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Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) – Centro de Artes e Comunicação (CAC)

Departamento de Letras – Português III – Morfossintaxe II


Professora: Ana Lima
Aluna: Ayesha Oliveira

Texto – Diálogo (do livro Morangos Mofados de Caio Fernando Abreu)

A: Você é meu companheiro.


B: Hein?
A: Você é meu companheiro, eu disse.
B: O quê?
A: Eu disse que você é meu companheiro.
B: O que é que você quer dizer com isso?
A: Eu quero dizer que você é meu companheiro. Só isso.
B: Tem alguma coisa atrás, eu sinto.
A: Não. Não tem nada. Deixa de ser paranoico.
B: Não é disso que estou falando.
A: Você está falando do que, então?
B: Eu estou falando disso que você falou agora.
A: Ah, sei. Que eu sou teu companheiro.
B: Não, não foi assim: que eu sou teu companheiro.
A: Você também sente?
B: O quê?
A: Que você é meu companheiro?
B: Não me confunda. Tem alguma coisa atrás, eu sei.
A: Atrás do companheiro?
B: É.
A: Não.
B: Você não sente?
A: Que você é meu companheiro? Sinto, sim. Claro que eu sinto. E você, não?
B: Não. Não é isso. Não é assim.
A: Você não quer que seja assim?
B: Não é que eu não queira: é que não é.
A: Não me confunda, por favor, não me confunda. No começo era claro.
B: Agora não?
A: Agora sim. Você quer?
B: O quê?
A: Ser meu companheiro.
B: Ser teu companheiro?
A: É.
B: Companheiro?
A: Sim.
B: Eu não sei. Por favor, não me confunda. No começo era claro. Tem alguma coisa
atrás, você não vê?
A: Eu vejo. Eu quero.
B: O quê?
A: Que você seja meu companheiro.
B: Hein?
A: Eu quero que você seja meu companheiro, eu disse.
B: O quê?
A: Eu disse que eu quero que você seja meu companheiro.
B: Você disse?
A: Eu disse?
B: Não. Não foi assim: eu disse.
A: O quê?
B: Você é meu companheiro.
A: Hein.
(ad infinitum)

Análise

Primeiramente podemos observar que o texto trabalhado está inserido


em um livro de contos, o que por si só já reduz a extensão da produção,
conferindo a ela uma responsabilidade com a transmissão do(s) sentido(s) com
brevidade. O formato que segue a narrativa está explicitado já no título,
diálogo, que sugere ao leitor uma conversa entre personagens na qual os
pontos de vista serão demonstrados através das falas.
O autor brinca com os diversos sentidos dos termos e cria um jogo de
referências ambíguas no texto, como no uso das palavras ‘companheiro’ e
‘sente’. Essas ambiguidades serão comentadas ao longo da análise.

Desde a primeira declaração a dúvida é lançada com a escolha lexical


pela palavra ‘companheiro’. Pelo uso do gênero masculino por todo o diálogo,
somos levados a inferir que os personagens são dois homens, e o sentido
duplo da palavra ‘companheiro’, que pode significar uma afeição fraternal,
amizade, ou ter conotações românticas, gera a confusão de sentido que é a
ideia central do texto.

Na tentativa de esclarecer o significado de toda a conversa, os


personagens estão a todo momento retomando as próprias falas ou as do
outro, perpetuando assim a falha comunicativa, como na linha 14, em que B
retoma o que disse A fazendo uma ressalva sobre a construção da frase que
mudaria o sentido da fala.

Na terceira linha, é interessante a opção que o personagem A faz por


repetir com exatidão sua primeira fala para facilitar a compreensão do seu
interlocutor confuso, ao invés de reformular seu texto. Este recurso de
reafirmação de que se utiliza o autor na construção do diálogo colabora com a
ambiguidade almejada.

Na sétima linha, a utilização da palavra ‘atrás’, no lugar da expressão


mais comum ‘por trás’, também colabora com a duplicidade de sentidos do
texto, a partir do momento que foge da construção mais utilizada em tal
contexto conversacional, aumentando as possibilidades de interpretação pela
menor familiaridade com a estrutura.

A seleção de palavras como ‘disso’ em linhas como as 10 e 12, com um


valor dêitico pela dependência de referencial externo a sua definição para a
apreensão do sentido, gera igualmente conflito, pois o referente poderia ser
“Não tem nada. Deixa de paranoia.”, interpretação do interlocutor, mas o real
objetivo era retomar a afirmação inicial “Você é meu companheiro”.

O uso da palavra ‘sente’ ganha significados diferentes nas frases de


cada personagem. Quando B a pronuncia, refere-se a sua afirmação de que a
‘algo atrás’ da declaração do colega. Já A faz referência à sensação de que
são companheiros. A compreensão mútua fica ainda mais prejudicada.

Na linha 28, o ‘Agora não’ de que fala o personagem B refere-se à fala


anterior de seu interlocutor, que diz que no começo as coisas eram claras. O
‘Agora sim’ da sentença seguinte, do personagem A, parece mais uma
determinação a conseguir um esclarecimento da situação naquele exato
momento, saber se o outro quer ser seu companheiro.

Por fim, na penúltima linha, a confusão no diálogo é tão grande que o


personagem B, que antes buscava o sentido da primeira declaração de A,
termina por repetir essa mesma sentença, “Você é meu companheiro”, como
uma afirmação e deixando seu interlocutor por sua vez em dúvida sobre o
sentido. O texto sofre a partir daí uma inversão entre os personagens, que não
conseguem equiparar suas interpretações e chegar a um acordo sobre a
conversa.

A construção “O que é que você quer dizer com isso?” (linha 6) poderia
ser reduzida, porém a utilização de uma segunda oração como predicativo
enfatiza a dúvida do interlocutor. Da mesma forma ‘com isso’, ao final da frase,
não é uma expressão obrigatória para o sentido do período, porém faz
referência à afirmação que gerou confusão “Você é meu companheiro”.

Na linha 9, a resposta “Não. Não tem nada. Deixa de ser paranoico.” foi
segmentada em três diferentes frases provavelmente visando maior clareza,
além de aproximar o texto da linguagem oral, considerando que ele representa
um diálogo. A linha 13 tem uma ocorrência semelhante em “Ah, sei. Que eu
sou teu companheiro.”, o período foi partido em duas frases, porém as orações
são subordinadas, sendo a segunda o complemento da primeira.

Na frase “No começo era claro” (linha 36) não há um sujeito explícito. O
adjunto foi topicalizado e ganhou destaque, remetendo o leitor ao momento
inicial da conversa. A compreensão de que o ‘era claro’ tem como sujeito o
sentido da conversa não está no plano sintático, dependendo de considerações
discursivas.
O objeto da questão “Você também sente?” (linha 15) não está na
própria oração, porque o emissor está contando com a capacidade inferencial
de seu interlocutor. Quando a comunicação não se efetiva, o complemento do
período aparece em outra fala “Que você é meu companheiro?” (linha 17). O
mesmo processo se repete em “Você quer?” (linha 29), que tem seu
complemento explicitado “Ser meu companheiro” (linha 31) em outra fala e em
“Eu quero.” (linha 37) com a continuação “Que você seja meu companheiro.”
(linha 39) em uma frase diferente.

Enfim, com a análise aqui empreendida é possível constatar a


importância da estrutura sintática textual para a construção do sentido
pretendido. As opções de organização do texto são indicadores que conduzem
o leitor sutilmente a algumas possibilidades específicas de interpretação,
dentro da multiplicidade de opções de compreensão que permitem a
combinação entre língua em uso, o contexto e o conhecimento de mundo que
carrega o interlocutor.

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