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ANÁLISE DAS OBRAS INDICADAS PARA O VESTIBULAR DO ITA

Uma Província: Esta

Confidência do Itabirano
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,


vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,


é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:


este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.


Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética – 51ª ed. – Rio de Janeiro:
Record, 2002. Pág. 66.
ANÁLISE

Confidência do Itabirano, já a partir do título, carrega marcas significativas da


poesia de Drummond.
O eu lírico, que em Poema de Sete Faces relutava em se expor (e se o fazia era
por influência da Lua e da bebida), aqui faz uma “confidência”, mas não resvala para o
confessionalismo, pois contém sua emoção, evitando qualquer excesso sentimental.
A linguagem é direta e objetiva, o eu lírico lista, como em um relatório, os
elementos que integram a sua herança itabirana; chega a quantificar percentualmente a
influência de Itabira no espírito dos que nela nasceram. A pontuação também contribui
para evitar exagero emocional: predomina a pontuação própria dos discursos lógicos e
racionais: ponto final, vírgula, ponto e vírgula).
No entanto, o eu lírico se trai e deixa pistas de que resgatar o passado através da
memória não é um processo que ele realiza insensivelmente. Contenção emotiva não é o
mesmo que ausência de emoção: a necessidade de conter a emoção pode revelar um temor
de ser tomado por ela.
No poema, as emoções que a terra natal desperta no eu lírico se revelam através
de alguns recursos formais: a repetição da palavra Itabira (5 vezes) contribui para deixar
evidente a presença permanente do seu lugar de origem em suas lembranças; o uso
reiterado do pronome demonstrativo “este” indica que a presença de objetos trazidos de
Itabira aproximam afetivamente o eu lírico da cidade geograficamente distante.
Itabira está sempre presente. Apesar de ter deixado a cidade há décadas, ela deixou
marcas indeléveis na personalidade do eu lírico, no seu jeito de ser. E essa volta ao
passado e à terra onde nasceu, através da memória, não se faz sem dor:

Itabira é apenas uma fotografia na parede.


Mas como dói!

A palavra “apenas” enfatiza a distância física e temporal entre o eu lírico e a sua


terra natal. Porém, a conjunção adversativa no início do último verso (mas) contradiz essa
última tentativa de contenção emotiva, e a emoção, enfim, transborda: a pontuação
expressiva se faz necessária, pois o eu lírico assume que o processo de encarar o passado,
representado pela fotografia de Itabira na parede, é dolorido.

Como temos destacado, a poesia de Drummond constrói-se a partir da oposição


Eu x Mundo. Essa oposição básica assume, ao longo de sua obra poética, diferentes
facetas: Universal x Particular; Província x Metrópole, Indivíduo x Comunidade,
Tradição e Modernidade.
Em Confidência do Itabirano, essas oposições manifestam-se e entre a tradição
(passado) e a modernidade (presente) e, principalmente, na relação entre o indivíduo e
sua comunidade.
Segundo Affonso Romano de Sant’Anna, a obra de Drummond “é um dos raros
testemunhos, em poesia, da desintegração da família no plano socioeconômico e de suas
repercussões na psicologia individual. Descendente de um clã familiar ligado à terra,
primeiro pelo trabalho da mineração, depois através da pecuária e da agricultura, esse
poeta é o fim da linhagem de mineradores e fazendeiros: Tive ouro, tive gado, tive
fazendas. / Hoje sou funcionário público.
O passado histórico do país confunde-se com o passado individual do eu lírico, e
as mudanças pelas quais o país passa, com sua entrada na modernidade, impactam o
sujeito.
O eu lírico não pode se livrar de seu passado, e o seu passado está intrinsecamente
associado à sua família e à sua terra natal, dois temas constantes na poesia de Drummond.
Aqui, o que ganha relevo é a relação entre o “eu” e o seu lugar de origem,
revelando a presença do telurismo na poesia de Drummond.
Segundo o dicionário Houaiss, “telurismo vem do latim tellus, que significa terra,
chão, solo, sinônimo poético de terra e significa: a influência do solo de uma região sobre
o caráter, os costumes, etc. de seus habitantes.”
Esse telurismo fica evidente nas três primeiras estrofes do poema:

Alguns anos vivi em Itabira.


Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,


vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,


é doce herança itabirana.

O telurismo, portanto, é a interiorização, por parte do indivíduo, dos elementos


culturais e paisagísticos, resultando numa espécie de ligação permanente entre o homem
e a terra”.
Itabira faz parte da genética do eu lírico. O orgulho, a tristeza, o alheamento, a
vontade de amar, o hábito de sofrer são traços de sua personalidade que ele herdou de sua
terra natal.
A entrada do Brasil na modernidade, a industrialização, que vai transformar o
ferro de Itabira em aço; a crescente urbanização, as mudanças políticas; a superação da
tradição literária... tudo isso deixará marcas na sociedade e também no indivíduo, pois
motivará tensões e conflitos.
Como já tivemos oportunidade de afirmar, ainda que Drummond recorra com
frequência ao “eu”, sua poesia sempre se reveste de universalismo.

“Quem se confessa, em Drummond, não é apenas o poeta Itabirano, mas também


o intelectual, o artista em geral, o funcionário público, o dirigente político. Ao
confessarem-se, as vozes da intelectualidade e dos setores médios da população vão, aos
poucos, denunciando sua cota de comprometimento com a atrofia congênita que impede
a formação e a superação do passado colonial”.

A Itabira onde o eu lírico nasceu não existe mais, é “apenas” uma fotografia na
parede. Mas não é fácil livrar-se desse passado, pois ele deixou marcas profundas.
E, nesse mundo em profundas transformações e, muitas vezes, em crise, o “eu” de
Drummond, ao longo de sua obra, como o “eu” coletivo, busca se encontrar, busca se
entender e, com frequência, se confessa solitário, perdido, desorientado, sente-se pequeno
e impotente diante da realidade. (Veremos isso em vários outros poemas da antologia)

EXERCÍCIOS

Confidência do Itabirano

Alguns anos vivi em Itabira.


Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,


vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,


é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:


este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.


Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
Carlos Drummond de Andrade.

01. (Enem) Carlos Drummond de Andrade é um dos expoentes do movimento modernista


brasileiro. Com seus poemas, penetrou fundo na alma do Brasil e trabalhou poeticamente
as inquietudes e os dilemas humanos. Sua poesia é feita de uma relação tensa entre o
universal e o particular, como se percebe claramente na construção do poema
Confidência do Itabirano. Tendo em vista os procedimentos de construção do texto
literário e as concepções artísticas modernistas, conclui-se que o poema acima
a) representa a fase heroica do modernismo, devido ao tom contestatório e à utilização de
expressões e usos linguísticos típicos da oralidade.
b) apresenta uma característica importante do gênero lírico, que é a apresentação objetiva
de fatos e dados históricos.
c) evidencia uma tensão histórica entre o “eu” e a sua comunidade, por intermédio de
imagens que representam a forma como a sociedade e o mundo colaboram para a
constituição do indivíduo.
d) critica, por meio de um discurso irônico, a posição de inutilidade do poeta e da poesia
em comparação com as prendas resgatadas de Itabira.
e) apresenta influências românticas, uma vez que trata da individualidade, da saudade da
infância e do amor pela terra natal, por meio de recursos retóricos pomposos.

02. (Fuvest 2016) No texto de Drummond, o eu lírico


a) considera sua origem itabirana como causadora de deficiências que ele almeja superar.
b) revela-se incapaz de efetivamente comunicar-se, dado o caráter férreo de sua gente.
c) ironiza a si mesmo e satiriza a rusticidade de seu passado semirrural mineiro.
d) dirige-se diretamente ao leitor, tornando assim patente o caráter confidencial do poema.
e) critica, em chave modernista, o bucolismo da poesia árcade mineira.

03. (Fuvest 2016) Na última estrofe, a expressão que justifica o uso da conjunção
sublinhada no verso “Mas como dói!” é:
a) “Hoje”.
b) “funcionário público”.
c) “apenas”.
d) “fotografia”.
e) “parede”.

04. (Fuvest 2016) Tendo em vista que o poema de Drummond contém referências a
aspectos geográficos e históricos determinados, considere as seguintes afirmações:

I. O poeta é “de ferro” na medida em que é nativo de região caracterizada pela existência
de importantes jazidas de minério de ferro, intensamente exploradas.
II. O poeta revela conceber sua identidade como tributária não só de uma geografia, mas
também de uma história, que é, igualmente, a da linhagem familiar a que pertence.
III. A ausência de mulheres de que fala o poeta refere-se à ampla predominância de
população masculina, na zona de mineração intensiva de que ele é originário.

Está correto o que se afirma em


a) I, somente.
b) III, somente.
c) I e II, somente.
d) II e III, somente.
e) I, II e III.

05. (Enem PPL 2015) O poeta pensa a região como lugar, pleno de afetos. A longa história
da ocupação de Minas Gerais, iniciada com a mineração, deixou marcas que se atualizam
em Itabira, pequena cidade onde nasceu o poeta. Nesse sentido, a evocação poética indica
o(a)
a) pujança da natureza resistindo à ação humana.
b) sentido de continuidade do progresso.
c) cidade como imagem positiva da identidade mineira.
d) percepção da cidade como paisagem da memória.
e) valorização do processo de ocupação da região.
GABARITO

01. Resposta: [C]


Carlos Drummond, no texto, prioriza a temática conflituosa entre o ser em relação com o
mundo que o cerca.

02. Resposta: [D]


No verso “De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço”, o pronome oblíquo “te”
é recurso estratégico de aproximação do eu lírico com o leitor, tornando assim patente o
caráter confidencial do poema, como se afirma em [D].

03. Resposta: [C]


O uso da conjunção adversativa “mas” justifica-se por estar associada ao termo “apenas”,
já que aquilo que tem tão pouca importância não deveria causar um sentimento tão
doloroso. Assim, é correta a opção [C].

04. Resposta: [C]


O item III é incorreto, pois em nenhum momento do poema há referência a predominância
de população masculina na zona de mineração de Itabira. Como as demais são corretas, é
válida a opção [C].

05. Resposta: [D]


A distância temporal entre o local de enunciação do eu lírico e a Itabira que ficou para
trás provoca sensações dolorosas (“Mas como dói.”) em que se mesclam as saudades da
terra natal e a consciência da modernização da cidade provocada pela industrialização do
país que votava as pequenas cidades ao esquecimento: “Tive ouro, tive gado, tive
fazendas./Hoje sou funcionário público./Itabira é apenas uma fotografia na parede.”
Nesse sentido, a evocação poética indica a percepção da cidade como paisagem da
memória, como se afirma em [D].

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