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GINZBURG, Carlo. História Noturna: decifrando o sabá.

São Paulo: Companhia


das Letras, 1991.
Fichamento capítulo 1: Leprosos, judeus e muçulmanos.

No presente capítulo, o autor busca analisar algumas crônicas que circulavam


pelo território da atual França, abrangendo os três grupos de marginalizados
envolvidos num suposto complô. A narração de Bernard Gui nos diz: “Os
leprosos, “doentes no corpo e na alma”, haviam espalhado pós envenenados
nas fontes, nos poços e nos rios, para transmitir a lepra aos sãos e fazê-los
adoecer ou morrer. (...) aspiravam ao domínio das cidades e dos campos; já
haviam dividido o poder e os cargos de condes e barões. ” P. 43. Todavia,
muitos foram descobertos e queimados até pela própria população. O édito do
rei Filipe V, o Longo, realizado em Poitiers em 21 de junho de 1321 dizia que
os considerados inocentes seriam prudentemente reclusos para que não se
reproduzissem, separando-se os gêneros. “Pela primeira vez na história da
Europa, estabelecia-se um programa de reclusão tão maciço. Nos séculos
seguintes, aos leprosos se seguiriam outras personagens: loucos, pobres,
criminosos, judeus. Mas os leprosos abriram o caminho. ” P. 45.

Numa outra ocasião, via-se a crônica com uma versão diferente, com novos
detalhes sobre o episódio: “Dizia-se que nesse crime os judeus seriam
cúmplices dos leprosos; por isso, muitos deles foram queimados junto com os
leprosos”. P 45. E uma terceira versão é apresentada por cronistas com mais
um personagem. Esta era proveniente de uma confissão feita por um chefe de
leprosos, o qual “declarara ter sido corrompido com dinheiro por um judeu, o
qual lhe entregara veneno para ser espalhado nas fontes e nos poços. Os
ingredientes eram sangue humano, urina, três ervas indefinidas, hóstia
consagrada – tudo desidratado, reduzido a pó e colocado em saquinhos
providos de pesos para fazê-los ir mais facilmente ao fundo. ” P. 46. A
responsabilidade aqui, era atribuída ao rei de Granada, o qual por não
conseguir vencer os cristãos, decidiram por um complô ao oferecer dinheiro
para que os judeus cometessem o ato. Estes, por se considerarem suspeitos,
reúnem chefes de leprosários, e os convence à agir contra aqueles que
permaneciam os desprezando. “Mas a conjuração fora descoberta; os leprosos
culpados, queimados; os outros, presos segundo as prescrições do édito real”
P. 46.

O autor busca rever a cronologia e a geografia para entender a dissidência


entre as três versões dos fatos.

Em Carcassone, por volta de 1320, os cônsules já solicitavam a expulsão dos


judeus, os quais praticavam empréstimos usurários e prostituíam e estupravam
as mulheres dos cristãos e também sugeriam que o rei segregasse os leprosos
sob a denúncia de que sua ideia era de espalhar sua doença. Por trás de tais
lamentações, é percebido o desejo de eliminar uma concorrência pois “livrar-se
definitivamente do monopólio do crédito exercido pelos judeus; e administrar as
polpudas rendas de que dispunham os leprosários”. P. 48. A população da
Aquitânia também demonstrou apoio com o sentimento antijudaico e em várias
partes da Europa eram associados à práticas de conspirações, com os quais
os leprosos também eram tidos como cúmplices sendo aqueles que portavam
as vestes de envenenadores.

O autor traz a perspectiva de que a conexão entre esses grupos era antiga. E
para as pessoas comuns a tendência era relegar os dois grupos às margens da
sociedade entre os séculos XIII e XIV. “O Concílio Lateranense de 1215,
prescrevera aos judeus usar sobre as roupas um círculo, em tons de amarelo,
vermelho ou verde. Os leprosos deviam usar roupas especiais: uma capa
cinzenta ou (mais raro) preta; um boné e um capuz escarlates; por vezes, a
matraca de madeira (...) O Concílio de Nogaret (1290) decretou que levassem
um distintivo vermelho no peito ou nas costas” p. 49. Tais distinções mostram
até que ponto o estigma comum da infâmia atingia os dois grupos. “O estigma
costurado nas roupas exprimia um estranhamento profundo, sobretudo físico.
Os leprosos são fétidos, difundem o contágio (...) os leprosos são objeto de
horror porque a doença, entendida como símbolo carnal de pecado, d

esfigura-lhe os traços, quase dissolvendo sua aparência humana.” P. 50. Deste


modo, estavam ao mesmo tempo no interior e exterior da sociedade cristã.
Mais tarde, a marginalização, daria lugar à segregação.
A própria acusação fora lançada numa marcha de oriente para ocidente e sua
datação na Semana Santa, parecia um convite à condenação dos judeus. Ao
contrário, porém, a repressão caíra sobre os doentes. “De Carcassone, a
notícia do iminente complô dos leprosos se difundira. Por toda a parte, os
culpados eram descobertos e punidos. Suas confissões alimentavam a
perseguição. A notícia queimava como uma mecha, dominando a França até
chegar ao rei. ” P. 51. MAPA.

Também autoridades clericais moviam-se nas investigações. Os relatos da


confissão de Guillaume Agassa, responsável pelo leprosário de Lestang,
começam com este dizendo que leprosos iam a Toulouse para conseguir os
venenos. Semanas depois, as confissões possuem maior detalhamento.
“Espontaneamente, e não por ter sido ameaçado de tortura”, segundo as
palavras do tabelião. P. 53. Ele dizia que “os chefes dos leprosários de toda a
cristandade, deveriam induzir os doentes a administrar os venenos, encantos e
pós maléficos aos cristãos sadios, de modo a matá-los todos ou transmitir-lhe a
lepra. Assim, os doentes e seus chefes teriam o governo e a administração,
quem sabe até a propriedade das terras dos sãos. Para obter tudo isso,
deveriam aceitar o rei de Granada como protetor e defensor”. P. 53. Aqui, até a
indicação dos locais fora relatada, sendo que no primeiro interrogatório Agassa
dizia não ter participado de tal ato. Noutro interrogatório, mais detalhes: os
chefes dos leprosários deveriam negar a fé em Cristo e sua lei, cuspir e pisar
nas hóstias profanadas e na cruz. Tal confissão abria espaço para que a causa
passasse ao tribunal de Inquisição.

Ginzburg nos diz: “Nesse processo, é claro que a tortura e as ameaças tiveram
peso decisivo. Agassa foi submetido à tortura (...) para convencê-lo a fazer tais
confissões, os juízes provavelmente se comprometeram a salvar-lhe a vida. (...)
no curso do processo, muda-se a versão de Agassa para que coincida aos
poucos com a dos juízes. ” P. 55. Neste relato, de Pamiers, em junho de 1321,
não há menção da participação de judeus, tal como no édito promulgado pelo
rei em Poitiers.

As autoridades tiveram pressa em arrancar as provas da culpa dos judeus,


mesmo o rei tendo recebido uma carta com uma confissão de um dos chefes
dos leprosos que os incluía no ocorrido. O autor traz tal explicação baseada no
fato de que num momento anterior, “em 14 ou 15 de junho, as comunidades
judaicas do reino da França haviam sido condenadas a pagar, pelos crimes de
usuras cometidos, uma multa exorbitante: 150 mil livres tournois. Os
representantes das comunidades cederam às exigências de dinheiro feitas por
Filipe V.” P. 57. Apesar de não haverem provas documentais diretas, existem
vestígios indiretos.

Uma carta enviada ao papa, falava sobre o que havia sido encontrado na casa
de um judeu chamado Bananias. Este, escrevia aos sarracenos declarando sua
sujeição e obediência nas propostas feitas pelo rei de Jerusalém que afirmava
que através de milagres, como a aparição de Enoque e Elias, converteram-se
ao Deus hebraico. E aos judeus ”seriam restituídas Jerusalém, Jericó e Ay; em
troca, porém, os judeus deveriam entregar aos sarracenos o reino da França e
a ilustre cidade de Paris. ” P. 58. Bananias, pois, continua dizendo: “Nós
judeus, concebemos um estratagema muito astuto: nos poços, nas fontes, nas
cisternas e nos rios, derramar pós confeccionados com ervas amargas e
sangue de répteis venenosos, para exterminar os cristãos, fazendo-nos ajudar
nessa empreitada pelos leprosos, que havíamos corrompido com ingentes
somas de dinheiro” P. 58.

O calendário hebraico marcava o ano de 5081, já a carta de Bananias fala no


ano 6294. Seria este um descuido ou um erro inserido propositalmente pelos
judeus que foram forçados a escrever tal carta para que os correligionários
tratassem o documento como falso?

Felipe de Valois, então conde de Anjous e posteriormente rei Filipe VI da


França, fora quem entregou a carta ao papa e recebeu a autorização papal de
partir para a cruzada. Devido ao avanço muçulmano o papa não mais se
mostrava indiferente às lutas pela terra. “Daí, possivelmente, a decisão não só
de avalizar, mas também de difundir um documento que provava como os
muçulmanos, com a cumplicidade dos judeus, visavam até mesmo ao trono da
França. Em relação às comunidades judaicas, João XXII manifestara
benevolência; mas a prova da cumplicidade dos judeus com os leprosos, talvez
lhe tenha parecido irrefutável”. P. 59.

A carta de Bananias, diferenciava-se da confissão feita por Agassa um mês


antes. “A culpa dos leprosos era considerada um fato consumado, que foi
superado pela sequência dos eventos. Procurava-se alimentar outra onda de
perseguições contra os judeus, dirigindo-se ao papa para encobrir as
hesitações do rei”. P. 60.

Outras provas da participação dos judeus surgiram em duas cartas que o autor
nos diz terem sido escritas pela mesma mão num pergaminho. Uma do rei de
Granada, a outra do rei de Túnis. Ambas, tratavam com os judeus acerca do
complô. O possível objetivo destas, era chegar ao rei Filipe V para que se
posicionasse contra os judeus. Mais tarde, ele diria “ter feito capturar todos os
judeus de nosso reino”. Sendo preciso “interrogá-los para descobrir os
responsáveis pelo malefício e puni-los conforme a lei. ” P. 61.

Eram alcançados então os objetivos: segregação dos leprosos e expulsão dos


judeus. Cada um fizera sua parte, fosse o rei, o papa, os inquisidores, os
juízes, as populações. “A onda de violências contra os leprosos espalhou-se
pelo Sul e Sudoeste e uma ramificação à Leste. Enquanto, contra os judeus,
atingia o Norte e o Nordeste”. P. 63.

“A rapidez com que a repressão se difundiu, do epicentro em Carcassone,


numa época em que as notícias viajavam a pé, ou no máximo a cavalo,
revelam a intervenção de ações deliberadas e coordenadas. ” P. 63. O autor
diz que é absurdo pensar que todos agiam de má fé e que é possível que
mesmo as torturas fossem feitas de boa-fé, tendo os torturadores convicção de
uma verdade, da culpa de leprosos e judeus.

“As autoridades e os juízes que pressionam para que a acusação recaia sobre
aqueles que já são candidatos a bode expiatório (...) parece previsível. A
versão das autoridades pôde difundir-se e afirmar-se porque todos os estratos
da população estavam prontos a aceitar ou até a antecipar a culpa de leprosos
e judeus. ” P. 64.
Acusações semelhantes já haviam ocorrido anos antes sempre com um chefe
inspirado pelo demônio que entravam em contato com grupos marginais e “em
todas essas narrativas, entrevê-se o temor suscitado pelo mundo desconhecido
e ameaçador que existia além dos limites da cristandade. ” P. 65. O aqui
narrado, porém, teve sua potencialidade exacerbada, de modo que os guetos,
as marcas da infâmia, o medo do contágio não era suficiente.

Os leprosos de da diocese de Limoges, foram marcados no pescoço com ferro


em brasa e encerrados no leprosário, porém foram liberados pouco depois. Ou
seja, em certo momento, foram declarados inocentes e eram ouvidos pelo papa
para reaver seus bens. Para os judeus, ao contrário, tudo estava a ponto de
recomeçar.

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