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A ESCRAVATURA E OS JESUÍTAS NO BRASIL

COLONIAL
Prof. Dr. Herbert Wetzel, S. J.
PUC - Rio de Janeiro

Summary
Slavery and the Jesuits of Colonial Brasil

The author analyses what the Jesuits did and what they did
not do in benefit of the slaves in Colonial Brasil. Slavery
exists since unknown times. Man subdueing man is as old as
humankind itself. The slavery of the indians has been
introduced in Brasil right from the beginning of colonization.
The Jesuits have fought for the liberty of the indians against
the oppression of the settlers. They were not, however, against
ali kinds of slavery. They could not be, because, according to
the theological-moral structures of the time, it was possible to
be a good christian and a slave-holder at the sarne time.
It seems that the Jesuits have nol been so much engaged in
the liberty of the negroes. They only fought against the
cruelties intlicted to lhe negroes, thus requesting for them the
respect due to them as human persons, not so much caring for
their liberty.

I - Introdução: do homem pelo homem é tão


velha como o gênero humano. O
Escravo é a pessoa que per- aprisionamento em guerras era a
tence a outrem como coisa e em forma mais antiga e universal de
tudo depende da vontade deste escravidão, fazendo do vencido
outro. A palavra escravo vem do propriedade do vencedor. Por
termo alemão "slav" aplicado mais longe que remontemos na
aos povos eslavos capturados investigação histórica, encontra-
nas guerras germânicas. mos a escravidão de uma ou de
A escravatura existiu ,desde outra forma. Onde dois povos se
tempos imemoriais, e a sujeição encontram na face da terra, o
6

mais forte sobrepõe-se ao mais cravos à rebelião: "Vingai-vos,


fraco. (1) revoltai-vos". (6)
Já no principio do Gênesis Proclamando a fraternidade do
aparecem a dor e a escravidão: gênero humano, Cristo ensinará
"Em dor darás a luz a teus filhos, o mandamento do amor: "Amai-
e estarás sob o poder de teu vos uns aos outros" (7). Mas,
marido, e ele te dominará" (2). A nem o grito da revolta, nem o
irreverência de Cam mereceu de incitamento ao amor acabaram
Noé o castigo de servir como de imediato com a pecha da es-
escravo a seus irmãos. A seu cravidão.
filho Canaan coube a mesma sor- A escravatura era admitida pe-
te: "Bendito seja o Senhor Deus lo Direito Comum e fazia parte do
de Sem, e Canaan seja seu escra- "Jus Gentium". Mesmo teólogos
vo. Dilate Deus a Jafeth, e habite santos e de grande renome não
Jafeth nas tendas de Sem, e Ca- punham objeções contra o direito
naan seja seu escravo" (3). E de escravatura, contanto que
assim passou o labéu da escravi- houvesse um título que a justifi-
dão de geração em geração. casse, como por exemplo as
Há quatro mil anos, o gênio guerras "justas" que legitimavam
fecundo e justo de Hammurabi a escravidão, ou a "extrema ne-
tentou na Grande Babilônia "fa- cessidade" que permitia a al-
zer surgir justiça na terra, para guém se vender a si mesmo para
eliminar o mau e o perverso, para não perecer na miséria (8). Com a
que o forte não oprimisse o fra- bula "Dum diversas" de 18 de
co". (4) junho de 1452 concedia o papa
Quinze séculos mais tarde Moi- Nicolau V a Dom Afonso V, rei de
sés falará contra a escravidão, Portugal, o direito de conquistar
ameaçando com a ira do Senhor as terras dos infiéis e de reduzir
contra toda a forma de injustiça. seus habitantes à perpétua servi-
(5) Entre os antigos romanos, em dão (9). No tempo das cruzadas,
Cápua, Spártaco induzirá os es- por ironia da História e do Evan-

1 MAURfCIO GOULART, E,cravldão Africana 8 TOMAS DE AQUINO, Summa Theologiae,


no Brasil. (Das origens à extinção do tráfico). 2-2. q.57, 3 ad 2.: "Et ideo servitus pertinens
Livraria Martins Editora S.A., São Paulo, ad ius gentium est naturalis secundo modo,
1949, pg.31. sed non primo". M. VATTEL, Le Drolt des
2 Gen. 3,16 Gens ou Princlpes de la Lol Naturelle. Tomo
3 Gen. 9,26-27. II, liv. III, cap. VIII, §152: "Peut-on réduire en
4 HAMMURABI, O Código de Hammurabl. esclavage les prisonniers de guerre? Oui,
Introdução, tradução e comentários de E. dans les cas oít l'on est en droit deles tuer ... ".
Bouzon. Vozes, Petrópolis, 1976, pg.20. 9 PAIVA MANSO, Visconde de (Levi Maria
5 Deut. 15,12ss; Lev. 25,39ss. Jordão), Bullarlum Patronatm Portugaliae
6 MAURfCIO GOULART, A ea:ravidlo africa- Regum ln Eccleslis Africae, Aslae atque
na no Brasil o.e. 33. Oceanlae. Lisboa, 1868, vol. 1, pg. 22-23.
7 Jo. 15,17
7

gelho, escravizavam-se e morte aparatosa em terreiro pú-


vendiam-se milhares de "infiéis" blico para banquetes canibales-
nos lugares santos onde Cristo cos. Em 1549 dizia um chefe
pregava a doutrina do amor. O índio que desejava converter-se
grande historiador dos Papas, ao cristianismo, e que deixaria de
Ludwig von Pastor, falando do comer carne humana, mas que
interesse- de Paulo Ili em comba- haveria de continuar com as
ter a escravidão dos índios na guerras para cativar, vender e
América escreve: "Nem mesmo servir-se de seus prisioneiros
em Roma conseguiu o Papa fazer porque "estes desta terra sempre
triunfar os seus esforços contra a têm guerra uns com os outros"
escravidão. Como no passado, (13).
continuava ainda na Itália o cos- A maior fonte da escravatura
tume de escravizar os infiéis" índia eram os brancos que por
(10). Nos primeiros tempos do falta de braços para a lavoura
Brasil Colonial todos os povos da não se contentavam com as
Europa ainda se utilizavam do guerras inter-tribais. Eles mes-
escravo. "Rara seria então a casa mos iam combater os índios em
nobre de Portugal onde não hou- guerras que chamavam assaltos,
vesse escravos mouros apreendi- ou simplesmente, saltos,
dos nas guerras de Marrocos; e trazendo-os como escravos para
desde o tempo do Infante, como o serviço das fazendas. Nóbrega
na antiga Roma, os negros da percebeu logo de início que a
África eram objeto de comércio" maioria dos escravos provinham
(11 ). No censo de Lisboa em desta fonte ilegítima: "de maravi-
1551 os escravos eram 9,95% da lha se acha cá escravo que não
população" (12). fosse tomado de salto", escreve
II - Escravatura dos índios em 1549 (14). Já no Regimento
A escravidão dos índios de Tomé de Souza mandava EI-
introduziu-se no Brasil por força Rei abolir tais métodos. Quem
das circunstãncias. As tribos que ousasse saltear índios, deveria
se guerreavam vendiam seus pri- incorrer "em pena de morte natu-
sionei.ros em troca de quinquilha- ral e perdimento de toda SUil
rias, quando não os destinavam à fazenda" (15). Estas disposições

to LUDWIG VON PASTOR, GeschJchte der Monumenta Bratlllae, 1 Roma, 1956, pg. 111,
Pãpste, V, Gutblehte Papst Paul W (1534- Usaremos a sigla MBR 1
1549). Freiburg im Breisgau, 1909, pg. 721. 14 Carta de Nóbrega a Simão Rodrigues, Bahia,
l I CARLOS MALHEIRO DIAS, História da Co- 9de agosto de 1549 in MRB I 121.
lonlzaçAo Portuguesa do Brasil. vol. III, Por• 15 Regimento que levou Tomé de Sousa, 1°
to, 1924, pg. xrx. Governador Geral do Brasil, Almeirim, 1548,
12 ld. ib. Dezembro 17, publicado por Alberto Iria in
13 Carta de Nóbrega a Simão Rodrigues, Bahia, Anais do IV Coqreao de Hls&6r.la Nacional
10 de abril de 1549, in SERAFIM LEITE S.J., dell-28de abril de 1949, li (Rio 1959) 58.
8

legais pouco ou nada valiam no Nela declarava o Papa que os


longínquo Brasil, onde existia índios são seres racionais como
completo divórcio entre o direito os demais homens; que são ca-
e o fato: "Os reis dão leis, mas pazes de receber os sacramentos
não as cumprem os vice-reis", da Igreja, e por conseguinte, são
dizia mais tarde um jesuíta cea- livres e por natureza senhores de
rense (16). suas ações. Os índios e "todas as
O primeiro abastecimento de demais gentes que daqui em
escravos índios no Brasil deu-se diante vierem à notícia dos cris-
na região sul, costa e interior. O tãos, ainda que estejam fora da fé
governador do Paraguai, Domin- cristã, não estão privados, nem
gos de lrala "dava licença aos devem sê-lo, de sua liberdade,
moradores de S. Vicente para nem do domínio de seus bens, e
que pudessem tirar índios desta não devem ser reduzidos à servi-
terra, e assim levaram muitos" dão" (19).
(17). Felipe li de Espanha, então As determinações da bula bem
príncipe, escreveu a D. João Ili, como as recomendações da Co-
rei de Portugal, solicitando liber- roa eram sempre fielmente segui-
tar alguns escravos desses que das pelos jesuítas geralmente es-
se achavam nas terras de S. Vi- cudados pelo poder executivo. O
cente (18). As intervenções dos ouvidor Pero Borges informava a
missionários para restituir índios EI-Rei: "agora que a requerimen-
injustamente escravizados eram to destes padres apóstolos (os
tantas que se não podem contar. jesuítas) que cá andam, homens
Com esse mesmo fim, antes de a quem não falece nenhuma vir-
os jesuítas aportarem ao Brasil, tude, eu mando pôr em liberdade
viajou da América Espanhola o os gentios, que foram salteados,
dominicano Frei Domigos de Mi- e não tomados em guerra: estão
naja com destino a Roma. Obteve os gentios contentes e parece
de Paulo Ili a célebre bula "veri- que lhes vai a coisa de verdade, e
tas ipsa" de 2 de junho de 1537. mais porque vêem que se lhes faz

16 Carta do P. Jac. Coclaeus ao P. Oliva, do 18 De Valladolid, 26 de fevereiro de 1557, Sevi-


Ceará, 21 de Setembro de 1669, Bras. 3(2), lha, Arquivo de lndias, Buenos Aires, 1, livro
95-95v., in SERAFIM LEITE, S.J., História da 2v, f. 30, cfr. S. LEITE, Hlst. II 196.
Companhia de Jesus no Brasil. tomo. II,
Lisboa - Rio de Janeiro, 1938, pg. 195. Usare- 19 Bula de Paulo 111 "Veritas ipsa" in FRANCIS-
mos a sigla HlsL li CO JAVIER HERNANDEZ, SJ, Coleecl4n de
Bulas, Breves y otros documentos relativos a
17 Carta de Martim Gonzalez a Carlos V, de
la Iglesla de Ameriea y Fillplnas. Bruselas,
Assunção, 25 de junho de 1556, cf. Ulrich
vol l, Bruselas, 1879, pg. 102-I03.
Schmidel, Viage ai Rio de la Plata. Buenos
Aires, 1903, pg. 484.
9

justiça, e a fazem a eles, quando hia, pois não lhe parecia suficien-
alguns cristãos os agravam; e te o título com que foram adquiri-
parece-me que será causa para dos (21).DeTrento responde-lhe o
não haver aí guerras" (20). Padre Geral Diego Laynes: "O ter
Os jesuítas puseram-se decidi- escravos para tratar a fazenda de
damente a favor da liberdade dos gado ou pescar ou para o demais
índios, contra todas as aleivosias com que se há de manter seme-
e injustiças dos colonizadores. lhantes casas, não tenho por in-
Não eram, porém, como não o conveniente, contanto que sejam
podiam naquele tempo, contra justamente possuídos, o que digo
toda a forma de escravidão. Eles porque ouvi que alguns se fazem
mesmos tinham escravos, índios escravos injustamente" (22).
e negros, para seus colégios e O próprio Padre Nóbrega via
fazendas. No engenho de Sergi- na escravatura um meio necessá-
pe do Conde no recôncavo baia- rio para fazer prosperar o Brasil.
no, herança que lhes coube de Em carta de 8 de maio de 1558
Mem de Sá, possuíam os jesuítas lembrava ao Superior Provincial
259 escravos, sendo os da terra de Lisboa Miguel de Torres que
95 homens e 84 mulheres. Os seria conveniente mandar ho-
mesmos engenhos de Mem de Sá mens ricos, o que "seria melhor
contavam no tempo da expulsão que mandar povoadores pobres,
dos jesuítas em 1759 nada menos como vieram alguns e por não
que 698 escravos. trazerem com que marcassem
um escravo com que começas-
Todos admitiam a escravatura
quando houvesse motivos que a sem sua vida não se puderam
justificassem como eram por manter e assim foram forçados a
exemplo os casos de prisioneiros se tornar ou morrerem de bi-
tomados em guerras "justas", ou chos" (23). Para manter o Colé-
quando alguém se vendia a si gio da Bahia propunha que "a
mesmo por motivo de extrema melhor coisa que se podia dar a
necessidade, ou ainda quando os este Colégio seria duas dúzias de
pais vendiam seus filhos menores escravos" (24).
de 18 anos. Em 1554 Nôbrega Na estrutura teológico-moral
punha em dúvida a legitimidade de então era possível ser bom
dos escravos do Colégio da Ba- cristão e escravocrata ao mesmo

20 Carta de Pero Borges a EJ-Rei, Porto Seguro, 22 Carta do P. Diego Laynes ao P. Manuel da
7 de fev. 1550, publ. por Pedro de Azevedo in Nóbrega, Trento, 16 de dezembro de 1562, in
Rev. deHlstdrla.13 (Lisboa 1915) pg. 73. MBR III 514.
21 Carta do P. Luis da Grã ao P. Diego Mirón, 23 Carta de Nóbrega ao P. Miguel de Torres,
Bahia, 27 de dezembro de 1554, in MBR li Bahia, 8 de maio de 1558, in MBR II 449-450,
l.f5. 24 Jd. ih. 455.
10

tempo. Era perfeitamente admis- 1562 em represália contra os ín-


sível escravizar índios por moti- dios Caetés que trucidaram o pri-
vos "superiores" de civilização. meiro bispo do Brasil D. Pero
Anchieta testemunha em favor de Fernandes Sardinha e os demais
Pero Correia: "O Irmão Pero Cor- náufragos na foz do Coruripe. A
reia (antes de ingressar na Com- lei teve aprovação geral, mesmo
panhia) era lido entre os mais dos jesuítas. Segundo a mentali-
nobres deste reino e passou a dade de então parecia um título
maior parte de sua vida viajando justo para adquirir escravos e
em navio duma parte para a ou- vingar a morte do bispo. Não
tra, na pilhagem destes índios, tardaram, porém, os efeitos de-
ora matando a muitos, ora trazen- sastrosos. Muitos colonos sob
do para entre cristãos os que pretexto de vingar os náufragos
tirava da própria pátria com mui- prendiam todo e qualquer caeté,
tos enganos, e reduzia a cativei- mesmo os já convertidos nas al-
ro. Nisso julgava prestar a Deus o deias dos jesuítas. O Pe. Luis da
maior serviço (25). Grã pediu ao Goverandor que
O P. Luis da Grã Superior da interviesse para remediar seme-
Missão deixou ordem a Nóbrega lhantes abusos. Mem de Sá revo-
em São Vicente, "que não mer- gou a lei, mas infelizmente "a
casse escravos nem ainda para tempo em que já não havia remé-
trabalhar nas obras do Colégio dio", pois muitos tinham fugido
que ele deixava mandado que se apavorados, despovoando-se
fizesse ... " Mas "todos confessa- quatro prósperas aldeias: Santo
mos", diz Nóbrega, "não se po- Antonio, Bom Jesus, S. Pedro e
der viver sem alguns que bus- Santo André (27).
quem a lenha e água, e façam Para garantir a liberdade dos
cada dia o pão que se come, e aborígenes dava-lhes Mem de Sá
outros serviços que não é possí- terras para seu cultivo, interferin-
vel poder-se fazer pelos irmãos, do os jesuítas na escolha das
máxime sendo tão poucos, que mesmas para que fossém boas e
seria necessário deixar as confis- ferazes. Nisso colidiam com os
sões e todo o demais" (26). interesses dos brancos que re-
O primeiro ato "legal" de es- clamavam para si a partilha das
cravidão foi dado pelo terceiro melhores terras. Por esse motivo
governador geral Mem de Sá em foram mesmo queixas a Portugal

25 Carta de Anchieta ao P. Inácio de Loyola, S. 27 Informaçfies dos Primeiro• Aldeamentos da


Vicente, fim de março de 1555, in MBR II 204. Bahia, ln Cartas, Jnlonnaçõea, Fraamentos
26 Carta do P. Manoel da Nóbrega ao P, Diego Hlatdrico, e Senn6ee: do Padre Jo1epb de
Laynes, S. Vicente, 12 de junho de 1561, in Anchieta, S.J. Rio de Janeiro, 1933, pg. 356.
MBR III 364-365.
11

contra os jesuítas. Em 1559 es- A razão das queixas eram os


crevia o Provincial de Lisboa, Mi- moradores brancos que pertur-
guel de Torres ao Pe. Nóbrega, bavam os índios da aldeia de S.
persuadindo-o a procurar a ami- Paulo da Bahia, segundo escreve
zade de todos, para ser anjo de Nóbrega a Tomé de Souza,
paz, não tomando posição em "tomando-lhes suas terras e ro-
assuntos materiais, pois "todo o ças, em que sempre estiveram de
nosso negócio deve se endere- posse e nunca fizeram por donde
çar às almas pelos caminhos de as perdessem, antes na guerra
Deus e nas coisas esperituais, passada estes ajudaram aos cris-
deixando as temporais aos que tãos contra os seus próprios. A
as professam". "O mesmo enten- causa que tinham os cristãos por
do (continua Torres) no que toca si, não era outra senão que as
às terras dos índios, quais lhes haviam mister. E porque nisto o
darão ou não. Quando nisso in- Governador e eu estorvamos esta
terviesse interesse de algum ou tirania, contra ele e contra mim
alguns particulares. Bastaria conceberam má vontade" (29).
apontá-lo facilmente e procurar a
vontade daqueles aos quais to- A rainha D. Catarina deu razão
cam, com as devidas circunstãn- ao Pe. Nóbrega, escrevendo ao
cias". Nóbrega, efetivamente, Governador Mem de Sá:
exercia influência sobre o Gover- "Encomendo-vos consulteis es-
nador, influência que lhe mere- tas coisas (da distribuição de ter-
ceu os reparos do Pe. Torres: ras) com os padres da Compa-
"eu desejaria que nos esforçás- nhia, que nessa Capitania estive-
semos mais a servi-lo (ao Gover- rem, e façais nisso de maneira
nador) nas coisas do nosso Insti- que vos parecer que convém ao
tuto que de (sermos) conselhei- bem e aumento da conversão e
ros ao menos tão formalmente conservação dos ditos gentios e
que se possa afirmar que é por não seja escândalo a outras par-
nosso conselho que faz suas coi- tes e a todos se ouçam de justiça
sas, pois isso tem muitos incove- e igualdade" (30). O Governador
nientes, como agora se vê, que deveria até restituir as "terras
se diz aqui, que o Governador fez que lhes foram tomadas e dadas
por conselho de V. Rev. algumas a outrem sem causa justa", o que
coisas de que se queixam dele" "seria grã consolação e quieta-
(28). ção" (31).

28 Carta do Pe. Miguel de Torres ao Pe. Manuel 30 Traslado do capítulo de uma Carta da Rainha
da Nóbrega, Lisboa, 12 de maio de 1559, in Nossa Senhora, que veio ao Senhor Governa-
MBR III pg. 26. dor Mem de Sá, in MBR III pg. 510.
29 Carta de Nóbrega a Tomé de Sousa, Bahia, 5 31 ld. ib.
de junho de 1559, in MBR III pg. 88.
12

Em 1532 criou-se em Lisboa católica e conversão dos gentios


um tribunal chamado "Mesa da delas, vos encomendo muito que
Consciência e Ordens". Fora ins- deste negócio tenhais nessas
tituído por D. João Ili para decidir partes mui grande e especial cui-
sobre matérias jurídico- dado, como de coisa a vós princi-
administrativas, em particular so- palmente encomendada ... " "E
bre as ,referentes às Ordens de por este negócio dos resgates e
Cristo, Avis e Santiago. Pela Or- cativeiros injustos ser de tanta
dem de Cristo deveria julgar os importância, e ao que convém
assuntos de consciência próprios prover com brevidade, vos enco-
das missões ultramarinas, como mendo muito que com o Bispo
o grave problema da liberdade (Dom Pedro Leitão) e o Pe. Pro-
dos índios. O tribunal não estava vincial da Companhia (Luis da
isento das influências, quer dos Grã) e com o Pe. Inácio de Aze-
jesuítas, quer dos colonos. Mem vedo e Manuel da Nóbrega e o
de Sá era de parecer que em Ouvidor Geral que lá está (Bras
algumas coisas o tribunal deveria Fragoso) e o que ora vai (Fernão
ser mais benigno. Em 1560 escre- da Silva) consulteis e pratiqueis
ve a EI-Rei, queixando-se: "Bem este caso, e o modo que se pode
me parece a mim que, se os da e deve ter, para se atalhar aos
Consciência foram melhor infor- tais resgates e cativeiros" (33).
mados, que em algumas coisas Na Bahia reuniu-se uma Junta
foram mais largos" (32). para examinar o problema da es-
Devido às reclamações dos cravidão. As duas proposições
portugueses que se viam amea- da Junta foram entregues ao pro-
çados de quebra total na econo- fessor de teologia moral P. Quirí-
mia da colonia por falta de bra- cio Caxa que as examinou e
ços na lavoura, EI-Rei D. Sebas- aprovou: "digo que o pai pode
tião escreveu em 1566 duas car- vender o filho, estando em extre-
tas quase idênticas, uma ao Go- ma necessidade"; digo "que um
vernador Mem de Sá e a segunda se pode vender a si mesmo, por-
ao Bispo D. Pedro Leitão. Entre que cada um é senhor da sua
outras coisas dizia: "Porque o liberdade, e ela é estimável, e não
principal e primeiro intento, que lhe está vedado por nenhum di-
tenho em todas as partes da mi- reito: logo pode-a alienar e ven-
nha conquista, é o aumento e der". Caxa diz que o Príncipe
conservação de nossa santa fé pode alargar essa lei de "extrema

32 Carta de Mem de Sá a El-Rei, Rio de Janeiro, Mem de Sá, Governador do Brasil, Lisboa,
31 de março de 1560, in MBR IlJ pg. 173. agosto(?) de 1566, in MBR IV pg. 359.
33 Carta de D. Sebastião, Rei de Portugal, a
13
necessidade", estendendo-a à dão. A 20 de março de 1570
"grande necessidade" (34). promulgou D. Sebastião uma lei,
Também ao P. Nóbrega foram restringindo a prática da escrava-
apresentadas as duas proposi- tura a casos bem determinados:
ções, mas ele deu parecer con- "Defendo e mando que daqui em
trário ao do padre Caxa. A "extre- diante se não use nas ditas par-
ma necessidade" devia ser "ex- tes do Brasil do modo que se até
trema" e não apenas "grande ora usou em fazer cativos os
necessidade". Passando da ditos gentios, nem se possam
questão do direito para a questão cativar per modo nem maneira
de fato, diz Nóbrega que os filhos alguma, salvo aqueles que foram
dos Potiguares vendidos por mo- tomados em guerra justa, que os
tivo de pura fome, se achavam portugueses fizeram aos ditos
em extrema necessidade e por gentios com autoridade ou licen-
isso podiam ser legítimos escra- ça minha ou do meu Governador
vos (35). Em todos os demais das ditas partes, ou aqueles que
casos não houve tanta fome, nem costumam saltear os portugue-
tão extrema necessidade que le- ses, ou a outros gentios pera os
gitimasse a venda dos filhos. comerem: assím como são os
Quanto à segunda proposição Aimorés e outros semelhantes"
da Junta "Se um se pode vender (38). Todos os demais índios
a si mesmo" afirma o P. Nóbrega eram declarados forros.
que o modo como se praticavam Foi a primeira grande lei a
as vendas era contrário a todos favor da liberdade dos índios.
os textos e doutores "e é uma Como era de prever, não alcan-
das maiores sem-justiças que no çou seu objetivo, devido às mui-
mundo se fez" (36). Mesmo que o tas reclamações e pressões. D.
homem seja senhor de sua liber- Sebastião cedeu, mandando que
dade, não a pode alienar a não os dois governadores, Luiz de
ser em extrema necessidade para Brito e Almeida (Bahia) e Antonio
salvar a vida ou coisa semelhan- Salema (Rio de Janeiro) se reu-
te, e não por preço de venda (37). nissem com o Ouvidor Geral e os
Para obviar ao cativeiro injus- padres da Companhia.
to, providenciou a Coroa várias Abrandou-se a lei e foram decla-
leis, regulamentando a escravi- radas justas as guerras que os

34 Se o pai pode vender a 9eU filho e se hum se 37 Id. ib. pg. 410.
pode vender a si mesmo. Respostas do P. 38 FRANCISCO ADOLFO VARNHAGEN (Vis-
Manuel da Nóbrega ao P. Quirício Caxa, conde de Porto Seguro), História Geral do
Bahia. Rio de Janeiro(?) agosto(?) 1567, in Brasil antes da sua Separação e Independên-
MBR IV pg. 389. cia de Portugal. s•. ed. Integral 6•. do vol I.
35 Id. ib. 401. São Paulo, 1956, vol I, pg. 345,
36 Id. ib. pg. 403.
14

Governadores resolvessem por redes, tipóias e pelegos vendiam


tais, conforme o seu regimento e aos brancos seus irmãos de raça
convocando para isso os capi- (40).
tães, os oficiais da Câmara, o
Provedor da fazenda, algumas Desta maneira, vendo-se os ín-
pessoas de experiência e os Pa- dios perseguidos, fugiram para o
dres da Companhia. "Praticarão interior. Verificou-se em breve
a causa da tal guerra, e, parecen- que "o Brasil não se podia sus-
do razão fazer-se, se fará" (39). tentar nem haver nele comércio
Com isso surgiram muitos pretex- sem o gentio da terra" (41).
tos para guerras justas, pois os
governadores precisavam escra- Reuniram-se por isso na Bahia
vos para as fazendas. o Prelado, o Ouvidor Geral e o
No Brasil era fácil obter guerra Reitor do Colégio, e chegaram à
justa contra os índios. Procedia- seguinte conclusão: "O que se
se em três etapas: Primeiro, deve propor a Sua Magestade
provocavam-se os índios, acerca dos índios é o seguinte:
maltratando-os. Segundo, os ín- que se faça lei que daqui em
dios maltratados revoltavam-se, diante nenhum índio do Brasil
possa ser escravo" (42). Efetiva-
matando algum colono. Terceiro,
mente, em 26 de julho de 1596
declarava-se a guerra "justa" pa-
saiu uma lei restringindo muito a
ra castigar os assassinos do co-
escravidão. Dando mais força
lono. Outras vezes eram os pró-
aos padres, encarregava-os a
prios índios que vendiam seus
eles exclusivamente da descida
prisioneiros como escravos. Prin-
dos índios, os quais, assim como
cipalmente ao sul de Santa Cata-
eram livres nos seus sertões, as-
rina e norte do Rio Grande do Sul
sim deveriam conservar a liberda-
os principais agentes da escrava-
de com os portugueses.
tura indígena, eram os próprios
naturais da terra, os assim cha- Regulava-se o seu trabalho com
mados irmãos Tubarões, que tais precauções que, se fielmente
lembravam os régulos africanos executados, ficaria assegurada a
no tráfico da escravidão. Por fio, sua liberdade.

39 Informações dos Primeiros Aldeamentos da 41 Archivum Romanum Societatis Jesu (ARSI),


Bahia, in Cartas. Informações. Fraamentos Bras. 15,326, cfr. S. LEITE, Hist. II pg. 209.
Históricos e Sermões do Padre Joseph de 42 Resolução que o bispo e ouvidor geral do
Anchieta S.J. (1554-1594). Rio de Janeiro, Brasil tomaram sobre os injustos cativeiros
1933, pg. 366-370, cfr. S. LEITE, Hlst. II pg. dos índios do Brasil e do remédio para
208. aumento da conversão e da conservação
40 SERAFIM LEITE, História da Companhia de daquele Estado", manuscrito da Bibl. de
Jesus no Brasil, tomo II (sec. XVI - a Obra). Évora, cód. CXVl/1-33, f. 69v-71, in Rev. lnsL
Lisboa-Rio de Janeiro, 1938, pg. 220, pg. HlsL e Geogr. Bras. 57, 11 . p., 92-97.
220-221.
15
Com muita esperança escrevia aos padres, mas a capitães pos-
o Provincial do Brasil Pero Rodri- tos por ele, e que nas igrejas
gues: "agora, sem impedimento, fosse dado a ele o lugar de honra
descerá a gente a tratar e comer- acima do bispo. Consultado so-
ciar conosco confiadamente, sa- bre o assunto, responde EI-Rei a
bendo que não há de correr peri- 30 de abril de 1604, solicitando
go sua liberdade, e que lhe não maiores informações sobre as Al-
hão de fazer agravos e maus deias; nas igrejas o lugar de pre-
tratamentos: e já de presente há cedência caberia ao bispo e não
disto grande esperança por toda ao governador.
a costa" (43). "Não temos cá
A 30 de julho de 1609 EI-Rei
essas Polõnias e Valáquias, esse
saiu com nova lei, abolindo total-
Davi perseguindo a Filisteus, mas
mente a escravidão indígena:
temos a porta aberta para a con-
versão de obra de quinhentas "Declaro todos os gentios daque-
léguas, se mais não forem( ... ) Até las partes do Brasil por livres,
que agora Sua Majestade, por conforme a direito e seu nasci-
uma lei e regimento, manda que mento natural, assim os que já
todos os naturais sejam livres e foram batizados e reduzidos a
ninguém os vá descer do sertão, nossa santa fé católica, como os
senão os padres da Companhia. que ainda servirem como gentios,
Grande e gloriosa empresa, tra- conforme a pessoas livres como
balhosa, e cheia de mil perigos" são" (45). Determinava ainda que
(44). o trabalho não devia ser forçado,
e que o salário deveria ser pago
como a todas as demais pessoas
III - Motins e Tumultos livres.
A contínua proteção dada aos Contudo ainda permanecia
índios da parte dos jesuítas, pro- uma restrição: os índios eram
vocou nos colonizadores reações considerados de menoridade so-
desfavoráveis aos missionários cial, e por isso deviam ficar sob a
principalmente na Bahia, Rio, tutela dos padres da Companhia
São Paulo, Santos e Maranhão. "para os domesticarem e segura-
Na Bahia: O Governador Diogo rem em sua liberdade, e os enca-
Botelho queria que as Aldeias da minharem no que convém ao
catequese fossem entregues não mesmo gentio, assim nas coisas

43 AMADOR REBELO, Compêndio de Algumas 45 SIMÃO DE VASCONCELOS, Chronica da


Cartas. Lisboa, 1598, cfr. S. LEITE, Hlst II, Companhia de Jesus do Estado do Brasil e do
pg.214, que obraram i,eus FUhos neata Parte do Novo
'44 Carta do P. Pero Rodrigues ao P. João Mundo. 2•. ed. Lisboa, 1865, Liv.111, n 9 44, cfr.
Alvares, 5 de abril de 1597, ARSI. Bras. S. LEITE, Hist. V pg. 4 5,
4

15,529.
16

da sua salvação como na vivenda com facilidade, se respeitáramos


comum e comércio com os mora- só a nossa quietação particular"
dores daquelas partes" (46). (48).
Além disso mandava a lei que A lei foi novamente atenuada,
todos os índios escravizados fos- voltando-se à de D. Sebastião em
sem postos em liberdade. 1570. Confirmava-se a liberdade
Como era de se esperar, dos índios, porém admitiam-se os
revoltaram-se os moradores con- cativos em guerras justas ou res-
tra tais determinações. Escreve o gatados de morte. Proibia-se a
Pe. Provincial Henrique Gomes guerra aos índios, mas permitia-
ao Pe. Geral: No dia 28 de junho se, sendo atacados por eles (49).
de 161 O "convocaram o povo à Quanto à administração das
câmara, onde sendo todos jun- Aldeias, o novo Governador Gas-
tos, tratando-se a matéria, houve par de Sousa verificou por si
vários pareceres e entre eles al- mesmo que nelas não havia lu-
guns que nos embarcassem a cros. Informou a EI-Rei e os pa-
todos para Portugal, por inimigos dres continuaram como antes
do bem comum e da república. nas Aldeias de sua administração
(... ) Foi tal o motim do povo, que (50).
o Procurador dos índios correu o No Rio de Janeiro deu-se ori-
risco de ser morto, só por dizer gem a um tumulto por causa da
nesta ocasião que se informas- publicação do Breve de Urbano
sem da verdade e achariam que VIII "Commissum Nobis" de 22
os padres não tinham culpa algu- de abril de 1639, sobre a liberda-
ma" (47). de dos índios da América (51 ). O
Continua o Provincial: nisto Breve chegou ao Rio por meio do
"não se lhes dará remédio, salvo Pe. Francisco Dias de passagem
se nós mesmos lho aplicarmos, para Buenos Aires com mais 30
largando as Aldeias de nossa companheiros. Trazia consigo
doutrina, para que se repartam também uma nova lei de Sua
pelos moradores, com que eles Majestade em favor dos índios
ficarão tão quietos e nossos ami- mandando põr em liberdade to-
gos, que, como eles mesmos dos os cativos sob pena de casti-
confessam, nos venerarão a to- gos do Santo Ofício e de confisco
dos por santos, o que fizéramos dos bens.

46 Id. ib. 50 JULIO CESAR COROARA, Historia Societa-


47 ARSI, Bras. 8,114-115, cfr. S. LEITE, Hist. V, tis Iesu Pars 11exta complectens res 1estas sub
pg. 6-8. Mudo Vltellesehlo, I, Roma, 1750, pg. 82-83.
48 ld.ib. cfr, S. LEITE, Hlst. V,pg. 24.
49 S. VASCONCELOS, Chronica da Companhia 51 Francisco Carneiro, Resposta a uns capítu-
de Jesus, o. e. liv. III n9 44. S. LEITE, Hist. V, los... ARSI, Gesll, Colleg. 20 (Brasile) 24-28,
pg.8. cfr. S. LEITE, Hlst. Vl,pg. 573.
17
No Breve pontifício manda o der das acusações (54).
papa sob pena de excomunhão Em São Paulo como no Rio de
reservada a si mesmo, que nin- Janeiro o motim contra os jesuí-
guém cative, venda, troque, doe tas teve início com a publicação
ou trate como cativos a estes do Breve pontifício de Urbano VIII
índios. Item, debaixo da mesma em favor dos índios. Para aumen-
censura, manda que ninguém en- tar a crise, muito contribuiu a
sine ou pregue que é licito cati- rivalidade entre os Garcias, parti-
var, etc., os ditos índios (52). A do português favorável aos pa-
primeira parte do documento dres jesuítas, e os Camargos,
pontifício era contra os escravi- partido castelhano contrário aos
zadores; a segunda contra os mesmos. Na casa do Conselho
padres ou religiosos que fecha- de São Vicente reuniram-se dez
vam os olhos ou positivamente os procuradores das vilas daquela
incitavam ou absolviam. Capitania em sessão que durou
Sabendo disso os oficiais da três dias. "Concluíram que botas-
Câmara e alguns homens do po- sem fora de toda aquela Capita-
vo fizeram uma junta no Conven- nia aos padres da Companhia,
to do Carmo para tratar do assun- porque vendo-se os padres da
to. No dia seguinte o Reitor do Companhia avexados e oprimi-
Colégio dos Jesuítas publicou o dos com desejo de tornarem a
Breve pontifício. Amotinaram-se suas casas e Colégio, haveriam
"alguns homens da Câmara e do de Sua Santidade a suspensão
povo, e de assuada com motim da Bula, e de Sua Santidade e
formado vieram ao Colégio, e Majestade licença para os pode-
arrombando-lhe com machados rem ter como cativos, e liberdade
as portas, entraram dentro com de consciência para poderem fa-
intento, como clamavam e mos- zer suas entradas no sertão"
travam bem as infâmias que di- (55).
ziam aos padres, de os matarem, A 13 de julho de 1640, 61 -feira,
ou botarem fora da terra; e o às duas horas da madrugada
fizeram se não acudira o Gover- mandaram os da Câmara de São
nador a os moderar" (53). Paulo tanger o sino ao que se
Os amotinados escreveram um juntou o povo. O procurador
Libelo Jnflamatório contra os pa- João Fernandes Saavedra leu a
dres que se viram forçados a sentença da junta de São Paulo,
recorrer a Lisboa para se defen- desterrando os padres da Com-

52 Publicado segundo ARSI, GesU, Colleg. 20 54 Jd. ib.


(Brasile), 24-28, in S. LEITE, Hlat. VI, pg. 55 Certidam sobre a expulsam dos Padres da
569-571. Companhia de Jesu da Capitania de Sam
53 Francisco Carneiro, Resposta a uns capítulos, Vicente ... ARSI, Colleg. 20 (33-36), cfr. S.
o.e. id.ib. LEITE. Hlat. VI pg. 258.
18

panhia que imediatamente foram João Batista, donde foi transferi-


expulsos aos empurrões pelo po- do para uma caravela e dali reme-
vo. Os padres dirigiram-se a San- tido a Lisboa onde foi condenado
tos onde chegaram no dia se- pela Inquisição, sendo ma.is tarde
guinte. A volta para São Paulo novamente absolvido (58). Os je-
deu-se apenas 13 anos mais tar- suítas expulsos do Maranhão em
de, em 1653. 1661 voltaram a ele depois de um
Em Santos também houve re- ano, em 1662.
volta contra os jesuítas pelo mes- Para diminuir o descontenta-
mo motivo da publicação do Bre- mento dos moradores e aumen-
ve pontifício. Foram expulsos da tar a mão de obra, criou-se uma
vila no dia 3 de agosto de 1640. companhia de Comércio que em
Voltaram dois anos mais tarde, 20 anos deveria introduzir 10.000
em 1642, por ordem do rei D. negros da África no Estado e ao
João IV (56). mesmo tempo assegurar à Coroa
No Maranhão crescia a insatis- o pagamento do risco no tráfico
fação contra os jesuítas por cau- negreiro. Organizou-se um mo-
sa da contínua proteção aos ín- nopólio, ou estanco, para a ven-
dios. Em 9 de abril de 1655 saiu da de certos gêneros de consu-
uma lei restringindo os cativeiros. mo, a preços fixos. O povo
Em três anos houve três leis! revoltou-se contra esta medida e
Liberdade completa dos índios, em 1684 estalou um motim, ini-
com motim dos moradores; cati- cialmente contra o estanco, mas
veiro dissimulado com reação logo depois contra o Governador
dos jesuítas, cativeiro dificultado e os padres da Companhia. O
e liberdade tutelada, com novas chefe do levante foi o português
reações dos moradores, primeiro de Lisboa Manuel Bequimão,
com o motim de Gurupá, domina- descendente de estrangeiros
do vigorosamente pelo Governa- (Beckmann).
dor, trazendo relativa paz para O povo amotinado dirigiu-se ao
cinco anos. Colégio, intimando os padres a
Em 1661 houve novos distúr- sair do Maranhão por serem pre-
bios não dominados pelo novo judiciais à terra por causa da
Goverandor que apesar de amigo proteção aos índios. Fizeram
do Pe. Antonio Vieira, deixou os constar em escritura o motivo da
missionários à mercê dos amoti- expulsão, mandando "intimar um
nados com os concomitantes protesto, com cerimônias judi-
agravos e expulsão (57). O Pe. ciais, cuja substância brevemen-
Vieira foi recluso na ermida de S. te resumida é a seguinte: que o

56 S.LEITE, Hist. VI, pg. 421. 58 Id. ib. pg. 58; 59.
57 Id. HJst. IV, pg. 54.
19

povo do Maranhão os lançava IV - A Escravatura dos negros


fora, não por escândalo algum
em seu procedimento e vida reli- Em 1441 chegaram os primei-
giosa, nem menos por faltarem ros escravos azenegues a Portu-
ao cuidado da salvação das al- gal tirados da África por Antão
mas. Que a razão, motivo e prin- Gonçalves. Foi o Infante (D. Hen-
cipal fundamento desta resolu- rique) muito alegre por já come-
ção era por que os padres tinham çar a recolher fruto de seus tra-
a administração temporal dos ín- balhos e despesas, sendo logo
dios, no que experimentava de todos "mui louvado, dizendo-
aquele povo intoleráveis apertos. se que de um tal Príncipe, e tão
Que lhes pediam e intimavam jun- prudente, se não podia esperar
tamente não pretendessem ja- cousa, se não de que os Reinos
mais voltar para a terra, que de houvessem de receber proveito"
nenhum modo os queria, e de (62).
que já haviam sido lançados duas No Brasil vieram provavelmen-
vezes e intentados lançar outra" te os primeiros escravos africa-
(59). nos com Pero Capico, entre 1516
Os jesuítas foram postos em a 1526. Mas é só em 1550 que
dois barcos. O primeiro, levando uma partida de africanos é impor-
15 religiosos, chegou a Pernam- tada na recém fundada cidade do
buco aos 18 de maio de 1684, e o Salvador "para se repartirem en-
outro, onde iam 12, ficou arriba- tre os moradores, descontando-
do pelo Ceará, com o mastro se o seu valor dos soldos e orde-
rendido (60). nados destes" (63). É a primeira
No ano seguinte, 1685, foi res- vez que o negro é exportado para
tabelecida a ordem no Maranhão o Brasil como mercadoria desti-
com a vinda do novo Governador nada ao consumo da coletivida-
Gomes Freire de Andrade que de.
trazia instruções da Corte para Frei Bartolomeu de Las Casas
deixar tudo como dantes: Estan- OP foi quem denunciou ao mun-
co, Padres, Governador, e por- do com mui cru realismo os cri-
tanto, também restituir os jesuí- mes da escravidão indígena na
tas, que oficialmente voltaram em América Espanhola. Para minorar
23 de setembro de 1685 (61 ). esse flagelo porpôs a introdução

59 ARSI. Bras. 26, 123, cfr. S. LEITE, HlsL IV, pg. MAUR!CIO GOULART, A Escravidão Afri-
79. cana no Brasil, o. e. pg. 7.
60 S. LEITE, Hlst. VJ,pg. 81. 63 Tratado Descritivo do Brasil, RIHGB, XIX,
61 S. LEITE, Hlst. IV,pg. 83-84. pg. 115, cfr. MAURfCIO GOULART, o. e. pg.
62 Crônica do Príncipe D. João, pg. 27, cfr. 9.
20

de escravos negros de complei- Se faltarem os pretos, escrevia


ção mais robusta e que fossem de Bayano, o bispo de Cuba,
tomados em guerra justa (64). A "não haverá sequer vinho para
emenda lhe saiu pior que o sone- dizer a missa" (65b). De 400 afri-
to. Mais tarde o grande missioná- canos chegados a Porto Rico, em
rio se penitenciaria por esse pro- 1565, couberam em primeiro lu-
ceder, quando percebeu as injus- gar 6 à Santa Igreja da cidade, 4
tiças.da escravidão negra. Todos ao Mosteiro do Senhor S. Domin-
passaram logo a preferir o escra- gos, 2 ao presidente do cabido, 2
vo negro, pois "era mais útil o ao chantre, 2 a dois cônegos, 2 a
trabalho dum negro que de qua- um frei Bernardino, 3 a três pa-
tro índios" (65). dres (65c).
Os missionários dominicanos Como las Casas, pagou tam-
escreveram ao cardeal Ximenes, bém o Pe. Antonio Vieira o tributo
regente da Espanha, a sua carta ao seu século. Em 1661, respon-
de 22 de junho de 1517, e, alguns dendo aos capítulos do procura-
meses depois, aos 18 de janeiro dor do Maranhão, enumera as
de 1518, ao próprio imperador causas da pobreza e atraso des-
Carlos V, preconizando a licença se Estado: as fazendas experi-
de os colonos trazerem escravos mentaram muita incerteza com o
negros. Conviria que fossem escravo índio, "até que com este
"buscar os negros diretamente desengano se resolveram a fabri-
nas ilhas de Cabo Verde e nas car suas fazendas com escravos
costas da Guiné". Só assim, con- mandados vir de Angola, que é
fessavam eles, os haveria na gente por sua natureza serviçal,
América em número suficiente. dura e capaz de todo o trabalho,
Em 1519, dirigindo-se novamente e que o atura, e vive por muitos
ao imperador, fizeram os domini- anos se a fome e o mau tratamen-
canos questão de atribuir suá to os não acaba. Nem no Estado
atitude à insistência e aos recla- do Maranhão, que é do mesmo
mos dos colonos, que os mata- Brasil, haverá remédio perma-
vam -nos matan, diziam- "com nente de vida, enquanto não en-
seus pedidos para terem negros" trarem na maior força do serviço
(65a). escravos de Angola" (66).

64 G. TUCHLE e C. A. BOUMAN, Nova História 65b ld. ih. cfT. MAURfcm GOULART, o. e. pg.
daJareja,III, Vozes.Petrópolis, 1971,pg. 13. 53.
65 A. de HERRERA, Historia General, Década I, 65c Jd. ib. cfr. MAURfCIO GOULART, o. e. pg.
Iibro IX, cap. 5, cfr. S. LEITE, Hlst. II, pg. 343. 53.
65a GEORGES SCELLE, La Tralté Négrlêre 66 AFFONSO DE E. TAUNAY, Subsídios para
aux lndesde Castllie,2 tomos, Paris, 1906, I, a História do TnU'ico Africano no BrasiL
pg. 132, cfr. MAURfCIO GOULART, o. e. São Paulo, 1941, pg. 96-97.
pg. 43; 51-52.
21

Os capitães e mestres dos na- recer dos padres: "digo que, se


vios negreiros praticavam uma Sua Alteza nos quisesse mandar
obra considerada boa, "iam à dar uma boa dada de terras onde
África fazer serviço a Sua Majes- ainda não fôr dada, com alguns
tade". Nem faltava a presença escravos de Guiné, que façam
dos bispos de Angola ao momen- mantimento para esta casa e
to da partida dos navios negrei- criem criações, e assim para an-
ros de São Paulo de Loanda, a darem em um barco, pescando e
abençoar a viagem dos tumbei- buscando o necessário, seria
ros. Ainda hoje (191 O), diz um muito acertado. E seria a mais
escritor português, vê-se perto certa maneira de mantimento
do cais da alfândega de São Pau- desta casa. Escravos da terra
lo de Loanda uma cadeira de não nos parece bem tê-los, por
pedra de onde o prelado angolês alguns inconvenientes. Destes
abençoava as levas negras des- escravos da Guiné manda ele
pachadas à América (67). trazer muitos à terra. Podia-se
Devido a sérias dificuldades haver provisão para que dos pri-
em que se achava o Colégio de S. meiros que vierem, nos desse os
Paulo de Piratininga, propuseram que Sua Alteza quisesse" (69).
os padres as seguintes soluções: Em 1558 volta Nóbrega a insis-
fechar o Colégio e ficar só com tir na necessidade de escravos
uma residência, o que não seria da Guiné. A melhor dádiva, que
serviço de Deus; requerer dota- EI-Rei podia fazer ao Colégio, era
ção régia para o sustento, o que duas dúzias deles tanto homens
não seria exeqüível; mandar bus- como mulheres" (70). A Congre-
car ouro nas minas para comprar gação Provincial do Brasil de
escravos negros. A busca do ou- 1568 no seu postulado 1O diz que
ro era contra a ordem do Pe. se podiam e deviam adquirir os
Geral e por isso haveria escânda- escravos necessários, se não
lo. Comprar escravos negros, nis- houvesse outro meio de susten-
so não haveria escândalo e em tação (71). O P. Gregório Serrão
parte se tinha já feito e se tez diz expressamente em 1570 que
depois (68).
não se encontrara genie de tra-
Em 1557 escreve Nóbrega, ad- balho para se contratar: o único
vertindo que tomara antes o pa- remédio seria ter escravos (72).

67 ld.ib.pg. 76-77. 70 Apontamentos de Nóbrega (Arquivo da


68 Memorial sobre o governo temporal do Prov. de Port.), cfr. S. LEITE, Hlst. n, pg.
Coll 9 de S. Paulo. ARSI, GesU, Colleg., no 348
1588, cfr. S. LEITE, Hlst. VI, pg. 349-350. 71 ARSI, Congr. 41,299v; Epp. NN. l03,IO0, cfr.
69 Carta de Nóbrega, 2 de setembro de 1557, S. LEITE, o. e. pg. 350.
ARSI, Bras. 15, 42v, cfr. S. LEITE, Hlst. li, 72 ARSl, Bras. 15,198v. cfr. S. LEITE, o. e. pg.
pg. 347-348. 350.
22

Daqui em diante os jesuítas pos- de Gouveia, em 31 de dezembro


suíram escravos, tanto africanos de 1583, que os negros estives-
como índios, mais ou menos em sem primeiro alguns anos na ter-
todas as suas casas, com exce- ra, antes de começar a cateque-
ção do Sul do país, onde em se. Os jesuítas trataram pois de
1701, por circunstâncias espe- aprender a língua de Angola,
ciais, o serviço era quase todo chegando mesmo a mandar al-
feito por índios livres, a quem se guns à África para aprendê-la
dava o respectivo salário (73). melhor. Procuraram até cultivar
A catequese dos negros fazia- vocações em Angola, e manda-
se a princípio, com os índios. Mas ram vir padres de lá para atender
os escravos. Havia padres e ir-
o P. Grã observou logo que os
primeiros eram mais estáveis e mãos que se ocupavam da cate-
aproveitavam melhor a doutrina quese dos negros. Nos documen-
que os aborígenes. Dos índios tos são conhecidos com a men-
ção "língua de Angola". Em 1697
que se batizaram ao começo, es-
o Pe. Pedro Dias, da província do
crevia ele, nenhum dava mostras
Brasil, publicou em Lisboa a pri-
de cristão, como os de Guiné
meira "Arte da Língua de Ango-
(74). Aumentando os escravos
la", com o fim expresso de cate-
africanos, começaram a ter-se
quizar e socorrer os escravos
com eles atenções particulares, a
(76). O Pe. Manuel Lima ( + 1718)
partir de 1574, data em que, na
escreveu "O Catecismo na língua
Bahia, além da lição de doutrina
dos Ardos".
para os índios na nossa Igreja, se
iniciou outra, ao mesmo tempo, Havia padres deputados para a
para os escravos da Guiné, na língua de Angola. Eles iam aos
Igreja da Misericórdia. Faziam-se navios negreiros para animar os
procissões, urgia-se com os se- que vinham vivos e ajudar a bem
nhores que os mandassem â ca- morrer os que estavam doentes,
tequese; e nota-se que as negras e que eram muitos. (... ) Depois
se apresentavam vestidas, e to- em terra, assistiam com grande
dos concorriam aos prêmios com cuidado pelas casas de quem
que ficavam contentes (75). compra, catequizando-os até os
Uma das dificuldades com os porem em estado de os batiza-
negros era fazer-se compreender rem: fazendo aos domigos e dias
por causa da língua. Por isso santos doutrinas pelas ruas; e
observa o P. Visitador Cristóvão vão por todo o recõncavo desta

73 ARSI, Gesü, Colleg. 20,2v. cfr. S. LEITE, o. 75 Carta do P. Quirfcio Caxa, 16 de dezembro
e., pg. 350. de 1574, ARSI, Sras. 15,254v-255.
74 ARSI, Bras. 3(1), 145v. cfr. S. LEITE, Hlst. 76 S. LEITE, Hist. VII, pg. 276.
u.pg. 353.
23
cidade (do Salvador) pelas fazen- Os escravos dos padres
das dos moradores ao mesmo achavam-se em situação privile-
exercício, afastanto-os dos abu- giada. Os Superiores recomenda-
sos que ainda trouxeram das vam constantemente que se ti-
suas terras" (77). vesse com eles toda a assistência
que lhes era possível: "aos mo-
Desta ação benfazeja dos je-
ços e escravos de casa ensine-se
suítas com os escravos infere
a doutrina todos os dias, e
Vilhena de Morais, ao publicar a
confessem-se ao menos pelo Na-
Carta do Governador do Rio de
tal e pela Páscoa, tanto os da
Janeiro de 1678, "a explicação
roça como os de casa (80).
do relativo nível de elevação mo- Observa uma Relação Jesuíti-
ral e religiosa, observado, ao ca de 1617 que a assistência dos
contrário de outros povos, entre padres aos negros tinha capital
os negros escravos do Brasil" importância: "tornava-se útil para
(78). os negros, porque os instruía,
Outra dificuldade na cateque- ajudava e consolava; útil aos mo-
se dos negros era a grande dis- radores, porque andando os ne-
persão pelas fazendas e enge- gros tranqüilos, a vida do Brasil
nhos do interior. Não podendo vir seguia em paz; útil para o Estado
às cidades e vilas, iam os padres porque na paz prosperava a agri-
ter com eles para lhes administrar cultura e a indústria açucareira"
a doutrina e os sacramentos. Em (81).
1584 escreve o P. Visitador Cris- Sobre os escravos de Pernam-
tóvão de Gouveia: "Nas fazendas buco informa o P. Henrique Go-
e engenhos há grande cópia de mes: "Aos pretos escravos se
escravos, os quais nunca ouvem ensina em os mesmos dias, pri-
missa, ainda que tenham nelas meiro em nossa igreja, acabada a
sacerdotes que as digam, por primeira missa, a que concorrem
serem as igrejas pequenas, e os tantos, que não há caberem. A
escravos andam nus; e, pelo mau tarde, vão dois irmãos pelas ruas
cheiro, não os deixam os seus da cidade, e em todas as partes
senhores e portugueses estar que os acham, os ajudam, e aí
nem dentro nem fora das igrejas" mesmo os ensinam, e faz-se as-
(79). sim com mais fruito" (82).

77 Arquivo Nacional do Rio, Cartas Regias. em 1589, ARSI, Gesil, Colleg. 13(Baya) cfr.
cfr. S. LEITE, Hlst. VII pg. 278. S. LEITE, Hlst. II, pg. 357.
78 S. LEITE, Hlst. VU, pg. 278, 81 ARSI, Bras. 8,250-251, cfr. S. LEITE, Hist. II,
79 ARSI, Lus. 68,418v. cfr. S. LEITE, Hist. li, pg. 358.
pg. 355-356. 82 Carta de Henrique Gomes, Baía, 16 de
80 Visita do P. Cristóvão de Gouveia, 1586, junho de 1614, ARSI, Bras. 8,169v, cfr. S.
ARSI, Bras., 2,143. Novas recomendações LEITE, Hlst.11, pg. 359.
24

Para manter a disciplina entre vos, principalmente dos índios.


os escravos, usavam os jesuítas Uns chegaram mesmo a propor a
da coerção e castigos segundo a abolição total da escravidão, co-
pedagogia de então. Os exces- mo os padres Miguel Garcia e
sos nem sempre puderam ser Gonçalo Leite. Os tempos infeliz-
evitados. O reparo mais grave de mente não eram maduros e eles
que temos memória é contra o causaram espécie entre seus ir-
Pe. Pedro Leitão, superior duma mãos. O Pe. Garcia afirmava: ne-
aldeia. Em 1592 queixavam-se nhum escravo da África ou do
dele por bater nos índios. No ano Brasil é justamente cativo. Em
seguinte volta a queixar-se dele o carta ao Pe. Geral escreve: "A
Pe. Manuel de Sá em carta ao Pe. multidão de escravos, que tem a
Geral Cláudio Aquaviva: "o Pe. Companhia nesta Província, par-
Pedro Leitão, sendo procurador ticularmente neste Colégio (da
ferrou hum negro com o ferro do Bahia) é coisa que de maneira
gado por nada, e não com pouco nenhuma posso tragar, máxime
escândalo de todo o colégio, e por não poder entrar no meu
nem por isso lhe deram penitên- entendimento serem licitamente
cia; a outra que mandando o dito havidos" (85).
padre açoutar um negro morreu No Brasil havia realmente um
estando-no açoutando amarrado, drama de consciência: ou se
o qual era dos melhores que aceitavam as circunstâncias eco-
tinha este Colégio" (83). Pedro nômicas da terra ou se abando-
Leitão foi castigado e sofreu mais nava a atividade apostólica. O
que ninguém na província. Ob- Padre Garcia preferiu a segunda.
serva o P. Serafim leite: ."Entre Não confessava a quem quer que
tanta variedade de padres e ir- fosse, nem mesmo aos padres da
mãos do Brasil não vimos outro Companhia. O Visitador Pe. Cris-
caso desta natureza; e teria cons- tóvão de Gouveia consultou o
tado, se sucedesse, porque são Tribunal da Mesa da Consciên-
os acontecimentos extraordiná- cia, bem como os principais juris-
rios que se advertem e contam, a tas e moralistas da Europa, entre
vida comum não tem história" os quais Luiz de Molina. Todos
(84). responderam que poderia haver
cativeiros justos. A opinião do P.
V - Conclusão Garcia tinha contra si o consenso
Os jesuítas defenderam inúme- geral. Hoje, vistas as coisas à
ras vezes a liberdade dos escra- nossa luz, a oposição de Garcia,

83 Carta do P. Manuel de Sá ao P. Geral 84 S. LEITE, Hlst. li, pg. 80.


Claudio Aquaviva, Bahia, 20 de fevereiro 85 Carta do P. Miguel Garcia ao P. Aquaviva,
de 1593, ARSI, Lus, 72, f. 54; Bras. 3(1), f. Bahia, 26 de janeiro de 1583, ARSI, Lus. 68.
188. f. 335v.
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não há dúvida, só lhe traz motivo uma vez mais. Porque os naturais
de glória. Mas em tais tempos, e da América eram livres. Como
no Brasil, diz o Visitador, causava tais foram declarados nas leis
perturbação, entre os moradores canônicas e civis. E aos jesuítas
da terra, e no próprio Colégio. na América Portuguesa foi con-
Resolveu ,pois, reenviá-lo para a fiada a defesa dessa liberdade.
Europa (86). Os negros da África nem eram
Semelhante ao do P. Garcia foi livres, nem a delesa da sua liber-
o proceder do P. Gonçalo Leite, dade fora confiada aos Padres. A
primeiro professor de Artes no escravatura africana era institui-
Brasil. Com absoluta intransigên- ção vigente na África desde tem-
cia condenava toda e qualquer pos imemoriais. Já antes da fun-
forma de escravidão. Por esse dação da Companhia de Jesus, a
motivo foi reenviado à Europa América se inundava de escravos
onde continuou a exercer os mi- negros. As leis da Igreja tolera-
nistérios com grande caridade vam essa escravatura, as leis ci-
principalmente entre as pessoas vis das nações regulavam-na. To-
mais abandonadas. das as nações colonizadoras,
Quanto ao problema jurídico .~ortugal, Espanha, França, Ingla-
terra, Holanda, então, e por muito
da escravatura como tal, os jesuí-
tempo ainda, e com elas depois
tas não punham problemas, co-
mo ninguém então condenava a os países independentes da Amé-
escravatura, se o título fosse jus- rica, exploravam a escravatura
negra, legalmente, isto é, segun-
to. Lembremo-nos que muito
do as leis da época. Aos jesuítas
mais tarde, no século XVIII na
nunca foi nem podia ser confiada
assembléia dos bispos norteame-
a delesa de uma liberdade inexis-
ricanos em Baltimore, a lei da
tente. Aliás, a vinda de negros da
libertação dos escravos nortea-
África para a América foi útil ao
mericanos foi pelos bispos cha-
desbravamento mais rápido dela,
mada de lei iníqua.
e para os negros também, sob o
Os jesuítas inúmeras vezes se ponto de vista de contacto com
revoltaram contra as injustiças da uma cultura superior e a religião
escravatura indígena. Por que cristã. Este argumento foi dado
então não defenderam a liberda- também pelos escravizadores
de dos negros da mesma manei- dos índios. A diferença está em
ra? que os índios, antes eram livres.
"A resposta já está dada mui- Os negros já eram escravos em
tas vezes, mas importa recordá-la África, havendo uns negros que
86 Carta de Gouveia, 25 de julho de 1583,
ARSI, 68,337v-338, cfr. S. LEITE, Hlst. II,
pg. 227.
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escravizavam outros negros e os menor lucro para a civilização,


vendiam; na América continua- continuando na mesma a escra-
vam a sê-lo, e talvez em melhores vatura negra, fato social univer-
condições. salmente admitido até o século
Em face pois, do fato então XIX, como é da história; ou
irremediável da escravatura ne- aceitá-la, mitigando-a, na diferen-
gra, restavam aos jesuítas ape- ça de tratamento e exercício da
nas dois caminhos: ou declarar- caridade, combatendo perpetua-
se contra ela, e desaparecer da mente os maus tratos contra os
face da terra, renunciando a to- negros, e respeitando neles a
das as demais obras de ensino, pessoa humana, impondo-a,
cultura, e missões, que deixariam quanto estava em seu poder, ao
de fazer, pois seriam logo expul- respeito também dos colonos,
sos de todas as nações civiliza- seus senhores" (87).
das, sem que nisto houvesse o

87 S.LEITE,Hlst. VJ,pg. 350-351.

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