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Urdume

EDIÇÃO 7 • ANO 3

Mulheres
de renda
Mural Mimoso,
trabalho da
iniciativa
Ómana com
rendeiras de
Pernambuco
e da Paraíba.

Cosmovisão Têxtil Páginas Azuis “Eu preciso dessas


A Jiboia e a aranha são A designer Julia Vidal palavras-escrita”
elementos fundamentais acredita na roupa como Arthur Bispo do Rosário abrigava
na concepção dos tecidos veículo de comunicação dentro de si um desejo imenso
e grafismos Huni Kuin e educação decolonial de liberdade da alma humana
INSTITUTO URDUME
I N S T I T UTO
Urdume
Diretoria Executiva: Estefania Lima,
Gustavo Seraphim e Nathália Abdalla

Conselho Fiscal: Valderi de Almeida,


Bianca Ramalho e Paula Melech

Buscamos sustentar múltiplos fios para descrever e revelar Conselheiros consultivos: Alexandre Hebert,
o ecossistema político, econômico, cultural e social que Hanayrá Negreiros e Mariana Guimarães
envolve o labor, o trabalho e as artes manuais têxteis.

Rua Rio Grande do sul, 531


O Instituto Urdume é um desdobramento do amadurecimento da Revista Urdume
que, ao longo de suas edições, se constituiu como uma iniciativa ampla e cartográfica Água Verde - Curitiba/PR - CEP 80620-080
das várias formas de expressão cultural e social das artes manuais têxteis. Atuamos com
pesquisa, difusão, documentação de informações e abordamos temas como:

Expediente
Cultura material Educação Moda Arte e artesanato REVISTA URDUME
e espaço doméstico

Relações de gênero Labor


Decolonialismo e masculinidades
Idealizadora e editora-chefe: Estefania Lima

Expressão e Geração Jornalista responsável: Paula Melech - DRT 6431


Terapias Jornalismo lento de renda
autoconsciência
Editora de arte: Nathália Abdalla
Ritos e ancestralidade Cosmotécnicas 
Gestor de projetos: Gustavo Seraphim

​O Instituto Urdume é uma organização sem fins lucrativos, por isso conta
com o apoio de pessoas físicas e jurídicas para realizar suas iniciativas. Sugestão de pautas
contato@urdume.com.br
Você pode nos apoiar e contribuir para continuarmos produzindo
conhecimento e desenvolvendo projetos gratuitos para o fortalecimento Para patrocinar a URDUME
e valorização das artes têxteis no Brasil. gustavo@urdume.com.br

Saiba mais sobre as formas de apoiar o Instituto Urdume em: Publicação independente
www.urdume.com.br / @urdumeinstituto
Apoiadores
do financiamento Luciano Correa da Fonseca
Lucinéa Dobrychlop
Luis Henrique Costa
Nayamim dos Santos Moscal
Nayara Moreno de Siqueira
Nina Veiga
Scheila Laís Eggert
Silvia Souza de Araujo
Simone Rothier Duarte Rocha

coletivo Luísa Covolan Baltazar


Maria Cecilia Fabricio de Paula
Maria Helena Gomes Koehne
Patricia Brito
Paula Mariana Gomes
Priscila Amaral Quaquio
Stela Horta Figueiredo
Stella Ferreira
Susana Fernandez
Maria Silvia de Araujo Priscila Carboni Martins Sylvia Alvarez
Adriana Fernandes Carol Marim Fernanda Miranda Maria Virginia de Almeida de Priscila Scalercio Tabta Rosa de Oliveira
Alexandra Becker Vedolin Carolina Bouvie Grippa Fernanda Wieser Aguiar Rafaela do Amor Tatiane Moura do Nascimento
Alexandre Heberte Caroline Cassiana Flávia A Loop Maria de Fátima C S Rosa Rafaela Portiolli Tümmler Telma Hoyler
Aline Gonet Caroline Heinig Voltolini Flavia Arruda Rodrigues Mariana Moschkovich Athayde Renata Malachias Tavares Thais Faria
Almir Teubl Sanches Celi Kazuko Sakata Gabriela Ferreira Mariana Watanabe Renata Matteoni Thaiza Duarte
Ana Amelia Barros Coelho Cesar Gomes de Oliveira Giulia Ciavatta Marilda H de M Blauth Renato Dib Vanessa Freitag
Ana Beatriz Quinto Martins Christiane Costa de Carvalho Greice Lopes Marileide Lima de Araujo Tor- Renato Souza Pereira Gomes Vanessa Vitoriano da Silva
Ana Beatriz Rabelo Andrade Christina Cupertino Gustavo Henrique Schoz res Lima René Gomes Scholz Vera Malaco
Ana Elisa Santos Patrocino Ciça Costa Helena Kussik Michelle Colby DeMattos Rita Maria Araujo Costa Verônica Benévolo Lopes
Ana Lucia Alves dos Santos Claudia Broetto Rossetti i2 Produções Mônica Rizzo Soares Rosana Pierri Vinícius Azevedo
Ana Lúcia Peres Leal Clemair Gomes Krukowski Iara Ferreira Oliveira Natália Corbi Rosileia Oliveira Medeiros Uirá Machado
Ana Maria dos Reis Cleo Do Vale Izabella Vilas Bôas nathalia leite abdalla Sa Brina William Silva
Andrea Cordeiro Cléo Rocha Ramos Jessica Juliana Commandulli Nathalie Fett Gloeden Belfort Sabrina Martins Zinia M C Carvalho
Andréa Morais Antunes Craft Art Brasil Joana Pires
Andressa Lopes Cristiane Garcia M. Prado Joedy Luciana Barros Marins
Anne Louise Galante Cristina Lisot Bamonte
Antonietta Studio Daniela Josefina de Jesus Savio
Atelier Textil Daniela Amaral Brito Júlia Mariano Ferreira organizações apoiadoras
Bárbara Poerner Dayane Kelly Rodrigues Júlia Ulbrich
Beatriz Megale Denise Duarte Bruno Juliana Assunção
Bianca Ávila denise k noguti Juliana Caputo
Bianca Ávila Elenice Tamashiro Juliane Carla Lopes Prado
Bruna Rychelle Elizabeth Horta Correa Karin Cardoso
Bruno Lopes Zanetta Emerson Luiz Peres Lais Pennas
Caixa Secreta Eno Lippi Rachkorsky Laiz Lourenco Ferreira
Camila Hisano Kumagai Fabio Sasseron Laura Artigas
Camila Iwazaki Felipe Arruda Leilane Ferreira Arães
Camila Leonel Nascimento Fernanda Cortez Leonardo Brant
Carol Stoppa meiofio Fernanda Frias Lívia Maria da Silva
Foto: Bruna Brandão © Copyright Instituto Yube Inu
sumário

Nesta edição redes


O crochê ta ON! 84

colunas
editorial 6 Dani Nogueira 87
capa
Colaboradores 7 Mulheres de Rendas 28 Joedy Marins 88

páginas azuis aNCESTRALIDADE


Na rota dos Huipiles 40 MEMÓRIA
Entrevista com Julia Vidal 10
Tapeçaria contemporânea
gaúcha 90
reflexões POVOS ORIGINÁRIOS
Amor é verbo 16 Cosmovisão têxtil 46
exposição
sustentabilidade Transbordar 92
FIBRAS
Moda Circular 56 COSMOVISÃO
O ciclo do fio 24
TÊXTIL

CAPA O CICLO DO FIO


Decolonialismo
Desmanchando
a história do algodão 60

saúde
O fio que liga à vida 64

ARTE
“Eu preciso dessas
palavras - escrita” 68

bordado
Foto: Divulgação Ómana

O encontro da

Foto: Divulgação Made by You


música com a linha 76

URDUME Edição #7 7
editorial
colaboradoras
Histórias
do fio Por Estefania Lima
Bárbara Poerner é jornalista
de moda focada em cobrir direitos
humanos, trabalho e sustentabili-
dade. Atualmente, é repórter
na ELLE Brasil, colunista no Fashion
Revolution Brasil e colabora
Manu Ebert é jornalista e
pesquisadora de antropologia. Desde
2016 se aprofunda nas histórias do
bordado pelo mundo. Ministra pal-
estras e oficinas onde ensina técnicas
de diversos países. Este ano criou o
Camila Gonzalez é jornalista,
com experiência como redatora
e editora em sites e revistas de
arquitetura e design. Nos últimos
anos, tornou-se entusiasta das
criações manuais, praticando e

N
o prólogo de seu livro “A Planta do Mundo”, Stefano Macuso diz que, depois de décadas conviven- com a Revista Urdume. projeto: “Senta que lá vem Bordado”. escrevendo sobre o tema.
do com as plantas, tem a impressão de sentir a presença delas não apenas em todo o planeta,
mas também na história de cada um de nós. Eu não tenho tanto tempo com os fios, mas divido
com ele a mesma sensação sobre o meu objeto de interesse. Da mesma forma que as plantas, os fios são
protagonistas ocultos de milhares de histórias. É por acreditar nisso que estamos aqui publicando a Revista
Urdume #07, mesmo em um período tão complexo como o que estamos vivendo.

Um ano depois da nossa última edição impressa, retornamos ao papel com a certeza de que, mesmo em
um mundo cada vez mais mediado por telas, o sensível segue vivo. Se por um lado o momento exige força
e atenção, por outro ele nos pede inéditas e afetivas conexões. Acreditando nisso, nesta edição a Urdume
apresenta matérias de re-existência. Nas páginas a seguir falamos da tecelagem dos povos Huni Kuin e
guatemaltecos, amor, ancestralidade e contemporaneidade. Como se sabe, sete é o número da harmonia Carolina Grippa é mestra Thalita Delgado
estabelecida por elementos não semelhantes e, se o futuro é ancestral, nos interessa tudo que é cíclico.
Paula Crivelenti é
em História, Teoria e Crítica de Arte. é jornalista, publicitária, psicóloga Clínica, vê a arte como
Graduada em História da Arte pela empreendedora e artesã. Hoje uma grande aliada em seu trabalho.
Se passamos quase um ano no casulo, foi para agora nos permitirmos alçar os mais belos voos. Por Ufrgs e em moda (Universidade tenta levar um pouco de arte, Ultimamente tem se (re)descoberto
Feevale), atua como produtora afeto e valorização do fazer manual artista têxtil, que tece textos
isso, a revista não retorna sozinha, ela agora faz parte do Instituto Urdume, que nasce com o desejo de
cultural, curadora e pesquisa através da Licota Crochetaria. e (a)borda psiques.
desvelar as milhares de histórias ocultas dos fios. Por último, tanto o Instituto, quanto a revista, tapeçaria brasileira.
só ganharam vida graças ao apoio dos benfeitores que colaboraram
com o financiamento coletivo proposto por nós para o mape-
amento das artes manuais têxteis no Brasil. A vocês, nosso
muito obrigada.

Uma boa leitura.

Estefania Lima é editora Nathália Abdalla é designer, Paula Melech é jornalista


da Revista Urdume e co-fundadora especialista em Artes-Manuais para responsável da Revista Urdume
do Instituto Urdume. Mestra em Terapias. Pesquisa os fazeres manu- e co-fundadora do Instituto
ciências médicas pela FMUSP, ais em suas expressões terapêuticas Urdume. Interessada nas possíveis
graduada em Comunicação e micropolíticas. É co-fundadora do relações entre a escrita e as manuali-
Social e graduanda em Instituto Urdume onde coordena a dades, investiga a construção
Filosofia pela UFPR. área de comunicação visual. textual como um caminho para
a comunicação afetiva.
Casa Hermosa Novelaria:

Lã, patrimônio
Av. Bagé, 189 Petrópolis, Porto
Alegre/ RS - 90460-080
www.casahermosanovelaria.com.br

imaterial do Rio
@sigacasahermosanovelaria

Grande do Sul
Casa Hermosa Novelaria preserva os fazeres
ancestrais do beneficiamento da lã, valorizando
e reconhecendo os produtores locais

A Casa Hermosa Novelaria nasceu em março de 2016 na zona sul de Porto Alegre,
levantando a bandeira da Lã como Patrimônio Imaterial. No Rio Grande do Sul, o benefici-
amento e ciclo da lã fazem parte da cultura do estado como práticas artesanais, e dizem res-
peito a um saber fazer que tem se efetivado como prática de transmissão e memória coletiva,
e nos convocam a pensar outros modos de produzir e existir.
Verbos da lã
Desde então, a casa atua em cinco frentes: produção de lã, cursos em artes-manuais, loja
física e virtual, atividades voltadas para a infância e o livre-brincar, e com o Coletivo CRIA Tosquiar (ou esquilar): processo de retirar a confere resistência ao fio. Para esta ação utili-
- Criação, Resistência, Intervenção e Arte - mapeando as redes criativas e solidárias que ex- lã das ovelhas. Geralmente acontece uma vez za-se a roca, o fuso ou o "burro".
istem no Rio Grande do Sul e promovendo intervenções nas praças pública de Porto Alegre, por ano e como resultado tem-se o aproveita-
levando para o público a experiência do beneficiamento da lã. mento comercial da lã e o bem-estar do ani- Tingir: Neste processo o fio é transformado
mal nos meses de verão. em meadas, facilitando com que o corante
Em 2020, por conta da pandemia, parte destas iniciativas precisou ser paralisada, e a Casa se penetre em toda a extensão do fio. Mordentes
sentiu chamada para estar mais perto dos produtores locais. "Um senso de coletividade se fez Lavar: após o processo de tosquia e seleção podem ser necessários, pois fixam os corantes
urgente e o projeto buscou uma conexão mais intensa com quem precisava vender o seu produ- lava-se a lã com água corrente e manuseio à fibra.
to local para sobreviver.” conta, Paula Flores, gestora da Casa. suave para que a sujeira e a gordura possam
ser removidas. A gordura pode trazer dificul- Tecer: Uma das artes mais antigas do mundo
Para Paula a lã é uma entidade viva, uma matéria que nos ensina, e precisa ser pensada em todos dades no momento do tingimento. em que teares, mãos e agulhas tecem, urdem,
os agenciamentos. “A lã não está a serviço da humanização, é um material que nos convoca a tramam e entrelaçam fios que produzem nossos
uma reflexão ética e um posicionamento político. Compostável, isolante térmico, higroscópica, Cardar: Processo final de preparação para a tecidos para usos diversos.
Foto: Caju Comunicação

natural, reutilizável, a lã manifesta sua própria natureza.”, afirma. É por isso que, desde o ano fiação. É preciso pentear a lã com duas esco-
passado, a Casa Novelaria Hermosa tem se transformado em um espaço “loja-incubadora”, vas de madeira com uma base com dentes de Feltrar: prensar, adensar e pressionar as fi-
apoiando uma cadeia produtiva local e afirmando a lã, cada vez mais, como uma patrimônio. aço (a carda), para desenredar as fibras, deix- bras de lã utilizando água e sabão. Processo
Atualmente, em 2021, a Casa oferece materiais e fios provenientes de coletivos de mulheres e ando a lã uniforme e homogênea. que produz o antitecido. Pode ser molhada ou
famílias produtoras das cidades de Cachoerinha, Pelotas, Caçapava do Sul, Bagé, São Francisco agulhada. A arte da feltragem molhada tem
de Paula, Arroio dos Ratos, São Pedro do Sul, Cachoeira do Sul, Alvorada e Porto Alegre. Fios Fiar: transformar a lã cardada em fio, alon- aproximadamente 6300 anos. É um tecido
e artigos feitos com lã, em sua maioria, à mão e com tingimento artesanal. gando e retorcendo as fibras. É a torção que anterior à fiação, tecelagem e tricô.
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Julia Vidal é
gestora da marca
que leva seu nome e
tem como propósito
valorizar a diversida-
de cultural brasileira

Design de
conexão
A designer Julia Vidal acredita na roupa como veículo
de comunicação e educação decolonial
por Estefania Lima

H
á quase duas décadas, a educadora na e um sociólogo carioca de origem paraense
de moda decolonial Julia Vidal vem (como ela mesma se define), diz se ver como to-
contando histórias através de suas dos os brasileiros, “uma mistura de etnias”.
coleções. Julia Vidal: Etnias Culturais,
sua marca, produz desfiles, estampas e figurinos Formada em design industrial, Julia há alguns
pluriculturais para teatro e televisão. anos utiliza roupa e moda como ferramenta de
educação e, este ano, lançou a Ewa Poranga, pri-
Foto: Divulgação Julia Vidal - Etnias Culturais

Autora de dois livros, O africano que existe em meira escola de moda pluricultural que oferece
nós, brasileiros: Moda e Design afro-brasileiros cursos, imersões, vivências, mentorias e consul-
e Quintal Étnico: Cores e Vibrações afro-brasilei- torias sobre os diversos saberes e fazeres dos po-
ras, ela tem como propósito a valorização da di- vos originários.
versidade cultural brasileira e acredita no tecido
como um veículo de comunicação. A escola, cujos saberes se dão sob a docência de
profissionais negros e indígenas, priorizando o
Com uma trajetória marcada por um encontro ensino plural, é mais um dos desdobramentos
frutífero, apesar de não planejado, com a moda, da carreira desta mulher potente, com quem
a “bapaioca”, filha de uma artista plástica baia- batemos um papo:

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páginas azuis páginas azuis

Urdume: Julia, você tem uma trajetória profis- ser brasileiro: ser de quase lugar nenhum. Nós não Urdume: Foi este entendimento do tecido como um veí-
sional moldada por sua experiência familiar. pertencemos à África, nós não pertencemos à Eu- culo de comunicação que te levou ao mundo da moda?
Pode nos contar um pouco sobre isso? ropa, e não valorizamos as nossas identidades e re- Julia Vidal: Eu brinco que a moda me escolheu, porque
Julia Vidal: A família da minha mãe é baiana e criações. Então esse olhar para fora, seja para Euro- quando me formei, em 2004, eu não era do mercado, traba-
todo o meu desenvolvimento humano esteve re- pa, ou seja para a África, precisa ser no sentido da lhava em uma agência de publicidade. Ainda assim, eu me
lacionado com vivências e referências estéticas gente mapear as etnias, os costumes e as culturas, preocupava com a superficialidade com que a moda lida-
de Salvador. Quando eu era pequena, meu prê- para entender como isso se dá no Brasil. Eu acre- ria com o boom de estamparia étnica que surgia na época.
mio era ir para lá, porque no Rio de Janeiro eu me dito que eu venho desenvolvendo um trabalho de Um tempo depois, minha avó paterna, da Ilha de Marajó,


sentia muito fora do sistema. Era bolsista de um afirmação da identidade brasileira, mas no sentido foi diagnosticada com Alzheimer e, em um determinado
colégio com pessoas majoritariamente brancas e de enriquecimento, para que a gente consiga dar momento, passou a falar das suas memórias de infância.
vivia fazendo esforço para me encaixar. A Bahia nome às coisas. Entender como as coisas chegam Ao sentar ao lado dela, naquela condição, tive contato com
era meu mundo paralelo, um lugar onde eu não aqui e, a partir de uma re-existência, passam por uma parte da vida dela que ainda não conhecia. Um imagi-
tinha compromissos, por isso, meu imaginário foi um ciclo de morte para surgir em um novo ciclo nário conectado à natureza, que abriu um portal dentro de
permeado pelas imagens daquele lugar: as baia- de vida. O que era na África não é mais o que é no mim e me conectou com a minha raiz indígena. Ali, percebi
nas, suas indumentárias, seus bordados. Eu jura- Brasil. Quando a cultura afro-brasileira se faz aqui, que além da minha raiz africana eu tinha todo um referen-
va que aos 18 anos me mudaria de vez para lá. ela se faz com uma nova identidade, porque ela vai O tecido é um cial imagético gigantesco no Brasil. Naquela época, depois

Urdume: Mas você não se mudou.


se misturar com tudo, assim como a cultura euro-
peia e indígena, que não será mais a mesma que
suporte para contação do pedido de muitos amigos para que eu fizesse roupas, eu
já tinha criado uma marca de moda, a Balaco moda afro
Julia Vidal: Não, entrei na faculdade de desenho era em Pindorama [Nome dado ao Brasil pelos in- de histórias, uma -brasileira, que depois das histórias recebidas pela minha
industrial e tentei entregar o que esperavam de avó, passou a se chamar Julia Vidal Etnias, para que pudes-
mim. Só que já no fim, pensei: “eu já fiz tudo que
dígenas antes da colonização].
forma da gente se se abranger toda diversidade brasileira.
me disseram para fazer, agora vou fazer alguma Urdume: E qual o papel do design neste libertar e entender
coisa que tenha a ver comigo”. Então mergu- processo? Urdume: De que forma você foi criando a identidade da
lhei em leituras sobre a cultura afro-brasileira Julia Vidal: O design para mim é uma ferramenta
que o mundo pode sua marca?
buscando a minha identidade, as minhas raí- de desvendar essas histórias. Uma forma de en- ser visto de diferentes Julia Vidal: Por muito tempo eu olhei as etnias pela janela,
zes. Naquele momento eu fiz um recorte para o tender que um desenho não é simplesmente um não sabia como exatamente trazer isso pra moda. Fiz um
meu trabalho de conclusão de curso: estudar as símbolo, algo bonitinho. Nele está implícito toda
perspectivas e suas mestrado em relações étnicas raciais, pós-graduação em
etnias que vieram da África para o Brasil, como uma forma de ver o mundo, perpetuar memórias representações podem estamparia, tudo para compreender o tecido como uma
as referências desses povos chegaram aqui, e de e tradições, e isso é o que eu chamo, ao longo da forma de linguagem. Na minha pesquisa de mestrado eu
que forma elas se transformaram. Meu projeto minha jornada acadêmica, de tecnologia ances-
ser transmitidas queria pesquisar os têxteis indígenas, mas a academia não
final da universidade se chama “O africano que tral. A gente pode transmitir conhecimento atra- por diferentes está preparada para avaliar estudos deste tipo, então fui
existe em nós brasileiros”, e depois tornou-se um vés de diferentes ferramentas. Na perspectiva dos para os africanos, continuei nessa trajetória. Mas acho que
livro. Mas até hoje eu não fui à África, porque o povos originários - tanto indígenas, quanto afri-
veículos. o divisor de água aconteceu quando completei 10 anos de
meu lugar é de quem estuda a história brasileira canos - esses desenhos, grafismos eram escritos. marca e lancei meu primeiro livro, que traz o conteúdo que
e se preocupa com o hibridismo e riqueza cultu- Então eu tento trazer a importância da fala através eu comecei a desenvolver na faculdade junto com o meu
ral dos povos, valorizo aquilo que é nosso. do imagético, e como isso é transmitido por meio conteúdo de pesquisa em moda. Ali o mercado já com-
dos tecidos. O tecido é um suporte para contação preendia a necessidade de construir esses conteúdos e o
Urdume: O que é “nosso”? de histórias, uma forma da gente se libertar e en- livro me abriu portas para o mundo da educação. Não que
Julia Vidal: A constituição da cultura brasileira é tender que o mundo pode ser visto de diferentes eu já não fizesse isso na moda, minhas coleções sempre
cruel e bem-sucedida no seu objetivo de apaga- perspectivas e suas representações podem ser contaram histórias nas modelagens e estamparia, mas a
mento. Nós todos compartilhamos esse traço de transmitidas por diferentes veículos. partir dali, fui para a sala de aula.

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forço de identidades que vêm sendo marginaliza- vai sendo produzido em larga escala e atingindo
das ao longo de séculos. Por isso, prezo tanto pela a relação do local com o global o tempo inteiro.
educação. Por fazer esse ecossistema de educa- Neste jogo é possível observar os códigos usa-
ção se expandir. Como consumidor tenho que dos pelo mercado europeu/chinês para retornar
entender que eu uso porque acho bonito, mas aos países africanos, que possuem um mercado
também porque tem este ou aquele significado. consumidor riquíssimo e educado para valorizar
A roupa muitas vezes passa pela beleza, mas não um têxtil de grande qualidade. Na cultura africa-

Foto: Divulgação Julia Vidal - Etnias Culturais


passa pela riqueza. Quando falamos de turbante, na, os tecidos têm linhagem ancestral, são her-
há determinados tipos de amarração que são do dados, usados para sepultamentos e movimen-
sagrado, por isso, é importante perguntar. Não te- tam milhões. As pessoas valorizam as estampas
mos obrigação de saber, mas temos obrigação de e tecnologias dos tecidos, ele é veículo, fala, traz
saber que a gente vem de uma sociedade racista, diversas funções e é consagrado ao longo da
entender nossa ignorância e buscar informação. vida da pessoa. O tecido sai da indústria têxtil eu-
Usar com consciência, passando isso adiante. Isso ropeia morto, mas quando vai entrar no merca-
é ser antirracista, consumir de pessoas negras e do consumidor africano ele ganha nome, ganha
passar a diante suas histórias, construindo pontes. história, se não ele não é vendido por lá. O teci-
do de hibisco é um tecido de dote, por exemplo,
Urdume: Você acabou de defender seu mes- uma harmonia para o casamento, as informa-
trado em relações étnico-raciais, pode nos ções estão todas no tecido, e esse sentido só é
Urdume: De que forma você trabalha com namente brasileiro, como lidar com a questão contar um pouco sobre ele? criado no continente, por isso a indústria chinesa
educação? da apropriação cultural neste contexto? Julia Vidal: O título da minha dissertação é “Teci- não entraria neste espaço se não existissem as
Julia Vidal: Preparando o mercado consumidor. Julia Vidal: A apropriação cultural passa pela ma- dos que falam e viajam - têxteis africanos enquan- mulheres africanas comerciantes que vão dar
Enxergo a roupa como design de conexão. Desde nutenção do poder. A primeira pergunta que pre- to veículos de identidades híbridas revalorizadas sentido para que ele possa existir ali. Por isso, a
o lançamento do livro, eu passei a dar workshops, cisamos nos fazer é se estamos sendo ferramentas no Brasil”. Estudar o tecido é estudar como nós so- identidade permanece neste jogo, um depende
palestras, ensinar na academia. Isso não estava de reforço de uma hegemonia, ou estamos con- mos. Na minha pesquisa eu analiso a trajetória de do outro para existir.
no meu radar, mas sempre digo que eu tenho seguindo mudar o que nos é imposto. Devemos dois tecidos africanos e suas transformações ao
uma sensibilidade para perceber os caminhos nos perguntar: “de que forma eu, a partir do meu passarem por outras regiões. O primeiro é o ‘Ofi’,
que estão se abrindo pra mim. Para isso, preci- lugar social, da minha cor de pele, na região onde que sai da Nigéria, passa por diversos trânsitos, até Urdume: Você acaba de lançar a Ewa Poranga,
sei quebrar muitas barreiras que eu tinha com estou inserida, posso me posicionar para não ser chegar no Brasil, onde foi revalorizado e recriado primeira escola de moda pluricultural, qual a
a educação. Tive que criar o meu próprio siste- fantoche do sistema?” Porque quando uma pes- como Pano da costa. Já o segundo é ‘Wax’, que proposta desta iniciativa?
ma de dar aula, porque eu não podia reproduzir soa compra algo ela passa a fazer parte de uma nasce do capital intelectual africano, tem seu re- Julia Vidal: Como consequência das experiên-
aquele lugar no qual eu me sentia oprimida. Foi causa, ela precisa ser um agente de transforma- pertório apropriado pelas indústrias têxteis euro- cias e vivências educativas com a minha em-
depois de encontrar a literatura da bell hooks ção e consciência. Quando falamos do turbante, peias, e passa a ser produzido na China. presa Julia Vidal: Etnias Culturais, nós criamos
que eu comecei a criar uma linguagem própria, que é muito citado como exemplo, o importante a Ewa Poranga, que surge como uma escola
um formato diferenciado, e muito instintivo, é a gente não esquecer que algumas pessoas ne- Urdume: No caso do ‘Ofi’ a transformação em de conteúdos inovadores sobre a moda, design
para passar o que eu sabia. Depois, estudando gras morrem por usá-los. Lembro que quando eu ‘Pano da costa’ no Brasil se deu de forma len- e arte sob perspectiva endógena e pluricultu-
as metodologias de ensino de universidades in- comecei minha marca, tinha poucos clientes ne- ta e feita por africanos e seus descendentes, ral, daqueles que vivem e falam a partir de suas
dígenas e afro-centradas, descobri que minha gros que consumiam, justamente porque ela tem mas no caso do ‘Wax’ a situação parece muito culturas, de suas experiências no saber/fazer na
intuição vinha toda dali, da minha vida prática. muita identidade. Então muitas vezes eles não mais complexa e predatória. Como a identida- diversidade de visões de mundo. Nossas ativida-
queriam ter o fator étnico-racial mais exposto em de africana pode se manter nestes tecidos? des acontecem em formato EAD com encontros
Urdume: Julia, você comentou que trabalha com suas roupas, porque isso já trazia sofrimento em Julia Vidal: É um jogo que se estabelece nessa híbridos, estimulando as conexões Sul-Sul entre
o hibridismo entre os povos, aquilo que é genui- sua aparência física. Uma roupa étnica é um re- relação africana com o oriente, onde cada tecido saberes Afro-ameríndios

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Bordado
xxx feito por Reflexões
Andrea Orue da
@primaverade83

Amor
é verbo
Conversamos com a mestre
em Ciência da Religião Hanayrá
Negreiros sobre ancestralidade,
amor, passado, presente e futuro,
na tentativa de atravessar estes
dias que parecem infinitos
(mas lembre-se: não são).

por Bárbara Poerner

18 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 19


reflexões reflexões

Q
No livro, que é base para esta matéria, bell discor-
re sobre amor como ação, e não como sentimen-
uando Estefania, editora e fundadora desta revista preciosa, que
to - como estamos acostumados a associá-lo. Ela
você tem em mãos, me convidou para escrever uma matéria,
aborda as manifestações do amor em diferentes
fiquei em dúvida sobre o que falar. Em meio ao caos, o que se
contextos: do divino ao próprio, como ato revo-
fala? Pior: em meio ao luto, com três mil pessoas morrendo por
lucionário, como remo na travessia da dor. Nas
dia e um genocida na gestão do país, o que se fala? Ademais,
páginas, bell empresta a definição do psiquia- Já que bell também diz que o amor não existe
porquê se fala? Todas as palavras me pareciam um crime contra a humanidade.
tra M. Scott Peck para definir o amor como ‘’a sem a verdade, serei sincera: a primeira entre-
‘’Como eu posso falar sobre isso, neste momento?’’. Substitua ‘’isso’’ por absoluta-
vontade de se empenhar ao máximo para pro- vista que fiz com Hanayrá Negreiros (com quem
mente qualquer coisa, mas principalmente por ‘’moda, vestuário, têxtil’’.
mover o próprio crescimento espiritual ou o de dialogo na sequência) foi, estritamente, sobre
outra pessoa. O amor é o que o amor faz. Amar ancestralidade. Depois, mudando os rumos, vol-
Assim como muitos, estou perdida. Tampouco me achei. Apenas consigo dar me-
é um ato de vontade - isto é, tanto uma inten- tamos a conversar sobre o amor. E, nesse enlace,
lhores nomes aos meus caminhos confusos, e assim trilhá-los com menos calos
ção como uma ação. A vontade também implica percebi que ambas as pautas caminham lado a
nos pés. Por enquanto. Clamei por referências, inspirações, conversas que me des-
escolha. Nós não temos que amar. Escolhemos lado. O amor é retomada e ao mesmo tempo é
pertassem. Mas, às vezes, não há jeito e temos que nos contentar com a insuficiên-
amar’’. Durante a opacidade da dor, espero que futuro (inclusive, a moda é igual). Silvane Silva,
cia do não poder, não saber, não conseguir. E tudo bem.
o amor seja uma luz para nos lembrar de tudo pesquisadora e professora, explica no prefácio
que ainda podemos escolher. E que escolhamos da obra em questão: ‘’Ao propor que as trans-
Porém, aos 45 do segundo tempo, tive uma resposta. Ela veio quando fui arreba-
sempre o justo e o humano, afinal, nas palavras formações desejadas para a sociedade ocorram
tada pela deusa bell hooks a partir de suas palavras em Tudo Sobre o Amor: Novas
da autora, ‘’não pode haver amor sem justiça.’’ por meio da prática do amor, bell hooks nos
Perspectivas. De imediato me lembrei de quem perdeu seu amor, de quem está
impossibilitado de amar plenamente. Lembrei de mil e uma questões que não afasta dos paradigmas eurocêntricos e coloniais
seriam contempladas. E eu entendo. Mas também passei a aceitar a insuficiência que construíram a sociedade ocidental, baseada
das palavras: elas não vão contemplar tudo. Este texto jamais daria (nunca se pro- na exploração, injustiça, racismo e sexismo, e (re)
pôs) conta de tudo o que vivemos. É impossível e sem precedentes. direciona nosso pensamento e a nossa prática
rumo à ancestralidade.’’
Neste momento, no meio do luto infame de gente que morre de Covid-19 ou mor-
re de Brasil, o que nos acompanha todo dia, senão o desamor? Por isso, quis puxar Por fim, abaixo você confere a conversa com Ha-
o fio da meada da vida, falando de amor. Como um acalanto, não como um esca- nayrá, tão amorosa quanto competente no seu
pe. Como uma lembrança de que vale a pena lutar pela vida porque é bom amar. trabalho enquanto professora e pesquisadora
Aqui, faço uma tentativa sincera de reportar o mundo em movimento, com todas de negras maneiras de vestir. Falamos sobre an-
as suas contradições e dificuldades. É uma aposta, não necessariamente um acer- cestralidade, sobre o lugar das pessoas negras
to. Mas espero que, em alguma medida, lhe faça sentido e te lembre de amar. na construção desse passado-presente-futuro
do têxtil e da moda, e da necessidade em olhar
Se você não conhece bell, não faz ideia do que está perdendo. Poderia escrever para trás para poder caminhar para frente. No
que ela é uma escritora, professora, ativista, mulher, negra… mas bell simplesmen- fundo, foi uma conversa profunda sobre o amor:
te é - para além de adjetivos e definições. O livro Tudo Sobre o Amor: Novas Pers- pela moda, pelas pessoas, pela história. Nestes
pectivas faz parte da Trilogia do Amor, que engloba Salvação: pessoas negras e tempos desamorosos, não hesite em amar. Nes-
Foto: Divulgação

amor, e Comunhão: a busca feminina pelo amor. Lançados em 2000, 2001 e 2002, tes dias que parecem não ter fim, não perca de
respectivamente, nos Estados Unidos, o primeiro foi traduzido e disponibilizado no vista o amor. Se agarre nele e em tudo que te
Brasil pela Editora Elefante, em 2021. conserva viva a memória amorosa.

20 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 21


reflexões reflexões

Bárbara: Hana, primeiro gostaria de saber


como você vê e experiencia o amor?
Hanayrá Negreiros: Acho que tempos difíceis
merecem amor, mais lugares pra gente amar.
Acho linda essa ideia de pensar o amor como tra-
vessia para atravessar esse momento difícil. Acho
avó poderia ter costurado. Tive a sorte de crescer
Foto: Arquivo pessoal que também podemos pensar o amor como um
Hanayrá Negreiros numa casa com pai e mãe que entendiam essa
direito, principalmente para nós, mulheres negras.
paixão. Decidi, então, fazer faculdade de moda.
O amor como um direito nosso e um afeto. Uma
Acho interessante pensar, hoje em dia, que duran-
possibilidade para a gente passar pelas tormentas.
te minha graduação fui podada. A faculdade tem
que ser esse espaço de conhecimento, e infeliz-
mente na minha experiência isso não aconteceu,
Bárbara: E como você, enquanto mulher ne-
especialmente falando desse ambiente da moda.
gra, construiu sua história? Pode contar mais
Sei que acontece com outros cursos, já que é um
sobre sua trajetória? Sei que você é uma pes-
espaço que nos estranha. Quis desistir, mas tenho
Na foto acima, a família de Hanayrá reunida soa nostálgica...
uma mãe muito porreta que não deixou. Tenho
na casa de seu bisávo, Zeferino Negreiros (ao Hanayrá: A história do negro e da mulher negra
centro) na década 1950. Na foto ao lado, sua avó
um histórico de mulheres negras nordestinas que
no Brasil é muito pautada por apagamentos, e
Thereza (filha de Zeferino), costureira de pro- entraram na faculdade antes de mim, e se estou
a minha se enquadra nisso. Minha avó materna
fissão que deixou a máquina de costura como aqui hoje, é porque as mulheres mais velhas [da
herança para ela e sua mãe. Na foto abaixo, foi costureira de profissão, e deixou sua máqui-
minha família] me ajudaram a chegar até aqui.
Hanayra, sua mãe e sua tia Dulce na década de na de costura; minha mãe foi muito responsável
Isso me faz pensar nos lugares que as mulheres
1990. Na foto na página ao lado Hana fotogra- por guardar essa máquina enquanto um objeto.
ocupam na sociedade. Essa minha caminhada,
fada na quarentena por seu marido, Felipe. Faltam umas partes, mas ela está lá. Eu cresci
tanto o estudo ou profissional, é totalmente cos-
com essa maquina e, às vezes, brincava com ela,
turada pelas mulheres da minha família. Sou essa
pensava o que poderia ter saído dali, o que minha
pessoa, metade paulista e metade maranhense,
apaixonada por moda desde criança, e apaixona-
da por coisas antigas desde criança.

Bárbara: Você disse que sempre gostou de


moda, mas o que é moda pra você?
Hanayrá: Hoje em dia prefiro pensar mais no
vestir, do que na moda. Às vezes, a moda me re-
mete a algo que cai no lugar do consumo. Óbvio
que a gente compra e vende roupa, mas a moda
que eu ensino está ligada ao viés histórico. Acho
que ela é aquele fio que salta, para a gente pu-
xar e entrar em vários outros campos de conhe-
cimento. Por isso prefiro pensar o vestir: ele dá

22 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 23


reflexões

conta do universo subjetivo, das histórias que pra trás, na África, a prática dos ofícios manuais e Hanayrá: Minha experiência pessoal
estão nas roupas, objetos. Na verdade, acho que bordados… tudo isso é nosso. Isso a gente sempre é mergulhar. Acho que a travessia
a resposta acabou de aparecer: a moda é uma fez, mas pensando na condição dos negros brasi- tem que ser feita com um mergulho.
grande encruzilhada. leiros, sempre foi em uma condição de subalter- Talvez a maior dificuldade seja saber
nidade. Quando mais a gente olha para trás, mais a hora de levantar, tomar fôlego, e
a gente desenterra essas histórias. E é difícil es- mergulhar de novo. Sobre o futuro,
Bárbara: Como tudo vai mudando de sentido, tudar a história da escravidão sendo negra, mas eu acredito que ele seja construído
ao longo da vida, não é? Por exemplo, sua pró- é uma missão que eu tenho de puxar essas his- por meio da educação - se possível
pria jornada com a moda, na moda… tórias soterradas pelo racismo. Não dá pra pensar pública e de qualidade. Precisamos
Hanayrá: A gente sempre pensa que vai traba- moda no Brasil sem pensar em pessoas negras e entender a educação como um lugar
lhar nas revistas, já pensa na Anne Hathaway em povos originários. de transformação. Paulo Freire e bell
O Diabo Veste Prada. Mas, vamos descortinando hooks falaram isso há anos. Encontrei
na possibilidade de ensinar moda


e vendo as monstruosidades e questões compli-
cadas que o mercado e o campo abarcam. Des- Bárbara: Também existe a questão do algodão, uma forma de chamar as pessoas
de assédio moral e trabalho escravo, até esse certo? Se não fossem as pessoas negras traba- para lutarem junto comigo. Acredito
lugar tênue que a moda tem de vender sonhos lhando nas plantações de algodão, que forne- também que a história da moda nos
e possibilidades. Acredito que a gente, que tra- ciam o insumo para as fábricas da Revolução ajuda a visualizar o que houve e o que
balha com moda, tem a obrigação de tirá-la do Industrial na Inglaterra, que indústria teria se nos trouxe até essa situação. E digo
campo da futilidade, de expor os problemas e firmado? isso pensando em uma educação de
pensar em outras possibilidades. A moda acaba Hanayrá: Boa parte das produções do Brasil colô- moda plural, que consiga romper as Hoje em dia prefiro
sendo também um lugar transdisciplinar. nia estavam no Maranhão, então é bem provável fronteiras eurocêntricas.
que meus ancestrais paternos tivessem trabalha-
pensar mais no vestir,
do nas plantações de algodão. Pesquisando, vi do que na moda. Às vezes,
que a gente produzia aqui, exportava e comprava Bárbara: Você acha que o amor aju-
Bárbara: Como você analisa a presença das a moda me remete a algo
pessoas negras na moda, desde séculos pas- o tecido da Inglaterra. Recentemente, eu ouvi o da nessa travessia?
sado até os dias atuais? último discurso do Lula, e ele fala dessa relação Hanayrá: Também acho que o amor que cai no lugar do consumo.
Hanayrá: A presença de pessoas negras na de dependência e do Brasil ser entendido ainda é um mergulho. Nas minhas pesqui- Óbvio que a gente compra
moda vem desde sempre como mão de obra. como colônia. Eram as pessoas negras que tra- sas ainda não fui para esse lado, mas
Isso mudou minha perspectiva, porque eu achei balhavam nas plantações, mas elas não tinham quero. Em um vídeo da Simone Silva,
e vende roupa, mas a moda
a história uma maneira de compreender o hoje. direito às roupas e aos tecidos. Chega a ser para- que fez o prefácio deste livro da bell, que eu ensino está ligada
doxal: as pessoas negras trabalhavam tanto pro- ela falou dos livros. Eu tenho muito
Durante minha pesquisa de mestrado, encon-
duzindo coisas que não poderiam ter. amor por eles, que também me aju-
ao viés histórico. Acho que
trei anúncios de jornal que falavam da compra e
venda de mulheres escravizadas para trabalha- dam muito nos meus mergulhos, es- ela é aquele fio que salta,
rem com ‘’modistas’’. Tem uma outra classe, de tudos e resgates da história para a gente puxar e entrar
homens negros libertos, que são os alfaiataes. Bárbara: O que podemos resgatar desse passado
Sou neta de alfaiates. Teve a revolta dos alfaiates e trazer pro hoje, pensando no futuro? Como po- em vários outros campos
em 1798, na Bahia, que foi uma insurgência no demos fazer essa travessia e como tem sido para de conhecimento.
contexto escravista. Além disso, se a gente for você seguir nesse momento tão complicado?

24 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 25


xxx Fios de algodão fibras
orgânico, colorido
naturalmente e
produzido na Paraíba

O ciclo
do fio
Em tempos pandêmicos o faça você
mesmo retorna com força total e a empresa
Made by You inova na produção de fibras
sustentáveis para conquistar os mais jovens

por Estefania Lima

J á há algum tempo o resgate do traba-


lho artesanal, manual e caseiro tem ga-
nhado espaço na vida de pessoas que
passaram longe desses afazeres na in-
fância. Este movimento, que poderia ser justi-
var plantas, fazer crochê, tricô, bordado e cos-
tura, hábitos que se apresentam, ou melhor, se
(re)apresentam enquanto alternativas eficazes
para o cuidado da saúde física e mental, além
de serem ótimos auxiliadores na administração
ficado pelo excesso de consumo, telas e pouco do estresse.
estímulo tátil, tão característico de nossos tem-
pos, ganha urgência diante da atual pandemia, No Tik Tok, rede social preferida dos usuários da
que tem nos exigido uma relação com o mundo Geração Z e Millennials, a volta ao manual tem
mediada quase exclusivamente pelo virtual. nome: “Craftcore”. Uma subcultura que preza
pela sustentabilidade e tem ganhado notorie-
A necessidade de toque e do cultivo de novos dade também através das passarelas, consoli-
Foto: Divulgação Made by You

hábitos que o isolamento nos trouxe têm impul- dando-se na mais recente edição do São Paulo
sionado cada vez mais jovens a cozinhar, culti- Fashion Week, maior evento de moda do Brasil.

26 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 27


Foto: Divulgação Made by You
fibras xxxx

É neste cenário de valorização do DIY, ou faça garantir um futuro mais sustentável para o setor toque limitado do algodão orgâ-
você mesmo, febre nas décadas de 1960 e 1970, de produção de algodão], mas muita gente não nico, somos uma empresa nova
que nasce a Made by You, empresa com menos sabe o que isso significa. Questionam o fato de e o pedido da fibra orgânica, por
de um ano de vida que tem como proposta o diá- anunciarmos que um fio de algodão é vegano, exemplo, precisa ser feito antes
logo com este novo momento artesanal. A mar- sendo uma fibra vegetal. Acontece que o ama- da plantação.” Além disso, a dire-
ca, que em português quer dizer “feito por você”, ciamento do algodão na indústria tradicional é tora de criação destaca também
vende kits artesanais (de crochê, tricô e bordado), feito com gordura animal, e o nosso não, por isso a dificuldade no desenvolvimen-
práticos e descomplicados, inclusive para quem é vegano. Acreditamos que esta falta de conhe- to e produção de fibras naturais
nunca pegou em uma agulha. “Percebemos cimento sobre os processos de produção sejam em larga escala, “ainda estamos
que as pessoas precisavam sair um pouco do os responsáveis pelos fios mais procurados se- na fase de muitas pesquisas. Es-
virtual, encontrar um relaxamento dentro deste rem os de fibras vegetais diferentes, porque ne- tamos tentando trabalhar com
momento terrível da pandemia. Por isso, nossas les as diferenças são mais nítidas”, conclui. a fibra da banana, mas ela ainda
peças foram pensadas para serem atemporais, é feita de forma tão artesanal,
para todos os corpos, práticas, fáceis de concluir A head de desenvolvimento da empresa se refe- que fica inviável economica-
e personalizar”, conta Luana Esther Geiss - dire- re ao fio de cana-de-açúcar, caracterizado como mente. São três meses para pro-
tora de criação da Made by You. viscose, que oferece vantagens por conta da sua dução de 20kg de fibra”, conta
fibra natural biodegradável, além de apresentar Andreia, apontando questões
Fios sustentáveis um período curto de decomposição, não geran- como a carência de máquinas
No entanto, a empresa não conversa com os jo- do resíduos tóxicos; e o fio de algodão orgânico que possam processar fibras es-
vens apenas pela praticidade de sua proposta, que já nasce colorido, e não utiliza qualquer tipo pecíficas, como a da banana, que
mas principalmente por sua responsabilidade. O de tingimento químico, economizando assim solta água, e da necessidade de
que vem chamando a atenção do público, e do 87,5% da água que seria consumida num pro- estabelecer parcerias entre in-
mercado brasileiro, é a qualidade e menor impac- cesso convencional de produção. dústrias e pequenos produtores.
to ambiental dos fios produzidos e vendidos pela Movimento que a Made by You Fios de
marca. Atualmente são ofertados fios veganos, O último, inicialmente desenvolvido pela Em- pretende ajudar a trilhar no mer- cana-de-açúcar.
regenerados, de fibra de cana-de-açúcar e de al- brapa, é uma iniciativa da Natural Cotton Color, cado brasileiro
godão orgânico. “Nossa proposta inclui procurar e é plantado por pequenos produtores, em sis-
soluções e alternativas para o meio artesanal, fi- tema de agricultura familiar no assentamento
bras realmente sustentáveis. Nós nos propomos rural da reforma agrária Margarida Maria Alves,
a pesquisar fios biodegradáveis e criar pontes no município de Juarez Távora (PB). A planta-
para colocá-los no mercado”, conta Andreia Ca- ção ocupa 18 hectares de terra em sistema de Fio de algodão orgânico Fio de cana-de-açúcar
milo - head de desenvolvimento da empresa. sequeira, sem nenhum tipo de adubo ou inseti- • Não utiliza adubo, agrotóxico • Convertida em fio a partir da viscose,
cida sintético, abrangendo assim, questões so- ou inseticida; resultado da extração de fibras de
Ainda assim, Andreia destaca que é preciso tra- ciais ligadas à produção. • Sem uso de aditivos ou corantes; celulose do bagaço da cana de açúcar.
balhar na conscientização do consumidor em • Redução no consumo de água; • Fibra sintética, mas de origem natural;
relação aos fios. Algo que ela acredita que será • Biodegradável e 100% orgânico; • A decomposição se inicia cerca
cada vez mais comum, assim como foi com a Os desafios da sustentabilidade • Plantado por pequenos produtores de 150 dias após a deposição por
questão das comidas cheias de conservantes. Apesar do sucesso dos fios, por hora eles são em sistema de agricultura familiar; compostagem e encerra em 240 dias.
“Todos os nossos fios têm, no mínimo, certifi- vendidos apenas pela loja virtual da Made by
cação BCI [certificação que tem como objetivo You, e Luana explica porque: “Nós temos um es-

28 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 29


Mulheres
de renda
Margarida
Maria de Souza
Melo, rendeira
pernambucana.

Ómana, projeto
criado durante
a pandemia, gera
trabalho para
rendeiras e aproxima
renascença de novos
grupos com traço
Foto: Divulgação Ómana

contemporâneo
por Estefania Lima

30 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 31


capa capa

Q “
uando chegou em Jataúba vam cotidianamente com a renda renascença e nidade ser muito ligada à técnica, ela também
(PE), em março de 2014, para aprendeu na prática as questões técnicas e so- é muito ligada a um movimento de mercado.
realizar sua pesquisa sobre ciais envolvidas no ofício. “Ainda que eu já tivesse Existe a tradição do lugar, mas também existe a
renda renascença, a desig- intimidade com o universo dos trabalhos com
Era um desenho demanda. Caso exista outra alternativa de renda,
ner de moda curitibana, hoje agulha, foi a partir dos erros e dificuldades no é provável que isso seja atualizado e trocado”,
radicada em São Paulo e, até aprendizado da renascença que pude acessar di- que a gente não afirma Helena, deixando claro que a elaboração
então, mestranda em antropologia, Helena Kussik, mensões subterrâneas, que perpassam os senti-
conhecia, mas com e organização do projeto foi feita pelo susto da
encontrou uma realidade distinta da que espera- dos e compreender aspectos mais sensíveis que pandemia e o desejo de contribuir com a conti-
va. A cidade, conhecida nacionalmente pelo arte- escapam à observação ou às interações verbais.” 1 eles nós podemos pôr nuidade da renda na região. E não simplesmen-
sanato, tinha sua produção urbana quase extinta.
em prática os pontos te pela ideia de manter uma tradição a qualquer
custo. Seu desejo era oferecer escolhas. “Quem
Já há alguns anos o agreste de Pernambuco vi- experimentações que a gente sabia, quer costurar vai costurar, mas quem quer ren-
técnicas dos têxteis
nha se transformando no maior polo de confec-
mas não usava, como dar pode continuar rendando.”
ções do Nordeste e, Jataúba, localizada próxima A memória sensível que carrega desta experiên-
a cidades como Santa Cruz do Capibaribe e Tori- cia é provavelmente o que explica o sucesso do o sianinha, traça Por esta razão, desde o começo, Helena fez ques-
tama - esta última cuja realidade foi registrada no
documentário ‘Estou me guardando para quan-
Ómana, projeto de pesquisa e design criado por
Helena para registrar e difundir saberes e expe-
e o dois amarrado” tão que o projeto fosse sustentável e viável finan-
ceiramente, “eu demorei muito tempo para pen-
do o carnaval chegar’ (2019), do diretor Marcelo rimentações técnicas dos têxteis artesanais do sar no produto e entender como fazer este projeto
Gomes - também vivia o impacto da terceirização Brasil, cinco anos depois. de forma estruturada, algo que gerasse trabalho e
de peças de vestuário feitas e vendidas na região. Laços que não só nunca se romperam, como no renda e não apenas conceito”, fala a designer, re-
O Mural Mimoso, trabalho feito da união entre início da pandemia do Covid-19, onde tudo pare- ferindo-se ao processo que muitos artesãos vivem
Diante deste cenário, assim como Gomes em Helena, rendeiras dos estados de Pernambuco cia se desfazer, se estreitaram. Trabalhando na Ar- com artistas e estilistas, que agregam valor con-
seu filme, Helena partiu para a área rural em bus- e Paraíba coordenadas pelas mestras Jeruza Go- tesol, e ciente da situação precária que os artesãos ceitual, mas não necessariamente geram deman-
ca de pessoas que ainda se relacionassem com mes e Suelene Cavalcanti de Oliveira e as ilus- de todo país estavam vivendo com o cancelamen- da de trabalho para elas, “muitos vestidos param
outros tempos de produção. Durante um total de tradoras Ana Matsusaki, Camila do Rosário e He- to das feiras e desaquecimento do mercado, He- nos desfiles da passarela, raramente eles geraram
noventa dias, em dois momentos de 2014, a de- lena Sbeghen, é fruto das sementes plantadas lena decidiu tirar do papel o projeto que vinha es- encomendas depois”, reforça.
signer observou as rendeiras e criou laços afetivos durante sua vivência em Jataúba. tudando há anos. “Quando estourou a pandemia,
no Sítio Mimoso, onde passava de dois a três dias os artesãos já não conseguiam mais vender seus Esta foi uma das razões que fez Helena se afastar da
por semana. “Passei três meses só registrando o Embora a designer já tivesse interesse nas prá- produtos, foi uma situação muito preocupante. ideia de criar produtos para vestuário. Entendendo
processo das rendeiras sem intervir nos modelos ticas artesanais desde quando se formou em A gente [equipe da Artesol] começou a trabalhar o funcionamento da cadeia da moda e o tempo
que existiam ali, apenas observando e registran- moda, tenha trabalhado em ateliês e seja inte- em conjunto para achar soluções de venda e eu de produção da renda, seria improvável viabilizar a
do aquele território e suas complexidades”. grante da equipe da Artesol há quatro anos - retomei o contato com as rendeiras”, conta. produção de roupas. Pensou então em itens de de-
trabalhando como articuladora e pesquisadora coração, mas que fugisse das tradicionais toalhas
Foi no Mimoso também que Helena conheceu no projeto na Rede Nacional do Artesanato Cul- Desta forma, a designer ficou sabendo que a de banquete, guardanapos e peças tradicionais.
Jeruza, rendeira cuja família a acolheu durante tural Brasileiro, Helena garante que o projeto só costura em larga escala, que já havia tomado “Nas décadas de 1980 e 1990 havia demanda para
seu último mês na cidade. Lá, a pesquisadora deu certo pelos laços que criou com Jeruza e as conta da área urbana de Jataúba em 2014, com este tipo de produto, mas temos uma questão com
conviveu com mulheres e homens que trabalha- demais rendeiras no Agreste. a chegada da pandemia, estava tomando con- o valor percebido de objetos do uso cotidiano, tem
ta também das áreas rurais. Com a falta de de- culturas que valorizam, mas na nossa é mais fácil
manda pelas rendas, as artesãs do Sítio estavam perceber o trabalho ali contido, quando um peda-
1 Kussik, Helena Luiza Renascença no agreste pernambucano :
um estudo etnográfico sobre a técnica em Jataúba - PE / Curitiba, 2018. costurando máscaras. “Porque, apesar da comu- ço de tecido se transforma em um quadro”, analisa.

32 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 33


xxx xxxx

34 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 35


Nas páginas anteriores: Mural
capa
Mimoso, ganhador do 7° Prêmio
do Objeto Brasileiro do Museu A
Casa - Museu do objeto brasileiro.

Mural Mimoso O projeto que começou a ser desenvolvido em


Foi pensando assim que a mestra em antropo- plena pandemia, no ano de 2020, foi realizado a
logia convidou, primeiro, a ilustradora Camila muitas mãos, mas à distância. A ilustradora Hele-
do Rosário, sua amiga de faculdade e, posterior- na Sbeghen, por exemplo, vive em Barcelona, na
Maria de Fatima
mente, Ana Matsusaki e Helena Sbeghen, ilus- Espanha, e ainda não pegou o trabalho nas mãos. Sousa Alves, Fátima
tradoras que admirava, para o projeto. Juntas, “No começo teve um pouco de atraso por conta Suelene Cavalcante
elas fizeram estudos sobre como transpor para dos Correios, tudo atrasando um pouco, mas as de Oliveira, Maria
a renda desenhos com o estilo das autoras. coisas foram se ajeitando, nunca foi um projeto Lucineide Heleno da
Silva e Deogracia
com um prazo extremamente definido, e por isso
Jatobá de Oliveira
Ana conta que o processo foi trabalhoso, “con- foi interessante, feito com calma e muito cuidado,
rendando.
versei bastante com a Helena e assisti vários do- um ritmo muito diferente de trabalho do que es-
cumentários sobre a renda renascença. Não era tou acostumada, foi interessante acompanhar o
uma técnica com a qual eu tivesse familiarida- processo dessa espera, sentir a ansiedade de ver
Helena Kussik conversando com
de, nem nunca tinha pensado no processo para a renda pronta, feita, ver os vídeos da produção”.
a rendeira Maria Quitéria Alves
se fazer”. As três destacam a importância de en- da Silva durante sua pesquisa de
tender a técnica para criar o desenho. “Quando mestrado em Jataúba (PE), 2014.
comecei a fazer as ilustrações, tive que levar em As rendeiras
conta coisas que não considero no meu traba- No entanto, se este processo funcionou bem
lho normalmente, a começar pela grossura do com as ilustradoras, que já estão acostumadas
fio que une todos os pontos [o lacê, responsá- a trabalhar neste modelo digital, como cita Ana,
vel por dar forma à peça e mede meio cm de para Helena esse processo só funcionou porque
espessura]. Todo desenho precisa ser feito nessa ela, como conhecedora da técnica, pode fazer
linha grossa.”, comenta Helena Sbeghen. “É um essa ponte entre as ilustradoras e as rendeiras.
desafio você fazer um desenho pensando nos “Eu já conhecia elas e a técnica, então recebi os
pontos, no que é possível dentro da técnica, não desenhos digitalizados das ilustradoras, passei
se trata apenas de um desenho que acaba ali”, para a base da renda [papel manteiga] já com
complementa Camila. o risco do lacê que seria alinhavado e mandei
os riscos prontos pra elas”, conta a designer que
Outro desejo do grupo era recuperar o uso de passou a trabalhar com dois grupos, um no Sítio
pontos que estão ficando esquecidos. Embora Mimoso, em Pernambuco, e outro na Paraíba,
exista mais de 100 pontos de renda renascença tudo intermediado pelas gestoras locais Jeruza
catalogados, a gestora da Ómana afirma que a Gomes e Suelene Cavalcanti.
Fotos: Divulgação Ómana

maioria das rendeiras dominam no máximo de


cinco a dez pontos, embora tenham muita faci- Jeruza, que hoje coordena o núcleo de Pernam-
lidade de aprender e aplicar os outros. “Como a buco, foi quem recebeu Helena em casa na
renda é muito desvalorizada, as rendeiras aca- época do mestrado. Grata, ela diz que o traba-
bam fazendo os pontos que são mais rápidos e lho das rendeiras nunca foi tão valorizado como
fáceis para que o trabalho renda mais”. está sendo agora. “A Helena traz muita visibili-
Jeruza Maria Gomes,
gestora do grupo de
rendeiras de Pernambuco.

36 URDUME Edição #07


capa xxxx

dade para o nosso trabalho, estou muito alegre são vendidos neste valor sem nenhuma contes-
e satisfeita com a revista”, comenta, referindo-se tação. E o têxtil, qual lugar ele ocupa? Como o
a esta matéria. público em geral vê a renda? Para driblar e rees-
truturar essas relações, Helena aposta na possi-
Sobre os desenhos diferentes, Jeruza diz que elas bilidade de viabilizar a venda em atacado para
estranharam um pouco no começo, mas que ago- lojistas: “Os espaços físicos são muito importan-
ra já estão acostumadas e gostam muito. “Era um tes, essenciais para a venda e para a estrutura de
desenho que a gente não conhecia, mas com eles uma cadeia sustentável’’, afirma.
nós podemos pôr em prática os pontos que a gen-
te sabia, mas não usava, como o sianinha, traça e Certamente a aposta na mistura do contempo-
o dois amarrado”. Os riscos exclusivos são parte do râneo com uma técnica ancestral foi uma esco-
laço de confiança entre as ilustradoras, gestoras e lha acertada. Segundo Helena, o que gera a uni-
rendeiras, “confio muito no trabalho delas, na di- dade do trabalho realizado por três ilustradoras
visão do trabalho, o cuidado com o acabamento, diferentes é que todos os quadros são feitos em
é uma rede muito complexa, um processo muito renda e branco, já que cada artista tem um estilo
caro de se desenvolver a distância, várias coisas muito diferente da outra. Assim, ao propor riscos
envolvidas que precisam estar muito elaboradas contemporâneos, a Ómana revela o potencial
para dar certo”, comenta Helena. criativo da renda e aproxima-se de outros públi-
cos, além daqueles que já consomem o artefato.
Os quadros que formam o Mural Mimoso foram
pensados para ser um produto versátil, e são- De alguma forma, o Mural Mimoso segue uma
vendidos individualmente ou compostos, de tendência que já vem acontecendo em outras
acordo com o gosto e bolso do freguês. Demo- técnicas têxteis como no bordado, na tecelagem Europeia, a renda renascença
ram em média 18 horas para serem produzidos e no crochê, o trabalho em parceria com ilustra- chegou no Nordeste do Brasil
e são vendidos pelo site da Ómana por 320 reais dores para criação de peças artísticas. Para a no século XIX, com freiras
cada. Toda a produção é feita por encomenda, já ilustradora Helena Sbeghen, o mais interessan- francesas no convento de
que manter um estoque desse tipo de trabalho te do projeto é justamente essa combinação de Santa Teresa, na Paraíba, mas
geraria um custo muito elevado. “Eu faço a ven- técnicas ancestrais com traços mais contempo- só se tornou uma prática
da, repasso um valor de entrada para que elas râneos. Camila concorda: “foi uma troca emocio- popular entre as mulheres
possam produzir, elas me enviam e eu entrego, nante. Tivemos contato mesmo à distância com da região a partir de 1930.
é uma produção com valor elevado, não faz nem essa técnica incrível, e também para as artesãs
sentido ter estoque.”, analisa Helena. que a partir das ilustrações contemporâneas po-
Segundo o livro Decifrando
dem sair um pouco dos desenhos tradicionais,
Rendas (2021)*, a renda
Foto: Divulgação Ómana

Apesar do sucesso, e de manter um volume de quem sabe trazendo o interesse de uma nova
renascença é construída a
vendas média mensal desde o lançamento do geração que continue com esse saber e técnica.
partir do alinhavo do lacê (fita
Mural, Helena ainda acredita ter como maior Sem falar que esteticamente o trabalho ficou
desafio mudar a percepção das pessoas em re- forte e delicado, diverso e coerente, enfim, achei
de algodão) sobre o suporte
lação ao têxtil. “Às vezes um print, uma colagem, lindo”, conclui a ilustradora com o risco desenhado. Poste-
riormente, com agulha e linha,
se preenche os espaços vazios
entre o lacê com os pontos.
38 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 39
Pesquisa Pesquisa

Dicas de leitura Cadernos Urdume


Os CADERNOS URDUME nascem
como primeiro projeto do Institu-
Decifrando Rendas to Urdume, evolução natural do
Lançado este ano, o livro Decifrando Ren- processo de amadurecimento e
das - Processos, técnicas e histórias, de Vera autoconsciência da equipe da re-
Felippi, é um tipo de material raro no Brasil. vista Urdume. Uma iniciativa que
O projeto, financiado pela Lei Aldir Blanc e tem por objetivo partilhar, com
coordenado por Carolina Grippa, vai muito aqueles que nos acompanham,
além da classificação e descrição das técni- ensaios, esboços e referências de
cas - o que já seria muito. pesquisas que temos realizado
nos últimos dois anos.
Em 159 páginas e quatro capítulos, Vera nos
apresenta o trabalho de uma década dedi- Sempre com o foco em um tema
cado à pesquisa das rendas, e nos oferece um específico, os Cadernos chegam
guia onde podemos encontrar: o conceito e para complementar o conteúdo
a história da renda, a descrição dos proces- plural que produzimos para a re-
sos industriais e manuais, os materiais e dife- vista, porém com mais argumen-
rentes suportes usados para sua feitura, e os tação histórica e questionamentos
principais nomes daqueles que têm guarda- que esbarram nas lacunas existen-
do os saberes deste ofício. tes na produção teórica da área.

O e-book do livro está disponível para aces-


so gratuito no site do Museu Moda e Têxtil da
UFRGS https://www.ufrgs.br/mmt/publicacoes

Acesse o e-book Acesse os dois primeiros


Decifrando Rendas. Cadernos Urdume

40 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 41


ancestralidade xxxx

NA ROTA
DOS
HUIPILES
Muro de Santa
Cercados de água cristalina, com fauna e flora rica Catarina Palopó,
em flores e espécies animais, os povos guatemaltecos de origem na Guatemala,
Maia não deixam seu passado e sua história se perderem no tempo. com as cores
típicas da região.
Está tudo ali, bordado e tecido, em cada traje típico

por Manu Ebert

A
ntes de começar essa matéria você vai precisar dar um google. Digite: "Lago Atitlán". Olhe as fo-
tos, as casas coloridas amontoadas sobre os morros, e cada píer à beira d'água. Bonito né? Passe
aí alguns minutos observando a cor desse azul que vai da água ao céu numa escala rica de tons,
apenas interrompida pelos três vulcões que circundam essa região ao norte da Guatemala.

Pois é ... essa é a paisagem que inspira as mulheres guatemaltecas na criação de bordados e peças têxteis.

A região tem a maior população Maia do país. Ali você encontra 15 pequenos municípios, conhecidos
como 'pueblos'. Cada povoado tem um trabalho têxtil único. Sentadas no chão, envolvidas nos seus tea-
res de cintura e munidas de agulhas de madeira, elas vão dando vida às padronagens que representam

Foto: Pamela Flandez


sua ancestralidade e as singularidades de cada grupo.

42 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 43


xxx ancestralidade

A orquestra no tear para produzir essas peças O mais interessante é que, enquanto na Europa a
tão cheias de história utiliza de 8 a 10 palitos tradição precisa ser preservada na reprodução de
(que faz o papel das agulhas para passear com uma peça no Goldwork ou no Blackwork (técnicas
as linhas) que chegam a trabalhar simultanea- de bordado antigas na Inglaterra, por exemplo),
mente na formação do desenho. na Guatemala as peças vão sofrendo pequenas
mudanças ao longo das décadas. E elas aconte-
Os desenhos buscam mais que beleza visual, tem cem naturalmente: "As mudanças nas peças têx-
uma razão de ser. Vieram dos ancestrais, são re- teis vem de uma pessoa que resolve mudar um
presentações geométricas, da natureza, da vida e ponto de bordado, o tamanho de um bicho, a in-
da morte. São os tecidos que falam por seus po- clusão de uma flor. E se as outras pessoas gostam,
vos. As cores também são a bandeira de um 'pue- passam a bordar essa 'novidade 'que é inserida
blo' nos huipiles. Cada grupo tem uma cor predo- num huipil (traje típico do país)", explica Flandez.
minante na sua arte. O vermelho, o azul e o preto.
Fiação manual: Existem também peças de diferentes complexi-
uma das técnicas Em Patzún (localizado a sudoeste do lago) os tra- dades, destinadas a diferentes ocasiões. Se você
utilizadas na pro-
jes são tecidos na cor vermelha, com listras colori- vai a uma festa típica ou a um casamento você vai
dução do huipil.
das. As golas ganham bordados feitos a mão pelas usar uma roupa com mais detalhes. Isso está na
mulheres. Simetricamente trabalhado, os círculos complexidade de cada padronagem ou execução.
representam o calendário Maia. Antigamente Outras peças ganharam até adaptações como zí-
Há seis anos a mediadora cultural chilena, Pamela sar horas sentada sobre os joelhos para tecer não
eram aplicadas penas de aves abaixo do bordado. peres na região dos seios para mulheres lactantes.
Flandez, criou o projeto “IndiGenias”, levando turis- é coisa fácil). Nesse trajeto vemos não só a criati-
Hoje elas são bordadas de diversas cores.
tas da América Latina e Europa para conhecer a rota vidade de cada tecedora e bordadeira, mas tam-
O município San Juan de La Laguna traz no seu
têxtil dessa região. Atualmente, tem essas mulheres bém que cada uma tem a liberdade de adaptar
Durante o período hispânico, o bordado tam- huipil uma homenagem ao padroeiro da cidade,
como amigas e parceiras. Visita suas casas, conhece as formas de trabalhar para produzir sua arte.
bém manteve a cultura viva, trouxe esperança San Juan. A soma dos quadradinhos bordados no
suas histórias de vida e durante os anos foi desco-
em grandes épocas de exploração e escravidão. peito: 24, é o mesmo dia do Santo. O número de
brindo os traços de cada cidade presentes em seus OS PASSÁROS
Não deixava que a identidade e a crença fossem linhas do ziguezague acima dos quadrados são 6,
artesanatos. "As peças têxteis são suas marcas. Se As aves da reserva de Santiago de Atitlán têm
tomadas pelo medo. isto é, representa o mês do seu aniversário: junho.
você visita a comunidade de Santa Catarina Palopó, lugar no traje típico. As cores e seus movimentos
localizada de frente para o lago, você descobre que aparecem em cada bordado dentro da peça. En-
o azul das peças feitas nos teares é o azul do lago, tre pontos simples, cada pássaro é bordado num
do céu... bordam os pássaros que por ali sobrevoam. movimento leve e alegre. E porque os pássaros? Pássaros
Cada grupo traz sua identidade nas cores e nos ele- Ah, essa resposta pode ter muitas explicações. bordados em
homenagem ao
mentos da natureza que estão ao seu redor". Pamela conta a versão mais bonita que ouviu:
amor infinito
"Os antigos dizem que a filha do rei de Tzutujil,
E tudo isso está lá, na raiz desses povos, muito em Santiago Atitlán, se apaixonou por um ho-
antes dos espanhóis chegarem, no séc. XVI. O mem simples, um jovem camponês. Seu pai, ao
tingimento das lãs com sementes e folhas, seus saber do amor que havia entre eles, proibiu a
desenhos geométricos de pássaros, plantas e flo- filha de vê-lo. O jovem apaixonado não sabia o
Fotos: Pamela Flandez

res foi semeado dentro de cada mulher. Juntan- que fazer. Desesperado por um reencontro com
do fios coloridos, esse é um trabalho complexo sua amada, ele decidiu se disfarçar de pássaro e
que se inicia na infância das meninas e sua arte ir ao seu encontro. A partir desse momento as
do 'tecer' e vai até as senhoras, matriarcas já com mulheres de Santiago Atitlán bordam pássaros
experiência e muito jogo de cintura (já que pas- em homenagem ao amor infinito entre os dois."

44 URDUME Edição #07


ancestralidade xxxx

Essa é uma forma de homenagear e garantir inestimável. Você encontra na casa de penhores
que cada um que veste um huipil não esqueça de Huipils na Guatemala. As mulheres deixam
suas tradições. suas peças quando estão passando por alguma
crise financeira. Depois que elas se recuperam,
Os teares de cintura são ferramentas milenares voltam para buscá-lo." explica Pamela.
nos povos da América Latina. E é uma ferramen-
ta de trabalho das mulheres guatemaltecas. O Muitas comunidades nem chegam a produzir pe-
traje típico conhecido como huipil é feito com ças para comercializar. Elas usam a peça por dois,
faixas produzidas nesses teares, que são unidas três anos e depois vendem para outra pessoa que
por linhas e agulhas de forma simples. Cada mora ali do lado, uma vizinha por exemplo. Assim,
grupo tem um número de faixas necessário esses trajes vão passando todo o tempo, de mão
para fechar sua peça: uma, duas ou três. A ana- em mão, para outras mulheres. E nunca viram
tomia da peça não mudou ao longo dos séculos. lixo, são recortados e seus pedaços viram uma
Uma modelagem sem curvas sem acabamento, carteira, uma almofada, etc. Ali está depositado
que tem na faixa central uma área que será re- um legado. Uma peça conta muitas histórias. Tear de cintura:
cortada para passar a cabeça. ferramenta de
Atualmente as influências dos turistas que tra- trabalho das
Mas toda essa simplicidade resulta de um traba- zem novos costumes para a região afetam mais mulheres
guatemaltecas.
lho longo. Cada huipil demora de três meses a os homens do que as mulheres. "Os trajes típicos
um ano para ficar pronto. Um trabalho coletivo: masculinos são raros hoje em dia. Porque são eles
feito em família. Enquanto uma mulher tece no que saem dos grupos e têm mais contato com o
tear, a outra borda sobre a peça e outra(o) costu- mundo externo, ocidental. Essa influência ainda é
ra até a peça ficar pronta. Um trabalho que não baixa entre as mulheres que ficam mais em casa
se traduz num valor monetário, pois é uma peça e sofrem menos interferência" afirma Flandez.
para filhas, traz até mesmo uma independência econômica. Muitas mulheres chegam a produzir
que vale muito mais que qualquer quantia: " Eu
bordados para vender aos turistas, e afirmam que essa é a forma delas ganharem independência
sempre comparo um huipil a um anel de famí- Um fator muito interessante é que esse traba-
financeira e conseguir sustentar sua família, especialmente no caso das viúvas ou divorciadas.
lia. Ele não se desgasta, tem um valor emocional lho - que é passado de avó para netos, de mães

Atualmente, a herança ancestral da Guatemala vem sofrendo com a concorrência das máquinas. Mui-
tas padronagens já são copiadas em larga escala. O valor cultural se perde e a indústria ganha milhões
Traje típico
reproduzindo centenas de peças em curto período de tempo. O incentivo para que essa arte milenar
conhecido
como huipil não se perca está comprometido há mais de uma década. Turistas não conseguem reconhecer mais
feito nos teares o valor de uma peça feita à mão ou até chegam a achar que estão sendo enganados pelas artesãs.
de cintura. Com isso surgiu o Movimiento Nacional de Tejedoras Mayas, que reúne cerca de 30 organizações em 18
comunidades do país. Este grupo foi organizado pela Asociación Femenina para el Desarrollo de Sacate-
péquez . Desde 2014, elas exigem do governo leis que protejam as criações dos povos indígenas. Em 2017 o
projeto foi apresentado formalmente ao Congresso, mas até hoje, não conseguiram transformá-lo em lei.
Fotos: Pamela Flandez

E não nos cansamos de ver nas capas de revistas de moda, desenhos de povos latino-americanos sendo
usados por grandes grifes em coleções sem dar o crédito para a criação dessas artistas e de seus ances-
trais. Uma vida dedicada aos teares. Essa não é uma apenas uma profissão rentável como milhares de
outras, é a vida e a cultura de um povo e isso não tem preço

46 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 47


Foto: Bruna Brandão © Copyright Instituto Yube Inu

xxx Povos originários

Cosmovisão
têxtil A jiboia e a aranha
são elementos
fundamentais na
concepção dos tecidos
e grafismos Huni Kuin
por Paula Melech

“ H
aux, haux. Meu nome é Bunke Inani Huni Kuin, moro na Aldeia Boa Vista,
Rio Jordão, Acre. Sou representante dos trabalhos das mulheres indíge-
nas”. Bunke, ou Maria Socorro Kaxinawá, em português, é uma entre os
pouco mais de 12 mil habitantes do povo indígena mais numeroso do Acre, os
Huni Kuin. Desde o leste peruano até a fronteira com o Brasil, as aldeias se espa-
lham pelos rios Tarauacá, Jordão, Breu, Muru, Envira, Humaitá e Purus.

O nome Huni Kuin, no idioma hãtxa kuin, significa “homens verdadeiros” e uma das
suas principais expressões culturais, os grafismos chamados de Kene, são tradu-
zidos como “desenhos verdadeiros”. Os Kene expressam uma parte fundamental
da identidade desse povo e são aplicados tanto em pinturas corporais quanto em
tecelagens, cestarias e cerâmicas. As artes gráficas desta etnia estão intimamente
Maxi Huni Kuin (Rufina, em ligadas à experiência produzida pelo Nixi Pae (ayahuasca), bebida psicoativa feita a
português) da Aldeia Boa Vista partir da decocção de duas plantas nativas da floresta tropical, o cipó Banisteriopsis
com um cesto de trançado de
caapi (caapi, douradinho ou mariri) e folhas da rubiácea Psychotria viridis (chacrona).
palha em produção, técnica
tradicionalmente desenvolvida
pelas mulheres.

48 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 49


Povos originários

A manualidade Huni Kuin é coletiva e feminina. visão de mundo, portanto, não existem deslocadas
São elas as guardiãs e mestras dos cantos rituais dos seus sentidos, significados e do seu pertenci-
associados à tecelagem e aos grafismos. Aos ho- mento. A arte têxtil, como outras manifestações
mens, conta Bunke, cabe o roçado e o plantio culturais, não é vista como algo dissociado de
do algodão, que depois será fiado, tecido e tin- quem a produz e da sociedade em que está inseri-
gido com pigmentos naturais pelas mulheres. da - o têxtil é parte dela, possui funções específicas.
Um dos pigmentos mais utilizados é retirado da
casca da árvore Ixti nãti (Águano, em português) “Na cosmovisão Huni Kuin existe uma relação de
que resulta na cor preta, uma das mais difíceis tecituras, as imagens que são tecidas estão rela-
de obter por conta do longo processo de tingi- cionadas com rituais, que vão trazer a figura da
mento e mordentagem [processo de preparar jiboia, a cobra grande. Ela é o ser encantado, que
um tecido para receber corantes]. São plantadas vai trazer os grafismos, as mensagens e os dese-
cinco variedades distintas de shapu (algodão) nhos daquele povo”, explica a designer gráfico e
com colorações e volumes de fibras diferentes. de moda, Julia Vidal, que também é educadora
de moda decolonial e tem como propósito a va-
Entre os trabalhos manuais desenvolvidos pelas lorização da diversidade cultural brasileira.
mulheres, se destacam a tecelagem, que pode ser
Tecelagem Manual: grafismo do Kene foi dividida entre as que são produzidas com linhas in- O grafismo característico do Kene Kuin foi trans-
transmitido pelo encanto da jiboia. Na foto,
dustriais e as que são feitas com linhas artesanais. mitido pelo encanto da jiboia, que ensinou as
Dani Huni Kuin, da Aldeia Boa Vista.
As de linhas artesanais são mais raras, pois exigem mulheres sobre os seus grafismos.
o conhecimento apropriado e um longo processo,
que passa pelo cultivo do algodão de uma semente Tecitura
de manejo ancestral, a fiação das linhas manual- Os desenhos manifestados no ritual são passados
mente, o tingimento com diversos materiais vege- para a tecelagem, e neste processo entra a tecitu-
tais e minerais da floresta e finalmente a tecelagem ra, movimento que é inspirado pela aranha Bas-
manual. Com os tecidos são produzidas mantas, nen Puru, que ensina as mulheres a fiar e a tecer.
coletes, bolsas, saias, vestidos e vestes cerimoniais. O animal têm grande visibilidade também em
outras sociedades e cosmovisões com relação ao
O trançado de palha é outra técnica desenvolvida tecer. As mulheres Huni Kuin cantam pedindo a
pelas mulheres. São usadas folhas de variadas pal- força da aranha durante todo o processo de co-
meiras para a produção de diversos tipos de cestos, lheita, descaroçamento, bater e fiar o algodão, e
esteiras e abanos para o fogo. Outra técnica é a ce- também para se tecer rápido e com excelência.
Fotos: Bruna Brandão © Copyright Instituto Yube Inu

râmica cuja queima é feita na brasa da fogueira, e a


arte em miçangas de vidro, bastante popular desde Isso demonstra uma cosmovisão onde o reino
que chegaram até os Huni Kuin. Com esse material, animal está completamente em simbiose com
são criadas pulseiras, colares, tornozeleiras e peque- o reino humano, formando um ecossistema de
nas bolsas. Outros adornos usam materiais como teias que se relacionam, como ressalta Julia. “O
sementes, penas e dentes de caça. têxtil vai trazer as visões, os grafismos que são
fruto desse contato com a cobra grande. É a
Cosmovisão partir da pele do animal que os desenhos serão
As artes produzidas no contexto das cosmovisões sistematizados e o têxtil vai trazer a força e a co-
indígenas, seja da África, do Brasil e de outros lu- nexão com esse animal de poder, a relação com
gares, estão diretamente relacionadas com aquela a grande divindade desse povo”.

50 URDUME Edição #07


Povos originários

O lugar sagrado ocupado pelo têxtil na tradi- de. Ainda assim, existe a possibilidade de adquirir
ção Huni Kuin traz uma conexão de mundos e uma peça original (de algodão orgânico e tingida
Maspã Huni Kuin
a função dos encantados e da ancestralidade. O naturalmente), por um valor um pouco maior. A
em processo de
grafismo representa aquele povo, o que é muito compra dessas ultimas contribui para que pro- fiação do algodão,
diferente da criação individual de uma cosmovi- cessos culturais importantes, como fiar e tingir, cultivado a partir
são ocidental, cujos produtos levam uma assina- não sejam substituídos pelo uso das linhas indus- de semente ancestral.
tura. O pertencimento naquela sociedade é ca- triais de algodão proveniente do agronegócio.
racterizado por uma coloração, tecitura, tipo de
grafismo e de desenho que vai relacionar deter- No caso da comercialização, há uma vontade de
minada peça como uma manifestação da etnia. integrar de alguma maneira as sociedades. “Eles
estão buscando adaptar o processo deles para
O vínculo com o ecossistema em que estão in- dialogar com a cidade. É uma forma das pessoas
seridos está representado também na relação que não estão lá entrarem em contato com a
com os pássaros, especialmente com os Japiins, sua cultura e conhecer a arte a partir desse pri-
chamados Txana no idioma do povo Huni Kuin. meiro contato”, explica Julia.
O pássaro é considerado um grande mestre da
tecelagem por conta da forma com que constrói O processo de produção em simbiose com a natu-
o seu ninho. Por meio de um entrelaçado de fo- reza se concretiza desde a concepção da susten-
lhas e fibras, é criado um formato semelhante a tabilidade, de compreender os ciclos de retirada,
uma bolsa arredondada, chamada de “rede do de como trabalhar a matéria-prima e os ciclos do
Txana”. O abrigo, que protege das chuvas e ven- algodão. Estão incluídos aqui os processos de tin-
to e os mantém aquecidos, é a inspiração para gimentos naturais e as técnicas de tecitura, feitas
as casas e redes utilizadas pelos Huni Kuin. com extrema habilidade e rapidez, até a finaliza-
ção e fechamento das peças que é “absolutamen-
Comercialização te incrível em termos de design”, observa Julia.
Assim como para outros povos indígenas, os
Huni Kuin têm buscado gerar renda para as fa- A designer ressalta que a tecelagem Huni Kuin
mílias por meio da venda de produtos, como ves- tem uma caraterística de excelência que vem
tidos, túnicas, redes, bolsas e até mesmo másca- nos mostrar como esse pensamento de olhar
ras para prevenção ao coronavírus. As máscaras para a moda somente a partir de um lugar é ex-
e outros produtos, são comercializados, entre cludente, preconceituoso e racista.
outros lugares, pelo Oca - Observatório Cultural

Foto: Bruna Brandão © Copyright Instituto Yube Inu


das Aldeias, que mantém um projeto voltado a Conhecer os processos da natureza, de saber
mulheres artesãs indígenas e não indígenas, o e fazer moda a partir das cosmovisões dos po-
Oca - coletivo de artesãs, onde são desenvolvi- vos originários brasileiros, entender as questões
dos artesanatos voltados para a cidade. de conexão com territórios, de reflorestamento
para a preservação, além do sistema de memó-
Muitos produtos ainda são feitos com tingimen- ria, que está ativo quando a iconografia é pas-
to natural, mas buscando diminuir o tempo de sada de geração para geração é algo de grande
produção, também estão sendo usadas linhas in- valia. “Para mim essa arte representa a comple-
dustriais. Com isso, hoje é possível encontrar pe- xidade e a sofisticação dessa moda que é brasi-
ças de cores variadas, como vermelho, lilás e ver- leira e que a gente não conhece. O mais impor-

URDUME Edição #7 53
Povos originários xxxx

Maxi fazendo o
tante é passar a dar valor ao que é produzido no um grupo feminino chamado Yube Nawa Aîbu trançado de palha,
no qual são utilizadas
Brasil com excelência, sabedoria, sustentabilida- (Mulheres jiboia) para dar voz a esse movimento.
folhas de variadas
de e circularidade”, ressalta. Bunke é uma das lideranças femininas dentro da
palmeiras da região.
comunidade, mas não é a única. Existem também
Conversamos com Diana Paris Rodriguez, idealiza- mulheres mais velhas que exercem importantes
dora e coordenadora do Projeto Mulheres Huni Kuin papeis. Bunke Inani (Maria Socorro Kaxinawa), no
(@hunikuinwomen), da Aldeia Boa Vista, Rio Jordão, entanto, tem uma grande capacidade de organi-
no Acre, sobre liderança feminina e cosmovisão. zação e coordena a produção de artesanato e a
pesquisa de músicas e medicinas ancestrais entre
URDUME. Como se deu a sua aproximação as mulheres, ela também viajou por diversos paí-
com as mulheres Huni Kuin? ses e colabora com essa ponte entre a floresta e o
Diana Paris: Comecei a trabalhar com o povo mundo. Desde que comecei a trabalhar na aldeia
Huni Kuin em 2016, inicialmente na implemen- Boa Vista, em 2017, me conectei com sua força e
tação de um projeto de ponto de cultura, com personalidade e ela compartilhou comigo seus
o grupo Kayatibu, de jovens Huni Kuin da zona sonhos de ajudar as mulheres de sua aldeia e de
urbana do município de Jordão, no Acre. Desde seu povo e também de outros povos. Aos poucos
o início me conectei principalmente com as mu- esse sonho foi tomando forma e resolvemos criar,
lheres e à medida que fui conhecendo-os mais em parceria com o Instituto Yube Inu, a Vivência
profundamente, percebi a importância das mu- das Mulheres Huni Kuin (@hunikuinwomen), uma
lheres dentro das aldeias. Elas são a grande for- jornada para aproximar mulheres, fortalecer e va-
ça motora de suas comunidades, lidando com lorizar os saberes femininos da aldeia.
inúmeras tarefas diárias no cuidado da casa, dos
alimentos, das crianças, da água, do fogo e ain- URDUME. Como é compreendida a cosmovi-
da produzindo diversos tipos de artesanato pra são do grupo, o papel da liderança feminina e
venda ou uso familiar. A maior parte das tarefas seus fazeres ancestrais neste contexto?
é dividida entre gêneros, então eu passava muito Diana: A cultura é uma coisa viva, dinâmica, que se
tempo com as mulheres em seus afazeres, por transforma através do tempo e espaço e isso não é
isso a aproximação se deu de maneira natural. diferente entre os povos indígenas. Muitas ativida-
des e funções sociais que eram consideradas de
URDUME. Pode contar um pouco como acon- exclusividade masculina para o povo Huni Kuin,
teceu a relação estabelecida com a Bunke Ina- como a condução de cerimônias de ayahuasca ou

Foto: Bruna Brandão © Copyright Instituto Yube Inu


ni, uma das lideranças femininas da aldeia? mesmo o papel de “shane ibu” (cacique) de uma al-
Diana: Cada aldeia Huni Kuin tem sua própria or- deia, tem aos poucos se transformado também em
ganização interna e diversas lideranças represen- papéis femininos. Mas, para além disso, as mulheres
tativas que atuam na comunidade. A maior parte carregam legados ancestrais importantíssimos em
dos que estão à frente das tomadas de decisão tudo que concerne aos cuidados familiares. A co-
são homens, mas essa situação tem aos poucos se lheita e preparo de alimentos, as plantas medicinais
transformado e mais mulheres estão adentrando relacionadas aos ciclos femininos, parto e cuidado
esse espaço. A Aldeia Boa Vista, localizada na Ter- das crianças e as diversas técnicas de artesanato.
ra Indígena Kaxinawa do Rio Jordão, que é onde
trabalho atualmente, é uma das pioneiras com re- URDUME. As populações indígenas foram bas-
lação ao empoderamento das mulheres. Criaram tante atingidas pela pandemia e estão entre as

54 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 55


xxx Povos originários

menos assistidas pelo Estado. Como você vê cia. Os fazeres artesanais são ao mesmo tempo
a situação atual dos povos indígenas no país? um trabalho artístico, espiritual e também uma
Diana: Existem muitos povos em todo o Brasil e maneira de suprir as necessidades cotidianas. A
cada um desses povos vive situações socioeco- produção de uma peça de cerâmica, de um te-
nômicas, culturais e geográficas diferentes. De cido ou de um cesto é muito mais que a confec-
maneira geral, as populações indígenas tem so- ção de um objeto para uso diário. Cada objeto
frido impactos gravíssimos com a pandemia. Os carrega um legado, um ensinamento transmi-
modos de vida comunitária, a baixa imunidade a tido de geração em geração, grafismos e técni-
esse tipo de doença, a falta de acesso a hospitais cas com significado espiritual que comunicam
torna esses povos grupos extremamente vulne- algo. Além disso possuem uma ligação com a
ráveis. Desde o início da colonização as epide- natureza local, com o conhecimento da artesã
mias vem dizimando etnias inteiras. Além disso, ou artesão, do material disponível no ambiente
como a doença tem uma mortalidade mais ele- e de sua extração sustentável. Dessa maneira, os
vada nos anciões ela representa um grave risco fazeres indígenas são também uma forma de
para toda uma cultura. Os anciões e anciãs são resistência, de afirmação cultural.
as bibliotecas de um povo, guardiões da cultura
oral dos saberes e da língua. Quando um morre URDUME. Como você analisa o lugar do traba-
não se perde apenas um ser humano, mas tam- lho manual indígena no cenário atual?
bém todo um legado. A política do Estado nessa Diana: Mundialmente as pessoas vem perce-
Na cosmovisão Huni situação se revela claramente genocida e a pan- bendo que o sistema capitalista está em colap-
Kuin existe uma relação demia tem servido muito bem ao propósito ex- so. A exploração ilimitada de recursos naturais
de tecitura, as imagens
posto desde o início nos planos do governo, de e da mão de obra, a poluição e o aquecimento
estão relacionadas com
desmantelar as leis e organizações de suporte e global vêm contribuindo para uma busca de
rituais, que vão trazer
a figura da jiboia. Na proteção as terras indígenas e seus povos, visan- novas soluções para a crise que enfrentamos.
foto, uma Huni Kuin. do explorar esses territórios. É uma situação mui- Nesse cenário os povos indígenas tem muito a
to infeliz e que nos dá a sensação de impotência. nos ensinar sobre uso sustentável dos recursos,
Mas é parte do nosso dever como seres huma- uma visão mais holística com relação as cone-
nos colaborar da maneira que pudermos para xões entre as sociedades humanas e a natureza,
amenizar essa situação. Existem muitas campa- sobre as maneiras de fazer e as visões do saber
nhas e projetos em curso para dar suporte aos e também a pensar não somente no indivíduo,
povos indígenas nesse momento crítico. mas no coletivo. Com relação aos trabalhos ma-
nuais é uma possibilidade também de parcerias
URDUME. Como esses fazeres resistem e se- para criar novas formas de economia que sejam
guem renascendo como forma de resistência solidárias, sustentáveis, justas. É importante não
Foto: Bruna Brandão © Copyright Instituto Yube Inu

desde a colonização? se apropriar dos conhecimentos indígenas para


Diana: A ciência e tecnologia indígena, conside- uso próprio, mas sim criar pontes que possibili-
rando que a ciência é uma forma de saber e a tem uma economia que mantenha a floresta em
Para fazer doações ou tecnologia uma forma de fazer, tem muito a nos pé. Quando adquirimos um artesanato indígena
parcerias com o Instituto ensinar. Para muitas comunidades tradicionais, apoiamos a criação dessa realidade e também
Yube Inu, basta entrar o trabalho possui um conceito muito mais am- recebemos um objeto que é parte da riqueza
em contato: plo do que uma mera atividade de sobrevivên- cultural da humanidade

@institutoyubeinu
www.yubeinu.org
56 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 57
Foto: Divulgação Modefica

sustentabilidade

Relatório propõe caminhos para a


circularidade e convoca indústria têxtil e
da moda do Brasil para a transformação
por Camila Gonzalez

C
om quase 200 anos, o setor têxtil brasileiro possui a rede produti-
va mais completa do ocidente: desde a produção das fibras, pas-
sando pela fiação, tecelagem, beneficiamento, confecção, varejo
e desfiles de moda. No entanto, a produção fragmentada, com
grande número de fornecedores na fabricação de um produto, dificulta o
rastreamento dos impactos socioambientais.

Anualmente, são confeccionados 8,9 bilhões de peças têxteis no Brasil, o


equivalente, em média, a 42,5 peças por habitante ao ano. Esses dados re-
fletem a realidade da indústria da moda global, baseada em um modelo
econômico que estimula exorbitantes volumes de produção e consumo.

É o que revela o relatório “Fios da Moda: Perspectiva Sistêmica para Circularida-


de”, realizado pelo Modefica, plataforma de mídia independente, em parceria

a
com o Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas

od Ci
(FGVCes) e a consultoria Regenerate Fashion.

M rcu Trata-se de um estudo que sistematiza dados sobre os impactos socioam-


bientais das três fibras mais utilizadas pela indústria têxtil e de confecção
no país: algodão, poliéster e viscose. O relatório ainda propõe uma moda cir-

l
cular a partir das realidades e necessidades brasileiras e do Sul global (paí-

ar
ses subdesenvolvidos ou em desenvolvimento), considerando questões so-

para o
ciais e a complexidade dos setores periféricos da reciclagem, por exemplo.

“Não dá para dizer que uma camiseta branca gasta 5 mil litros de água para
ser produzida, porque isso vai depender do local onde o algodão foi plantado,
como ele foi processado, quais processos de tingimento aquele fio e tecido pas-

Sul global
saram”, cita Marina Colerato, fundadora do Modefica e coordenadora do relató-
rio, explicando sobre a importância da contextualização de dados.

URDUME Edição #7 59

sustentabilidade

No Brasil, segundo maior exportador de algo- material, pois, segundo Marina, “o nível do seu poluente - a Política Nacional de Resíduos Sóli- O algodão agroecológico
dão no mundo, predomina a produção sem ir- impacto e da sua concentração de recursos vai dos é capaz de facilitar a reciclagem de garrafas
determinar o nível da sua responsabilidade na
produzido no Brasil tem
rigação, o que faz com que o consumo de água PET, matéria-prima que pode ser utilizada para
seja menor em relação à média de outros países. transformação”. a produção dessas fibras. todas as características
Por outro lado, o algodão é a quarta cultura que de um produto que cabe
mais consome agrotóxicos no país, com cerca de A pesquisa indica que produtos devem ser pro- No entanto, de uma perspectiva global, tanto
jetados para serem duráveis e facilmente reci-
dentro da economia circular,
10% do volume total - o que evidencia a urgência, os signatários do Compromisso Circular 2020,
também para o setor têxtil, da aprovação da Polí- clados com o mesmo valor e as empresas vare- quanto o recém-lançado projeto Accelerating
em todos os aspectos.
tica Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pnara). jistas já devem agregar os custos de reciclagem Circularity, estão focando na reciclagem de têx- O desafio está, como sempre,
para que possam investir na logística reversa. teis, e excluíram outros materiais, como redes em fortalecer essa rede de
O documento aponta o cultivo de algodão orgâ- Além disso, a inclusão do setor têxtil na Políti- de pesca ou garrafas PET, o que enfatiza a ne-
nico em bases agroecológicas como alternativa ca Nacional de Resíduos Sólidos é essencial cessidade para reciclagem não da garrafa para a
produção alternativa e fazê-la
em relação ao convencional, o que pode redu- para mudar os modelos de negócios vigentes. fibra, mas de fibra para fibra. chegar no maior número
zir as emissões de gases do efeito estufa em até Só para se ter uma ideia, apenas na região do de marcas possíveis.”
58%. Além disso, esse tipo de produção tem im- Brás, em São Paulo, que integra o maior polo Já a viscose apresenta mais desafios quando o
pacto positivo sobretudo na qualidade de vida de produtivo de roupas do país, o equivalente a 16 assunto é reciclagem. Isso porque ela normal-
mulheres camponesas e na soberania alimentar. caminhões de resíduos têxteis são enviados aos mente é composta de tecidos mistos, o que gera num único país torna a mensuração dos impac-
aterros sanitários por dia. uma dificuldade a mais para as empresas reci- tos via Análise de Ciclo de Vida muito mais cara
“O algodão agroecológico produzido no Bra- cladoras e faz com que a fibra seja transformada e complexa”, explica Marina.
sil tem todas as características de um produto Reciclagem de roupas: em material para outras indústrias.
que cabe dentro da economia circular, em to- uma alternativa possível Por outro lado, ela diz não existir muito interes-
dos os aspectos. O desafio está, como sempre, Em relação aos consumidores, o documento De modo geral, o processo de reciclagem reduz se nem muita cobrança para que esses dados
em fortalecer essa rede de produção alternati- mostra que 56,8% das pessoas estariam dispos- significativamente os impactos ambientais em sejam produzidos e trazidos a público: “Olhar
va e fazê-la chegar no maior número de marcas tas a reciclar suas peças de roupas se soubes- relação à produção do poliéster virgem, apesar para o processo de produção da celulose solúvel
possíveis. Eu acredito muito na força das marcas sem mais sobre o processo. Ao mesmo tempo, de um maior uso de água na etapa de limpeza no Brasil exige considerar regiões com desafios
pequenas e médias, se sustentando coletiva- 49,9% nunca ouviram falar sobre reciclagem das garrafas. É preciso considerar, no entanto, complexos, como a Amazônia, além de questões
mente para fortalecer produções alternativas”, têxtil no Brasil. Diante desses dados, o relatório que tanto as peças de poliéster virgem quanto como o desmatamento ilegal, a corrupção e os
comenta Marina Colerato. enfatiza a importância da educação ambiental reciclado liberam microplásticos no ciclo de la- conflitos do campo”, observa.
acerca do tema da reciclagem têxtil. Se atitu- vagem, gerando impactos na saúde humana e
Um outro modelo econômico des sustentáveis fossem desenvolvidas e incen- contribuindo para a poluição dos oceanos. A certificação da matéria-prima e o uso respon-
A circularidade na moda visa estender a vida útil tivadas pelos diversos atores da indústria têxtil sável de produtos tóxicos no processo industrial,
das roupas, mantendo o valor dos produtos e ma- e marcas e varejistas oferecessem um ponto de Uma das dificuldades na produção do relatório com tecnologias para sua recuperação e otimi-
teriais por mais tempo, e obter um impacto rege- coleta em suas lojas, o setor teria a garantia de Fios da Moda foi o déficit de dados abertos e siste- zação, são apresentados no documento como
nerativo no ecossistema, ou seja, superar o mode- insumos adequados para a reciclagem. matizados sobre as fibras no país. No caso da vis- processos alternativos de produção de viscose.
lo de economia linear, extrativista e expansionista. cose, não foi encontrado nenhum artigo brasileiro
Os materiais 100% algodão podem ser recicla- e as informações acessíveis sobre a produção na- Contudo, além do cuidado ambiental com as flo-
Por isso a importância do acesso a informações dos com mais facilidade em comparação com cional de celulose solúvel (matéria-prima usada na restas nativas, é preciso pensar na inclusão das
sobre o ciclo de vida de um produto têxtil (desde fibras de algodão mistas ou outros produtos têx- fabricação desta fibra artificial) são insuficientes. comunidades que vivem e trabalham nestas re-
a extração de recursos naturais até o fim de vida) teis. Porém, para que isto aconteça, será neces- giões. Para se ter uma ideia, uma fazenda de 500
para a adoção de estratégias e tomadas de deci- sário um melhor sistema de coleta de resíduos “A gente exporta a matéria-prima quase que em hectares de agricultura familiar oferece cerca de
são por todos os atores do setor, principalmente têxteis pré e pós-consumo. No caso do poliéster, sua totalidade e isso vem pronto em forma de 200 vagas de emprego, enquanto a de eucalip-
os que concentram capital criativo, humano e apesar de vir do petróleo - fonte não renovável e fio, de tecido. Não ter a rede produtiva completa tocultura emprega apenas três

60 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 61


xxx Decolonialismo

P
are agora, tente olhar a etiqueta da sua roupa e veja se tem algodão na composi-
ção. As chances da resposta ser sim, são grandes. Se não, provavelmente alguma
peça no seu armário tem. Atualmente, o algodão é a fibra natural mais produzida e
comercializada no mundo. O Brasil está entre os cinco maiores produtores da fibra,
junto da China, Índia e Estados Unidos.

Agora, imagine essa peça de algodão se desmanchando por um fio histórico: a cada ponto desfei-
to, um período, um contexto. Passamos por grandes produtores mundiais, períodos de industria-
lização, regimes escravistas, cultivo ancestral.

Quando falamos sobre fibras e tecelagem, falamos também de história. O algodão, juntamen-
te com o linho, foi a primeira fibra têxtil a ser cultivada pelo ser humano: estudos apontam que
ele já era cultivado na Índia em 3 mil anos a.C. e comercializado em 2600 a.C. Com a chegada
de Vasco da Gama na Índia, em meados de 1498, o comércio de algodão se expandiu para além
do Oriente e a fibra foi introduzida na Europa - que utilizava lã e seda - no século 4 a.C. [1]

Desmanchando um pouco mais, o ponto chama-se colonialismo. Europa, Brasil, Estados Uni-
dos. Colonizador, colonizados: nessa ordem. O regime colonial no Brasil iniciou-se com a in-
vasão dos portugueses, que resultou na escravização dos povos originários e posteriormente
sequestro de pessoas negras africanas, deslocadas via Atlântico para nosso território em con-

Desmanchando
dição de escravizadas, para serem exploradas no trabalho de extração de pau-brasil e cana-de
-açúcar, depois de ouro e minérios, e depois em monoculturas de café e também de algodão.
Esse regime é categorizado por alguns historiadores como “primeira escravidão”: “a primeira
escravidão se desenvolveu em um mundo feudal tardio, pré-moderno, quando o capitalismo

a história
ainda estava em sua infância.” [2]

Porém, a alta produção e exportação de algodão expandiu-se no período chamado de “segunda


escravidão”: “a segunda [escravidão] estava envolvida de forma intrincada num processo de in-
dustrialização de larga escala e de “acumulação primitiva” prolongada.” [3] O período foi marcado,

do algodão Foto: Trisha Downing / Unsplash


por exemplo, pela grande produção de café no Brasil, cana-de-açúcar em Cuba e algodão no sul
dos Estados Unidos. A produção da fibra, que antes era exportada principalmente pela Índia, nas
por Bárbara Poerner Treze Colônias chegou a representar de 50 a 60% das vendas mundiais do mercado da época. [4]

Grandes produções exigiam grandes plantações, que por sua vez exigiam um grande número
de pessoas africanas escravizadas, e a realidade dos campos era cruel e perversa, como relata
o historiador e professor da Cornell University (EUA), Edward E. Baptist:
É necessário olhar para o passado da indústria
têxtil para entender como a moda é tecida no hoje
e por muito sustentou sistemas racistas coloniais
URDUME Edição #7 63
Decolonialismo Decolonialismo

Escravistas desenvolveram então um sistema de cotas em que novatos como Northup eram força- Porém, um fio nunca é construído por uma única trama. Pessoas negras têm diversas narrativas para
dos a atingir seu nível máximo de colheita ao longo do dia. Seus cestos de algodão eram pesados muito, muito além da escravidão - que é uma marca da branquitude, não sua - e apenas uma parte
ao lado do descaroçador em uma balança romana. Uma vez conhecido o total, o escravista elevava da história africana e afrobrasileira.
levemente a cota da “mão”. Depois ele a escrevia em uma folha de papel ou em um quadro. Se no
dia seguinte o volume de algodão apanhado não atingisse a cota, então, como no caso de escravos Pessoas negras sempre foram o que são: pessoas. E nunca deixaram de ter sua cultura, ancestralidade, ri-
punidos nas fazendas de café brasileiras por não colherem grãos de café o suficiente em um dia, a tualidade, singularidade, pluralidade. Por exemplo, o algodão plantado e colhido também foi usado para te-
“mão do algodão” passava por um brutal açoitamento. [5] cer as roupas da população africana diaspórica e integrar as celebrações de suas religiões; ou ainda, existem
estudos que mostram que suas roupas foram o que deu início a produção em série de vestuário no país.
É por isso que muitos historiadores defendem que “a industrialização e o advento da modernidade não
representaram automaticamente o fim da escravidão, mas que, ao invés disso, a intensificaram e difundi- Não podemos ocultar a presença e memória de africanos e afrobrasileiros submetendo-os a uma
ram.” [6] Inclusive, a produção de algodão foi a primeira a se industrializar, como afirma Eric Hobsbawm. [7] narrativa única. É certo que a indústria têxtil e da moda precisa reconhecer suas dívidas históricas e
pagá-las - isso também faz parte do antirracismo. Mas também é antirracismo jogar luz às diferentes
Essa Revolução Industrial européia só foi possível por conta da crescente expansão de pessoas africa- perspectivas para que seja possível lidar com as implicações da história no hoje, dando escuta às pos-
nas escravizadas para trabalhar em grandes plantações, que só aumentou nesse período: “o total da sibilidades humanas que cada pessoa negra carrega consigo
população negra nas Américas somava aproximadamente 330.000 no ano de 1700, chegou a quase
três milhões no ano de 1800, até alcançar o pico de mais de 6 milhões nos anos 50 do século XIX.” [8]

O algodão brasileiro
Os EUA detiveram a maior participação no mercado de algodão, mas sua Guerra Civil (1860-1865) des- [1] PEZZOLO, Dinah Bueno. Tecidos: histórias, tipos, tramas e usos. Senac São Paulo, 2017.
locou o país do topo de exportador e elevou uma disputa pela posição. O Brasil, que já tinha intensa
produção, viu uma crescente durante o período. A monocultura estava concentrada no nordeste e [2] [3] [6] MARQUESE, Rafael. SALLES, Ricardo (org.). Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba,

norte, e ficou conhecida até como “ouro branco” em algumas regiões. Brasil e Estados Unidos. 1 edição. Civilização brasileira, RJ, 2016.

[4] [5] BAPTIST, Edward. 2013. A Segunda Escravidão e a Primeira República Americana.
[O algodão] foi o segundo principal produto de exportação da colônia portuguesa entre 1796 a 1811, perfa-
zendo 24,4% do total das mercadorias enviadas para o reino, perdendo apenas para o açúcar, que atingiu [7] HOBSBAWM, E. J. Da Revolução Industrial inglesa ao imperialismo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
o topo de 34,7%. [...] Somente a região Amazônica (que englobava Maranhão e Grão-Pará) e Pernambuco
[8] Revolução Africana: uma antologia do pensamento marxista. MANOEL, Jones. LANDI, Gabriel. (org.). Auto-
(conjuntamente com a capitania vizinha da Paraíba) responderam por 83,70% dos despachos. [9]
nomia Literária, 2019.

Vale ressaltar que em paralelo, no ano de 1838, o trabalho feminino e infantil correspondia a 77% da mão [9] O algodão do Brasil e a economia atlântica: comparações entre Maranhão e Pernambuco (C.1750-C1810).
de obra nas indústrias têxteis na Inglaterra. No Brasil, os dados não eram diferentes; embora sua indus- MARTINS, Diego Cambraia. MELO, Felipe Souza.
trialização tenha se iniciado mais tardiamente, na metade do século XIX a força de trabalho feminina
[10] O trabalho feminino durante a revolução industrial. RODRIGUES, Paulo Jorge. MILANI, Débora Raquel da
correspondia a 62,62% em São Paulo (SP) no ano de 1894. Contudo, muitas eram as dificuldades destas
Costa. CASTRO, Laura Laís de Oliveira. CELESTE FILHO, Macioniro. UNESP.
trabalhadoras: elas ganhavam menos que os homens - embora realizassem o mesmo trabalho - e ti-
nham o ofício desvalorizado e constantemente invalidado. Não foi a toa que a primeira greve operária
Demais referências:
foi realizada por mulheres da indústria têxtil. [10]
SILVA, Danycelle Pereira. 2014. Os fios da memória: presença afro-brasileira em Acari no tempo do algodão.

Desvendar as histórias, entender o presente e tecer outros futuros Senhores e escravos: a estrutura da posse de escravos em Mogi das Cruzes no início do Século XIX. GUEDES,

Recorrer a este fio de compreensão histórica joga luz ao surgimento e sustentação dos mercados têxteis, Kaline Abrantes. 2006.

nos fazendo compreender que o sistema de moda mantém as mesmas lógicas de exploração e mazelas,
Segunda escravidão, crédito e produção algodoeira no Maranhão oitocentista. COUSEIRO, Luiz. VALVANO, Rejane.
pois foi assim que nasceu. É esse o mesmo sistema racista que revela suas sequelas até hoje, tornando o
acesso à educação, lazer, renda justa, trabalho decente e saúde mais difícil para pessoas negras.

64 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 65


xxx SAÚDE

O fio que E
u estava no último ano da faculdade de Psicologia na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) quando cheguei
ao Hospital do Câncer de Barretos para colher os resultados da

liga à vida:
minha tese de conclusão de curso. Meu objetivo era observar
os efeitos terapêuticos que o trabalho manual, como um recurso expres-
sivo, poderia oferecer às pessoas em tratamento de câncer. Era janeiro de
2013, durante três semanas eu coordenei encontros com dezesseis pes-
soas ao redor de um mesmo centro: compartilhar sentimentos e pensa-
mentos ao praticar livremente artes manuais têxteis. Formamos assim a

da experiência
Roda de Artesanato.

Nela, o fazer manual não era um fazer por fazer, mas um fazer expressivo.

do câncer às
Um fazer onde as mãos ganham voz que protagonizam tanto quanto as
palavras. Essa linha de raciocínio está enraizada no pensamento do psi-
quiatra Carl Jung, um dos pioneiros a romper com a expressão exclusi-

adversidades
vamente verbal em consultório terapêutico, integrando em sua prática
clínica recursos não verbais (como o desenho, a pintura e a escultura). No
pensamento junguiano, a psique, matéria invisível e intocável sobre a qual
paciente e psicoterapeuta trabalham, transforma-se em imagem na for-
por Paula Crivelenti e Castro ma de símbolos, sonhos, fantasias e também em toda expressão artística.

A psiquiatra Nise da Silveira seguiu a linha junguiana e ficou mundial-


mente conhecida pela sua revolução na arte de cuidar de seus pacientes
ao oferecer, como alternativa ao eletrochoque, pincéis, tintas e telas. O
trabalho de Nise (1992) confirmou que a criatividade é uma função psíqui-
ca natural e estruturante, acessível a todo ser humano; e que arte como
recurso expressivo, quando aliada ao trabalho psicoterapêutico, passa a
ser uma facilitadora do processo de elaboração intelectual e emocional.

66 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 67


xxx xxxx

Para os participantes da Roda de Artesanato, isso mento, à frente das mãos surgiram flores, frutos, cionar um efeito curativo ou curador no paciente,
era um “nó-dulo” em comum. Dele, um fio surgiu cestos, mandalas, corações. Muitos corações! Esse pois o fazer artístico é uma oportunidade de ex-
Atualmente nomeamos de técnicas expressivas no fuso da nossa roda de conversa. Pouco a pou- foi o símbolo que mais se repetiu na produção ma- pressar, vivenciar e recriar experiências significa-
todas as atividades oferecidas no espaço psicote- co os vi sair do giro repetitivo ao redor das ques- nual da Roda. Um deles, talvez o maior, ocupou o tivas para o desenvolvimento de cada um.
rapêutico que ajudam as pessoas a se expressa- tões ligadas à doença e ao tratamento. Na vulne- centro do painel na exposição que eles mesmos
rem sem utilizarem, em um primeiro momento, rabilidade comum a todos eles, eles fiaram um organizaram dentro do Hospital. Assisti à mudan- A Roda que girava criou um movimento natural
as palavras e o pensamento racional. As artes têx- fio de fibra resistente, que os conectava um a um, ça do movimento repetitivo em torno da doença, de apaziguar ansiedades, angústias e tensões. E,
teis foram escolhidas para ser a técnica expressi- trazendo o senso de pertencimento e unidade. para o movimento irradiador do pulsar pela vida! girando, parece ter criado um movimento com-
va na Roda de Artesanato. Nela, a liberdade foi o Saber-se um com um grupo é bem diferente do Um coração em nosso centro! pensador à dura realidade vivida por eles. Girando,
grande fio condutor. Os participantes puderam que saber-se só. Foi assim que a trama da Roda fez-se fuso e teceu o fio da fibra da qual eles eram
escolher o que fazer e como fazer, assim como foi ganhando força de conexão e acolhimento. Esse símbolo é a representação da origem da feitos. Imersos em situação de grande adversida-
puderam escolher compartilhar com o grupo vida e da fonte de vitalidade. Assim como ele, a de, eles se reuniram e fiaram juntos o fio da vida.
como estavam se sentindo a cada encontro. Segundo Laura Villares, psicóloga junguiana, em um análise da pesquisa constatou que todos os ou- O fio que os reconectou à sensação de vitalidade e
contexto de grupo onde é vivenciada a experiência tros símbolos ligavam-se, de alguma maneira, bem estar. Como a aranha que tece a sua própria
Enquanto as mãos trabalhavam, a Roda cedia es- terapêutica, cada indivíduo vive sua própria dinâmi- ao símbolo da vida. Ao avesso, esse pulso vital teia a partir da própria substância, penso que esse
paço ao fazer criativo em conjunto. Pouco a pou- ca intrapsíquica, que entra em contato com os di- surgiu nos detalhes sutis da experiência na Roda seja o fio condutor a nos guiar em toda e qualquer
co, pude testemunhar uma trama surgir. Só que namismos da relação social estabelecida no grupo. de Artesanato: na abertura de tempo e espaço situação adversa. Tecer a trama a partir do que te-
esta era tingida pelos tons afetivos da psique, da Essas experiências predispõem ressignificações de para um compromisso diário que os levava além mos em nós, diante do que a vida nos apresenta
qualidade dos fios mais finos e delicados, invisível experiências emocionais e ampliação da consciên- do tratamento, no ter uma obra em mãos para no presente, é uma obra muito desafiadora. "Desa.
a olho nu e profundamente tátil ao sentir. Essa tra- cia coletiva, uma vez que todos estão conectados ser desenvolvida, no reencontro com suas au- fio". É nele que também mora a chance de desfiar
ma foi entremeada pelos assuntos que eles elege- uns com os outros e com as mesmas temáticas do tonomias através da potência de criar e realizar o fio. Fio desfiado, fio solto, fio livre. Fio que revela
ram como importantes, feita às mãos, ativamente, trabalho terapêutico. Para ela, os grupos se apoiam algo, na possibilidade de superar dificuldades na a força da ligação e da reconexão. Fio condutor. Fio
a partir de suas próprias necessidades. A primeira na combinação tênue entre os conteúdos psíquicos palma das mãos, na atenção delicada tão neces- guia. Fio que fia a confiança. Fio que traz a força
que surgiu teceu uma profunda conexão entre das memórias e das experiências que foram ressig- sária nos processos manuais, no desligamento resiliente da envergadura da alma, capaz de se en-
eles: a condição de estar em Barretos. Ali, as sema- nificadas 1 .E foi isso que pudemos observar na me- momentâneo da realidade, na mudança de foco vergar completamente sem se quebrar
nas eram preenchidas por algumas horas de con- dida em que os encontros aconteciam. do adoecer, no cultivo do aqui e agora de cada
sultas médicas, poucas sessões de quimioterapia encontro, na evidência das virtudes como a pa-
ou radioterapia e muitas horas preenchidas por A trama coesa, de força própria, mostrava-se ca- ciência e a persistência.
vazios, saudades, medos, angústias e tédio. paz de suportar e dar continência ao suspiro de
Paula é psicóloga clínica
um, ao silêncio do outro, às queixas, aos medos, A potência do trabalho em grupo, a oportunida-
e vê a arte como uma
Todos os participantes estavam longe de suas vi- à tristeza, à saudade de casa, dos filhos. A Roda de de ressignificar conteúdos psíquicos a partir
grande aliada em seu
das. Todos tiveram que deixar suas casas, suas girava... girava... e a cadência natural aos proces- da experiência vivida em conjunto e toda a auto-
trabalho. Ultimamente tem
famílias, suas ocupações, suas cidades e, muitas sos manuais trazia um movimento fluido. Leve. nomia criativa que as mãos lhes devolveram pa-
se (re)descoberto artista
vezes, até seu Estado para fazer o tratamento no Morte e vida, duas pontas de uma mesma mea- rece ter feito de cada um, cria, criatura e criador
têxtil, que tece textos e
interior do Estado de São Paulo. Todos viveram um da. A cada momento, uma das pontas era puxa- do processo elaborativo de adoecer e de se cui-
(a)borda psiques.
corte profundo com a vida anterior à doença para da e, ao longo do tempo, elas eram alternadas. dar. Nesse contexto, Alessi nos convida para uma
abraçar a oportunidade de cuidar da saúde em Assuntos sobre a vida cotidiana surgiam e colo- reflexão profundamente entrelaçada com o viver.
um hospital de referência nacional. Além do sofri- riam de novos ares aquele conviver. Para ela, a arte de criar nos convida a lidar com o
mento causado pelo adoecimento, essas pessoas novo e com o inesperado. Criar constantemente
ainda precisavam enfrentar a ruptura momentâ- Esse colorido saltou das mãos aos olhos. Se ao com o que se tem presente é, também, o que a
nea com a vida que levavam, para viver somente avesso tocávamos o cerne das dores do viver adoe- vida faz conosco. Por isso, a experiência da criação
em função da doença e do tratamento. cido e saudoso de toda uma vida anterior ao trata- em um contexto psicoterapêutico pode propor-

1 FREITAS, L.V. Grupos Vivenciais sob uma Perspectiva Junguiana. Psicologia USP, 2005, 16 (3), 45-69.
68 URDUMEDisponível em <http://www.revistasusp.sibi.usp.br/pdf/psicousp/v16n3a04.pdf>, 2005.
Edição #07 69
xxx arte

“Eu preciso dessas


palavras - escrita”
Arthur Bispo do Rosário abrigava dentro de si um
desejo imenso de liberdade da alma humana

por Thalita Delgado

C
onhecer Arthur Bispo do Rosário e suas mais de 800 obras catalogadas
é, sem sombra de dúvida, uma experiência que nos faz refletir sobre a
vida, a arte e o processo de desconstrução. Homem nordestino, des-
cendente direto de escravizados, negro, boxeador e integrante da Ma-
rinha, ele foi muitos.
Foto: Rodrigo Lopes

Um artista cercado da cabeça aos pés pelo sagrado, que passou a vida retratando o
que queria levar consigo na morte. Acreditava que sua missão na Terra era catalogar
uma a uma as coisas do mundo para apresentar a Deus no dia do juízo final. Assim Bis-
po se propôs a fazer ao longo dos 50 anos que passou na Casa Colônia Juliano Moreira,
instituição que hoje carrega o nome de Museu Bispo do Rosário, no Rio de Janeiro.

Em seu processo de catalogação, desconstruia com tamanha humildade e sensibili-


Estandarte dade todos os objetos que chegavam às suas mãos como: madeira, arame, fio de varal,
Colonia Juliano Moreira vassouras, papelão, lençol e principalmente os uniformes dos internos.

URDUME Edição #7 71
arte arte

um manicômio, abrigando dentro de si um de- e sim algo que falasse dos homens. “A obra não
Para o curador do Museu Bispo do Rosário, Ricardo Resende, o aspecto singelo criado a partir de objetos sejo imenso de liberdade da alma humana”. carrega essa pretensão e nem o artista, como o
tão cotidianos era fruto das memórias que o artista carregava consigo, o que deixa claro seu desejo de conhecemos hoje. Bispo não tinha intenção de
registar o mundo. “Suas peças ou seus trabalhos variam de pequenos objetos esculpidos, moldados ou Ao bordar, Arthur Bispo do Rosário criava uma fazer uma grande obra de arte que o colocaria
apenas apropriados e, em boa parte deles, delicadamente recobertos da linha azul que desfiava dos uni- linguagem para se comunicar com o mundo e como o primeiro artista contemporâneo do Bra-
formes que os pacientes hospitalares usavam. Alguns rotos, outros novos de um azul intenso, podem ser também para fugir da própria realidade dentro do sil. É uma obra de arte da humildade humana”.
observados na sua obra. Gestos de desfiar, refiar, de costurar, bordar, recobrir, de enumerar e identificar, manicômio. Sua obra é fruto da lucidez humana.
um claro desejo de museificar (mumificar) para preservá-los para a eternidade”. Sem dúvida, Arthur Bispo do Rosário foi um di-
“Só um homem lúcido poderia fazer uma obra visor de águas para o olhar de como utilizar os
Mas era com o bordado minucioso, criado com linhas desfiadas dos uniformes, que Arthur Bispo do como essa, deixada como legado para a humani- fios para bordar e costurar, mesmo que essa seja
Rosário conversava com todas as suas peças, era com esse traço que criava sua linguagem artística. dade (...). Vozes, como as que Bispo escutava, todos uma técnica milenar, utilizada em diversas fun-
Ricardo Resende ressalta que “Bispo usou essa arte de desfiar e fiar para construir os seus tecidos, bor- nós escutamos quando em silêncio e ouvimos o ções. Conhecer a sua trajetória nos faz refletir so-
dados e objetos escultóricos recobertos de linha azul, como nenhum outro artista. Uma poética nunca nosso corpo. É a nossa consciência. Todos temos bre as possibilidades de construir histórias dando
antes vista que nos fala da pobreza material, da criação humana, da superação da vida e da morte, do consciência e ela nos ordena a fazer tudo. Bispo um novo olhar aos objetos da nossa vida cotidia-
desejo de guardar a memória da humanidade realizada em uma forma de confinamento, dentro de ouvia sua consciência, aquela voz que o ‘ordenava’ na. E principalmente, em tempos tão difíceis, nos
a organizar o caos do mundo”, observa o curador. atentar mais para o sensível.

Uma obra que resume toda a sua criação, perfei- Conversamos com a autora da primeira biogra-
ção e reconstrução do bordado e da costura é o fia de Arthur Bispo do Rosário, Luciana Hidalgo,
Manto da Apresentação, criado ao longo de uma que contou um pouco mais sobre esse artista que
Fardão vida, reabastecida sempre de um novo olhar, de conseguiu transgredir as fronteiras socialmente
Azul um novo traço de técnicas. Arthur Bispo do Ro- estabelecidas entre arte, fé e psiquiatria.
sário fez desta uma obra única que carrega infi-
nitos trabalhos de traço tão forte quanto huma- Thalita: Podemos considerar que Arthur Bispo
no. “É uma obra que resume toda uma obra. É do Rosário tem aspectos autobiográficos?
uma obra que carrega outra obra. Ele a portava Luciana: A obra de Arthur Bispo do Rosário é
e a confeccionava ao longo de sua vida para o bastante autobiográfica, ou mesmo (arrisco di-
encontro final com Deus”, ressalta Resende. zer) autoficcional. Vida e obra se confundem.
Os nomes escritos nos estandartes e fardões
Arthur Bispo do Rosário ficou conhecido pu- de Bispo, por exemplo, são de pessoas que ele
blicamente e se tornou a grande descoberta e conheceu durante a vida, fossem da Escola de
surpresa do século XX em sua primeira exposi- Aprendizes Marinheiros, da própria Colônia Ju-
ção individual, em 1989, no Parque Lage, escola liano Moreira, da sua família original de Japara-
de Arte do Rio de Janeiro. A partir de então, sua tuba, em Sergipe, ou da família Leoni (os donos
arte passou a ser inspiração para grandes nomes da casa onde ele trabalhou como empregado
como Leonilson e Rosana Paulino. doméstico em Botafogo, no Rio de Janeiro). O
avesso do Manto da Apresentação é igualmen-
Foto: Rodrigo Lopes

Para Ricardo Resende, a obra de Bispo do Rosá- te bordado com nomes, a maioria de mulheres:
rio é muito mais sobre humanidade do que sobre Bispo prometia “salvar” essas eleitas e as levar
ter uma grande obra, já que a intenção nunca foi com ele para o novo – utópico – mundo, a ser go-
criar algo majestoso do ponto de vista artístico vernado por ele próprio depois do apocalipse .

72 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 73


arte arte

Há também um estandarte de Bispo que traz o noite de 24 de dezembro de 1938, quando ele sa sobre Bispo em todos os sentidos, algumas do”; muitos deles primeiro iam para a prisão, de-
mapa da Colônia Juliano Moreira, com seus per- teve a visão dos sete anjos e que o levou a se lacunas biográficas nunca foram preenchidas. pois ao hospício.
sonagens e sua geografia; outro traz os navios “apresentar” a Deus. Por isso, costumo dizer que Ele foi mestre na reinvenção de si mesmo e no
da Marinha que ele conheceu e onde morou a obra, além de autobiográfica, é autoficcional, apagamento de pistas sobre sua biografia real. No livro História da loucura na Idade Clássica,
embarcado. Os fardões se assemelham aos tra- já que Bispo em alguns momentos se disse Je- Confirmei, por exemplo, seu nascimento em Ja- Michel Foucault faz toda uma genealogia do tra-
jes da Chegança, um folguedo da Folia de Reis sus Cristo (o próprio) e forjou informações sobre paratuba, em Sergipe, porque encontrei o regis- tamento da loucura na Europa dos séculos XVII
típico de Japaratuba. Aliás, todos os bordados, sua genealogia e suas origens. Sua obra pode tro do seu batismo no livro da igreja local. No en- e XVIII para mostrar como o Estado sempre quis
principalmente os estandartes, remetem aos ser pensada como um esforço de organização tanto, jamais conheci qualquer familiar dele; em se livrar dos a-sociais, ou seja, dos indivíduos que
folguedos. Fui a Japaratuba durante a Folia de de visões, reminiscências, pensamentos. Conta- momento algum, desde o lançamento do livro, não se adaptam ao sistema da sociedade dita
Reis e era como se visse o próprio Bispo e toda a giada pelo entorno manicomial, foi também um alguém da família de Bispo me procurou. Por normal. No século XIX veio então a psiquiatria
sua obra naqueles bordados. A sua infância está meio de sobrevivência à instituição. isso, nunca consegui saber se ele já se dedicava com o intuito de cuidar apenas dos alienados.
inteira em sua obra. Além disso, há as assembla- ao bordado na infância. Os No entanto, o estigma do ex-
ges feitas de galochas e talheres utilizados pelos Ao pegar objetos úteis e inúteis do hospício e primeiros registros de suas cluído social permaneceu. Foi o
pacientes na Colônia. E o fio azul, tão presente simplesmente os reorganizar, Bispo conferiu atividades artísticas foram caso de Arthur Bispo do Rosario
na maioria dos bordados, é o mesmo do unifor- novo sentido ao cotidiano manicomial. Ele ja- relatados pela família Leo- e de Lima Barreto, ambos po-
me do manicômio – um uniforme que no início mais se acuou ante a psiquiatria, pelo contrário, ni antes da grande visão/
Só um homem bres e negros, internados como
da sua internação ele desfiou, no intuito de ob- se pseudomimetizou para obter sossego, liber- delírio de Bispo no Natal de lúcido poderia fazer indigentes no manicômio nas
ter linha para tecer suas obras. dade, material para as obras. Numa grande ou- 1938. Ou seja, ele já confec- primeiras décadas do Brasil do
sadia para a época, viveu a fundo o desconforto cionava obras em madeira
uma obra como essa, século XX.
Thalita: Em todas as suas obras, podemos ver o psiquiátrico, invertendo seus poderes, desafian- e bordados nos anos 1930 deixada como legado
bordado e a costura, feitas a partir de fios que do rotinas, desfazendo uniformes. Ou seja, ex- nas dependências da casa para a humanidade Bispo, por exemplo, foi preso na
eram desfiados dos uniformes dos internos. pôs os excessos do hospital psiquiátrico, o docu- dos Leoni em Botafogo. rua pela polícia e encaminha-
Como você acredita que ele se nutria de inspi- mentou e o ressignificou. (...) Vozes, como as que do para o Hospital Nacional dos
ração para criar peças tão desconstruídas? Thalita: A obra do Arthur Bispo escutava, todos Alienados, na Praia Vermelha,
Luciana: Essa relação visceral com o cotidiano Enfim, na minha opinião, Bispo foi um pioneiro Bispo do Rosário é efeito onde teve o diagnóstico de es-
do hospício sempre me interessou: Bispo con- em utilizar o fio, o bordado, e dar uma ressignifi- da loucura?
nós escutamos quando quizofrênico-paranoico. Em um
seguiu se apropriar de símbolos psiquiátricos cação mais contemporânea a esse material. Mas Luciana: Após anos de de- em silêncio e ouvimos mês, o enviaram à Colônia Ju-
repressores e homogeneizadores (o próprio uni- não sou especialista, não sou teórica nem crítica dicação ao estudo do tema liano Moreira, para onde iam os
o nosso corpo. É a
forme!), desconstruí-los e dar a tudo isso uma de arte para afirmar isso de forma peremptória loucura, iniciado com Bis- crônicos considerados sem cura.
nova significação estética, até mesmo lúdica. ou contextualizar essa obra numa cronologia po e continuado com Lima nossa consciência. De sua parte, Bispo dizia ter vi-
Seu novo – utópico – mundo seria mais belo e das artes plásticas. Por esse motivo, não arrisca- Barreto (que me rendeu o sões místicas: desde o chamado
menos perverso do que a psiquiatria que o apri- ria dizer que Arthur Bispo do Rosario pode ser livro “Literatura da urgência – Lima Barreto no dos sete anjos na véspera do Natal de 1938, ele
sionava. Afinal, ele dizia sonhar com um mundo considerado como o primeiro grande artista con- domínio da loucura”), considero o termo “louco” passou a se acreditar como um enviado divino.
“sem doença mental”. Por essa razão, percebo temporâneo do Brasil. Bispo é grande, sua obra é um tanto impreciso, até mesmo abstrato. Tan-
que, ao criar sua magnífica obra para “represen- grande, mas deixo aos críticos de arte a tarefa de to que, ao estudar “Diário do hospício”, de Lima O que posso dizer, a partir da minha pesquisa
tar” o universo e apresentá-lo a Deus (como Bis- inseri-lo na tradição da arte contemporânea bra- Barreto, percebi que o autor foi internado duas na Colônia Juliano Moreira, onde passei mais de
po dizia), ele simultaneamente tentava reorgani- sileira entre tantos outros grandes artistas. vezes no Hospital Nacional dos Alienados só por um ano inteiro entrevistando pacientes, funcio-
zar seu universo íntimo. Compilava fragmentos ser alcoólatra, sem jamais obter qualquer diag- nários e psiquiatras, é que em alguns momen-
e fazia uma espécie de reconstituição de si mes- Thalita: Quando Bispo começa a ter seus pri- nóstico psiquiátrico. Na época, persistia a práti- tos Bispo parecia ter um contato frágil com a
mo. Além dos exemplos já citados, poderia ain- meiros gatilhos de artista? ca da prisão nas ruas de sujeitos bêbados, ou por realidade, quando as visões/delírios o tomavam
da citar o estandarte em que Bispo descreve a Luciana: Apesar de ter realizado extensa pesqui- “vagabundagem”, ou com vagos “ares de aliena- por inteiro, em outros ele era totalmente lúcido,

74 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 75


arte

ativo e até ajudava os funcionários a cuidar dos ver esse trânsito livre entre mundos inacessí-
outros pacientes, no seu papel de xerife do pavi- veis sem dúvida influencia artistas e suas obras.
lhão – o que o ajudava a obter regalias. Não seria diferente com Bispo, que parecia um
homem partido entre a realidade e seus exces-
A psiquiatria o condenou e classificou suas vi- sos místicos (que, aliás, têm raízes profundas no
sões místicas como delírios, o que na época misticismo católico de Japaratuba). E, ao con-
equivalia a uma condenação compulsória, à in- seguir traduzir tudo isso plasticamente, Bispo
ternação num manicômio, de onde só era pos- acabou transgredindo as fronteiras socialmente
sível sair se o paciente tivesse alta do psiquiatra. estabelecidas entre arte, fé e psiquiatria.
Quando penso nisso tudo, me lembro do dra-
maturgo, ator e escritor francês Antonin Artaud Thalita: Qual a importância do Manto da Apre-
e de uma frase no mínimo instigante: “Todos os sentação para a obra de Arthur Bispo do Rosário?
santos eram seres especiais na terra. A sorte de- Luciana: O Manto da Apresentação é, na minha
les é que não encontraram um só psiquiatra no opinião, a obra mais fina e complexa de Arthur
terrível caminho de sua existência.” Essa senten- Bispo do Rosário. Uma aventura estética. A cada
ça dá uma ideia da complexidade da questão. olhar aparecem novos símbolos, milimetrica-
mente bordados. Entre as réplicas minúsculas
Percebo que esse ir-e-vir entre “mundos” não é do universo, há registros de objetos variados: ta-
vivenciado pelos próprios com prazer: grande buleiro de xadrez, peça de dominó, dado, mesa
parte das pessoas diagnosticadas como esqui- de sinuca, mesa de pingue pongue, cesta de

Foto: Rodrigo Lopes


zofrênicas relatam essa experiência como um basquete, bicicleta, avião, trilho de trem, um ob-
sofrimento, ou seja, não há como glamourizar a jeto circular feito mandala, fogão, lambreta, es-
dita loucura, nem avaliar exatamente a sua di- cada, tesoura, ringue de boxe, números, palavras
mensão numa obra. O que me parece interes- etc. E tudo isso inscrito numa manta surrada do
sante na obra de Bispo, em particular, é valorizar hospício. Nas bordas, há franjas, cordas e um
o fato de que ele conseguiu criar toda aquela crucifixo. No avesso, bordados em azul num for-
extraordinária obra na cela de um dos hospícios ro branco, surgem os nomes das eleitas (e pou-
mais violentos da história da psiquiatria no Bra- cos eleitos) protegidas de Bispo. As escolhidas,
sil, na precária condição de paciente psiquiátri- que ele salvaria do apocalipse .
co. E isso não é pouco, dado o caráter de vigilân-
cia, disciplina e até mesmo punição do antigo Enfim, o Manto da Apresentação é a obra-sínte-
sistema psiquiátrico (em sua época, havia ele- se de Bispo e mostra, em sua grandeza e fineza,
trochoques e lobotomias, por exemplo). a vocação do seu autor para a vitória. Refiro-me
aqui à vitória de Bispo sobre seu próprio desti-
Nesse sentido, a própria etimologia da esquizo- no; a vitória de um homem que agia como se
frenia dá uma pista: o termo (do grego) signi- prescindisse da realidade e desdenhasse da sua O Manto da apresentação
fica “alma fendida” ou “cisão do pensamento”. própria humanidade, reinventando-se e derru- Bordado durante décadas, a obra-prima de Bispo do Rosário apresenta
É como se esquizofrênicos vivessem em dois bando todos os limites entre loucura, misticis- registros de objetos variados. No avesso, feito de forro branco, estão
mundos, ou em três, quatro mundos, com- mo e criação artística bordados - em azul - os nomes dos das protegidas, e protegidos, do
preendidos por eles como realidades. A meu artista. Aqueles que foram escolhidos para serem salvos do apocalipse.

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xxx bordado

Bordado de
Cristiane Albernaz,
Barra Mansa, RJ

O que pode
o encontro
da música
com a linha?
Ô de Casas entre panos, fios
e pontos foi inspirado em projeto
musical da cantora Mônica Salmaso

por Paula Melech

Foto: Rita Isabel Vaz


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bordado

Q uando iniciou o projeto Ô de Casas, Mô-


nica Salmaso não imaginava de que for-
ma ele ressoaria, transpondo, inclusive,
o campo musical. A cantora, diante do impulso
por essa tragédia sem fenecer junto com ela”,
conta Olinda. O que estava ao alcance – visto que
as amigas têm o bordado em comum – era mo-
bilizar pessoas que bordassem, que amassem
de fazer música na pandemia – mas restrita ao música brasileira e que se dispusessem a entrar
distanciamento social – começou despretensio- na ciranda com seus panos e linhas.
samente a realizar um encontro entre amigos. O
resultado foram vídeos semanais com grandes
nomes da música, preenchendo um pouco do va- É algo que não dá
zio causado pela pandemia na casa das pessoas. pra fazer com pressa
Da mesma forma com que o Ô de Casas só se
“Foi muito importante pra mim, foi um remédio, tornou real a partir do envolvimento de muitas
uma forma de não adoecer”, conta a cantora. mãos, o projeto de bordados contou com o com-
No início, o que era para ser apenas uma live se prometimento de pessoas diversas, homens e
transformou em uma série de encontros musi- mulheres, experientes ou não nessa arte, mas
cais. A experiência acabou inspirando outras pes- que tinham em comum a paixão pela arte musi-
soas a se reunirem em coletivo para trazer para o cal e pelo têxtil. Somado a isso, eles enxergaram
mundo – assim como ela – uma ação afetiva. um paralelo entre música e bordado, atributo
que muito interessa à Mônica.
Motivados pelos encontros, surgiu Ô de Casas
entre panos, fios e pontos, um projeto que reuniu “Muitas vezes falei de melodias como sendo
bordadeiras e bordadores de todo o Brasil com bordados e rendas. Quando gravei uma músi-
um objetivo em comum: transpor para o palpável ca chamada ‘lábios que beijei’, composta por
o que a música comunica por meio da melodia. Orlando Silva, senti que a melodia dela parece
Dois motivos foram os grandes mobilizadores um bordado. Acho que tem a ver com o nível de
para que Olinda Evangelista, Debora Pupo, Olga detalhe, tempo de feitura, paciência, é algo que
Durand e Rita Vaz criassem o projeto. O primeiro não dá pra fazer com pressa”, conta a cantora.
foi o encantamento com a proposta da cantora,
que envolve a delicadeza das escolhas musicais, Porém, mesmo com essa reflexão minuciosa in-
o respeito em relação ao cancioneiro brasileiro e vestigando uma possível relação entre música e
seus ritmos e o refinamento na produção de um bordado, Mônica ainda não havia se deparado
acervo histórico importante da música brasileira. com um material como o que foi produzido pelo
coletivo. “Foi um presentaço”, comemora. “Só de
A segunda razão foi o reconhecimento da impor- pensar em várias pessoas bordando, cada uma
tância daquela iniciativa para criar momentos de escolhendo uma música, fiquei muito emocio-
sensibilidade que pudessem ajudar a suportar nada com o convite”.
sentimentos negativos gerados pela circunstân-
cia pandêmica à qual o Estado vem submetendo O processo de feitura dos bordados aconteceu pa-
Foto: Rita Isabel Vaz

o país. “Desse modo, resolvemos entrar na briga! ralelamente aos vídeos que a cantora postava dia-
Pensamos: quem sabe podemos também fazer riamente no seu Instagram. Quando completou
algo que colabore para fecundar momentos de 121 encontros, foi surpreendida em sua casa com
beleza e, simultaneamente, nos ajude a passar uma caixa grande, que continha todos esses mo-

Bordado de Marilene
Dandolini Raupp,
Florianópolis, SC
80 URDUME Edição #07
bordado

mentos registrados em fios, linhas e panos, além nessa experiência da pandemia que nós, por
de outros presentes, como um bordado-retrato. obrigação moral e em respeito às dores que o

Bordados aos quatro ventos


momento trouxe, não podemos nos dar o direito
Antes de abrir a caixa, Mônica decidiu registrar de não ganhar consciência. O quanto podemos
o momento em vídeo, mesmo correndo o risco nos ajudar, o quanto a arte pode nos salvar e nos
de “passar vexame, porque iria chorar com cer- curar emocionalmente. Temos que tomar cons-
teza”, lembra. O registro foi compartilhado em ciência de que podemos viver de outra maneira.
suas redes sociais, para que todos pudessem O Ô de Casas entre panos, fios e pontos é mais
compartilhar do seu sentimento. “Não consigo um braço que fortalece todo esse movimento”.
imaginar um artista ter recebido um presente
mais incrível do que esse na vida. Desde ouvir a
música, pensar no desenho, como vai realizar e Entre panos, fios e pontos – o início
a própria realização. É muito tempo dedicado a Tudo começou em julho de 2020, quando Olin-
uma ação de afeto, que vai muito além da arte. da, Debora, Olga e Rita convidaram bordadeiras
Não tenho palavras”, descreve. e bordadores que conheciam, e estes, convi-
daram outras pessoas, que chamaram outras.
Mônica tem uma conexão profunda com as ati- Depois de um prazo para inscrições voluntárias,
vidades manuais. Sua casa no interior, onde está foram reunidos mais de 140 mulheres e homens
morando durante a pandemia, guarda muitas de 43 cidades, 10 estados e Distrito Federal.
rendas de bilro, filé e bordados. Ela mesma tam-
bém gosta de experimentar o contato com os fios “Há uma relação muito interessante de reciprocida-
– fez um curso com o grupo Matizes Dumond de de em que as pessoas aderem às propostas volun-
bordado livre – e se aventura em algumas peças. tariamente, sem qualquer relação com dinheiro,
inclusive usando seus próprios materiais. Aderem
por gostar da ideia, por gostar de bordar, para pro-

Foto: Rita Isabel Vaz


Como se fosse um mapa duzir arte, para bordar coletivamente. Esse é um
do bordado brasileiro ponto muito importante, pois projetos que juntam
A iniciativa do Ô de Casas entre panos, fios e muitas mãos exigem um forte espírito coletivo, de
pontos, ressalta a cantora, é um retorno humano, cooperação e de desapego”, observa Olinda.
artístico e, sobretudo, de amor e de afeto. Alguns
participantes aprenderam a bordar para poder Assim como o projeto de Mônica Salmaso reú-
participar do projeto, porque queriam fazer um ne uma memória importante do cancioneiro Maria Isabel Rubio Prosdocimi - Ourinhos/SP
dos bordados. Por outro lado, há profissionais que nacional, o Ô de Casas entre panos, fios e pon- Música: Diagnóstico, de Wilson Baptista e Germano Augusto
já têm personalidade artística e domínio da técni- tos registra o desenvolvimento do bordado livre
Quando bordamos com o coração, supomos saber como começamos, mas nunca
ca. “É como se fosse um mapa do bordado brasi- no Brasil, oferecendo uma espécie de mapa do
como irá terminar. Bordar “Diagnóstico” não foi diferente. O fio do bordado se con-
leiro atual, são diferentes técnicas, pontos, mate- que tem sido feito em termos de pontos e de
duziu, colorindo de azul minhas muitas, imensas e aprisionadas saudades. Aos pou-
riais, é muito lindo”, observa a cantora. técnicas em cada canto do país. Olinda ressalta
cos, bordá-las foi se transformando em leveza, boas sensações, abertura para novas
que, para as idealizadoras, o principal é o fato de
lembranças e ressignificado de tantas histórias. Assim, o azul foi dando espaço para
Para Mônica, tanto o Ô de Casas quanto o seu que sem esse envolvimento das mãos musicais
outras cores, outras histórias e outras saudades.
desdobramento nas artes manuais, trazem à e dos fios, nada disso teria acontecido. “Razão
tona a importância da consciência de que so- pela qual não paramos de dizer muito obrigada
mos um coletivo. “Acho que existe um lado a todas e todos que estiveram neste trabalho”

82 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 83


xxx bordado

Lenir Romero
Vânia Beatriz Monteiro
Porto Alegre/RS
da Silva - Recife/PE
Música: Leilão, de Hekel
Música: Candeeiro, de Teresa Cristina
Tavares e Joracy Camargo
A canção me tocou como evocação
No primeiro momento, o que me por uma “guiança” – que a luz simbo-
tocou foi a separação de dois co- lizava – diante de uma inconsciência
rações de mãe e filho. Minha inspi- e de uma dor insolúvel. Senti que de-
ração foi na dor desta perda, que sejava dois elementos em interação...
pude expressar através do borda- a notação musical da canção – com
do e das linhas construídas, um a nota Sol Maior ao centro como nú-
tempo obscuro registrado na nos- cleo de um sol estilizado e cujo final
sa história. Os dois corações inver- encontra-se com o “banquinho, er-
tidos no centro do bordado são de vas, a moringa d´água e o cachim-
mãe e filho registrando esta dor bo”, associados ao trabalho de cui-
em forma de arte, entrelaçando dado pelas pessoas que canalizam
letra, música e fios que se tramam. as entidades Pretos Velhos.

Jennie Rodrigues Manteiga


campinas/SP Murilo Genazio Magalhães
Florianópolis/SC
Música: Saudações, de Egberto
Música: Moro na Roça (Clementina de Jesus)
Gismonti e Paulo C. Pinheiros

Disposto a encarar o desafio de traduzir uma


Estávamos no auge da pandemia,
música através do bordado, fui presenteado
tudo muito incerto, e essa música
com a música “Moro na Roça”. O envolvimen-
veio como uma esperança de que
to com este projeto, de certa forma, me eleva-
tudo ia passar, que a felicidade
va a uma dimensão do prazer, pela criação
voltaria, que poderíamos come-
de algo novo, num momento em que vivia
morar com os amigos queridos, ao
a experiência da finitude. A estas alturas,
som de uma viola, poder dançar,
encontrava-me em um quarto de hospital
abraçar, foi muito emocionante
acompanhando uma pessoa que vivia seus
todo esse processo da criação. Me
últimos dias. Nesse contexto, o olhar atra-
Fotos: Rita Isabel Vaz

transportei para um mundo total-


vés da janela inspirou meu processo criativo.
mente diferente do que estáva-
Como dizia Cecília Meireles, “tudo está certo,
mos vivendo na realidade.
no seu lugar, cumprindo o seu destino”.

84 URDUME Edição #07


redes

O crochê
tá on! por Paula Melech

Q
uem gosta de crochê e acompanha as redes sociais com certeza conhece Bia Morais e
Bia Morais com Bianca Tocafundo. Conhecidas também como @twobee e @tremdelinha, ambas fa-
duas personagens
zem sucesso no Instagram com seus trabalhos para lá de autorais. Bia é conhecida por
criadas por ela:
Flora e Cora. seus amigurumis encantadores, já Bianca é a “Xuxa do crochê” e apresenta diariamente
o seu “pôgrama”. Conversamos com as artesãs, que de uma forma ou de outra, usam suas primeiras
formações - psicóloga e atriz - para nos encantar e divertir com os fios na internet.

Urdume: Como você aprendeu a crochetar? Bia: A primeira peça que fiz foi um coração em
Bianca Tocafundo: Sou atriz de formação. Em amigurumi. Gosto muito de fazer amigurumis
2013 tive um câncer na tiróide onde o bendito inspirados na natureza ou criar seres fantásticos.
tumor passava pelas cordas vocais, depois desse Adoro essa técnica porque sou apaixonada por
susto decidi que iria aprender tudo que sempre criação de personagens e acho que o crochê em
gostei e jurava que não daria conta! Eis que sur- 3D é infinito em possibilidades e isso me encan-
ge na minha vida o crochê. ta muito também.

Bia Morais: Aprendi a correntinha quando criança, Urdume: Qual foi a primeira receita
mas só fui aprender outros pontos de crochê de- criada por você?
A atriz e pois de adulta, primeiro com a tia de um amigo, de- Bianca: Como aprendi num curso que fiz com
crocheteira
pois com vídeos no YouTube, quando ainda não ti- a Anne Galante, eu sou a “Elba Ramalho do cro-
Bianca
Tocafundo nham muitos por lá. Lembro que tinha mais vídeos chê” hahahahahha....não componho, só interpre-
em inglês e em espanhol e foi com eles que apren- to as canções dos outros! Ou seja, normalmente
di os primeiros pontos pra fazer um amigurumi. faço receitas de outras artesãs maravilhosas e
dou minha identidade para a peça.
Urdume: Qual foi a primeira peça
que produziu? Bia: O primeiro amigurumi que criei foi uma
Bianca: A primeira peça que fiz ou tentei fazer, foi água viva, mas a primeira peça que se tornou
um poncho, mas deu super errado e então trans- uma receita mesmo e ensinei outras pessoas a
formei ele numa blusa de square que uso até hoje. fazerem foi um coala.

86 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 87


redes coluna

Urdume: Como é trazer essa manualidade


para o meio virtual?
massificação e falta de criatividade uma vez que
é o algoritmo que decide o que é interessan-
gabinete de costura
Bianca: Pra mim trazer a manualidade pro vir- te ou não. Isso tudo vai moldando de maneira por Daniela Nogueira
tual talvez seja mais orgânico, uma vez que sou complexa e não linear o nosso fazer manual, a
atriz . E o Trem de Linha nada mais é do que a maneira como a gente enxerga a técnica, como casa>cômodo>caixa quando recolhidas, por incompreensão ou falta de es-
junção do feito à mão com entretenimento. a gente ensina e como nos relacionamos com o paço, os gabinetes de costura consolavam as mulhe-
me peguei olhando pra casa, mais especificamente
passado da técnica também. res. abria suas abas e ali só escutavam, enquanto elas,
para um cômodo e dentro deste espaço para uma cai-
Bia: Uma aula presencial é uma experiência mui- Não dá pra julgar certo, errado, bom ou ruim. enrolavam sobras de fitas, suspirando. deixavam so-
xa. uma caixa bege de baquelite, gravado nela, singer.
to mais rica e complexa do que uma aula online. Acho que o que cabe fazer é entender como isso zinhos botões que ficaram sem casa, quando o “clasp
Ao mesmo tempo, acho incrível ensinar no meio tudo acontece e como impacta em nós. A partir da minha avó, e agora tomo conta. locker” [zíper, 1893] então chegou.
virtual porque assim chega em mais pessoas e o disso, tomar decisões conscientes sobre como dentro dela>dentro de mim>suficiente
precisei daquela agulha que estava lá, dentro dela.
conhecimento se torna mais acessível. vamos caminhar daqui pra frente, o que iremos
a ideia foi passar todo um mês só com ela, a agulha, eu caminho pra ser específica levando a lógica de
trazer pro nosso meio e pra nossa comunidade, e
mais a companhia de alguns fios de cores diferentes. que dentro de mim tem a ferramenta que preciso,
Urdume: Como as redes sociais ressignifica- qual é esse futuro que a gente vai construir a par-
e ali, naquela caixa o suporte pra acontecer. de tanto
ram o crochê? tir do mundo que se apresenta pra nós no agora. por mais que agora, você pense que somos muitos, fazer com o mesmo, compreendendo isso como algo
Bianca: Acho que as redes vieram pra expandir éramos o suficiente. expansivo e não restritivo, aprimoro e entrego o au-
cada vez mais o feito à mão. Hoje é muito mais Urdume: Neste sentido, o TikTok pode ser têntico. afinal, ao ver o legado do trabalho da agulha,
a partir da invenção da agulha, começou-se a formar
possível você reverberar sua arte pra lugares que considerado uma tendência? desde o início da civilização, não posso dizer que to-
o gabinete de costura de uma senhora. com a roca
até então pareciam distantes. A troca de experiên- Bianca: Eu não sou fã de Tik Tok, acho que ele é dos os trabalhos são iguais, mas seus instrumentos,
e o fuso, o tear de mãos, surgiram pequenas coisas
cias e conhecimentos fica muito mais acessível. uma moda e que já já outra entrará no seu lugar. na maioria sim.
úteis para a costura. um decreto no século XVI, barro-
Com o feito à mão isso também ocorre, existem
co, permite que a mulher deixe de ser apenas uma re- penso que uma agulha na mão, mais a sua técnica
Bia: As redes sociais contribuíram muito na po- épocas que ele volta com tudo, tá na revista, tá
mendona e passe então ao ofício principal de costu- que você tanto aprimora, questionam a existência
pularização do crochê. Além disso, sinto que esse no look da celebridade. Mas hoje, com a rede
reira, papel antes masculino. tendo eles, desde a idade de post-it coloridos e de tamanhos variados para a
movimento de narrar a si mesmo que acontece social, consegui me conectar com pessoas que,
média, um dedal, agulhas e alfinetes de ouro e prata. mesma intensão de lembrar.
nas redes traz um protagonismo onde qualquer assim como eu, enxergam no feito à mão muito
é só no rococó, XVIII, de maria antonieta, com a nossa
pessoa pode ser artista e qualquer pessoa pode mais que uma tendência e sim um estilo de vida. primeira costureira oficial, rose bertin, que teremos eu caminho [na pandemia que não pude flanar] pra
contar sua história sem precisar da validação de tudo, até metros de fazenda em forma de tecidos, ter um gabinete de costura tão meu, como o home
uma empresa ou instituição. Isso traz artistas de Bia Morais: Nunca usei o TikTok mas sei que ele para oferecer as as clientes nos arredores de paris. office, cheio de ring light de alguém.
áreas diferentes e com experiências e influências está aí e já não é mais uma tendência, é um fato
e em são paulo, 1960, no largo do arouche, minha avó só quero o plus da polaroid com o resultado do meu
diversas que contribuem pra essa diversificação mesmo. Acho ótimo quem traz os vídeos da pla-
terá sua caixa bege, singer. feito à mão, pra chamar de cartão de visita, o que di-
dentro da técnica. Também sinto que existe um taforma pra dentro do Instagram ou YouTube,
zem por aí - qr code.
sentimento de grupo quando as pessoas podem assim consigo saber um pouco do que se passa no século XIX, na medida que foram inventados, ou-
se conectar com outras que têm esse interesse e por lá sem precisar instalar o aplicativo. Existem tros pequenos itens passaram a fazer parte do gabine- “gabinete-se”
atividade em comum. Deixa de ser algo restrito muitas pessoas que trazem o artesanato e o cro- te de costura das mulheres que costuravam; tesouras
ao ambiente doméstico e ligado a um pertenci- chê também pra essa rede social. Como a maior para bordados, alfinetes de segurança, carretel de fios.
mento apenas familiar e ganha outros significa- parte do público do TikTok é mais jovem, acre- e tudo estava ali, à mão, carregado em caixas de ma-
dos e sentidos dentro das redes. dito que os desafios em vídeos que acontecem deiras decoradas, estofadas, customizadas, portáteis. Daniela Nogueira é
habitante de Curitiba
Por outro lado, esse excesso de redes sociais traz dentro da plataforma ajudem a popularizar a
o gabinete delas, sem wi-fi. hoje, nosso home-office. e flaneur por adoração.
muitos prejuízos para as relações pessoais. E ao técnica também entre pessoas mais novas, que-
Acredita na verdade
mesmo tempo em que tem potencial para tra- brar estigmas que ainda existem e aumentar a “favor devolver o que retirar no lugar.” se um bilhete da roupa acima da
zer muita diversidade, pode também trazer uma quantidade de crocheteires por aí repousasse no gabinete, seria este. moda; @flanar

88 URDUME Edição #07 URDUME Edição #7 89


coluna

porção, obras que não se tratavam mais, sim- to social, observamos o surgimento de muitos
plesmente, de um segmento da arte europeia eventos nas redes sociais mas, com exceção das
e erudita. A arte brasileira, complexa, interpreta Bienais da World Textile Art Organization, qua-
suas diferentes partes, encontra seus fios e con- se não temos mostras oficiais de arte têxtil na
ta novas histórias, histórias de si e de como se América Latina.
encontra no outro, tomando-se referência, pas-
sando a não ignorar seus suportes, de onde nas- No Brasil, há muito sendo gerado, mas não pre-
cem seus pontos, de quais panos eles emergem. cisamos reproduzir o que ocorre fora. As produ-
ções mais ricas, mesmo quando influenciadas
Nesse resgate, posterior ao boom ocorrido na por estrangeiros, têm algo a dizer sobre o que
tapeçaria entre as décadas de 1970 e 90, com temos e o que somos. Temos uma tradição têx-
as Bienais de Lausanne, os fios passaram a es- til visualizada nas artes aplicadas e a arte con-
tar integrados a ações como desfazer, desfiar e temporânea não ignora isso. Podemos avançar
rasgar ao utilizarem pedras, lâminas, fotografias. e mergulhos mais intensos, mas igualmente
Dentro da arte contemporânea houve a descon- precisamos pensar sobre o que temos a dizer.
textualização dos fazeres tradicionais, gerando, Há 27 anos comecei a refletir sobre isso.
assim, uma ressignificação no deslocamento da
função utilitária dessas tradições para o campo Teremos respostas nos que permanecerem ao
da contemplação e da reflexão, características período da “moda têxtil atual” na arte. Temos

O que é essa arte


do universo das artes visuais que vieram a con- um período flamejante a esse respeito, mas o
figurar a inserção das tramas que vemos hoje. que não é resistente se esvai como fagulha. Da-
qui a um tempo veremos o que foi apurado e

têxtil contemporânea Dentro do contexto apresentado, se observa que


a mulher continua a ser presença majoritária, o
esse é um trabalho lento, específico e cuidado-
so. Aliás, não basta ter receitas. É preciso paciên-

brasileira?
que pode ser confirmado atualmente, nas mui- cia, tempo e, principalmente, deslumbramento
tas exposições tanto no exterior quanto no Brasil. diante do que é singular
Embora o mercado de arte seja ainda masculino,
por Joedy Marins a produção que alguns acadêmicos ainda sequer
reconhecem como “arte têxtil” aflora a tradição
artesanal representativa da ação feminina.
Temos uma produção decorrente de todas as drões). Essas histórias estão em nós. E da mes-
culturas que nos tocaram e nos influenciaram e, ma forma, nas artes visuais. Inúmeras bienais se proliferaram acima da linha Joedy Marins é artista
por muitas vezes, isso ocorreu de forma espon- do Equador entre meados do século XX até os visual. Sua poética é
tânea, no recôndito dos lares, nos ensinamentos A partir de 1990, os aprendizados caseiros to- dias atuais, enfatizam a arte têxtil contempo- voltada para o têxtil e

deixados no contexto familiar pelas matriarcas. processos híbridos com


maram uma efervescência que transbordou rânea. As grandes exposições desde as Bienais
foco no feminino e na
Mulheres nos deixaram técnicas, ensinamentos, nas obras de artistas representativos da “Ge- de Lausanne estão nessa faixa, assim como a
permanência da memória
cuidados, perspectivas de vida. Por meio da li- ração Noventa”, segundo Kátia Canton em sua maioria representativa dos artistas que expu- por meio da trama. É
nha e das técnicas tradicionais dominadas por obra “Novíssima Arte Brasileira”, de 2001 (Edito- seram nessas mostras. Portanto, as poéticas es- docente da UNESP e
aquelas que cuidavam de seus lares, houve a va- ra Iluminuras). A produção de mulheres (em sua tão muito relacionadas às técnicas, tradições e líder do GRAVA - Grupo
lorização da atuação e da expressão feminina a maioria) foi composta em bordados, costuras, psicogeografia dos países localizados na região. de Pesquisas Poéticas
nos contar histórias (e não somente a repetir pa- tramas e alinhavos que tomaram uma nova pro- Hoje, com o período de pandemia e isolamen- em Artes Visuais / CNPq.

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xxx Memória

O CGTC surgiu por uma necessidade do já exis- cou conhecido, é uma das ações mais lembra-
tente Centro Brasileiro da Tapeçaria Contem- das na história da arte têxtil no país.
porânea (CBTC), de 1976, que tinha o desejo de
promover centros regionais que efetivamente No entanto, a partir dos anos 1990 a arte têxtil
reunissem artistas têxteis e artesãos. A partir da foi perdendo força. Muitos artistas buscaram ou-
atuação de Liciê Hunsche e Zoravia Bettiol, que tros suportes e não havia mais um interesse de
Foto: Filipe Conde

na época já despontavam nas principais expo- jovens pela atividade. Diante disso, em 2000, as
sições têxteis do país, artistas rio-grandenses se associadas remanescentes do grupo decidiram
Foto da exposição organizaram para a abertura do centro. encerrar as atividades CGTC.
A memória que
se tece: o Centro
Gaúcho da Tapeçaria A primeira reunião ocorreu no dia 21 de janeiro de Porém, essa história segue viva na memória das
Contemporânea. 1980, com a participação de Liciê Hunsche, Heloisa associadas, e também no acervo documental
Crocco, Sonia Moeller, Joana de Azevedo Moura, Aly que segue na casa da última diretora do Cen-
Chaves, Helena Dorfmann, Carla Obino, Eleonora tro, Heloisa Conceição Annes. Foi conversando
Fabre, Renata Rubim e Inge Spieker. Mas em segui- com algumas delas e investigando no acervo

Tapeçaria
da, o grupo foi crescendo e ao longo dos vinte anos documental, que em 2017 defendi meu Traba-
de existência, o Centro chegou a ter cerca de 200 lho de Conclusão de curso em História da Arte
associados, sendo que apenas 10 eram homens. sobre a história do Centro Gaúcho; e em 2019,
junto com minha orientadora, Prof. Dra. Joana

contemporânea
As reuniões, realizadas mensalmente, eram o Bosak, e duas colegas de curso, Andressa Borba
momento para discutir necessidades do grupo, e Luiza Villamil de Castro organizamos a exposi-
atualizar as associadas de inscrições de expo- ção A memória que se tece: o Centro Gaúcho da
sições e também de troca. Outro mecanismo tapeçaria contemporânea na Pinacoteca Barão

gaúcha
de atualização das associação era o boletim do de Santo ngelo do Instituto de Artes (Ufrgs), que
Centro, cuja tiragem se iniciou em 1984, esten- buscou recordar e recontar essa história. A cada
dendo-se até o ano 2000. O grupo também am- obra, uma solução nova, um material descober-
pliou seus contatos trocando informações e rea- to, uma técnica diferente aprendida; demons-
lizando projetos e exposições em conjunto com trando a versatilidade e abrangência do têxtil
por Carolina Bouvie Grippa mais quatro centros de tapeçaria: Centro Paulis-
ta de Tapeçaria (CPT), Centro Brasileiro da Tape-
çaria Contemporânea (CBTC), Centro de Tapeça-

E
m meados do século XX, artistas de todo Tapeçaria Contemporânea (CGTC), em 1980, na ci- ria Uruguaio (CTU) e Centro Argentino de Arte
o mundo olharam para o tear e viram um dade de Porto Alegre. O grupo tinha como principal del Tapis (CAAT). Foram cerca de 50 mostras, em
novo suporte para sua arte. No Brasil, po- objetivo reunir artistas e interessados pelos têxteis, mais de 40 cidades do Brasil e do exterior.
demos citar nomes como: Genaro de Carvalho, estimular o estudo sobre o tecer e apresentar ao
Madeleine Colaço, Jacques Douchez e Norberto grande público as obras que estavam sendo pro- De todas as mostras, uma das mais importantes
Nicola, e no âmbito internacional Jean Lurçat, duzidas com as mais diversas técnicas têxteis. “No foi a Exposição Nacional de Arte Têxtil 85, que
Magdalena Abakanowicz, Jagoda Buić e Sheila início, nós sentíamos que a tapeçaria não era consi- incluiu exposições sobre o têxtil, com atividades
Hicks, da Europa e Estados Unidos. derada arte ou era uma arte menor. Havia uma ne- especiais para crianças, adolescentes e adultos,
cessidade em provar que a tapeçaria era arte, exigia abarcando diferentes técnicas, além de um en-
No Rio Grande do Sul, esta nova forma de olhar para conhecimento e criatividade. Isso uniu as tapecei- contro de artistas para discutir sobre os rumos
a técnica, propiciou a criação do Centro Gaúcho da ras”, sublinha Heloísa Annes, associada do CGTC. da arte têxtil brasileira. O Evento Têxtil, como fi-

Capa do catálogo
da Exposição Nacional
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de Arte Têxtil.
T TRANS G
exposição

R
das convenções atribuídas ao bordado, como de Por coincidência ou sincronia, a exposição que ques-
docilidade, domesticidade e feminilidade. Artis- tiona a domesticidade e feminilidade do bordado

R
tas que utilizam o fio e a costura como meio de acabou sendo aberta durante a pandemia do Co-
reflexão sobre temas como violências de gênero, vid-19, período em que muitos de nós passou a maior
racial, manicomial, entre outras. parte do tempo em casa, vivenciando a ambiguidade

A
Mostra no Sesc Pinheiros, que o lar compartilha com o bordado. Para Simioni,
Apresentada em dois módulos – Artificando o
em São Paulo, reúne mais a sensação que temos atualmente com a casa é dú-

E
Bordado e Transbordamentos – a exposição re- bia. “A casa é espaço de proteção e aconchego, mas
de 100 obras que apresentam uniu mais de 100 obras, entre elas algumas que é também de trabalho (que passou a ocupar no caso
o bordado como elemento fizeram história, como a réplica do Vestido de de quem pode fazer home office uma quantidade

N
de subversão protesto político de Zuzu Angel, e as criações de de horas sem precedentes), de conflitos e de violên-
Arpilleras chilenas durante o período da ditadura cia (sabemos que a violência doméstica cresceu sig-

D
por Estefania Lima de Pinochet, ambos utilizados como forma de de- nificativamente), mas no final, essa prisão é também
núncia e resistência na década de 1970. um privilégio, e precisamos reconhecer isso.”

S BORDAR I
Pesquisadora das questões de gênero, Simio- Reconhecer privilégios e prioridades parece ser
ni escolheu trabalhos que borrassem a ideia do uma característica da curadora, que enfrentou de
bordado como prática feminina ou masculina. forma resiliente o fechamento da exposição em
“Historicamente , não é verdade que apenas mu- 2021, no período de maior agravamento da pan-
lheres bordavam. Nos ateliês medievais e mesmo demia. “Abrir a exposição foi uma alegria imensa.

N
nos períodos modernos os ateliês eram usual- No ano de 2020 foi o meu principal projeto, e con-

R
o final de 2020, entrou em cartaz a exposição mente compostos por famílias inteiras, em que cretizá-lo, algo pensado em tantos anos, foi uma
Transbordar: Transgressões do Bordado na homens e mulheres se dedicavam a um ofício, realização. Conseguimos fazer isso pois foi num
Arte, no Sesc Pinheiros. Com curadoria de Ana em geral, comandado pelo patriarca. Ou seja, o momento em que a pandemia estava mais con-
Paula Cavalcanti Simioni, a mostra é um desdobramen- processo de feminilização do bordado é histórico trolada, eu me sentia muito segura, com máscara,
to do processo de pesquisa da curadora, iniciado 15 anos e ocorre especialmente a partir do século XVI. Isso distanciamento, álcool gel no período da monta-
atrás, quando passou a se questionar sobre a razão do não significa que apenas mulheres se dedicam a gem, e também nas visitas. Mas com o recrudesci-
bordado ser tão pouco estudado dentro do campo da essa prática, apenas que ela é “associada à femi- mento da pandemia foi necessário fechar a exposi-
história da arte. Segundo ela, como sabemos, “no Brasil nilidade”, explica. ção. No momento que estamos vivendo preservar
desde os anos 1980 diversos artistas usam linhas, têx- vidas é a prioridade ”, afirma.
teis e também bordados em suas obras e vêm conquis- Portanto, para ela “o ato de bordar, em mãos mascu-
tando reconhecimento. Leonilson, é o grande exemplo, linas, é em si transgressor” e os artistas presentes na Apesar da frustração, Simioni garante que o fe-
mas já nos anos 1990 também Rosana Palazyan, Lia mostra, como Rodrigo Mogiz, Rick Rodrigues, Nino chamento era necessário não apenas porque foi
Mena Barreto, Rosana Paulino entre tantos outros.” Cais e Pedro Luis, transgridem os atributos de gêne- ordenado pelas autoridades, mas sim porque era
ro naturalizados no mundo da arte. “Feminilidade e o certo a se fazer coletivamente. Para ela, vivemos
Foi olhando para a abertura de materiais e técnicas que masculinidade são discursos normativos, expecta- momentos de fortes contradições, sobrevivendo,
usualmente eram vistas como menores pela arte, que tivas sociais calcadas em percepções hierárquicas mas na esperança por dias melhores. “Quem sabe
Simioni apresentou nesta mostra obras de mais de 30 sobre os sexos. Dentro dessa perspectiva me parece um dia não refazemos a exposição em um período
mulheres e homens artistas como Ana Miguel, Arthur que os artistas contemporâneos se apropriarem de mais tranquilo e feliz? Afinal, como diz o poeta, ain-
Bispo do Rosário, Karen Dolorez, Leonilson, Letícia Pa- uma prática que, historicamente, foi associada à fe- da podemos ao menos sonhar”, conclui.
rente, Lia Menna Barreto, Nazareth Pacheco, Rosana minilidade é um ato subversivo em relação a valores
Paulino e Sônia Gomes, entre outros. tradicionais de masculinidade.” A sorte seria toda nossa

Todos artistas que compartilham uma característica:


o uso do bordado como um meio expressivo contes-
tador de hierarquias estéticas e sociais, e que fogem URDUME Edição #7 95
exposição exposição

Edith Derdyk Sopro,


2020. Coleção da artista.
Foto: Sesc Pinheiros,
Katia Kuwabara

Brígida Baltar
o hematoma #1,
2016. Bordado sobre
linho. Coleção Carbono
Galeria. Foto: Sesc
Pinheiros, Gui Gomes

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Angela OD Lavanda é a cor mais
livre 3, 2019. Lã e linha sobre linhão.
Foto: Sesc Pinheiros, cortesia da artista

Ana Miguel, Para


sempre meus, 2000.
Tecido, crochê, botões
de caftan, pluma
sintética. Coleção
Nazareno Rodrigues.
Foto: Sesc Pinheiros,
Edgar César

98 URDUME Edição #07


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