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palmares.phtml
MATÉRIAS PERSONAGEM
ZUMBI: O FANTASMA DE PALMARES
Homenageado com o Dia da Consciência negra, Zumbi morreu há 323 anos e sua
biografia continua rodeada de polêmicas
sexta 16 novembro, 2018
Zumbi dos Palmares, por Antônio Parreiras
Eu El-Rei faço saber a vós Capitão Zumbi dos Palmares que hei por bem perdoar-vos de
todos os excessos que haveis praticado, e que assim o faço por entender que vossa rebeldia
teve razão nas maldades praticadas por alguns maus senhores em desobediência às minhas
reais ordens. Convido-vos a assistir em qualquer estância que vos convier, com vossa
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mulher e vossos filhos, e todos os vossos capitães, livres de qualquer cativeiro ou sujeição,
como meus leais e fiéis súditos, sob minha real proteção.
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Dom Pedro II, Rei de Portugal
Mas não sabemos se o “capitão” aceitou o convite. Na verdade, não sabemos nem se a
carta chegou um dia a ser entregue. Mas sabemos que o destinatário, tratado nessa
linguagem cheia de honoríficos e rapapés, era mesmo o guerreiro Zumbi, um opositor
quase mítico do domínio português no Brasil.
Se ele já era um mito no século 17, os debates e pesquisas tampouco revelaram muito
sobre o verdadeiro Zumbi. Isso se deve em boa parte ao fato de que os relatos acerca de
sua vida foram, sem exceção, feitos por seus inimigos: os colonos e portugueses que se
puseram a combatê-lo, a soldo de senhores escravistas.
A incerteza sobre a vida do líder é tão brutal que se estende até a forma do nome do líder
palmarino – o certo é Zumbi ou Zambi? A primeira forma é mais comum nos relatos
lusos, mas isso não quer dizer que seja a certa.
Versão inimiga
Sabermos tão pouco dele não deixa de ser, de certa forma, adequado. Em línguas bantu,
nzambi ou nzombi querem dizer algo como "espírito" ou "fantasma". No Congo, Nzambi
a Mpgungu é o nome do deus - ou espírito - máximo.
Os zumbis do cinema têm a ver com isso: no Haiti, há a ideia de que um bokor, um
feiticeiro, possa aprisionar a alma de alguém em seu próprio corpo ressuscitado - e
também, na versão que não foi parar em Hollywood, numa garrafa: um zumbi astral.
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E a imagem de Zumbi é um fantasma criado por seus inimigos. Para valorizar o próprio
esforço ou para justificar os fracassos em capturá-lo, os primeiros relatos acerca dele,
feitos em sua maioria por militares portugueses, ajudaram a criar o personagem que
acabaria se tornando um fundador da identidade dos descendentes de africanos no Brasil.
Um homem forte, orgulhoso, inconformado com sua condição social, que resolveu
enfrentar seus algozes e libertar seu povo. Mas tampouco essa imagem de um Zumbi
revolucionário se sustenta em fatos. Sua biografia está envolta em diversas dúvidas. Entre
as mais elementares está sua origem.
Era ele um chefe africano trazido à força para ser escravo? Ou teria nascido no Brasil?
Ou até mesmo: teria escravos ele próprio? Sobre uma coisa, pelo menos, os especialistas
concordam: ele viveu e morreu em Palmares, um quilombo – ou seja, um reduto de ex-
escravos e seus descendentes.
Vida em Palmares
Os primeiros relatos sobre o quilombo de Palmares são desencontrados e datam do início
do século 17. Eles indicam que ele surgiu em fins do século 16, no sul da então capitania
de Pernambuco. Fugindo provavelmente de um engenho de cana nordestino, um grupo
de escravos africanos deixou o litoral e foi para o interior – tentando evitar caçadores de
recompensa e soldados que, a mando dos senhores de engenho, capturavam e matavam
fugitivos.
A jornada a pé, que pode ter durado até dois anos, levou os ex-escravos para a serra da
Barriga, região conhecida genericamente como “os Palmares”: um pedaço de mata
Atlântica coberto por palmeiras, encravado no meio do sertão (atualmente território de
Alagoas). Aquelas terras tinham fama de ser férteis, mas a combinação entre mata fechada
e terreno íngreme fazia dela uma fortaleza natural.
Sociedade alternativa
Já nos primeiros anos de organização, o aglomerado de fugitivos se tornou uma pedra no
sapato dos portugueses. Os habitantes de Palmares, periodicamente, invadiam engenhos
para capturar escravos, roubar comida e armas e raptar mulheres, artigo raro no quilombo
em formação.
Sim, hoje é consenso que havia escravos em Palmares - quem era pego em incursões
continuava em condição servil.
Mas algo - outro consenso - precisa ficar bem claro aqui: uma coisa era ser propriedade
de um senhor português e ser forçado a trabalhar até a morte. Outra era viver entre negros
com uma forte possibilidade de alforria - bastava atuar em outra incursão.
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Em 1602, o então governador geral do Brasil, Diogo Botelho, mandou uma expedição
contra eles – a primeira de 40, ou até mais de 60, de acordo com alguns historiadores.
Esse modo de vida limitava o crescimento do povoado. Mas, em 1630, a sorte sorriu para
Palmares. Foi quando os holandeses desembarcaram em Pernambuco, na tentativa de tirar
os lucros do açúcar das mãos de portugueses e espanhóis, então governados pelo mesmo
rei. A invasão colocou em polvorosa o Nordeste. Com a vitória inicial dos holandeses,
em 1645, parte dos luso-brasileiros manteve uma espécie de guerrilha.
A presença de brancos em Palmares foi alvo de discussão, mas sabe-se que isso ocorreu
depois em quilombos de outras regiões. Apesar da suposta hostilidade em relação aos
brancos, há indícios de que criadores de gado levavam seus rebanhos para pastar na região
de Palmares e mantinham comércio com os quilombolas, a ponto de serem chamados,
com desdém, de “colonos dos negros”.
Em relação aos índios, o convívio parece ser mais evidente. Escavações arqueológicas
têm encontrado cerâmica indígena, provavelmente contemporânea ao quilombo. “É
tentador fazer essa associação e dizer que havia índios dentro do quilombo, mas pode se
tratar também de algum tipo de comércio”, diz o arqueólogo americano Scott Allen, da
Universidade Federal de Alagoas.
Já segundo Pedro Paulo Funari, historiador e arqueólogo que integrou a primeira equipe
a fazer sondagens no local, a cerâmica indica que havia índias em Palmares: “A produção
de cerâmica estava ligada às atribuições das mulheres. A presença desse material em
Palmares pode querer dizer que os ex-escravos tinham esposas indígenas”.
Coisa perfeitamente consistente com a escassez de mulheres negras por lá. De qualquer
modo, a mestiçagem estava na ponta da língua dos palmarinos. Seu idioma parecia ter
uma base africana misturada a palavras e estruturas tiradas do português e do tupi – os
colonos precisavam de intérpretes para falar com eles.
Guerra e paz
Para a maioria dos especialistas, foi nessa época de relativa calmaria que Zumbi teria
nascido em Palmares. Um dos motivos para sustentar que o líder nasceu ali mesmo e não
chegou depois, fugindo da escravidão, é o fato de que ele seria sobrinho de Ganga-Zumba.
Porém, o traço familiar é também incerto. Para Mário Maestri, a designação de “sobrinho”
não deve ser entendida literalmente. “A trama de parentescos deve ter sido sobretudo
simbólica. As condições históricas não teriam permitido a formação de um clã familiar
que dominasse politicamente Palmares”, diz Maestri. Assim, dizer que Zumbi era
“sobrinho” de Ganga-Zumba equivaleria a afirmar que ele era um protegido do chefe.
Exceto pelo texto de Décio, não há outro relato sobre a juventude de Zumbi. Ele deve ter
crescido num período anterior à guerra que os portugueses moveram contra o quilombo,
impulsionados pela falta de mão de obra nos engenhos. Nessa época, a vida social em
Palmares era um arremedo daquilo que seus habitantes conheciam dos antepassados na
África, talvez com elementos indígenas e até portugueses incorporados ao seu cotidiano.
Seus líderes, a exemplo de Ganga-Zumba, deviam ser guerreiros e guias religiosos. Não
sabemos se Zumbi se casou ou teve filhos (embora a carta do rei de Portugal, reproduzida
no início desta reportagem, sugira isso). Zumbi é geralmente descrito como guerreiro
porque os relatos sobre ele aparecem num período de guerra. Mas não é difícil imaginar
que, em tempos de paz, Zumbi plantasse mandioca e caçasse porcos-do-mato.
General Zumbi
Foi num relatório do comando militar da capitania de Pernambuco, escrito por volta de
1670, que o nome Zumbi aparece citado pela primeira vez. O documento atribui a ele o
sucesso dos ex-escravos “fugidos” nos combates com colonos nas cercanias da serra da
Barriga. Zumbi seria o homem de confiança do chefe Ganga-Zumba, uma espécie de
general dos exércitos de Palmares.
Sob ataques constantes, Palmares se tornou uma fortaleza, com diversos povoados
cercados por muralhas reforçadas de pau a pique. Na encosta que levava até a vila de
Macaco, os quilombolas cavavam buracos, colocavam estacas no fundo e as cobriam com
folhas secas. Isso era tão comum que o local entrou para os mapas dos soldados coloniais
com o apelido de Outeiro dos Mundéus (mundéu, ou mundé, é justamente o nome dessa
armadilha).
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Por volta de 1675, as comunidades atacadas financiaram uma grande expedição militar
sob o comando de Fernão Lopes Carrilho, que já tinha enfrentado e vencido índios e
escravos rebeldes em outros cantos do Nordeste. Ele aprisionou ou matou vários dos
principais chefes do quilombo, feriu o próprio Ganga-Zumba e quase capturou a mãe do
líder. Carrilho chegou a anunciar que tinha destruído Palmares de vez. Não era verdade,
mas, pela primeira vez em décadas, a situação forçou Ganga-Zumba a negociar.
Em 1678, uma missão enviada pelo “rei de Palmares”, como foi anunciado, adentrou o
Recife. Um cronista escreveu: “Notável foi o alvoroço que causou a vista daqueles
bárbaros. Porque entraram com seus arcos e flechas, e uma arma de fogo, corpulentos e
valorosos todos”. O acordo de paz previa que os nascidos em Palmares ficariam livres,
ganhariam terra para cultivar, direito de comercializar com seus vizinhos e a condição de
vassalos de Portugal. Parecia ótimo, não fosse o fato de que os escravos libertados (e
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talvez o próprio Zumbi, de acordo com aqueles que defendem a tese de ele nasceu escravo
e fugiu para Palmares) teriam de voltar para seus senhores.
Sem acordo
As autoridades coloniais e o próprio rei de Portugal tentaram repetidas vezes oferecer ao
novo chefe um acordo semelhante ao que fizeram com Ganga-Zumba, mas Zumbi nunca
aceitou. No início da década de 1690, o bandeirante Domingos Jorge Velho foi chamado
e recebeu a missão de liderar uma expedição para caçar e exterminar de vez os focos de
resistência em Palmares.
A lenda
Curiosamente, a história acima sobre a morte do líder permaneceu esquecida durante
muito tempo. Tudo em nome de uma versão mais, digamos, épica: “Até o início dos anos
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1960, a historiografia dizia que Zumbi e outros tantos em Palmares tinham cometido
suicídio em 1694, ao se atirar dos penhascos da serra da Barriga”, diz Flávio Gomes. Para
reforçar ainda mais a aura lendária, a narrativa do suicídio coletivo tem paralelos com o
que teriam feito os judeus que defendiam a fortaleza de Massada, no século 1 (diante da
iminente derrota, eles preferiram se jogar das montanhas a cair nas mãos dos invasores
romanos).
Essa visão pode, portanto, ter sido forjada por um cronista português cheio de histórias
da Antiguidade na cabeça. O fundo de verdade por trás disso é que Jorge Velho precisou
construir uma contramuralha, na diagonal em relação ao muro da vila de Macaco, de
forma a poder levar seus canhões perto o suficiente para arrasar as defesas de Zumbi.
A obra avançou bastante, mas ainda havia uma pequena brecha entre ela e um desfiladeiro
quando os palmarinos a descobriram. Zumbi, então, ordenou o ataque através da
passagem que restava. Os guerreiros de Palmares foram repelidos e cerca de 500 deles
acabaram rolando barranco abaixo, o que parece ter sido interpretado, erroneamente,
como suicídio.
Mas de fato há relatos de que, quando os soldados coloniais entraram em Macaco e nos
demais povoados, algumas mães palmarinas mataram seus filhos e a si próprias para
evitar a escravidão.
Reinaldo Lopes