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UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

JACQUES LE GOFF E NICOLAS TRUONG

A sexualidade, ápice da depreciação


"Nasce-se de sangue nobre."! O sangue como definição do
parentesco entre os nobres, porém, só surge tardiamente. É
É verdade que, como lembra Jacques Rossiaud," os documen-
apenas a partir do século XIV que os descendentes diretos
tos em que se baseiam os historiadores refletem somente o
dos reis serão chamados "príncipes de sangue". É só na
pensamento dos homens que detêm o poder de escrever, de
Espanha de fins do século XV que aparece, em oposição aos
descrever e de depreciar, ou seja, os monges e os eclesiásticos
judeus, a noção de "pureza de sangue".
Mas o tabu do sangue permanece. Uma das várias razões
que, devido a seus votos de castidade, eram largamente ver-
sados no ascetismo. É verdade que os discursos dos leigos
da situação de relativa inferioridade da mulher na Idade
que chegaram até nós são freqüentemente aqueles dos tribu-
Média é imputada a suas menstruações, ainda que Anita
nais em que eles acusam, testemunham e se defendem, incor-
Gueneau-jalabert" tenha observado que a teologia medieval
porando o discurso dominante com a finalidade de pleitear
não retomou as proibições apontadas no Antigo Testamen-
suas causas. Quanto aos romances, contos e fábulas, eles ex-
to a respeito das mulheres menstruadas. A transgressão da
traem suas histórias, farsas e intrigas do dia-a-dia do "ho-
proibição eclesiástica feita aos esposos de copular durante o
mem medieval". Mas, como lembra Georges Duby, esses
período da menstruação teria por conseqüência o nascimento
exemplos se situam "em uma representação convencional do
de crianças com lepra, "a doença do século", dir-se-ia hoje,
amor e da sexualidade"."
que encontra aqui sua explicação mais corrente. O esperma
Assim, é possível afirmar que o corpo sexuado da Idade
também é nódoa. A sexualidade, associada a partir do sécu-
Média é majoritariamente desvalorizado, as pulsões e o dese-
lo XII ao tabu do sangue, é assim o ápice da depreciação
jo carnal, amplamente reprimidos. O próprio casamento cris-
corporal.
tão, que aparece, não sem dificuldade, no século XIII, será
O cristianismo medieval privilegia o pecado em relação à
uma tentativa de remediar a concupiscência. A cópula só é
desonra. O espiritual sobrepuja o corporal. O sangue puro de
compreendida e tolerada com a única finalidade de procriar.
Cristo é mantido a distância do sangue impuro dos homens.
"O adúltero é também aquele apaixonado de modo demasia-
Ele é chamado de Sangue Precioso, que os anjos e Maria
damente ardente por sua mulher", repetirão os clérigos da
Madalena teriam recolhido ao pé da cruz e do qual numero-
Igreja. Prescreve-se, desse modo, o domínio do corpo; as prá-
sas igrejas reivindicavam a propriedade durante a Idade Mé-
ticas "desviantes" são proibidas.
dia, a exemplo de Bruges e, sobretudo, de Mântua. O culto
Na cama, a mulher deve ser passiva, o homem, ativo, mas
do Santo Sangue se deu pelo sucesso do tema literário e cava-
moderadamente, sem arrebatamento. No século XII, apenas
lheiresco do Santo Graal. Entretanto, as fraternidades de san-
Abelardo (1079-1142), pensando talvez em sua Heloísa, che-
gue não existem no Ocidente medieval.
gará a dizer que a dominação masculina "termina no ato con-
jugal, em que homem e mulher detêm igual poder sobre o corpo

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do outro". Mas, para a maior parte dos clérigos e dos leigos, o Estabelece-se uma hierarquia entre os comportamentos
homem é um possuidor. "O marido é proprietário do corpo de sexuais lícitos. No mais alto grau está a virgindade, que, em
sua mulher, ele tem direto de posse sobre ela", resume Georges sua prática, é denominada castidade. Depois vem a castidade
Duby. Toda tentativa contraceptiva é pecado mortal para os na viuvez e, enfim, a castidade no interior do casamento. Se-
teólogos. A sodomia é uma abominação. A homossexualidade gundo o Decreto de Graciano, um monge de Bolonha (c. de
- após ter sido condenada, depois tolerada, a ponto de cons- 1140-113 O), "a religião cristã condena o adultério em ambos
tituir-se no século XII, segundo BosweU, em uma cultura "gay" os sexos do mesmo modo", mas trata-se de um ponto de vista
no próprio seio da Igreja - torna-se, a partir do século XIII, teórico mais do que uma realidade prática: os tratados sobre
uma perversão por vezes associada ao canibalismo. As palavras o coitus falam quase exclusivamente do homem.
fazem as coisas. E novos termos que surgem na Antigüidade Uma regulação sem precedentes da guerra evitará que o
tardia, depois na Idade Média, tais como caro (a carne), luxuria sangue seja vertido de maneira pecaminosa. Mas o pragma-
(a luxúria), fornicatio (a fornicação), forjam o vocabulário cris- tismo é posto em circulação diante das ameaças "bárbaras"
tão da ideologia anticorporal. A natureza humana designada ou "heréticas". Assim, o cristianismo, tornado religião de Es-
pelo termo caro é, dessa maneira, sexualizada e abrirá as por- tado, instala aquilo que Santo Agostinho chama de "a guerra
tas ao "pecado contra a natureza". justa" tbellum justum), que servirá - até nossos dias, aliás -
O sistema será definitivamente ajustado no século XII com para justificar tanto as causas mais nobres quanto as mais vis.
a instalação da reforma gregoriana. "Gregoriana" porque deve Santo Agostinho dirá que a guerra é justa se ela não é
seu nome ao papa Gregório VII (1073-1083). "Reforma" es- provocada "pela vontade de destruir, a crueldade na vingan-
sencial, já que consiste em um grande aggiornamento realiza- ça, o espírito implacável não apaziguado, o desejo de domi-
do pela Igreja cristã a fim de purgar sua instituição do tráfico nar e outras atitudes semelhantes", recomendações retomadas
de funções eclesiásticas (simonia) assim como dos padres e completadas pelo Decreto de Graciano, depois pelo canonista
concubinários (nicolaísmo). Sobretudo, a reforma gregoriana Rufino na Summa decretorum (c. de 1157).
separa os clérigos dos leigos. Os primeiros, em especial a par- Da mesma forma, a Igreja impõe aos leigos a "cópula jus-
tir do primeiro Concílio de Latrão, deverão, no seio do novo ta" - a saber, o casamento. A dominação ideológica e teórica
modelo que é o monaquismo, abster-se de verter o que pro- da Igreja se manifestará, na prática, por meio de manuais desti-
voca a corrupção da alma e que impede o espírito de descer: nados aos confessores, os penitenciais, em que são reperto-
o esperma e o sangue. Instala-se, desse modo, uma ordem, riados os pecados da carne, associando-os aos castigos e às
um mundo de celibatários. Quanto aos segundos, deverão se penitências que lhes correspondem. O manual do bispo de
servir de seus corpos de maneira salutar e salvadora no inte- Worms, intitulado, como outros, Decreto, e escrito no início
rior de uma sociedade aprisionada no casamento e no mode- do século XI, perguntará ao homem casado se ele "se acasala
lo patrimonial, monogâmico e indissolúvel. por trás, à maneira dos cães". E irá condená-Io, se for o caso,

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a fazer "penitência por dez dias a pão e água". Deitar-se com edulcorar excessivamente o Cântico dos Cânticos, obra bíbli-
o marido durante a menstruação, antes do parto ou ainda no ca repleta de erotismo, em um diálogo entre a humanidade
dia do Senhor, por exemplo, levará a castigos semelhantes. pecadora e a santa e salutar divindade. Assim, segundo as
Beber o esperma do marido, "a fim de que ele te ame mais Sentenças de Pierre de Lombard (c. de 1150), os maridos po-
graças a teus procedimentos diabólicos", prossegue esse mes- derão enfim se ligar "conforme o consentimento das almas e
mo Decreto para uso das mulheres, será passível de sete anos conforme a união dos corpos".
de penitência. Felação, sodomia, masturbação, adultério, se-
guramente, mas também a fornicação com os monges, são, Teoria e prática
um a um, sucessivamente condenados. Assim como os supos-
tos fantasmas dos maridos - que ensinam muito mais sobre o que ocorre, no plano da moral sexual da Idade Média,
os delírios dos teólogos do que sobre aqueles dos penitentes justamente com esse lugar-comum a propósito do qual Kant
colocados dessa maneira no índex -, à imagem daqueles su- trouxe uma contribuição inteiramente racionalista e crítica:
postos procedimentos das mulheres que, é estipulado, escon- "Isto é bom na teoria, mas não vale nada na prática"? Antes
dem um peixe vivo em seu sexo, "mantendo-o aí até que ele do século XII, ainda é possível ver - o fenômeno, entretan-
morra e, após tê-lo cozido, o dão de comer a seu marido para to, permanece limitado - clérigos brigando, ainda que por
que ele se apaixone mais por ela[s]". Trata-se aí daquilo que mulheres e concubinas e não com elmos e armas. Da parte
Jean-Pierre Poly chamou de "os amores bárbaros". dos leigos, abundam rixas e combates, e os prazeres da carne
Esse controle sexual matrimonial, preconizando também - irredutíveis apenas à sexualidade - caminham bem. A aris-
a abstinência durante as quaresmas normais (Natal, Páscoa, tocracia permanece o que era então quando de seu período
Pentecostes) e outros períodos de jejum e de continência, in- "bárbaro", isto é, polígama.
fluirá tanto nas mentalidades medievais quanto na demografia, A distinção social determina as práticas corporais e a se-
bastante afetada por esses 180 ou 185 dias, aproximadamen- qüência das proibições. O domínio da luta estende-se já à
te, de liberdade sexual autorizada. No século XII, o teólogo sexualidade. As aventuras extraconjugais brilham nas gran-
parisiense Hugues de Saint-Victor (morto em 1141) chegará des famílias nobres. Do lado dos ricos, a poligamia é pratica-
mesmo a dizer que a sexualidade conjugal decorre da fornica- da e, na verdade, admitida. Do lado dos pobres, a monogamia
ção: ''A concepção das crianças não se faz sem pecado", dis- instituída pela Igreja é mais respeitada. Quanto à abstinência,
para. A vida dos casados revela-se de uma dificuldade sem ela é, como lembra Jacques Rossiaud, "uma virtude muito
igual, mesmo que "a espiritualização do amor conjugal", como rara" e "reservada a uma elite clerical, já que a maior parte
escreve Michel Sot,10"vá salvar o corpo que a teologia iria dos clérigos seculares vive em regime de concubinato, quan-
eliminar". Amor pelo outro corpo e amor por Deus de fato se do não são abertamente casados". O confessor de São Luís,
confundem em numerosos textos, a ponto mesmo de por exemplo, insiste no respeito escrupuloso à abstinência

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conjugal por parte de Luís IX, devido ao caráter excepcional res sexuais. Assim, como escreve Georges Duby, "a guerra
desse comportamento. não é mais entre o carnal e o espiritual, mas entre o natural e
O último rei da França a praticar a poligamia foi Filipe aquilo que o contraria". No entanto, a execração dos homos-
Augusto, cujo reinado (1180-1223) situa-se no auge desse pe- sexuais ou dos "afeminados", por exemplo, se intensificará
ríodo decisivo. Viúvo, casado novamente com a dinamarquesa no século Xv, salvo em lugares específicos, como Florença. A
Ingeburge, ele não pode honrar sua nova mulher. Esse todo- tensão, a dinâmica do Ocidente, ainda é perceptível nessas
poderoso abandona então o leito conjugal, mantém uma rela- oscilações. A nova ética sexual da Igreja se impõe, contudo,
ção fora do casamento e pratica, desse modo, a bigamia. Uma 110 imaginário e na realidade do Ocidente medieval. E isso

atitude inaceitável para a Igreja, que o excomunga. Ele então por muito tempo. Talvez até em nossa era, que conheceu des-
retoma Ingeburge da Dinamarca, sem entretanto levá-Ia para de os anos 1960 uma liberação sexual sem precedentes.
sua cama, mas encerrando-a em um convento. Ela se recusa a
voltar a seu país, como lhe é imposto. Adepta de uma França Raizes da repressão: a Antigüidade tardia
que a adotou, Ingeburge será honrada, não por seu marido,
mas por uma corte que lhe oferece sua deferência, sua confian- A fim de compreender os pilares dessa "grande renúncia", con-
ça e a venera. Essa mulher fora do comum suscitará, de resto, vém voltar ao início. Essa evolução fundamental da história do
a composição, por um artista anônimo, do mais belo saltério Ocidente, que é a recusa da sexualidade e a "renúncia à car-
da Idade Média, o Saltério de Ingeburge - obra de uma força ne", se produziu, de início, sob o Império Romano, no interior
estética e teológica sem igual, em que toda a história da huma- daquilo que se chamou paganismo e que Michel Foucault deci-
nidade cristã é representada, da Criação ao fim da História, frou de modo pioneiro na História da sexualidade.
passando pela Encarnação e o Juízo Final. O historiador Paul Veyne" situa essa mudança precisa-
Por ocasião do milênio medieval, o sistema de controle mente nos últimos anos do século II da era cristã, quando do
sexual e corporal irá evoluir. O triunfo deste com a grande reinado do imperador Marco Aurélio, entre 180 e 200. É
reforma gregoriana no século XII marca igualmente a época certo que, em todo caso, o estoicismo do imperador, banha-
de seu relativo declínio. As práticas sexuais, herdadas do do de ascetismo e fundado no domínio de si, sempre em luta
mundo e do modo de vida greco-latino ou pagão, perduram. contra a depravação das paixões, "adquire acentos pessoais". 12
A castidade dos monges é escarnecida em numerosas farsas O ato sexual, por exemplo, encontra-se reduzido a "uma fric-
populares, em que se ridicularizam os clérigos concubinários, ção de ventres e à ejaculação de um líquido viscoso acompa-
e a virgindade voluntária ou imposta reflui. A Idade Média nhada de um espasmo"." Em seus Pensamentos, em que se
que está acabando oscila entre a repressão e a liberdade sexual dirige a si mesmo, Marco Aurélio (121-180) explica a razão
aceita ou reencontrada. O século XIV em crise irá preferir de tal depreciação. O sábio deve apresentar a sua consciência
repovoar a Terra mais do que o Céu e irá naturalizar os valo- uma verdade nua a fim de melhor subtrair-se a suas paixões

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depravadas: "Assim são essas imagens que vão até as próprias A Idade Média dará um impulso muito mais forte a essa
coisas e penetram nelas de modo a fazer ver o que elas são; e depreciação corporal e sexual por meio de seus ideólogos, na
tal é o modo como é preciso proceder durante toda a vida; lá seqüência de Jerônimo e Agostinho, como Tomás de Aquino,
onde as coisas têm um valor demasiadamente grande, desnudá- assim como por seus praticantes, os monges, que irão instalar
Ias; ver claramente sua vulgaridade, extrair-lhes todos os de- por muito tempo na sociedade o elogio e a prática, global-
talhes de que se ornam." mente respeitada, da virgindade e da castidade.
De algum modo, o terreno já estava bem preparado para
que o cristianismo realizasse essa grande reviravolta do cor- o cristianismo, operador da grande revirava/ta
po contra si mesmo. "Os cristãos não reprimiram absoluta-
mente nada, a coisa já estava feita", chega a declarar Paul É preciso um grande operador ideológico, assim como estru-
Veyne. '~s continuidades muito estreitas que se podem cons- turas econômicas, sociais e mentais correspondentes, para que
tatar entre as primeiras doutrinas cristãs e a filosofia moral a reviravolta se opere. O agente dessa reviravolta, dessa recu-
da Antigüidade", escreve Michel Foucault," testemunham o sa, é o cristianismo. Assim, a religião cristã institucionalizada
fato de que não é "de modo algum exato" pensar que o paga- introduz uma grande novidade no Ocidente: a transforma-
nismo e o cristianismo constituem duas antípodas da teoria e ção do pecado original em pecado sexual. Uma mudança que
da prática sexuais. A caricatura, com efeito, espreita. No pa- é uma novidade para o próprio cristianismo, já que, em seus
ganismo dos gregos e dos romanos, o culto do corpo e a li- primórdios, não aparece traço algum de uma tal equivalên-
berdade sexual. No cristianismo, a castidade, a abstinência e cia, assim como nenhum termo dessa equação figura no Anti-
a busca doentia da virgindade. Os trabalhos de Paul Veyne e go Testamento da Bíblia. O pecado original, que expulsa Adão
Michel Foucault mostram claramente que um "puritanismo e Eva do Paraíso, é um pecado de curiosidade e de orgulho. É
da virilidade" existe antes da guinada decisiva do alto Impé- a vontade de saber que conduz o primeiro homem e a primei-
rio Romano (séculos 1-11) em direção ao cristianismo. "Entre ra mulher, tentados pelo demônio, a comerem a maçã da ár-
a época de Cícero e o século dos Antoninos, * passou-se um vore do conhecimento. A despossuir Deus, de algum modo,
grande acontecimento ignorado: uma metamorfose das rela- de um de seus atributos mais determinantes. A carne perma-
ções sexuais e conjugais; ao sair dessa metamorfose, a moral nece fora dessa queda. "O Verbo se fez carne", pode-se ler no
sexual pagã se encontra idêntica à futura moral cristã do ca- Evangelho de João (I, 14). A carne é assim pouco suspeita, já
samento", escreve Paul Veyne." que foi resgatada pelo próprio Jesus, que, no episódio da Santa
Ceia, assegura a vida eterna àqueles que comerem de sua car-
ne e beberem de seu sangue (o pão e o vinho).
"Nome dado aos imperadores romanos que sucederam os flavianos ou a dinastia Certamente há várias premissas de uma diabolização do
Flávia. São eles: Nerva (96-98), Trajano (98-117), Adriano (117-138), Antonino
Pio (138-161), Marco Aurélio (161-180) e Cômodo (180-193). (N. do T.)
sexo e da mulher em Paulo, provavelmente tributária dos tor-

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mentos de sua vida pessoal. "Se vivêsseis na carne, morreríeis" volúpias impudicas [...], mas investi-vos de Nosso Senhor Je-
(Romanos, VIII, 3-13) pois "é o espírito que vivifica" (VI, sus Cristo e não busqueis contentar a carne em sua avidez."
63), declara. A carne "não serve para nada", já que Deus co- Antes de sua conversão, Agostinho já havia pressentido que
locou à prova seu próprio filho ao lhe dar um corpo humano, "a lei do pecado estava em (seus) membros". Ei-lo conforta-
"demasiado humano", para retomar a fórmula de Nietzsche. do, assim como sua mãe, banhada em alegria por esse ho-
A condenação do "pecado da carne" é assim conduzida por mem novo que agora se aproxima dela e da Igreja. "O homem
uma hábil reviravolta ideológica. Paulo, levado por sua cren- novo" do cristianismo tomará assim o caminho de Agosti-
ça na proximidade do fim do mundo, trará uma nova pedra nho, longe do barulho das tavernas, do furor do desejo e dos
ao edifício doutrinal anti-sexual: "Eu vos digo, irmãos: o tem- tormentos da carne. Dessa forma, a condenação da luxúria
po é curto. Que a partir de agora aqueles que têm mulher (luxuria) será acompanhada freqüentem ente da condenação
vivam como se não a tivessem mais", declara em sua epístola da gula (gula) e do excesso de bebida e de alimentação (crapula,
aos coríntios (I Coríntios, VII, 29). gastrimargia) .
A fornicação, que aparece no Novo Testamento, a concu- A transformação do pecado original em pecado sexual é
piscência de que falam os Padres da Igreja e a luxúria que tornada possível por meio de um sistema medieval dominado
condensa todas as ofensas feitas a Deus no sistema dos "peca- pelo pensamento simbólico. Os textos da Bíblia, ricos e
dos capitais", estabelecidos entre os séculos V e XII, tornam- polivalentes, se prestam de bom grado a interpretações e de-
se pouco a pouco a tríade da reprovação sexual dos clérigos. formações de todos os gêneros. A interpretação tradicio-
Se São Paulo não faz mais do que esboçar essa grande nal afirma que Adão e Eva quiseram encontrar na maçã a
reviravolta, Santo Agostinho (354-430), testemunha e des- substância que lhes permitiria adquirir uma parte do saber
bravador da nova ética sexual do cristianismo na Antigüida- divino. Já que era mais fácil convencer o bom povo de que a
de tardia, lhe fornece sua legitimidade existencial e intelectual. ingestão da maçã decorria da copulação mais que do conhe-
O autor das Confissões e de A cidade de Deus é um con- cimento, a oscilação ideológica e interpretativa instalou-se
vertido, cuja história é bem conhecida. Após anos de prazer, sem grandes dificuldades. "Não lhes bastou delirar em relação
de errância e de transgressão na África romana do século IV, aos gregos, eles também o fizeram em relação aos próprios
entre Tagasta e "Cartago de Vênus", esse filho da piedosa Profetas. O que prova bem claramente que eles não viram a
Mônica (e de Patricius, não nos esqueçamos), esse jovem bol- divindade da Escritura", sublinha Espinosa a propósito des-
sista tornado um administrador arrivista se volta para a reli- ses oradores da Igreja que monopolizaram a religião de Cris-
gião cristã quando de uma experiência mística em um jardim to e "dos quais nenhum tinha o desejo de instruir o povo,
de Milão, onde, doente e torturado, ouve uma voz lhe dizer: mas de embriagá-lo de admiração, de repreender publicamente
"Tome, leia." O que ele lê é o livro do Apóstolo que escreve: os dissidentes, de ensinar apenas coisas novas, insólitas, pró-
"Não vivais nos festins, nos excessos de vinho, nem nas prias para encher o vulgo de espanto"." A influência de San-

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to Agostinho, sobretudo, será grande. Com a notável exce-


gem, à nossa semelhança", isto é, "homem e mulher" (Gênesis,
ção de Abelardo e de seus discípulos, os teólogos e os filóso-
1,26-27), os Padres e os clérigos preferem a versão da mode-
fos reconhecerão que o pecado original é ligado ao pecado
lagem divina de Eva a partir da costela de Adão (Gênesis, 11,
sexual, por intermédio da concupiscência.
21-24). Da criação dos corpos nasce, portanto, a desigualda-
Ao fim de uma longa caminhada, ao preço de ásperas lu-
de original da mulher. Uma parte da teologia medieval segue
tas ideológicas e de condicionamentos práticos, o sistema de
o passo de Agostinho, que faz remontar a submissão da mu-
controle corporal e sexual instala-se, portanto, a partir do
lher antes da Queda. O ser humano é portanto cindido: a
século XII. Uma prática minoritária estende-se à maioria dos
homens e das mulheres urbanos da Idade Média. E é a mu-
parte superior (a razão e o espírito) está do lado masculino ,a
parte inferior (o corpo, a carne), do lado feminino. As Con-
lher que irá pagar o tributo mais pesado por isso. Por muitos
fissões de Agostinho são a narrativa de uma conversão, por
e muitos anos.
meio da qual o futuro bispo de Hipona conta, igualmente,
como a mulher em geral - e a sua em particular - foi um
A mulher, subordinada
obstáculo à sua nova vida de homem da Igreja.
Oito séculos mais tarde, Tomás de Aquino (c. 1224-1274)
A derrota doutrinal do corpo parece, portanto, total." As-
se afastará em parte do caminho traçado por Agostinho, po-
sim, a subordinação da mulher possui uma raiz espiritual, mas
rém sem fazer com que a mulher entre no caminho da liber-
também corporal. ''A mulher é fraca", observa Hildegarde de
dade e da igualdade. Embebido do pensamento de Aristóteles
Bingen no século XII, "ela vê no homem aquilo que pode lhe
(384-322 a.Ci), para quem "a alma é a forma do corpo", To-
dar força, assim como a lua recebe sua força do sol. Razão
más de Aquino recusa e refuta o argumento dos dois níveis de
pela qual ela é submetida ao homem e deve sempre estar pron-
criação de Agostinho. Alma e corpo, homem e mulher foram
ta para servi-lo." Segunda e secundária, a mulher não é nem
criados ao mesmo tempo. Assim, masculino e feminino são ,
o equilíbrio nem a completude do homem. Em um mundo de
ambos, a sede da alma divina. Entretanto, o homem dá pro-
ordem e de homens necessariamente hierarquizado, "o ho-
vas de mais acuidade na razão. E sua semente é a única que,
mem está em cima, a mulher embaixo", escreve Christiane
durante a copulação, eterniza o gênero humano e recebe a
Klapisch-Zuber."
bênção divina. A imperfeição do corpo da mulher, presente
O corpus da interpretação dos textos bíblicos dos Padres
na obra de Aristóteles e na de seu leitor medieval Tomás de
da Igreja dos séculos IV e V (como Ambrósio, Jerônimo, João
Aquino, explica as raízes ideológicas da inferioridade femini-
Crisóstomo e Agostinho) é incansavelmente retomado e re-
na, que, de original, se torna natural e corporal. Tomás de
petido na Idade Média. Assim, a primeira versão da Criação
Aquino, entretanto, mantém uma igualdade teórica entre o
presente na Bíblia é esquecida em proveito da segunda, mais
homem e a mulher, observando que, se Deus quisesse fazer
desfavorável à mulher. Ao Deus criou "o homem à nossa ima-
da mulher um ser superior ao homem, ele a teria criado de

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sua cabeça e, se decidisse fazer dela um ser inferior, ele a teria didamente", escreve Georges Duby. "Pois todos os discursos
criado de seus pés. Ora, ele a criou do meio de seu corpo para que chegam até mim e sobre os quais me informo são feitos
ressaltar sua igualdade. Também é preciso destacar que a re- por homens, convencidos da superioridade de seu sexo. É
gulamentação do casamento pela Igreja irá exigir o consenti- apenas a eles que ouço. No entanto, eu os escuto falando
mento mútuo dos cônjuges e, embora essa prescrição nem antes de tudo de seu desejo e, por conseqüência, das mulhe-
sempre tenha sido respeitada, ela marca um avanço no esta- res. Eles têm medo delas e, para se afirmarem, desprezam-
tuto da mulher. Do mesmo modo, se é possível afirmar que o nas." Boa esposa e boa mãe, as homenagens que o homem
grande impulso do culto da Virgem tem repercussões sobre rende à mulher assemelham-se, por vezes, a desgraças, se le-
uma promoção da mulher, a exaltação de uma figura femini- varmos em conta o vocabulário corrente entre os operários e
na divina só pode reforçar uma certa dignidade da mulher, os artesãos do século Xv, que falam de "cavalgar", "justar",
em particular da mãe e, através de Santa Ana, da avó. "lavrar" ou "roissier" (bater e espancar) as mulheres. "O ho-
A influência de Aristóteles sobre os teólogos da Idade mem se dirige à mulher como se dirige à latrina: para satisfa-
Média não traz benefício à condição feminina. Assim, depois zer uma necessidade"," resume Jacques Rossiaud.
dele, a mulher é considerada "um macho defeituoso". Essa Ao mesmo tempo, os confessores tentam refrear as
fraqueza psíquica tem "efeitos diretos sobre seu entendimen- pulsões masculinas por meio das proibições, mas também
to e sua vontade", ela "explica a incontinência que marca seu controlando a prostituição nos bordéis e nos banhos públi-
comportamento; ela influi em sua alma e em sua capacidade cos, esses lugares de exutório. As prostitutas, cuja "condi-
de elevar-se à compreensão do divino", escreve Christiane ção é vergonhosa", e "não aquilo que elas obtêm", escreve
Klapisch-Zuber. O homem será, por conseqüência, o guia Tomás de Aquino, encontram-se, pois, em grandes ou pe-
dessa pecadora. E as mulheres, que não possuíam voz na his- quenos bordéis comunais ou privados, banhos públicos e
tória, vão oscilar entre "Eva e Maria, pecadora e redentora, outros lupanares, vindas dos arredores da cidade, onde exer-
megera conjugal e dama cortês". 19 cem "o mais antigo ofício do mundo", freqüentemente após
A mulher irá pagar em sua carne o passe de mágica dos terem sido violadas por grupos de jovens que buscam, por
teólogos, que transformaram o pecado original em pecado sua vez, exercer e aguçar sua virilidade. Relegadas, mas igual-
sexual. Pálido reflexo dos homens, a ponto de Tomás de mente reguladoras da sociedade, as prostitutas vivem em
Aquino, que às vezes segue o pensamento comum, dizer que seus corpos as tensões da sociedade medieval.
"a imagem de Deus se verifica no homem de uma maneira
que não se verifica na mulher", ela é subtraída até mesmo em Estigmas e flagelação
sua natureza biológica, já que a incultura científica da época
ignora a existência da ovulação, atribuindo a fecundação ape- Se a dor (dolor) das mulheres depende da teologia e da Bíblia,
nas ao sexo masculino. "Essa Idade Média é masculina, deci- o dolorismo conhecerá, por sua identificação com o Cristo

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JACQUES LE GOFF E NICOLAS TRUONG UMA HISTÓRIA DO CORPO NA IDADE MÉDIA

sofredor, uma breve e relativa expansão na Idade Média, por cantos sagrados. Essas manifestações eram acompanhadas de
meio dos estigmas e das flagelações. um rito penitencial por excelência, a autoflagelação. Também
Os estigmas são as marcas das feridas de Cristo durante a aconteciam como movimentos pela paz. Esses rituais produ-
Paixão. São Paulo aplica o termo às marcas físicas dos golpes ziam-se sobretudo em períodos de crise social e religiosa, em
que sofreu por amor ao Senhor (Epístola aos gálatas, 6, 17), particular sob a influência dos movimentos milenaristas, espe-
e São Jerônimo lhes atribui um sentido ascético. Eles darão cialmente, no século XIII, aqueles decorrentes das teorias de
lugar, no século XIII, a um fenômeno novo, voluntário ou Gioacchino da Flore. A primeira grande crise de flagelação
involuntário. Uma das primeiras estigmatizações conhecidas aconteceu em 1260 em Perugia e expandiu-se em direção ao
é a da beguina Maria d'Oignies (morta em 1213). A mais norte da Itália e para além dos Alpes, na Provence, até a
célebre, que causou sensação e se inscreveu espetacularmente Alsácia, Alemanha, Hungria, Boêmia e Polônia. Uma outra
na história religiosa, é a de Francisco de Assis, ocorrida em grande crise ocorreu em 1349, provocada pela peste negra,
1224, dois anos antes de sua morte. Dos estigmas da beguina em especial na Alemanha e nos Países Baixos. Os flagelantes
Elisabete de Spalbeck (morta em 1270) jorrava sangue às sex- se entregavam a graves atos de violência, com freqüência
tas-feiras e ela trazia na cabeça marcas de picadas de espi- anticlericais e anti-semitas. A flagelação, que não havia se in-
nhos. Os estigmas de Santa Catarina de Sena (morta em 1380), troduzido entre as práticas ascéticas monásticas do Ocidente,
recebidos durante um êxtase, em 1375, eram invisíveis e se mostra por meio de seu relativo fracasso que o exemplo do
manifestavam por meio de violentas dores internas. Os estig- Cristo sofrendo não resultava em uma martirização impor-
mas são um aspecto do movimento crescente de conformida- tante do corpo. Este permanecia objeto de respeito no Oci-
de psicológica com o Cristo sofredor que tende, a partir do dente, senão de outros prazeres, como o sadomasoquismo.
século XIII, a se tornar um selo de santidade, um signo da
efusão do Espírito Santo. Mas surgem apenas em um peque- o magro e o gordo
no número e têm uma influência reduzida sobre os critérios
de santidade, que permanecem sobretudo no nível da devo- A grande recusa do corpo não é, entretanto, redutível à sexua-
ção e do comportamento e que se encontram em especial entre lidade ou ao sofrimento voluntário de uma minoria atuante
as mulheres. de religiosos. Vimos que a luxúria passa a ser cada vez mais
Tendo também como pano de fundo a invocação da Paixão associada àgula, termo latino cuja tradução habitual, em fran-
de Cristo, a flagelação na Idade Média quase sempre encontra cês "gourmandise", não é inteiramente satisfatória, já que as
hostilidade por parte da Igreja. Manifestações leigas e popula- recomendações da Igreja se dirigem tanto à boca" quanto aos
res, os movimentos de flagelação eram uma espécie de peregri-
nação executada carregando-se uma cruz ou um estandarte, "Sentldo figurado de goela, que é o significado primário de gula, em latim.
pés descalços, o corpo semidesnudo, em meio a aclamações e (N. do T.)

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