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O conceito de quilombo e a resistência procedimento de historiadores desta parte do

cultural negra • mundo repousa na ruptura da identidade dos


negros e seus descendentes, tanto em relação
Beatriz Nascimento •• ao seu passado africano quanto à sua trajetória
na própria história dos países em que foram
alocados após o tráfego negreiro.
Objetivos
Numerosas foram as formas de resistên-
1) Caracterizar o quilombo como institui­ cia que o negro manteve ou incorporou na luta
ção africana, de origem angolana, na história árdua pela manutenção da sua identidade pes-
da pré-diáspora. soal e histórica. No Brasil, poderemos citar uma
2) Indicar as conotações que tal instituição lista destes movimentos que no âmbito social
recebe no período colonial e Imperial no Brasil. e político é o objetivo do nosso estudo, Trata-
3) Caracterizar a instituição quilombo na se do Quilombo (Kilombo), que representou na
passagem para princípios ideológicos como história do nosso povo um marco na sua capa-
forma de resistência cultural. cidade de resistência e organização. Todas estas
4) Historicizar a ideologia junto às etapas formas de resistência podem ser compreendi-
do movimento de conscientização do negro e das como a história do negro no Brasil.
da sociedade brasileira no século XX.
O quilombo como instituição africana
Introdução
Dois incentivos iniciais fizeram com que
A visão que o mundo ocidental procurou os portugueses, ao contrário dos demais euro-
transmitir da África foi a de um continente iso- peus, se internassem no continente africano e
lado e bizarro, cuja História foi despertada com procurassem conquistar uma colônia em Ango-
a chegada dos europeus. Da mesma forma que la. O primeiro seria repetir o caso brasileiro, ou
se deu com o território de origem do povo ne- seja, adquirir terras próprias para se fixar como
gro, a História deste só o é se tiver sido marca- naquela colônia americana. O Segundo objeti-
da por acontecimentos significantes da História vava encontrar minério precioso em Angola,
da civilização ocidental. O risco maior de tal objetivo logo frustrado.
Os Europeus descobriram ainda no século
XV que a maior fonte de riquezas era o tráfico
escravista. O Brasil passou a ser o maior recep-
• Publicado originalmente em: Afrodiáspora Nos. 6-7, pp. 41-
49. 1985. tor desta “mercadoria” nos meados do século
•• Beatriz Nascimento é historiadora, professora da UFRJ e
militante do movimento negro. XVI. Decorrente da procura de escravos inten-

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sificou-se a penetração interior, geralmente or- David Birmingham dá bem a mediada
ganizada pelo rei do Congo que orientava os dos conflitos existentes nas socieades bantus
ataques dos portugueses. da África centro-ocidental no momento da
A “zona de caça” preferida era a região da penetra­ção portuguesa. Diversas etnias se en-
etnia mbundu, no sul de Angola. No século XVII trechocam, se sucedem no mesmo espaço, seja
os portugueses verificaram definitivamente aderindo ao novo momento, seja resistindo a
que o comércio humano mais que qualquer esta penetração. Dentre estas vamos encontrar
atividade atendia aos interesses coloniais. Três os Imbangalas, também conhecidos como Ja-
métodos principais se mostraram eficazes para gas, caçadores vindos do Leste que, por volta
este empreendimento. O primeiro baseava-se de 1560, começam a invadir o Reino do Congo
na compra por traficantes nos mercados dos po- e que por volta de 1569 tinham conseguido ex-
vos mais afastados, junto às fronteiras do Con- pulsar o rei e os portugueses da capital, obrig-
go e de Angola. Mpunbu, povo fixado próximo ando-os a exilar-se numa ilha no rio. Entre 1571
ao lago Stanley, deu nome a estes traficantes, e 1574 os europeus, usando armas de fogo, fa-
os famosos pombeiros. O segundo método zem recuar este combativo povo.
consistia na forma de obter escravos através da Dez anos mais tarde os Imbangalas com-
imposição de tributos aos chefes mbundus con- batiam ao lado dos mbundu contra a penetra-
quistados. Tal tributo era pago em jovens escra- ção portuguesa. Sua entrada no território do
vos adultos conhecidos sob o nome de peças da mbundus foi precedida de uma luta feroz entre
índia. O terceiro método de adquirir escravos Ngola, chefe dos mesmos, e Kingui, chefe dos
era através de guerras diretas. Os governadores Imbangala.
eram os mais interessados neste último proce­ Os Imbangalas que dominaram Angola
dimento. Alguns deles, com interesses no Bra- eram considerados um povo terrível, que vivia
sil, preocupavam-se em abastecer de escravos inteiramente do saque, não criava gado, nem
suas próprias terras americanas. possuía plantação. Ao contrário das ouras linha­
Ao entrar no continente africano, os euro- gens, não criavam os filhos, pois estes poderiam
peus encontraram sociedades de diversos tipos, atrapalhá-los nos diversos deslocamentos que
naquele momento em processo de redefinição, se faziam necessários. Matavam-nos ao nascer
na medida em que surgia em alguns pontos a e adotavam os adolescentes das tribos que der-
organização do Estado. Este, como o exemplo rotavam. Eram antropófagos e em sua cultura
do Reino do Congo, chocava-se com algumas adereços, tatuagem e vinho de palma tinham
formações tradicionais, como no caso das for- especial significado.
mações baseadas no modo de produção de Esta característica nômade dos Imbanga-
linha­gem da qual o mbundus faziam parte. las, acrescida da especificidade de sua forma-

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ção social, pode ser reconhecida na instituição Observando-se a interrelação entre Brasil e
Kilombo. A sociedade guerreira Imbangala era Angola, frente ao tráfico negreiro, não é difícil
aberta a todos estrangeiros desde que iniciados. estabelecer conexão entre a história desta ins­
Tal iniciação substitui o rito de passagem das tituição na África (Angola) e aqui. A dificuldade
demais formações de linhagem. Por não con- está em se estabelecer linhas de contato direto,
viverem com os filhos e adotarem os daquelas como por exemplo, entre a formação de um
formações com as quais entravam em contato, quilombo aqui e suas origens territoriais e de
os Imbangalas tiveram papel relevante neste composição étnica em Angola. Se os componen-
período da história angolana, a maior parte das tes nacionais eram descendentes diretos dos en-
vezes na resistência aos portugueses, outras volvidos na África, ou ainda se haveria relação
no domínio de vastas regiões de fornecimento direta com quilombos combativos aqui e gru-
de escravos. Por tudo isto, o Kilombo cortava pos africanos que atuavam na zona de guerra
transversalmente as estruturas de linhagem e naquele momento do outro lado do Atlântico.
esta­belecia uma nova centralidade de poder
fren­te às outras instituições de Angola.
O quilombo como instituição no período
O ritual de iniciação baseava-se na prática
colonial e Imperial no Brasil
da circuncisão que expressava o rito de passa-
gem incorporando jovens de várias linhagens A primeira referência a quilombo que surge
na mesma sociedade guerreira. Kilombo aqui em documento oficial português data de 1559,
recebe o significado de instituição em si. Seria mas somente em 1740, em 2 de dezembro, assus-
Kilombo os próprios indivíduos ao se incorpo- tadas frente ao recrudescimento dos núcleos de
rarem à sociedade Imbangala. população negra livres do domínio colonial, de-
O outro significado estava representado pois das guerras do nordeste no século XVII, as
pelo território ou campo de guerra que se de- autoridades portuguesas definem, ao seu modo,
nominava jaga. o que significa quilombo: “toda a habitação de
Ainda outro significado para Kilombo di­ negros fugidos que passem de cinco, em parte
zia respeito ao local, casa sagrada, onde proces- desprovida, ainda que não tenham ranchos le-
sava-se o ritual de iniciação. vantados nem se achem pilões neles”.
O acampamento de escravos fugitivos, as- Como esclarecimento, as guerras do nor-
sim como quando alguns Imbangalas estavam deste referidas acima dizem respeito à destrui­ção
em comércio negreiro com os portugueses, do Quilombo dos Palmares, assim como toda a
também era Kilombo. agitação que se processou ao redor deste núcleo.
Mais tarde, no século XIX, as caravanas de Dos quilombos brasileiros, no século XVII,
comércio em Angola recebiam esta denominação. sem dúvida Palmares se sobressai sem similar.

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Das notícias da época, a quantidade destes es- Certo é que o nome Angola dado ao ter-
tabelecimentos está diretamente relacionada ritório colônia africano derivou do nome do rei
ao desmembramento deste grande estado que mbundu N‘gola, o qual emprestou-o aos seus
inaugura uma experiência singular na História diversos descendetes-sucessores. Provavel-
do Brasil. mente representantes desta dinastia africana
Se inferirmos, através de coincidência de são transferidos pelo tráfico para o Brasil. Cer-
datas, vamos notar que o Quilombo de Pal- to é que estejam em Palmares também como
mares não deixa de ser fenômenos paralelo ao chefes do estabelecimento sedicioso. Provável
que está se desenrolando em Angola no final que o segundo nome janga – variação de jaga
do século XVI e início do século XVII. Talvez – demonstra a união destas duas linhagens che-
seja este quilombo o único a se poder fazer cor- fiando o Quilombo de Palmares, porque assim
relação entre o Kilombo instituição angolana e estavam relacionados no controle do território
quilombo no Brasil colonial. O auge da resistên- mbundu em Angola.
cia Jaga se dá exatamente entre 1584 e meados Estas considerações em torno deste Quilom-
do outro século, após o qual esta etnia se alia ao bo no Brasil nos dão a medida do quanto as re-
esforço negreiro português. Neste mesmo mo- alidades de Brasil e Angola estavam num está-
mento se estrutura Angola-Janga, conhecido gio ainda possível de inter-relação. Os demais
como quilombo dos Palmares no Brasil. quilombos vão se distanciando do modelo afri-
Alguns outros fatores coincidentes com a re- cano e procurarão um caminho de acordo com
alidade angolana podem ser remarcados, como as suas necessidades em território brasileiro.
por exemplo, a nominação do chefe africano de Falta ainda um esforço historiográfico de, ao
Palmares Ganga Zumba. Tal título era dado ao estudar os quilombos brasileiros, defini-los se-
rei Imbangala com uma pequena variação: Gaga. gundo suas estruturas e sua dinâmica no tempo.
O adorno da cabeleira verificado pelo cronista De um modo geral define-se quilombo como se
quando o rei palmarino conferencia em Recife em todo o tempo de sua história fossem aldeias
a trégua que tem o seu nome: era costume do do tipo que existia na África, onde os negros se
Imbangala Calando, por exemplo, usar o cabelo refugiavam para “curtir o seu banzo”.
em tranças longas adornadas de conchas, como No período colonial o quilombo se carac-
sinal de autoridade. O estilo da guerra, baseada terizou pela formação de grandes Estados, como
numa máquina que se opunha em várias frentes o da Comarca do Rio das Mortes em Minas
aos prováveis inimigos da instituição, ou seja, a Gerais, desmembrado em 1750. Podemos afir-
corte transversal e a centralidade nova frente ao mar que como Palmares este quilombo age de
regime colonial. Por fim, o nome dual da insti- acordo com as condições estruturais, inclusive
tuição no Brasil Angola-Janga. econômica, no contexto dos “ciclos” econômicos

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no Brasil. Antes o açúcar de Pernambuco, agora Além disso, aliado no espaço e no tempo
o ouro em Minas Gerais. ao sistema social escravagista não seria de todo
Dentro desta perspectiva se é possível en- impossível em alguns momentos tal instituição
cará-los como sistemas sociais alternativos, ou interferir na economia dos grandes quilombos.
no dizer de Ciro Flamarion: brechas no sistema Um exemplo de tal prática infere-se do assen-
escravista. timento de Ganga-Zumba em transformar os
Um ponto importante e em certa medida palmarinos não-adesistas à trégua de Recife em
controverso é a atitude desses grandes estab- escravos coloniais.
elecimentos frente ao regime da escravidão. É Mas é preciso recordar que o escravo colo-
preciso reforçar, que o Africano não é um ser nial, ao aderir ao quilombo, muitas vezes pode-
estereotipado na acepção do “bon sauvage” ria fazê-lo na condição do escravo voluntário.
e que a África não era necessariamente um É perfeitamente compreensível desde que tal
paraíso bizarro. prática era largamente utilizada em África.
A instituição da escravidão era conhecida Isto posto, o que difere entre quilombos
e utilizada desde a Antiguidade africana, en- do século XVII dos demais era a possibilidade
tretanto esta escravidão não tinha o caráter de de grupos e etnias comuns ainda poderem ser
“propriedade” encontrado no sistema escra- encontrados num espaço territorial e voltados
vagista colonial. Antes, diversos fatores leva- para um tipo de economia, o que dá a medi-
vam um homem livre à condição de escravo, da de risco que representavam para o sistema
entre eles as guerras vizinhas em momento de colonial. Podemos mesmo afirmar que estes
instabilidade política; os filhos de mãe escrava quilombos são o primeiro momento da nossa
não resgatados; dependência devido a castigo história em que o Brasil assim se identifica en-
imposto pela quebra de normas grupais, peri- quanto Estado centralizado.
go de vida dentro do grupo que poderia levar A partir do desmembramento dos quilom-
ao pedido de proteção de outra linhagem, a bos do Tijuco e da Comarca do Rio das Mortes
chamada “escravidão voluntária”. no século XVIII, o quilombo se redefine vari-
Frente a este último fator, o quilombo ando conforme a área geográfica, a repressão
sendo uma instituição de homens egressos da oficial e a diversidade étnica, que se torna cada
escravidão colonial ou em perigo frente a esta, vez mais comum quanto foi a política negreira
cujos laços estavam baseados em condições de misturar povos de origem diversa.
extraordinárias, poderia perfeitamente fazer Neste século a proliferação de quilombos
uso destes mecanismos tradicionalmente con- se faz em todo território das capitanias coloni-
hecidos e suportar no seu interior a prática da ais. A diferença básica ente estes e os do século
escravidão. XVIII está diretamente vinculada à impossibili-

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dade de cada um em si representar um risco ao Outro dado importante do período é que
sistema. Nesse particular, tanto no século XVII os quilombos de grande porte se encontram em
quanto no século XIX, esta instituição procede morros e periferias dos centros urbanos mais
como frinchas nos sistema, muitas vezes con- importantes como o de Catumbi, o do Corcova-
vivendo pacificamente, que ao ser vista global- do, o de Manuoel Congo, no Rio de Janeiro im-
mente, ou seja, em todo o espaço territorial e perial. Muitos destes quilombos se organizam
em todo o tempo histórico, traduzia uma ins­ dentro de um arcabouço ideológico, ou seja, a
tabilidade inerente ao sistema escravagista. A fuga implica numa reação ao colonialismo. Já
oscilação das atividades econômicas, ora numa existe neste momento a tradição oral ao lado de
região, ora noutra, provocava muitas vezes o af- referências literárias do fenômeno no passado.
rouxamento dos laços entre os escravos e senho­
res. A fuga passa a ser uma instituição decor-
O quilombo como passagem para princípios
rente desta fragilidade colonial e integrante da
ideológicos
ordem do quilombo. O saque, as razzias, enfim
o banditismo social, são a tônica que define a É no final do século XIX que o quilombo
sobrevivência desses aglomerados. recebe o significado de instrumento ideológico
É assim que no Código de Processo Penal contra as formas de opressão. Sua mística vai
de 1835 o quilombo no sentido de valhacouto de alimentar o sonho de liberdade de milhares de
bandidos se distingue de qualquer outra forma escravos das plantações em São Paulo, mais das
de contestação dos escravos. Mas se assemelha vezes através da retórica abolicionista.
enquanto perigo à estabilidade e integridade do Esta passagem de instituição em si para
Império, sendo a pena para os seus integrantes símbolo de resistência mais uma vez redefine
correspondentes à mesma dos participantes de o quilombo. O surgimento do quilombo do
insurreições: ou seja, a degola. Jabaquara é o melhor exemplo. Os negros fugi-
Neste período ele está inserido no chama- dos das fazendas paulistas migram para Santos
do “perigo negro”, movimento que assim se em busca de um quilombo que era apregoado
denomina em função das guerras da Bahia e pelos seguidores de Antonio Bento, quilombo
do Maranhão. Sindicâncias policiais são feitas este que na verdade viria a ser uma grande
de acordo com denúncias, muitas vezes não favela, frustrando aquele ideal de território
confirmadas. Em outras ocasiões são encon- livre onde se podia dedicar às práticas culturais
trados grupos sociais que desenvolvem nos africanas e ao mesmo tempo uma reação mili-
quilombos intensas práticas religiosas. Como tar ao regime escravocrata.
o Exemplo do quilombo de N.Sa. dos Mares e É enquanto caracterização ideológica que
Cabula, em Salvador. o quilombo inaugura o século XX. Tendo fin-

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dado o antigo regime, com ele foi-se o estabe­ um Brasil mais justo onde houvesse liberdade,
lecimento como resistência à escravidão. Mas união e igualdade.
justamente por ter sido durante três séculos Ao analisarmos esta conotação, não
concretamente uma instituição livre, paralela poderíamos esquecer da heroicidade tão in-
ao sistema dominante, sua mística vai alimentar trinsecamente ligada à história dos quilombos.
os anseios de liberdade da consciência nacional. Como não poderia deixar de ser, a figura do
Assim é que na trilha da Semana de 22, a edição herói é enormemente destacada, principalmente
da coleção Brasiliana da Editora Nacional pu- a figura de Zumbi, e isto mais do que tudo neste
blica três títulos sobre o quilombo, de autores período ganha uma representação capaz de ao
como Nina Rodrigues, Ernesto Enne, e Edison lado de muito poucos a imagem deste chefe se
Carneiro. Não deixando de citar Artur Ramos e confundir com uma alma nova nacional.
Guerreiro Ramos, além, da versão romanceada Não chega a ser exagero afirmar que en-
um pouco anterior de Felício dos Santos. tre 1888 e 1970, com raras exceções, o negro
Este momento de definição da naciona- brasileiro não pôde expressar-se por sua voz na
lidade faz com que a produção intelectual se luta pelo reconhecimento de sua participação
debruce sobre este fenômeno buscando seus social. Soa interessante que tal expressão vem
aspectos positivos como reforço de uma iden- há a acontecer num momento em que o país es-
tidade histórica brasileira. Mas não só nela, tava sufocado sob uma forte repressão ao livre
em outras manifestações artísticas o quilombo pensamento e à liberdade da reunião. Este era
é relembrado como desejo de uma utopia. A o momento dos anos 70.
maior ou menor familiaridade com as teorias Talvez por ser um grupo extremamente
da resistência popular marcam esta produção, submetido e que não oferecia um imediato
que é inclusive demonstrada em letras de perigo às chamadas instituições vigentes, os ne-
samba. Muitas vezes referidas em instituições gros puderam inaugurar um movimento social
escolares. É comum até 1964 a narrativa da baseado na verbalização ou discurso veiculado
história oficial ser encontrada nos livros esco- à necessidade de auto-afirmação e recuperação
lares. De todo modo, até os anos 70, o quilom- da identidade cultural.
bo adquire este papel ideológico fornecendo Foi a retórica do quilombo, a análise deste
material para a ficção participativa como o como sistema alternativo, que serviu de símbo-
caso da peça tea­tral Arena Contra Zumbi, bus- lo principal para a trajetória deste movimento.
cando o reforço da nacionalidade brasileira Chamamos isto de correção da nacionalidade.
através do filão da resistência popular às for- A ausência de cidadania plena, de canais rei-
mas de opressão, confundido num bom sen- vindicatórios eficazes, a fragilidade de uma
tido o território palmarino com a esperança de consciência brasileira do povo, implicou numa

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rejeição do que era considerado nacional e di- povo negro, sinônimo de comportamento do
rigiu este movimento para a identificação da negro e esperança para uma melhor sociedade.
historicidade heróica do passado. Passou a ser sede interior e exterior de todas
Como antes tinha servido de manifesta- as formas de resistência cultural. Tudo, de ati-
ção reativa ao colonialismo de fato, em 70 o tude à associação, seria quilombo, desde que
quilombo volta-se como código que reage ao buscasse maior valorização da herança negra.
colonialismo cultural, reafirma a herança afri­ Hoje, o 20 de novembro é data instituída de
cana e busca um modelo brasileiro capaz de fato no calendário cívico nacional, como Dia da
reforçar a identidade étnica. Consciência Negra ou Afro-Brasileira.
Toda a literatura e a oralidade histórica so-
bre quilombos impulsionaram este movimento
Considerações finais
que tinha como finalidade a revisão de concei-
tos históricos estereotipados. Este esboço de estudo tentou trazer uma
Com a publicação de artigo no Jornal do unidade no tempo do fenômeno quilombo. Foi
Brasil em novembro de 1974, o grupo Palmares escolhido um método descritivo por acharmos
do Rio Grande do Sul, do qual participava en- que caberia este esforço na medida em que as
tre outros o poeta Oliveira Silveira, sugeria que variáveis do quilombo são negligenciadas ofi-
a data de 20 de novembro, lembrando o assas- cialmente. Por outro lado seria necessário um
sinato de Zumbi e a queda do Quilombo dos corpo analítico para se compreender por que
Palmares, passasse a ser comemorada como este fenômeno sobrevive no inconsciente cole-
data nacional contrapondo-se ao 13 de maio. tivo dos negros e da inteligência brasileira.
Argumentava que a lembrança de um acon- Durante sua trajetória o quilombo serve de
tecimento em todo os sentidos dignificante da símbolo que abrange conotações de resistên-
capacidade de resistência dos antepassados cia étnica e política. Como instituição guarda
traria uma identificação mais positiva do que carac­terísticas singulares do seu modelo afri-
a Abolição da escravatura, até então vista como cano. Como prática política apregoa ideais de
uma dádiva de cima para baixo, do sistema es- emancipação de cunho liberal que a qualquer
cravagista e de S. Altera Imperial. momento de crise da nacionalidade brasilei-
Sua sugestão foi imediatamente aceita e ra corrige distorções impostas pelos poderes
a procura de maiores esclarecimentos sobre dominantes. O fascínio de heroicidade de um
aqueles fenômenos de resistência tomou forma povo regularmente apresentado como dócil
de aulas, debates, pesquisas e projeções que e subserviente reforça o caráter hodierno da
alimentaram o anseio de liberdade de jovens comunidade negra que se volta para uma ati-
através de entidades, escolas, universidades e tude crítica frente às desigualdade sociais a
da mídia. Quilombo passou a ser sinônimo de que está submetida.

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Por tudo isto o quilombo representa um Daquilo que se chama cultura •
instrumento vigoroso no processo de reco­
nhecimento da identidade negra brasileira para Beatriz Nascimento••
uma maior auto-afirmação étnica e nacional.
O fato de ter existido como brecha no sistema
No ensaio “Moisés e o Monoteísmo” [,]
em que negros estavam moralmente submeti-
Freud arrisca-se a adentrar num campo, se não
dos projeta uma esperança de que instituições
estranho, surpreendente. No decorrer da leitu-
semelhantes possam atuar no presente ao lado
ra deste texto [,] chama-nos a atenção, de nosso
de várias outras manifestações de reforço à
prisma leigo, que um psicanalista, concebido
identidade cultural.
como interessado mormente na problemática
individual, enverede pela trajetória mítico-reli-
giosa da comunidade à qual pertencia. Faz-se
Bibliografia
curioso notar o fato de um judeu ilustre tentar
explicar, psicanaliticamente, a origem e a fun-
BIRMINGHAM, David (1973). A conquista
ção do mito do herói exatamente sob a égide
Portuguesa de Angola: a Regra do Jogo. Lisboa.
ameaçadora do nazismo. Surpreende-nos não
CARNEIRO, Edison (1965). O Quilombo
só a temática, o mito do herói, mas também o
dos Palmares. Rio Civilização Brasileira.
momento histórico no qual Freud se debruçou
CONRAD, Robert (1975). Os últimos
sobre esta. Seria possível estabelecer uma co­
anos da escravatura no Brasil. Rio: Civilização
nexão entre esses dois elementos? É o que pro-
Brasileira/ MEC.
curaremos investigar.
FREITAS, Décio (1971). Palmares, a guerra
Interessa-nos apurar até que ponto o en-
dos escravos. Porto Alegre: Editora Movimento.
saio “Moisés e o Monoteísmo”, poderia ser con-
NASCIMENTO, Abdias (1980). O Quilom-
siderado como produto da crítica da identidade
bismo. Rio/Petrópolis: Editora Vozes.
pessoal e cultural do autor23. Como poderíamos
NASCIMENTO, Maria Beatriz (1978). “O
compreender seu interesse pela análise do herói
quilombo do Jabaquara”. Revista de Cultura
Vozes (maio-junho).
RODRIGUES, José Honório (1970). “A re-
beldia negra e a abolição”, História e Historio-
grafia. Petrópolis: Vozes. • Publicado originalmente em: Jornal IDE. No. 12. Sociedade
SERRANO Carlos (1982). “História e Brasileira de Psicanálise – São Paulo. Dezembro, 1986, p. 8.

antropologia na pesquisa do mesmo espaço: a •• Beatriz Nascimento é negra, historiadora e engajada no


Movimento Negro.
Afro-América”. África – Revista do Centro de 23 Grifo da autora na versão datilografada. Arquivo Nacional.
Estudos Africanos da USP (nº 5). Código 2D. Cx. 22. Doc. 4.

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