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benfeitores da Igreja. O mesmo aconteceu nos séculos


Os temas macabros do século XV não apresentavam ne-
seguintes: nem os macabros do século XV-XVI nem os
nhum traço de erotismo. Eis que, desde o fim do século
barrocos do século XVII, autores de enfáticas pompas fú-
nebres, procuraram retomar a posição tomada no século
XIII de encerrar o corpo em um caixão e ocultá-Ia aos
olhares. Não existe tanta contradição quanto se poderia
pensar entre a recusa em ver o cadáver real e a vontade
de representar o vivo com os traços deste mesmo cadáver,
pois não é o cadáver que se reconstitui, e sim o vivo com
o auxílio dos traços do morto; enfim, pede-se à arte que
substitua a realidade bruta.

3. Eros e Tânatos do século


XVI ao século XVIII

Completemos agora nosso conjunto com os elementos


posteriores do século XV Em primeiro lugar, digamos que
um fato importante surge imediatamente: essa evocação da
morte realista e verdadeira, essa presença do próprio cadá-
ver que a Idade Média, mesmo em seu outono macabro,
não tolerou, será buscada com deleite no período seguinte,
do século XVI ao século XVIII. Não será buscada nos fu-
nerais, nem nos túmulos. Estes seguiram uma evolução no
sentido de um despojamento e um "esvaziamento" dota-
dos de um outro sentido, que aqui deixaremos de lado. Ela
se exprimiu mais acentuadamente no mundo das fantasias,
das "ilusões romanescas", como dizia Huizinga. A morte
tornou-se neste período - e somente neste período e
não no século XV - um objeto de fascínio, sendo os
(;aleria Ufizzi - Firenze. 05 quatro cavaleiros do Apocalipsc - Dürer
documentos a esse respeito muito numerosos e signifi-
cativos. Aqui poderei apenas caracterizá-Ias brevemente;
reduzem-se a duas grandes categorias, relacionadas inclu-
x V e começo do XVI, tornam-se carregadas de sentidos
eróticos. A magreza esquelética do cavalo do cavaleiro do
sive uma com a outra - a do erotismo macabro e a do
Apocalipse de Dürer, que é a Morte, deixou intacta sua
mórbido.
capacidade genital, de tal modo que não nos é permitido
Do século XVI ao XVIII, operou-se uma nova apro-
Ignorá-Ia. A Morte não se contenta em tocar discretamen-
ximação, em nossa cultura ocidental, entre Tânatos e Eros.
(l' o vivo, como nas danças macabras, ela o viola. A Morte
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de 13aldung Grien arrebata uma jovem com os afagos mais A segunda categoria de temas corresponde ao que hoje
provocantes. O teatro barroco rnultiplica as cenas de amor entendemos por mórbido. Chamamos mórbido ao gosto
nos cemirêrios c nos túmulos. Encontraremos algumas mais ou menos perverso, mas cuja perversidade não é de-
delas, analisadas em La littératurc de I'âge baroquc, de Jean clarada ou consciente, pelo espetáculo físico da morte e
Rousset". Mas bastará lembrar a mais ilustre e conhecida do sofrimento. Do século XVI ao XVIII, o corpo morto
por todos, o amor e a morte de Romeu e Julieta no tú- e nu tornou-se ao mesmo tempo objeto de curiosidade
mulo dos Capuleto. científica e de deleite mórbido. É difícil separar a ciência
No século XVIII contam-se histórias bastante seme- fria, a arte sublimada (o nu casto) e a morbidez. O cadáver
lhantes de um jovem monge que dormiu com a bela mor- é o terna complacente das lições de anatomia, objeto das
ta que velava e que, algumas vezes, estava apenas em estado pesquisas sobre as cores do início da decomposição, que
de morte aparente. Também essa união macabra arrisca-se não são horríveis ou repugnantes e sim verdes sutis e pre-
a ter sérias conscquências. ciosos para Rubens, Poussin e tantos outros.
Os exemplos que precedem pertencem ao mundo
das coisas então chamadas de "galantes". Mas o erotismo
penetra mesmo na arte religiosa, à revelia dos moralis-
tas rigorosos que eram os contrarreformadores. As duas
santas romanas de Bernini, santa Teresa e santa Ludovica
Albertoni, são representadas no momento em que estão
enlevadas pela união mística com Deus, mas seu êxtase
mortal tem toda a aparência deleitada e cruel da excitação
amorosa. Desde De Brosses, não há mais engano possível
a este respeito, por mais iludíveis que fossem, realmente,
Bernini c seus clientes ponrificais".
É preciso relacionar a esses temas erótico-macabros as
cenas de violência e de tortura que a Reforma de Trento
multiplicou com uma complacência de que os contempo-
râneos não suspeitariam, nus cuja ambiguidade hoje nos
parece flagrante, informados como estamos pela psicolo- British Museum - Londres. A lição de anatomia
gia das profundezas: são Bartolorneu escorchado vivo por do dr. Tulp, 1(,32, Rcmbrandt
carrascos atléticos e nus, santa Ágata e as virgens mártires,
das quais se "dilaceram as tetas pendentes". A literatura Sobre os túmulos onde subsistem os corpos nus, o cadá-
edificante do bom bispo Camus não hesita em colecionar VlT não é o primeiro estado da decomposição: é a imagem
mortes violentas e suplícios apavorantes dos quais - as- ,LI beleza. Os belos nus de Henrique II e de Catarina de
sim espero - procura tirar lições morais. Um dos livros Mcdicis, obra de Germain Pilon, substituíram os cadáveres
deste autor, intitulado Spectacles d'horreur, é uma coletânea ,knJ\l1postos corroídos pelos vermes.
de tenebrosas narrativas". Estes poucos exemplos bastarão As estampas de anatomia não eram reservadas apenas
para caracterizar o erotismo macabro, .1 clientela médica; eram também procuradas pelos
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amantes de belos livros. Da mesma maneira, a dissecação


era praticada fora dos anfiteatros; amadores tinham cabinas
de dissecação, onde colecionavam homens sob a forma de
veias e músculos. O Marquês de Sade conta, em um livro
totalmente decente inspirado em um episódio corriqueiro,
como a marquesa de Ganges, sequestrada em um castelo,
consegue evadir-se de seu quarto durante a noite, caindo
por acaso sobre um cadáver aberto. Na época de Diderot
Baudelaire
reclamava-se na grande Encyclopédie, de os cadáveres dis-
poníveis serem açambarcados pelos ricos amadores e não
dúvida temível, mas suficientemente inseparável do univer-
sobrarem para o uso médico.
so quotidiano, para não ser familiar nem aceita. Ainda que
Esse fascínio pelo corpo morto, tão chocante no século
familiar e aceita na prática diária da vida, deixou de sê-Io
XVI e depois na era barroca, foi mais discreto no século
110 mundo do imaginário, onde se preparavam as grandes
XVII; no século XVIII se exprime com a insistência de
mudanças da sensibilidade.
uma obsessão. Os cadáveres se tornam objeto de estra-
Como demonstrou um de nossos escritores malditos,
nhas manipulações. No Escorial, os cadáveres dos infan-
(;corge Bataille", a literatura erótica do século XVIII - à
tes de Espanha, mas também os dos mortos comuns no
qual acrescentaria a do século XVII - aproximou duas
convento dos Capuchinhos de Toulouse, são deslocados
t r.msgressôes da vida regular e ordenada da sociedade: o
para serem secados, mumificados e conservados. Isso faz
orgasmo e a morte.
lembrar, apesar da enorme diferença, o retorno dos mortos
a Madagáscar. Em Toulouse, cadáveres retirados dos cai-
LA DÉBAUCHE ET LA MORT SONT DEUX AlMABLES FILLES
xões permaneciam um certo tempo no primeiro andar do
ET LA BIERE ET L'ALCOVE EN BLASPHEMES FÉCONDES
campanário e um narrador complacente conta como viu
DE TERRIBLES PLAlSIRS ET D'AFFREUSES DOUCEURS.*
monges descendo com eles nas costas. Assim mumificados,
BAUDELAIRE
os mortos podiam ser expostos em cemitérios decorados
em estilo rococó, mas com ossos. Nestes cemitérios, lus-
A nova sensibilidade erótica do século XVIII e do co-
tres e enfeites eram compostos com pequenos ossos. Ainda
meço do século XIX, de que Mário Praz foi o historia-
se podem ver tais espetáculos no cemitério da igreja dos
dor, retirou a morte da vida habitual e lhe reconheceu
Capuchinhos e em santa Maria della Morte em Roma, ou
um novo papel no domínio do imaginário, papel esse que
nas catacumbas de Palermo.
persistirá através da literatura romântica até o surrealis-
Após esse rápido exame do conjunto de elementos ma-
JJJO. Este deslocamento para o imaginário introduziu nas
cabros do período moderno, podemos nos perguntar o que
teria pensado um Freud um século antes. Mas na realidade,
esse Freud existiu: chama-se Marquês de Sade, e a simples . /\ orgia e a morte' são duas jovens adoráveis/ E a mortalha c <1 al-
menção de seu nome basta para mostrar até onde nos levou , ,,\';] em blasfêmias fecu nelas/ Vos oferecem sucessivamente, corno
o encadeamento de fatos erótico-macabros e mórbidos. A I" '.l' irmãs.,' Terríveis prazeres e arrozes doçuras. (Trad. literal de
morte deixou de ser considerada como um evento sem "I cs 1)eux bouncs sceurs", in Lcs Flcurs du mal. eXII, Paris. Cl,
( l",ilique-Le Livre de Pochc, Ed. Gallimard, 1974 ---- N. 1'.)
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atravessa a época (mais que o medo, diria eu, a consciência
mentalidades uma distância que anteriormente não existia do fracasso da vida), o sentimento da desilusão e da de-
entre a morte e a vida quotidiana. sesperança.,"11 Para compreender esta noção de desilusão,
de fracasso, é preciso distanciarmo-nos, deixar de lado por
um momento os documentos do passado e a problemática
4. Urna significação do macabro dos historiadores e interrogarmo-nos, homens do século
dos séculos XIV e XV xx. Creio que todo homem de hoje experimente, em
um dado momento de sua vida, a sensação mais ou menos
Agora que percorremos a longa série dos elementos ma- forte, mais ou menos reconhecida ou recalcada de fracasso
cabros do século XII ao XVIII, podemos voltar a nosso - fracasso familiar, fracasso profissional, etc. Cada um de
ponto de partida, ao século XV e, consequentemente, às nós alimentou desde sua juventude ambições que um dia
análises de Huizinga. Parece que o macabro do século Xv, percebe que jamais realizará. Falhou na vida. Esta desco-
situado no interior de um período bem longo, surge-nos berta, por vezes lenta mas frequentemente brutal é uma
sob uma luz um pouco diferente daquela da tradição his- terrível prova que nem sempre será superada. A d~silusão
toriográfica. Em primeiro lugar, após o que dissemos dos pode levar-nos ao alcoolismo, ao suicídio. O momento
séculos XII e XIII, entendemos que o macabro não é a crítico em geral chega por volta dos quarenta anos, às vezes
expressão de uma experiência particularmente forte da mais tarde e algumas vezes, infelizmente, mais cedo. Mas
morte, em uma época de grande mortalidade e de grande í: sempre anterior aos grandes enfraquecimentos fisiológi-
crise econômica. Sem dúvida a Igreja e sobretudo as ordens cos da idade, e à morte. O homem de hoje se vê um dia
mendicantes valeram-se dos temas macabros, populariza- como um fracassado. Nunca como um morto. Este sen-
dos por outras razões que iremos observar, e os deturparam timento de fracasso não é um traço permanente da con-
com um fIm pastoral, a fim de provocar o medo da danação. dição humana. Mesmo em nossas sociedades industriais, é
Medo da danação, e não medo da morte, como diz Le reservado aos homens - refiro-me ao sexo masculino -
GofPo. Ainda que essas imagens da morte e da decom- as mulheres ainda não o conhecem. Era desconhecido d;
posição tenham sido utilizadas para despertar este medo, primeira fase da Idade Média. É incontestável seu surgi-
originalmente elas lhe são estranhas - no fundo, não signi- I nento nas mentalidades no decorrer da segunda fase da
ficavam nem o medo da morte nem o do Além. Eram antes Idade Média, a partir do século XII, primeiro timidamen-
o signo de um amor apaixonado pela vida e da dolorosa te para depois se impor até à obsessão no mundo ávido de
consciência de sua fragilidade, no limiar do Renascimento riquezas e honrarias do século XIV ao XV
- onde reencontramos uma das abordagens de Tenenti. . Mas este sentimento se exprimia na época de modo
A meu ver, os temas macabros do século XV exprimem diferente de hoje em dia. O homem de hoje não associa
antes de tudo o sentimento agudo do fracasso individual. sua amargura à sua morte. O homem do fim da Idade
Huizinga captou-o bem quando escreve: "Será realmen- Média, ao contrário, identificava sua impotência à sua
te devoto o pensamento que tão fortemente se apega ao l~estrUlção fisica, à sua morte. Via-se ao mesmo tempo
lado terreno da morte? Não seria antes uma reação a uma fracassado e morto, fracassado porque mortal e portador
excessiva sensualidade?" Excessiva sensualidade, ou antes de morte. As imagens da decomposição e da doença tra-
esse amor apaixonado pela vida de que eu falava há pou- duzem com convicção uma aproximação nova entre as
co, referindo-me a Tenenti. "Será o amor pela vida que

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