu caminho. O facto de me
atacarem, como atacam tantas outras pessoas, é exemplo da maldade humana,
não belisca a minha identidade, não me retira poder, autoconfiança. Não
deixo de acreditar por me deitarem abaixo. As gerações mais novas
precisam de incorporar esta verdade: o que está nas redes não é quem somos
na totalidade, é uma parcela. A nossa vida, fazemo-la no dia a dia, gerindo o
bem e o mal, o bonito e o feio. É assim que aprendemos a processar o
fracasso, as desilusões, os momentos em que alguém se esqueceu de nos
destinar um final feliz.
Saí da TVI para a SIC. Agora voltei. As pessoas que me agrediram
quando decidi sair devem ser as mesmas que agora me atacaram. As
agressões são idênticas. Especulam. Falam do que não sabem.
Não há falsidade no meu percurso. Disso tenho a certeza. Há pessoas que
acham que podem mesmo julgar-me e, mais curioso ainda, tomar as decisões
da minha vida. Aonde é que nós chegámos? A televisão é o meu mundo e tem
muitas coisas maravilhosas. A Internet também. Mas sobre certas pessoas
exercem efeitos com consequências estranhas.
Quando vejo ataques gratuitos a outras figuras públicas, sobretudo se
forem pessoas das quais gosto, fico muito mais incomodada do que com as
coisas que dizem sobre mim. Compadeço-me. Penso: nós somos gente.
Não somos abstrações. Eu, por ser figura pública, não sou a capa de um
livro. Eu existo. As pessoas precisam de começar a ter noção desta
realidade. E é preciso estar atento, porque os ataques não são exclusivos e
dedicados tão-somente a figuras públicas. As pessoas agridem-se.
Genericamente. Qualquer pessoa escreve o que entender sobre outra. Insulta.
Estamos a ir por um caminho perigoso. O que significa isto? Em termos
sociais, que repercussões terá? Estas perguntas são importantes.
Somos nós que expomos as fotografias. Somos nós, figuras públicas, que
o fazemos. Mostramos um bocadinho da nossa vida. É verdade. Mas, no meu
caso, nem me podem acusar de expor muito a minha vida. Nunca mostrei a
minha família ou a minha casa, por exemplo. E tudo o que ponho nas redes
sociais tem um registo profissional. Até as férias, que exponho até certo
ponto, surgem por questões profissionais. Dir-me-ão que há trabalhos menos
difíceis. De acordo, mas lutei e trabalhei muito para aqui chegar e protegi
sempre a minha família e os meus da exposição mediática.

Eu gosto muito de provocar. De provocar emoções. Reações. Quando


levo uma coroa na cabeça para a gala dos Globos de Ouro, sei que aquilo
vai mexer com as pessoas. Não vão ficar indiferentes. Uns vão dizer: Olha
esta pirosa, como é que é possível? Muitos vão adorar. Há um sentimento. E
eu gosto disso. Que haja sempre um sentimento em relação àquilo que eu
uso, digo ou faço. Provocar é, acima de tudo, criar um sentimento nos outros,
seja ele positivo ou negativo. Mas, da mesma maneira que não deveria ser
expectável que as pessoas quisessem casar comigo sem me conhecerem,
também acho estranho que me digam certas coisas que estou a mostrar neste
livro.
No dia a dia, visto-me de uma forma simples, casual. Muito diferente da
maneira como apresento em televisão. Comecei a apresentar o programa da
manhã com o Manuel Luís Goucha e num dia ia de camisa e de calças de
ganga, e no outro com um vestido de lantejoulas. Porquê? Porque me
apetecia usar aquela roupa naquele dia. Se me apetece, o que me impede de
vestir? A moda tem essa componente de diversão. Eu permito-me essa
diversão.
Publico algumas fotografias porque acho que, tendo em conta o meu
percurso, posso fazer sonhar um bocadinho. Eu vivi muito o sonho dos
outros através das revistas, não existiam redes sociais então. Sonhei muito
com uma vida que, na altura, não me era possível ter. Era a vida de outros e
eu gostava de acompanhar. Mesmo sabendo que a maior parte das pessoas
não pode chegar onde eu estou, deixo ali um sonho. Todos podem sonhar. O
sonho é aquilo que nunca podemos deixar. Há quem considere
exibicionismo? Há. E com maldade. Eu nunca achei que aquelas pessoas que
via nas revistas fossem exibicionistas, nunca senti nada de negativo em
relação a elas. Sonhei ter coisas ou estar em situações parecidas? Sim. E
ainda bem. Não é afinal o sonho que comanda a vida?
Muita gente diz: pois, mas tem uma vida muito boa. Tenho. Tenho uma
vida extraordinária. Ganho muito dinheiro. Mas colocando nos pratos da
balança o que, a esse nível, perdi com esta escolha que fiz de regressar à
TVI e o que ganhei, tenho de concluir que não está tão desequilibrado quanto
poderia estar. O que não quer dizer que esteja arrependida. Não estou.
Mesmo que o peso daquilo que eu perdi fosse maior, continuava a querer
estar aqui, no sítio onde estou.

Durante muito tempo, nenhum dos meus familiares teve Internet. A minha
mãe, ainda agora, não tem e eu agradeço a Deus todos os dias por isso.
Recentemente, o meu pai rendeu-se e vê as notícias e comentários online
sobre a filha diariamente. Nunca me disse nada. Certa vez, a minha mãe
ficou muito chocada com uma capa de uma revista que sugeria que eu tinha
cancro. Dessa feita, e ao contrário da maioria das vezes, senti-me mesmo
triste e revoltada. Por um motivo: a minha mãe veio perguntar-me se era
verdade, se eu tinha cancro. A minha mãe estava com medo de que eu
estivesse a esconder-lhe que estava doente. Aquilo eu não pude admitir. Este
tipo de coisas eu não tolero. Fui com o caso para tribunal, porque existem
limites. Podem dizer o que quiserem de mim, mas não aceito que magoem a
minha família.

Quero muito que haja uma legislação que regule esta situação de
impunidade em que vivemos. Em que se pode escrever tudo. Há pouco
tempo, tive uma conversa com membros da Entidade Reguladora para a
Comunicação Social e perguntei: Quando é que começamos a olhar para
aquilo que acontece nas redes sociais? A responsabilizar as pessoas pelas
maldades que escrevem. E quando é que começamos a tentar perceber a
razão por detrás de tanta agressividade?
Não falo apenas de agressões cometidas por pessoas individuais.
Existem também sites que fazem, sem condenação alguma, qualquer tipo de
«notícia». Escrevem aquilo que bem entendem, inventam. E não há quem lhes
diga: isso é enviesado, isso é falso, isso está fora de contexto, não pode ser
feito dessa maneira.
Este sentimento de impunidade vai ter um resultado infeliz e pouco
digno.
Não será uma lei fácil de redigir e levará tempo. Temos de começar a
falar sobre o tema e a agir. Não posso ter seja quem for a escrever isto na
minha página de Instagram ou de Facebook: és uma grande vaca. Não posso.
Isso e todas as maravilhas que leram ao longo das últimas páginas. Mas
tenham a noção, por favor, de que isto são apenas alguns exemplos.
Poderíamos encher páginas e páginas com comentários destes. É claro que
há muitíssimos mais comentários positivos, mas o chocante é haver gente que
se dedica a escrever estas agressões totalmente gratuitas e, tantas vezes,
ofensivas.
Posso dizer que sou ambiciosa, que é uma palavra que rima com
gananciosa. Mas a rima não se estende ao sentido, é apenas fonética. A
ambição não precisa de ter uma conotação negativa. A ambição é apenas a
vontade de cumprir os meus objetivos, os meus sonhos. Em grande medida,
eu quero apenas perceber onde posso chegar, nesta escolha que fiz. Já o
disse, mas repito que quando as oportunidades me aparecem, tenho uma
capacidade: não olho para trás. Aparece uma oportunidade e, se eu achar
que sim, avanço e não olho para trás. Não olho mesmo.
Se me conhecessem saberiam que não é, nunca foi, o dinheiro a mover-
me. Se gosto de ter uma vida confortável e de dar uma vida confortável à
minha família? Claro que sim. Mas sinto que mereço cada cêntimo que me
pagam. Gosto de ter dinheiro. Como qualquer outra pessoa, mas mereço o
que consegui amealhar e o que ganho. Trabalho para isso.
Creio que estruturei o meu filho, desde o primeiro dia, para saber que a
mãe que ele tem em casa é a mãe de verdade. Ele não liga nenhuma à mãe da
televisão. Chego a casa e pergunto: viste a mãe? Ele encolhe os ombros, não
viu. Tento dar-lhe pistas das coisas que vou conquistando, do lugar onde
estou. Nunca quis que ele fosse apanhado de surpresa. Mas há um episódio
na vida dele que me deixou sossegada. Foi no dia em que entrou para o
quinto ano. Nos primeiros anos de escola, houve muita proteção. A
professora tomava conta dele a esse nível. No quinto ano, entrou numa
escola gigante, com crianças até aos 15 ou 16 anos, jovens que já sabem
quem eu sou. No primeiro dia, fui levá-lo à escola e estavam umas trinta
crianças no portão, a gritar: Cristina, Cristina, Cristina! Pensei: o meu filho
vai entrar ali sozinho e vai ter de levar com isto tudo. Ele entrou, seguiu em
frente e nem olhou para trás. E eu percebi.
Ele lê as notícias. Às vezes, pergunta: isto é verdade, mãe?, mas
geralmente não são perguntas sobre as questões mais complicadas. A esse
nível, passa-lhe tudo ao lado, tem uma estrutura que me deixa muito
confortável. Acho que percebeu como é que a coisa funciona. Sei que ele
nunca me vai julgar nem pensar que o que podem dizer de mim é quem eu
sou.
Escolho eliminar os rostos e os apelidos das pessoas cujos comentários
estão neste livro. Deixo apenas o primeiro nome, ou parte do nickname, para
que se possa identificar o género. É uma opção. Não quero vingar-me de
ninguém. Quero apenas que analisem o momento social que estamos a viver.
Não fixo os rostos seja de quem for, não visito o perfil quando me deixam
uma mensagem. Não preciso disso. Aquela mensagem é fruto da vida
daquela pessoa. E eu não conheço a vida daquela pessoa. O que pode ter
publicado no Instagram não é a vida dela. Não a conhecendo, retenho o que
me disse e faço a minha análise. Guardo apenas se é homem ou mulher. Há
uma disparidade muito grande. E essa avaliação também merece ser feita. A
grande maioria das pessoas que me atacam é composta por mulheres.
Leio tudo e passa-me ao lado. Tempos houve em que não me era
indiferente. Ganhar estofo também faz parte do percurso. O caminho faz-se
caminhando. Endureci. É a única opção possível, se queremos viver. Nunca
me magoou a ponto de eu achar que estava, de alguma forma, a agir mal.
Nunca me perturbou ao ponto de eu me pôr em causa. Hoje, em mim, tem
zero efeito. Às vezes, afeta mais as pessoas da minha equipa, que se
revoltam e ficam indignadas, do que me afeta a mim.
Quero deixar marcada esta realidade, bem vincada, e os livros sabemos
que são duradouros. Talvez alguém, daqui a muitos anos, encontre este livro
numa feira qualquer, ou num alfarrabista, se ainda os houver, e perceba que,
nesta época, era assim que se falava na Internet, era assim – ou era também
assim – que mulheres e homens se dirigiam a alguém.
Quero promover o debate sobre esta questão, sobre a impunidade de se
escrever o que se quer, de forma hostil e ofensiva. Convidei algumas
personalidades, de áreas distintas, a refletir e analisar a questão. Não são
figuras públicas, influencers, profissionais na área da comunicação.
Convidei uma jurista, Dulce Rocha. Uma filósofa, Joana Rita Sousa.
Dois psiquiatras, Júlio Machado Vaz e Pedro Strecht. E ainda uma socióloga,
Maria José da Silveira Núncio. Além do prefaciador, o escritor Valter Hugo
Mãe. Todos acederam ao meu convite de imediato, motivo pelo qual lhes
estou grata, e fizeram questão de não serem remunerados. Os textos que
poderão ler a seguir são importantes para começarmos o debate sobre o
bullying nas redes sociais. O meu exemplo é apenas isso, um exemplo.
O Discurso de Ódio
ou a Negação da Liberdade de Expressão

Dulce Rocha
JURISTA1

A liberdade de expressão do pensamento assume nos Estados


democráticos um papel relevantíssimo. A nossa Constituição, de tal forma o
considera estruturante, que o consagra como Direito fundamental, no seu
artigo 37.º.
Este foi um direito muito acarinhado após o 25 de Abril de 1974, visto
que a Ditadura havia imposto a Censura, que proibia a publicação de livros
e de textos que não obedecessem aos critérios ditados pelo regime, em que o
pensamento único vigorava.
Mas, obviamente, todos estamos em condições de reconhecer que, não
obstante a proibição da censura, há limites para todos os Direitos, visto que
todos têm de ter fins legítimos.
Se não forem respeitados os direitos dos outros, e quando desse
desrespeito resulte um dano, podemos estar perante um abuso do direito. Isto
porque, quando forem ultrapassados os limites ou houver desvio dos fins,
decerto estaremos perante uma violação do direito de outrem, que quase
sempre gera enorme prejuízo, quer para quem é diretamente visado quer para
a própria Democracia, que proclama o bem-estar social, o que, por sua vez,
pressupõe uma vivência comum de harmonia entre os seus membros.
Ora, temos assistido a um fenómeno crescente da utilização das redes
sociais com a intenção de ofender o bom nome de outrem de uma forma
violentíssima que não conhecíamos antes e isto é perturbador, porque não
sendo inteiramente novo, está a assumir proporções que não podíamos
imaginar.
Vi há pouco tempo um filme que me impressionou imenso e que conta a
história de Marion, que se suicidou em fevereiro de 2013, em França. Tinha
apenas 13 anos e foi vítima de agressões verbais de enorme perversidade
nas redes sociais. Depois dela, outras adolescentes têm decidido pôr termo à
vida, tal a violência dos insultos e das ameaças nas redes sociais, que em
vez de fomentarem a amizade, a compreensão e o respeito, podem servir o
conflito e promover o ódio.
O bullying através do ciberespaço tem sido objeto de estudo na última
década devido aos casos chocantes e cada vez mais frequentes que nos
contam os pesadelos vividos por vítimas cada vez mais jovens e que nem
sempre têm a necessária resiliência para resistir à dor profunda causada
pelas infâmias, pelas humilhações, pelas ameaças e pela solidão.
Mas, enquanto inicialmente apareciam como alvo pessoas conhecidas
apenas no seu núcleo de amigos, na escola, na empresa, nos últimos tempos,
têm sido atingidas também pessoas com sucesso profissional, ligadas a
alguma forma de poder e conhecidas a nível nacional, e sabemos que por
estarem mais expostas, pela natureza das suas profissões, vêm sofrendo com
mais veemência os desmandos verbais, merecendo uma menção especial as
mulheres que conseguiram popularidade em razão do exercício da sua
profissão.
O Conselho da Europa, numa Recomendação de março de 2019 refere-se
já ao Discurso de ódio sexista que é dirigido especialmente a figuras
públicas, designadamente jornalistas ou ativistas dos Direitos das Mulheres,
dando particular atenção ao enorme impacto das redes sociais, na difusão
das injúrias ou das falsidades.
Creio que haverá neste momento consenso sobre a perversidade inerente
ao insulto repetido, que causa prejuízos devastadores, insuportáveis e, por
vezes, irreversíveis. É o que resulta da realidade que hoje já não podemos
ignorar.
E sendo um facto incontestável que essas consequências danosas se
manifestam de diversas formas, desde a tristeza e a desilusão até à
depressão e ao suicídio, não temos o direito de nos mantermos indiferentes
ao sofrimento das vítimas desses crimes que se estendem quase sempre à sua
família mais próxima, o que agrava, por sua vez, a intensidade da dor
sentida.
A Constituição da República é a nossa Lei fundamental e estabelece logo
no artigo 1.º que a Dignidade da Pessoa Humana é o princípio sobre o qual
se funda o nosso Estado de Direito.
Ora, é justamente a Dignidade Humana que está em causa aqui.
E por essa razão têm de ser disponibilizados meios para prevenir e para
reprimir este tipo de ilícito que há uns anos era praticado de viva voz, ou
pela imprensa, e agora é cometido através da Internet. Ou seja, tem
características que não podiam ser previstas quando foram codificadas as
infrações no século passado ou no início deste.
Desde logo, a capacidade de difusão que, nas redes sociais, tem um
efeito multiplicador de uma dimensão que há uns anos era inimaginável.
Depois, a persistência da ofensa e a sensação de perenidade que a
acompanha, que conduz a um sentimento de impotência, face ao não
funcionamento de qualquer mecanismo que lhe ponha cobro em tempo útil,
ou seja, antes de verificados os danos.
Temos de conseguir combater eficazmente este fenómeno.
Não se trata, de forma alguma, de fazer renascer o exame prévio, mas
tem de haver meios rápidos que o impeçam de progredir, sob pena de só ser
possível atuar após sérios prejuízos para a vítima das difamações e dos
epítetos insultuosos.
Outra das características novas é a que resulta do facto de estes
criminosos serem agora invisíveis, por atuarem sob o anonimato da rede
social, e estarem convencidos de que tudo podem dizer, pois pensam que não
há capacidade para serem localizados, julgados e punidos. Alguns, aliás,
correspondem a perfis falsos que são utilizados precisamente para ofender.
Mas tem de haver solução. Não podemos conformar-nos com a
impunidade.
A Recomendação do Conselho da Europa a que fiz referência preconiza
um conjunto de medidas, designadamente a criminalização autónoma do
Discurso de ódio sexista.
Sabemos que estas ofensas, continuam a ser dirigidas maioritariamente a
grupos historicamente discriminados como os negros, as mulheres, as
crianças, os idosos, ou as comunidades como a cigana e a LGBTQI+.
Todavia, temos vindo a observar inúmeras situações em que mulheres
que conseguiram pelo seu mérito, talento ou conhecimento científico
ascender a posições sociais de relevo, estão mais expostas ao discurso de
ódio e à palavrosa crítica incendiária que o promove e alimenta, como é o
caso de Cristina Ferreira que tem sido alvo privilegiado de tais ataques, que
revestem não só a forma de insultos, como de mentiras que visam
desvalorizar o seu trabalho e a sua enorme popularidade.
Na verdade, a prática tem demonstrado que não se observa apenas um
maior escrutínio relativamente a mulheres que obtêm algum tipo de sucesso,
como se constata também um lamentável coro de maledicência por parte de
outras mulheres, o que os estudos sociológicos têm vindo a atribuir à sub-
representação das mulheres em lugares de decisão.
Ou seja, o facto de não estarem representadas de forma equilibrada em
lugares de decisão, conduz algumas mulheres a desconsiderarem as que
conseguem sucesso, desvalorizando as suas qualidades e até, embora mais
raramente, a uma estranha colagem às posições sexistas e misóginas,
designadamente quando entendem que as mulheres devem permanecer
excluídas desses lugares, abdicando do trabalho remunerado e regressar aos
tradicionais papéis do trabalho doméstico e de cuidados com a família.
Além disso, tenho-me apercebido que grande parte das ofensas, escritas
por gente pouco instruída, sem educação e com baixa formação moral, é
afinal resultante de manipuladoras notícias, inflamadas por quem se
aproveita da pequenez intelectual de outrem, sabendo que aí haverá terreno
fértil para a malvadez que consiste em ofender gravemente alguém que nem
sequer faz parte dos seus relacionamentos, sabendo que ela dificilmente se
poderá defender.
O Discurso de ódio não se confunde com a crítica que geralmente discute
ideias e projetos e pensamentos, pois é dirigido à pessoa, com intenção de
amesquinhá-la.
Por isso é que não pode ser integrado no Direito à liberdade de
expressão, por só ter fins insultuosos, de destruição da imagem e do bom
nome de outrem, não pretendendo informar ou esclarecer, ou até discutir de
forma franca, aberta e leal, mas apenas vilipendiar. Por consequência, não
estamos perante a expressão de pensamento algum, e é por causa destas
características que constitui um abuso de direito, porquanto não é apenas
lesivo da honra e consideração da pessoa visada, mas pretende sobretudo
atingir a sua Dignidade, o que constitui o âmago e a essência dos direitos de
personalidade.
Chegados a este ponto, creio que não podemos ficar indiferentes perante
estes comportamentos intoleráveis, pois ainda que possa não haver dúvida
quanto à sua natureza criminosa, se continuar a ser um crime dependente de
queixa, haverá raríssimas condenações e mesmo assim, só após haver sido
causado sério dano é que poderá vir a ser julgado o autor ou até o instigador.
Perante estes comportamentos tão censuráveis, quer parecer-me que
deveria haver uma reflexão urgente acerca do papel do Estado na prevenção
e na repressão deste tipo de crime, autonomizando-o, por forma a punir e a
prevenir o «Discurso de ódio», sob pena de podermos estar a contribuir para
a banalização de algo que é inaceitável numa sociedade que queremos de
respeito pelos Direitos Humanos, em que a Educação deve servir a
Cidadania. Na sua mais recente Encíclica «Fratelli tutti», o Papa Francisco
fala-nos da importância da empatia, da compaixão e do perdão, mas valoriza
também a justiça reparadora, o que é muito importante para compreender
toda a sua preocupação com o futuro da Humanidade. Na encíclica, que pela
sua extensão, decerto representa o seu testamento espiritual, está presente
todo um pensamento dedicado à fraternidade, onde apela à solidariedade, ao
diálogo e à amizade social.
É assim que termino este artigo, que senti o dever de escrever por
solidariedade com uma profissional que está a ser vítima de discursos de
ódio, devido ao prestígio que granjeou pela dedicação aos projetos em que
se envolveu e também em defesa dos princípios e dos valores essenciais que
assumi como missão de vida, esperando contribuir para uma sociedade mais
justa e mais digna.

1 Presidente do Instituto de Apoio à Criança, magistrada há 40 anos, fundadora da Associação


Portuguesa de Mulheres Juristas.
Penso, Logo... Penso Outra Vez
– Uma breve reflexão sobre a importância de pensar antes de publicar e

de comentar

Joana Rita Sousa


FILÓSOFA1

Entre Platão e o poop emoji – as redes sociais refletem quem somos?

Desde há alguns anos que a minha rede social preferida é o Twitter.


Trata-se de uma rede social que vive muito do imediato, do real time. Se
quer saber o que está a acontecer neste momento, no mundo, visite o Twitter
e espreite os trending topics.
A par desta imediatez, o Twitter caracteriza-se pela comunicação curta.
Neste momento, em cada tweet temos 280 caracteres à disposição.
O que se pode dizer em 280 caracteres? Podemos elogiar uma ideia.
Podemos partilhar um artigo que lemos e que recomendamos. Podemos
justificar a partilha desse artigo. Podemos também partilhar com o mundo a
fotografia do nosso animal de estimação (afinal, os gatinhos ! não são um
exclusivo do Facebook). Podemos divulgar o nosso trabalho. Podemos
reclamar de um serviço. Podemos agredir alguém em 280 caracteres. Tudo
depende da pessoa a quem pertencem os dedos que teclam ou que digitam as
mensagens.
As redes sociais, caro/a leitor/a, são feitas das pessoas que nelas
participam. A nossa reputação – nas redes sociais e fora delas – é feita
daquilo que dizemos e dos contributos que damos às comunidades nas quais
participamos.
Há anos que partilho links e artigos sobre filosofia. O resultado? Recebo
várias mensagens de pessoas que me acompanham nas redes sociais e que
quando tropeçam num conteúdo de filosofia: «Joana, vi isto e lembrei-me de
ti.»
Outro exemplo: sou voluntária num albergue onde há muitos cães e uma
das tarefas consiste em algo tão glamoroso (#sóquenão) como apanhar .
Pois é, foram tantos os tweets e as stories do Instagram em torno do poop
collecting que... isso mesmo: quando as pessoas que me seguem encontram
um poop emoji, lembram-se de mim.
Como vê, o valor do que partilhamos reflete-se na imagem que as
pessoas criam em torno da nossa presença, seja nas redes sociais online ou
IRL (in real life). E isso vale para algo tão elevado como a filosofia ou para
o (que não é assim tão elevado, mas tem o seu papel fundamental).

«O fã, o hater e o troll entram numa rede social»

Além do conteúdo que partilhamos há ainda a forma como interagimos


com os outros. Considero que é da interação entre pessoas e pessoas, entre
pessoas e marcas, entre marcas e marcas que as redes sociais se fazem.
Basta olhar para os botões e para a forma como somos convidados para
navegar nas redes sociais. O botão do like ali mesmo à mão. «Olha, basta
clicar duas vezes e já está.» Os textos que terminam com uma chamada para
comentar. O botão de partilha. A opção de enviar por mensagem direta ou
por e-mail. É muito fácil reagir. É fácil, demasiado fácil. Pergunto: estamos
condenados a esse facilitismo?
É tão fácil que, às vezes, vemos a mensagem sem ler, gostamos sem saber
do que gostamos, respondemos com um emoji só para participar. Reagimos,
cedendo ao gosto ou ao não gosto – para este não há botão, há as famosas
caixas de comentários.
Quem trabalha em gestão de comunidades online está familiarizado com
termos como fã, hater e troll.2 O fã é aquela pessoa que adora tudo o que
a pessoa X faz ou publica, seja lá o que for. Adora aquela marca ou aquela
pessoa e distribui likes, ponto final. O hater é aquela pessoa que odeia
tudo o que a pessoa X faz ou publica. De forma tão cega quanto o fã, o hater
distribui comentários, só que depreciativos, sem argumentação ou ponto de
vista construtivo. O troll é um caso mais subtil, que exige uma atenção
ao histórico e ao contexto. De forma muito generalizada, um troll é alguém
que teve uma experiência negativa ou criou uma ideia negativa acerca de
uma marca ou de uma pessoa, não consegue dialogar sobre o assunto e vai
distribuir o mesmo tipo de comentário, ad aeternum, em tudo o que é
publicação dessa pessoa ou dessa marca.
Acompanhe-me neste exercício: visite o perfil de Instagram de uma
figura pública. Leia os comentários. Consegue identificar algum dos perfis
que enunciei? Talvez precise de ver uma dezena de publicações, não se fique
apenas por uma ou duas.
Agora pense na figura pública que mais admira e naquela que mais odeia.
Visite as suas redes sociais: o que gostaria de comentar nas publicações?
Escreva isso num papel, pensando nessas duas figuras públicas. Leia o que
escreveu: o que é que esse comentário diz de si? Ainda que esse comentário
fale da figura pública X, de uma roupa que tem vestida, de um evento onde
está – pense: O que é que esse comentário diz de si? Que imagem posso eu
criar de si a partir do seu comentário?
Além da imagem, atente no conteúdo: tem um argumento? Abre um
caminho de diálogo? É acusatório? E acusa de quê, com base no quê?
Verificou a informação que tem para acusar X de fazer Y? Ou está a dizer
isto ou aquilo refugiando-se meramente no ataque pessoal, de forma gratuita
e «só porque sim»?
No limite, todos somos «figuras públicas», pois o que acontece e o que
fazemos acontecer numa rede social deve ser assumido como público. É lido
por outras pessoas, sejam eles amigos, conhecidos ou desconhecidos.
«What happens in Vegas, stays in Vegas»; o que acontece na Internet,
fica na Internet. Para «sempre». «Lá» ou num print que acaba por viver num
livro como este.

Imagine que o seu epitáfio é o último comentário que fez numa rede
social

O que iria dizer esse epitáfio sobre si? Será que se iria reconhecer nesse
comentário?
Da próxima vez que pensar em escrever um comentário, pense mesmo
antes de o fazer. Que valor vai acrescentar ao seu dia e ao dia daqueles que
o vão ler? É informativo? É divertido? É respeitoso? É pedagógico? É um
ataque pessoal? O que significa? Se fizer estas perguntas todas é bem
possível que perca a vontade de comentar. Se isso acontecer, significa que
esse comentário não seria relevante. Acredite que eu própria inicio vários
tweets que acabo por apagar, sem chegar a enviar. Porquê? Aquele tweet não
vai acrescentar nada a ninguém, nem a mim. Possivelmente vai terminar
numa troca mais ou menos agressiva ou num diálogo monológico sem fim.
Escolha bem as suas batalhas. Seja responsável: publique e comente com
moderação.
[Agora que penso nisso, se o meu último comentário for um poop emoji,
o meu epitáfio dirá, enfim, «muito» sobre mim. ]

1 Estratega digital, consultora e formadora nas áreas da filosofia, da comunicação e da criatividade.


2 Há ainda o fanático ou stalker que pode revelar uma obsessão de índole doentia – mas deixo este
tópico para que os especialistas se pronunciem de forma mais profunda do que eu.
Pensar as Redes para não Ser Pescado

Júlio Machado Vaz


MÉDICO PSIQUIATRA1

Quando falo em público, alerto sempre a audiência para uma frase


batida, mas não do Sérgio. Reza assim: «A tecnologia não é boa nem má,
depende do uso que fazemos dela.» Parece uma assunção de
responsabilidades evidente, afinal basta comparar os extraordinários
benefícios que a Humanidade retirou das linhas de investigação que
desaguaram na bomba atómica. Mas quando falamos de tecnologia e
comunicação o cenário é outro; como alertou McLuhan, o meio é a
mensagem. A investigação e as provas não deixam dúvidas – a isenta
tecnologia alterou-nos os comportamentos e a forma de pensar.
Tomemos os comportamentos, o que visam os estrategas que nos
«oferecem» as redes sociais? Tornar-nos consumidores. E para isso cada
pegada é retida e cruzada com outras para desenhar um perfil que permita
adequar a mensagem comercial a apetites e bolsas. A hipótese de sucesso
será tanto maior quanto mais tempo passarmos online, reconheçamos a
hipocrisia ou ignorância de discursos moralistas sobre os adolescentes,
quase todos estamos presos na teia. Basta olhar em volta num qualquer
restaurante e ver miúdos e graúdos em silêncio colados a ecrãs, nem a
especialidade da casa consegue monopolizar a atenção dos comensais. Não
surpreende, portanto, que as dependências em geral e do jogo em particular
obriguem os profissionais a delinear novas estratégias para comportamentos
compulsivos que, no essencial, não diferem dos que afligem quem estende a
mão depois de nos ajudar a estacionar o carro.
No que ao pensamento diz respeito, a rapidez, diversidade e incrível
dimensão dos estímulos, que tornam difícil e penosa a triagem lúcida e
meditada, casam na perfeição com personalidades formadas numa sociedade
avessa à frustração da espera e de qualquer sentimento desagradável ou
ansiógeno. O resultado é uma multidão que funciona num registo meramente
reativo e não ativo, no que a palavra implica de Sujeito pensante em ação.
Somos perigosamente parecidos com os cães de Pavlov – em vez de carne
ambicionamos likes, simples resposta que nos confirma a existência ou
descarga biliar que nos alivia quotidianos cinzentos.
Falei de personalidades formadas porque a tecnologia e as redes sociais
não inventaram nada, são ecrãs e câmaras de eco de características humanas
que sempre existiram, lembremos o significado antropológico do boato e da
má língua, que sempre consolidaram alianças contra um Outro vilipendiado.
Mas as redes sociais trouxeram oportunidades inimagináveis, pelo
imediatismo do ato, apenas apoiado no impulso do momento – e por isso
tantas afirmações são retiradas minutos depois, na esperança de passarem
despercebidas… – e pelo efeito multiplicador que preenche o ego e propicia
a socialização da culpa, se todos partilhamos as fake news nenhum de nós é
responsável por elas a solo.
Acresce que esse efeito multiplicador e a sua rapidez têm resultados
catastróficos a nível ético, o tempo da Justiça – já de si escandalosamente
lento… – é inaceitável para as crenças que se espalham em partilhas e
retweets. Assistimos a linchamentos sem retorno em «salas de audiência»
cheias de ecrãs. Mesmo que um dia outra verdade venha à superfície será
irrelevante, num tempo de sound bites uma causa diversa já fará salivar os
juízes do teclado.
Juntemos a este cocktail explosivo uma pseudo-democratização nivelada
por aquilo a que Pacheco Pereira chamou a «ignorância agressiva». De um
momento para o outro, à escala global, a opinião mais descabida vale tanto
como a de um especialista. Se a atitude de Trump em relação à Ciência é um
exemplo extremo pelas consequências globais que acarreta, ela está longe de
ser a única. Ao nível da discussão ou do simples comentário, todos já
tivemos a experiência de ler afirmações de pessoas que apenas leram o título
de um artigo, mas têm opiniões firmes e hirtas sobre o tema.
Os afetos envolvidos nas afirmações direcionadas são mais complexos
do que parecem, sobretudo quando os alvos são figuras públicas. O ódio
mais vesgo e insultuoso pode tornar-se diário e obsessivo, demonstrando
uma total dependência da pessoa atacada, por alguma razão os pais dizem
que o oposto do amor é a indiferença e não o ódio. O insulto repete-se, a
presença no mural ou noutra plataforma também, a mensagem é de enorme
ambivalência – «odeio-te, mas não consigo ir-me embora, por favor
responde, nem que seja por invetiva em espelho».
Enormes idealizações levam, mais tarde ou mais cedo, à profunda
desilusão, o Outro idolatrado age ou pensa de um modo considerado
inaceitável por alguém que, inconscientemente, sentiu uma proximidade e
identificação que nunca existiram no mundo real. «Traído», o adepto fiel
transforma-se em inimigo militante. De novo, a simples indiferença, solução
adequada, não é sentida como possível. E no entanto, num registo
psicológico saudável, quem nos desilude torna-se um engano passado e não
uma obsessão presente. A um outro nível, o desejo de seduzir o Outro pode
levar à construção de verdadeiros perfis alternativos, cuja manutenção
impede um simples encontro no café da esquina, em carne e osso. Receamos
não ser gostados pelo que somos, perdemos na comparação com o que
acerca de nós inventámos.
Entendamo-nos – boas amizades nasceram online, amores felizes
também, estimulantes grupos de discussão fazem crescer os seus
participantes, idosos veem o seu isolamento diminuir, ditaduras são
contestadas nas ruas em manifestações convocadas por SMS. Por essas e
tantas outras razões, ninguém alguma vez me ouviu diabolizar as redes
sociais.
Mas, como cidadão e profissional, considero-as um território a ser
percorrido com cuidado e preparação. Em tempos de contestação ao ensino
da Cidadania, penso que é imperativo ajudar os mais – e menos… – jovens a
sopesarem a informação disponível e a não ficarem dependentes de likes
para construírem egos frágeis. Porque, ficarem reféns dos humores de outros
e órfãos de uma confiança básica, imune aos caprichos de uma opinião
pública com tanto de volátil e feroz como de superficial, não são degraus
firmes para a maturidade.
No meu caso particular, aderi ao Facebook – esse!, o que ameaça a
Europa de abandono se ela proibir a partilha de dados – por gratidão. Num
momento desagradável da minha vida, amigos disseram-me que nele tinham
surgido declarações de apoio. Fui espreitar. E desde logo fiquei tão
assustado como grato – com inúmeras manifestações de solidariedade
acotovelava-se uma página oficiosa que eu desconhecia e para onde pessoas
encaminhavam pedidos de ajuda que não encontravam eco, eu primava por
dupla ausência.
Criei uma página e não estou arrependido. É verdade que, de vez em
quando, tenho de bloquear alguém que ultrapassa os meus limites, na forma –
mesmo sendo eu tripeiro e adepto do vernáculo… – ou no conteúdo. Mas o
balanço é positivo – aprendi, mudei de opinião, conversei.
Se me perguntarem o que mais me impressionou ao longo destes anos,
respondo sem hesitar – as solidões acompanhadas. Há pessoas que me
escrevem diariamente e têm a delicadeza de acrescentar – «imagino que não
tenha tempo para ler, mas desabafar já me fez bem».
Mal iremos se continuarmos a alimentar uma sociedade em que ser
escutado é visto como privilégio ou acaso, das redes sociais apenas a
primeira palavra será verdadeira, o adjetivo estará vazio de conteúdo. E os
versos dos Floyd terão sido premonitórios: «We’re just two lost
souls/Swimmimg in a fish bowl/Year after year.»
Só o número de almas terá pecado por escasso…

1 Professor Associado Jubilado do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, da Universidade do


Porto, onde regeu a disciplina de Antropologia Médica. Vice-presidente da Sociedade Portuguesa de
Sexologia Clínica.
Agressão e Preconceito: A Anónima Cobardia
das Redes Sociais

Maria José da Silveira Núncio


SOCIÓLOGA1

As agressões, difundidas através das redes sociais, são um fenómeno que


nos constrange, coíbe e preocupa, e cujos efeitos se sentem no presente e
terão repercussões perversas e perigosas na (de)formação das gerações mais
novas, cujo processo de socialização, ou seja, de integração e interiorização
dos valores dominantes na sociedade a que se pertence, está exposto a este
tipo de comportamento agressivo que tenderá, por isso, a ser mimetizado no
futuro.2
As redes sociais representam, atualmente, um espaço privilegiado de
sociabilidade e situam-se naquilo que é a intersecção entre os media e o
grupo de pares, identificados, desde há muito, na Sociologia, como dois dos
agentes fundamentais de socialização primária3, a par com a família e a
escola. E representam, também, aquele cuja influência é maior, considerando
que as relações presenciais e cara a cara vão perdendo, em quantidade e
qualidade, para as relações à distância, intermediadas pelas redes.
Existe, portanto, um perigo real de os referenciais negativos
«aprendidos» nessas redes sociais se reproduzirem no futuro e contaminarem
o tipo de interações sociais que se estabelecem entre as pessoas, o que,
aliás, se constata já no aumento constante das situações de bullying e
cyberbullying, na diversificação das formas de exclusão e ostracização
sociais e numa banalização e normalização da violência4.
Os insultos, as ofensas, as injúrias, as ameaças e as difamações são o
grafismo de uma sociedade em que valores como a solidariedade e a
empatia (palavras bonitas que enchem os manuais e ecoam pelas salas de
congressos!), desafortunadamente, pouco se exercitam nas vivências
quotidianas, em que os preconceitos e os juízos de valor imediatistas e
reativos ganham terreno a cada dia.
Como pouco se exercita, de igual modo, a humildade, um conceito de
grande nobreza que, de repente, em sociedades cada vez mais
individualistas, foi assimilado à ideia de subserviência ou submissão ao
outro, quando, na sua essência, a humildade representa o contrário: a
capacidade de reconhecer as nossas fraquezas e, ao reconhecê-las, pedir a
ajuda que nos tornará melhores e nos tornará maiores.
Vivemos em sociedades apressadas e a empatia, essa habilidade de
sentir com o outro e de nos abrirmos ao outro, exige o tempo que nós não nos
concedemos e a vida nos não concede também.
Crescemos com a consciência de que somos seres gregários, nascidos
num grupo e preparados para viver em grupo, e a consequência deste
gregarismo é o voyeurismo, a curiosidade pelo que se passa no espaço e no
tempo dos outros.

Neste sentido, a violência que hoje invade as redes sociais é a herdeira


da maledicência das janelas ou dos umbrais das portas, nos bairros das
cidades ou nas aldeias: a maledicência sussurrada da inveja e do despeito
pela vida ou pelos sorrisos alheios.
Não estamos, portanto, perante uma «novidade» social, já que a
felicidade, o sucesso ou a diferença do outro, sempre foram
«incomodativos». Estamos, isso sim, perante uma escala de grandeza
totalmente distinta. Afinal, hoje as janelas têm vista para o mundo, e a aldeia
é global! O que mudou? Os sussurros maledicentes transformaram-se em
megafones de violência pura!
Uma violência que é primária porque se alimenta dos julgamentos mais
sumários e dos preconceitos mais atávicos – aqueles que consideram que o
sucesso de uma mulher é sempre o produto do número de homens
(poderosos, é claro!) com quem foi para a cama. Ou aqueles que definem o
merecimento de respeito pelo tamanho dos decotes. Ou aqueles que avaliam
quem é «boa mãe» – e não deixa de ser merecedor de reflexão o facto de
tantos destes julgamentos serem conjugados no feminino, repetindo
estereótipos que a educação e a evidência já deveriam ter sido capazes de
desconstruir. Ou aqueles que segregam pela origem (familiar, social, étnica,
cultural). Ou aqueles que excluem pela orientação sexual. Ou aqueles… e
são tantos, os aqueles!
Julgamentos que se convertem, para os visados, em rótulos5 de difícil
remoção que, em muitos casos, acabam por determinar a sua própria
identidade, não só perante os outros, como perante si próprios.

Mas é, também, uma violência maniqueísta e presunçosa: que vê o mundo


a preto e branco e o divide entre os bons e os maus, colocando-se sempre e,
claro está, do lado dos primeiros, dona da verdade acerca dos outros, das
suas vidas e das suas razões.
E é, sobretudo, cobarde, esta violência, porque ocultada pelo ecrã, pelos
tantos ecrãs com que se vão enchendo os vazios das vidas e das almas, e
protegida pelo teclado, martelado com a força exata da frustração e da
mágoa próprias.
É a violência da qual ninguém está a salvo, porque nos entra pela casa e
vai corroendo tudo o que encontra pelo caminho: filhos, pais, amores,
amigos, carreiras. Que corrói a liberdade de sermos felizes e, por isso,
corrói a liberdade de sermos autênticos, de sermos nós, simples e
genuinamente nós.
Porque esta violência, tantas vezes mascarada pela falsidade dos
«perfis», perpassa a totalidade do tecido social e, nele, vai deixando
marcas: vergonha, medo, humilhação, devassa.
Não se trata apenas da violência dirigida contra as chamadas «figuras
públicas» que, quase por inerência, são os seus alvos preferenciais, mas
também de uma violência da qual todos somos potenciais alvos, e que nos
fere de forma profunda e, nalguns casos, insanável: na nossa dignidade, na
nossa autoestima, na nossa privacidade e, até, nos aspectos mais íntimos da
nossa existência, como seja a nossa sexualidade.
É a violência que não se apaga, que se perpetua, e reproduz, e multiplica,
nesse espaço virtual em que ameaçam converter-se as nossas vidas, cuja
realidade se nos afigura cada vez mais sem sentido, nem propósito.
Porque esta é outra das reflexões que importa fazer: a invasão da vida
real pela vida virtual.
Esta invasão está muito para além da quantidade de tempo que passamos
nas redes sociais. É uma invasão que anula as nossas próprias experiências,
vividas e sentidas, numa comparação, geralmente desvantajosa, com as
experiências do outro.
Desvaloriza os nossos dias e as nossas vivências, num simples relance à
fotografia «postada» por outro, que, esse sim, há de ter uma vida plena de
felicidade, onde não cabem as olheiras e as noites mal dormidas; as pilhas
de roupa para engomar e a falta de dinheiro para as férias; a celulite e a raiz
do cabelo a precisar de pintura; o chefe insuportável; os transportes
apinhados e as filas de trânsito. Onde não cabem as birras dos miúdos, nem
as listas de supermercado. Onde não cabem o cansaço e a rotina dos amores
quotidianos…
E não cabem porque não estão lá! Não estão «postados», logo não
existem!
Não existem para «eles» e «elas», para os «outros» e as «outras», que
por serem «vigaristas» ou «putas» terão sempre a vida facilitada e garantida.
Garantidamente facilitada…
Desta crescente invasão do real pelo virtual nascem, ou fortalecem-se,
novos fenómenos e problemas sociais: a insatisfação permanente, a solidão e
o isolamento, a ausência de pertença e, paradoxalmente, a falta de modelos
de referência – porque as referências a que, a toda a hora, somos expostos
são demasiadas, contraditórias e efémeras na sua descartabilidade.
O excesso de referenciais tornou-se, e daí o paradoxo, na razão da sua
falta e, consequentemente, do nosso desnorte e da nossa incompletude.
São as sociedades «líquidas», em que a fluidez dos valores se confunde
com a sua deriva, e são as «vidas líquidas»6, em que a independência se
confunde com a solidão e os afetos se confundem com o número de likes.
Deixamos de gostar de quem somos, mas não sabemos quem havemos de
ser!
E procurá-lo, ou seja, procurarmo-nos, é difícil: confronta-nos com as
nossas expectativas não cumpridas; com as escolhas que, de repente,
descobrimos erradas; com a nossa própria debilidade, essa mesma, que a
tanto custo queremos negar. É mais fácil atacar o outro, fazendo-o sofrer e
expiar a sua culpa, por ser feliz, ou ter sucesso, ou, simplesmente, por viver
a vida, à sua maneira (e ter a coragem de o assumir).
Porque, não nos iludamos, em cada um dos insultos, injúrias, ameaças e
outras agressões digitais de que, e é importante sublinhar isto, qualquer um
de nós é um potencial alvo, esconde-se a raiva do respetivo autor, pela sua
própria incompetência e pela sua própria incapacidade.
Assim, e seguindo a lógica maniqueísta e primária, que preside a estes
julgamentos nas novas praças públicas virtuais, os julgadores, no fim de
contas, são bem piores do que as «putas», por eles julgadas.
Mas, pensando bem, isto também não é uma novidade!

1 Professora universitária no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de


Lisboa, Mediadora Familiar e autora de vários livros de ficção e não ficção.
2 O processo de socialização concretiza-se por três vias: a aprendizagem (valores e normas ensinados);
a imitação (reprodução de comportamentos e atitudes observados) e a identificação (com pessoas de
referência, que são modelos de comportamento a adotar). Para que a integração das normas e valores
possa ser efetiva, estas três vias deveriam estar em consonância, o que nem sempre acontece,
verificando-se uma contradição frequente entre, por exemplo, a aprendizagem e os comportamentos das
pessoas de referência.
3 Distingue-se a socialização primária, que decorre na infância e integra o indivíduo nos valores
fundamentais da sua sociedade de pertença, da socialização secundária, que tem lugar ao longo da vida
e que integra os indivíduos nos diferentes contextos em que se vai inserindo e nas diferentes dimensões
que compõem a sua vida adulta.
4 Estes são alguns dos fenómenos identificados por autores como Kopytowska & Baider, na sua análise
aos contextos sociais da atualidade.
5 Os preconceitos são fundados em estereótipos, ou seja, em generalizações e padronizações que
condicionam, no plano social mais vasto, as representações sociais acerca de algo ou alguém, e no plano
individual ou grupal, os rótulos com que a sociedade envolvente cataloga determinados comportamentos.
6 A fluidez das sociedades e das vidas atuais, às quais Zygmunt Bauman (1925-2017) aplica o conceito
de líquidas, é essencial para compreender o papel crescente das redes sociais nos nossos quotidianos,
como formas de iludir a confusão e a solidão, ditadas pela pluralidade e efemeridade das referências,
pela transitoriedade das vivências e pela perda de força dos vínculos interpessoais e dos contactos cara
a cara.
A Destruição do Outro

Pedro Strecht
MÉDICO PEDOPSIQUIATRA1

Um rapaz de apenas 12 anos contou-me o seguinte sonho:


«Eu estava na escola a desenhar um dinossauro. Sabes, aqueles que eram
carnívoros, enormes, comiam tudo o que lhes aparecia à frente? Acho que
era um T-Rex. Então, eu estava a fazer-lhe os dentes, a boca aberta e nesse
sonho o dinossauro começava a crescer, a sair do papel e depois tornava-se
real! Ele só me obedecia a mim e, de repente, desatava a atacar todos os da
minha turma que gozam comigo. O primeiro a ser comido era o Vasco que
tem ótimas notas e, quando vê que eu tenho negativas, chama-me burro.
Depois, o Francisco deitava sangue por todo o lado e pedia-me para que o
deixasse fugir e até já me deixava jogar à bola. Morriam muitos e no fim
daquilo eu trazia o dinossauro para casa por uma trela. Foi aí que eu acordei
muito assustado. À noite ele também tinha decidido atacar-me e eu estava
mesmo sozinho e não aparecia ninguém para me salvar.»
Este rapaz não conseguia uma boa integração escolar. Por várias defesas
emocionais resultantes de aspectos traumáticos da sua própria vida,
sobretudo uma enorme falta de amor-próprio secundária a um abandono
parental precoce, procurava ansiosamente amar e ser amado. Queria ser
bom, olhado, querido, possuir características positivas que só via e sentia
nos outros colegas, mas simplesmente achava que (ainda) não possuía. Vivia
numa instituição desde os 6 anos e frequentava a escola local, onde o
confronto diário com a sua própria sensação de falha fazia com que várias
vezes me dissesse:
«Odeio-os! Tenho inveja de muitos deles porque têm uma vida melhor do
que a minha…»
Passados alguns anos, este mesmo rapaz é agora um adulto jovem.
Prepara a sua transição para uma casa de autonomia, terminou com êxito um
curso profissional da área da restauração, conseguiu um emprego na
sequência de um estágio onde as suas capacidades foram reconhecidas.
Mesmo com oscilações, tem uma relação estável com uma rapariga que já
dura há alguns meses e, na última consulta em que o observei, tinha acabado
de gravar uma tatuagem na zona de uma omoplata, que fez questão de me
mostrar e, onde por baixo de um coração, se lia a frase:
«Mostra o melhor que tens.»
Já nos anos 30 do século passado a psicanalista Melanie Klein destacou
o conceito de «inveja» na infância e a sua necessária elaboração para um
estado de bom equilíbrio emocional futuro. O desejo de posse do objeto que
o próprio considera como «bom» ou significativo, não apenas para si mas
ainda para o provável reconhecimento narcísico do outro, é natural em todo
o ser humano. Porém, pode e deve ser elaborado a partir da perda de uma
posição omnipotente e autocentrada, em que para além da consciência
precoce das suas capacidades e competências, o próprio reconhece que nem
sempre é perfeito: todo o ser humano também tem diversos pontos de
fragilidade cujo reconhecimento só o engrandece.
Nos tempos de hoje, são vários os autores da pedopsiquiatria,
psiquiatria, sociologia, e até da filosofia, que subscrevem de forma unânime
a forma como determinados traços tóxicos de personalidade se tornaram
cada vez mais comuns. São, sobretudo, aqueles que contrariam a noção de
Martin Heidegger que, «ser no outro» é, muito provavelmente, a melhor
maneira de se «ser no mundo».
De facto, as sociedades atuais parecem tomadas por um padrão do que já
Sigmund Freud, há mais de cem anos, definia como um «narcisismo
maligno», base do que o mesmo autor definiu como «pulsão de morte». No
célebre livro em que trocou correspondência com o físico Albert Einstein,
pouco tempo antes da eclosão da segunda Guerra Mundial, Freud explora
este conceito afirmando existirem forças psíquicas que, de forma negativa,
desejam a aniquilação do outro, muitas vezes antecedida do seu controlo e
silenciamento, como forma de afirmação de supremacia do próprio sobre o
mundo em redor.
Sabemos bem que toda a história da humanidade está repleta deste tipo
de episódios de agressividade e violência, no que o psiquiatra Otto
Kernberg define como «perturbações graves de personalidade» em que o
prazer de atacar e destruir algo ou alguém se instala como uma forma de
violência gratuita e sociopática.
Acontece que o advento das redes sociais permitiu ampliar e modificar o
padrão da topologia clássica desta mesma agressividade destrutiva. Agora
não há rosto. Por detrás de um ecrã de teclas, correndo à velocidade de
breves segundos, qualquer um ousa publicar, escrever, comentar tudo quanto
deseja e, simplesmente, lhe apetece. Sem filtro de autorregulação ou censura,
que a ausência de uma personificação facilita (por detrás de um ecrã pode-se
ser «eu» ou, afinal, múltiplas partes do mesmo «eu», clivadas e fraturadas
como acontece nas patologias limite ou «border-line»). O mal-estar básico
de todos aqueles que não suportam a luz, o bem-estar, a alegria ou o sucesso
dos outros, projeta-se facilmente nos outros que, afinal, e desde sempre,
invejam.
Atacar alguém, vibrar com o seu sofrimento, desejar em última instância
a sua aniquilação e subjugação ou desaparecimento, é cada vez mais simples
e, infelizmente, tornou-se algo comum, recordando um conceito
desenvolvido por Hannah Arendt após a observação do julgamento de
oficiais nazis responsáveis pelo extermínio de milhares de judeus inocentes:
«a banalidade do mal», em que essencialmente cada qual perde a sua
capacidade intrínseca de perceber o impacto dos seus atos no outro e olha
sem critério ou filtro para o sofrimento alheio que produz e alimenta.
A indiferença do outro. A intolerância pelo bem-estar e sucesso de
alguém. O desejo inconsciente de, simplesmente, se ser igual a quem tanto se
odeia, porque afinal, é nessa mesma pessoa que se projetam os atributos
bons ou positivos que o próprio gostaria de ter, embora de forma exclusiva e
única.
A insuportabilidade da luz. O desejo maligno de destruição. O prazer
sádico de causar e presenciar o sofrimento do outro. De verdade, o ser
humano tem ainda muito a desenvolver nas suas capacidades pessoais e
sociais, sobretudo numa época em que as tecnologias de informação e
contacto (e as redes sociais em particular) podem ter tanto de positivo como,
afinal, de puramente perverso.
Porque não revelarmos cada vez mais e apenas o melhor de nós próprios
e dos outros? De forma rotineira, dar espaço ao que significa o bom e o
belo…

II

Pedro Strecht é médico de pedopsiquiatria.


Vive e trabalha em Lisboa. Casado, três filhos e uma cadela.
É considerado pelos próximos como uma «toupeira social»: não usa
redes sociais.
Enquanto membro da Comissão para a Intervenção em Crise da Casa Pia
de Lisboa («Processo Casa Pia»), viveu 3 anos e 10 meses (de 2003 a 2007)
sob proteção diária do Corpo de Intervenção Especial da PSP. Os seus dois
filhos mais velhos nasceram com escolta à porta do quarto da Maternidade.
Ainda antes da era das redes sociais, acumulou infâmias e ameaças à sua
pessoa e à sua atividade profissional.
Em 2015, teve a sua casa assaltada e totalmente vandalizada. Por
coincidência (ou talvez não) decorria em tribunal o julgamento de um
importante caso de abuso sexual de um menor por parte de um dos
progenitores. Perdeu o que considerava serem os seus bens mais
significativos e de ligação a gerações familiares. Na porta de entrada
ficaram escritos em letras de imprensa os nomes dos seus três filhos. A
Polícia Judiciária nunca encontrou qualquer pista sobre a situação.
A propósito de vários casos clínicos que seguiu em consulta e que,
posteriormente, foram foco de intervenção por Tribunais de Família e
Menores ou Tribunais Criminais foi alvo de diversas ameaças, processos e,
em casos concretos, vítima direta de violência física e verbal. Num deles,
processou pela primeira vez na sua vida o ofensor, tendo ganhado em
julgamento e oferecido a uma instituição o valor de indemnização
determinado.
Nos últimos tempos, e durante cerca de um ano e meio, foi
sucessivamente confrontado com infindáveis telefonemas anónimos,
ocorrendo às mais impensáveis horas do dia. Apresentando queixa dos
mesmos no DIAP, não foi possível apurar a sua origem criminosa. Os
números estavam sediados em locais diversos do mundo que não permitiam
fornecimento de dados às autoridades.
Na sua atividade profissional, tem ainda sido confrontado com diversos
processos colocados na Ordem dos Médicos, todos até agora liminarmente
indeferidos. Sabe, por profissionais da área jurídica, que alguns advogados
de figuras públicas acusadas de diversos crimes pelo Ministério Público
terão proferido frases como «Vou dar cabo deste cabrão», ou, como também
chegou a ler em cartas anónimas que recebeu: «És um filho da puta.»
Permanece na sua vida profissional, fazendo seu o lema descrito num
pequeníssimo poema de Alberto Lacerda, designado «AMOR»:
«Apesar de tudo há um caso de amor
Entre mim e a vida.»

1 Médico em atividade privada, atualmente Diretor Clínico da ART – Associação de Respostas


Terapêuticas e do GPS – Lar de Infância e Juventude Especializado, para além de autor de diversos
livros.
Nota Final

Escrevo este texto já depois de o livro estar paginado e pronto para ser
enviado para impressão na gráfica. É perturbador que, depois de reler todos
os comentários reunidos neste livro, ainda sinta o choque, o desconforto. Ao
voltar a ler esta seleção de agressões publicadas originalmente nas redes
sociais, percebo que se impõe a necessidade de fazer uma análise sobre este
fenómeno.
No dia a dia, já disse, passam-me ao lado. Mas, agora, aqui todos juntos,
impressionam-me. E, confesso, tento abstrair-me de que me foram dirigidos.
Um dia, gostaria de estar numa sala com quantos escreveram todos estes
comentários. Olhos nos olhos. Só para perceber o porquê. Para sentir.
Sei lidar com tudo na vida, menos com a maldade e com a ofensa
gratuita. Há um trabalho coletivo que precisa de ser feito a partir deste
momento que estamos a viver. Este livro faz-se a partir da minha persona
pública, mas poderia ser outra pessoa a criar o debate.
Cada um de nós já viveu uma qualquer situação de dor e de injustiça
provocada pelo julgamento de outros. Quis deixar esta análise por escrito
para que dure. Daqui a 100 anos, se este livro for encontrado por alguém,
essa pessoa saberá como as redes sociais, no seu início, trouxeram tanta
violência gratuita.
Nós somos pioneiros, estamos a viver a revolução tecnológica e a
tecnologia abre possibilidades que precisavam de controlo e de regulação.
Quero voltar a agradecer aos especialistas e ao prefaciador que se
juntaram a este ponto de partida, a este debate que, espero, possa continuar
para lá deste livro.
Quero acreditar que a partir daqui algo aconteça. Nem que seja a
discussão. É dela que nasce a luz.

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