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Menino do Engenho de José Lins do Rego

Análise da obra fundamentada no livro Casa Grande & Senzala de


Gilberto Freyre

INTRODUÇÃO

“Sei que influi e muito sobre ele; e ninguém o confessou mais insistentemente do que o próprio José Lins em palavras, em cartas
íntimas, em artigos; o que se disser em contrário será vã ou inócua tolice.”1

José Lins do Rego foi um dos primeiros representantes da Literatura Regionalista nordestina. Ele se valeu
muito de suas memórias para a produção de uma literatura tristonha e extremamente nostálgica2. Muito
importante para a sua formação intelectual de escritor foi também a influência de Gilberto Freyre, que foi um dos
seus amigos mais íntimos. Enquanto Lins do Rego faz uma literatura memoralista, quase autobiográfica,
retratando toda uma época e documentando os costumes, os hábitos dos homens de sua região, Freyre analisa a
formação da sociedade brasileira sob o aspecto da casa-grande e da senzala, ou seja, do senhor e do escravo. O
seguinte trabalho tem por objetivo interpretar a obra “Menino de Engenho” como importante documento
histórico e literário. Essa análise se faz mais sobre o ponto de vista sociológico, quer dizer, tendo como base o
trabalho sociológico de Gilberto Freyre, mais especificamente, a obra “Casa-grande e Senzala”, de 1933. O
“Menino de Engenho” de José Lins do Rego foi publicado pela primeira vez em 1932, mas a influência do tema
escolhido é inegável, partida tanto de suas próprias experiências como das conversas com Freyre e da leitura de
suas obras.
Escrito sob a perspectiva infantil, a do menino Carlinhos, descreve-se a vida num engenho 17 anos após a
abolição da escravatura. A história se passa aproximadamente entre 1905 a 1913 (se partirmos do princípio que
ela seja autobiográfica). A análise de Freyre compreende toda a época da escravatura. No entanto, como
veremos, a vida do engenho do menino Carlinhos não se diferenciava muito da vida durante a escravatura.
A seguinte análise se baseia nos temas principais que ocorrem tanto no “Menino de Engenho” quanto em
“Casa Grande & Senzala”, ocorrências que se completam e se esclarecem mutuamente. A parte principal
compreende os três primeiros quadros, que tratam do senhor de engenho, da mulher no engenho e dos meninos.
Além disso se analisa também fatores como a higiene e a religiosidade nos engenhos. Ambas as perspectivas, do
sociólogo e do escritor, concorrem para o melhor esclarecimento dos diferente quadros.

1.Freyre, Gilberto: José Lins do Rego. Em: Diário de Pernambuco, 15 de setembro de 1957.
Em:homepage:fundação Joaquim Nabuco. José Lins do Rego.

2 Ramos, Cristiano: Memória de Zé Lins. Em: Cult 47. Revista Brasileira de Cultura. Ano IV. Junho de
2001.
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O SENHOR DE ENGENHO E OS ESCRAVOS

A figura do senhor de engenho


O senhor de engenho era o centro em torno do qual girava toda a vida dos engenhos. O senhor
absoluto tanto sobre a família quanto sobre os inúmeros escravos e empregados que trabalhavam em suas
enormes propriedades. Toda a rotina da casa-grande era comandada pelo senhor, cuja estabilidade
patriarcal estava apoiada no açúcar e no escravo. Sob seu teto viviam os filhos, o capelão, as mulheres,
que fundamentariam a colonização, e assim, toda a sociedade brasileira.
A figura do Senhor do engenho surgiu já nos primeiros anos de colonização da nação com os
portugueses vindos para explorar a nova terra. Figura patriarcal de poder absoluto, dono de latifundios,
extremamente rico. Além de admnistrador e coronel, o senhor de engenho ainda ocupou uma importante
função no crescimento da população brasileira: a de procriador. Despreocupados com a pureza de raça,
eles, desde os primórdios da colonização, geraram inúmeros filhos tanto inicialmente com as índias como
com a escravas negras, mais tarde. A função de procriação desgarrada, não se baseava apenas na
necessidade de aumentar a população das novas terras, ou puramente satisfazer as nescessidades lúbricas,
mas primeiramente de multiplicar o número de escravos para sua própria lavoura. Gerando assim uma
população de bastardos, moleques, destituídos do direito de família, destinados apenas à escravidão, com
raras excessões.
O senhores de engenho, mesmo após a abolição da escravatura, continuaram sendo os senhores
absolutos, figuras centrais na família, nas suas propriedades e, sobretudo, na política regional e nacional.
Cargo esse que em muito calaborou para a formação política do brasileiro e a sua divisão entre mandantes
todo poderosos e servos obedientes e ignorantes.
Essa ideolgia do senhor todo-poderoso sobre a raça inferior de escravos, submetidos por natureza
ao poder do senhor, expressa muito bem Carlinhos, cujas palavras podem ser tomadas como princípio
básico de toda escravatura: “O costume de ver todo dia esta gente na sua desgradação me habituava com
a sua desgraça. Nunca, menino, tive pena deles. Achava muito natural que vivessem dormindo em
chiqueiros, comendo um nada, trabalhando como burros de carga. A minha compreenssão da vida fazia-
me ver nisto uma obra de Deus. Eles nasceram assim porque Deus quisera, e porque Deus quisera nós
éramos brancos e mandávamos neles. Mandávamos também nos bois, nos burros, nos matos”(R,88).
No romance “Menino de Engenho”, essa figura é representada pelo Coronel José Paulino, dono do
engenho Santa Rosa e avô de Carlinhos. Dono de imensas propiedades ele “tinha este gosto: o de perder a
vista nos seus domínios.(...)Tudo o que tinha era para comprar terras e mais terras”(R,75). Sua ganância
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por terra parecia ser insaciável, pois “não contente de seu engenho possuía mais oito, comprados com os
lucros da cana e do algodão”(R,76). Como a maioria dos senhores concentrava uma enorme parte da
riqueza em suas mãos enquanto a multidão de trabalhadores vivia na popreza absoluta, Carlinhos fala da
“prosperidade e riquesa do” seu avô, ele “tinha para mais de quatro mil almas debaixo de sua proteção.
Senhor feudal ele foi, mas os seus párias não traziam a servidão como um ultraje”(R,76).
O Coronel é descrito por Carlinhos como uma “figura alta e solene”(R,10), um homem velho,
enérgico e patriarcal, que mantinha um contato intenso com seus tarbalhadores, como veremos mais tarde.
Diferente portanto daqueles outros senhores de engenho, que estufando de riquesas passavam a maior
parte do tempo deitado na rede, cochilando e copulando e, quando saíam, a passeio ou em viagem, o
negro era seus pé e suas mãos, como relata Freyre (F,464).

O sadismo do senhor

Os limites entre a casa-grande e a senzala, porém, nem sempre foram observados de uma forma
ortodoxa. Em muitos pontos essa barreira entre senhores e escravos quase que desaparece, levando muitas
vezes o negro e suas tradições africanas para dentro da casa-grande, misturando-se o sangue, os costumes,
a fala e as diferencas sociais.O antagonismo mais predominante e profundo foi desde sempre o do senhor e
do escravo, e, conforme Freyre, a formação brasileira tem sido na verdade um processo de equilibrio entre
esses antagonismos ( F,116) “Todo brasileiro(...) Traz na alma, quando não na alma e no corpo(...) A
sombra, ou pelo menos a pinta (...)do negro. (...) A influência direta, ou vaga e remota, do
africano.”(F,331)
As relações de senhor/escravo foram também num sentido muito mais pernicioso e arrasador, de
sadismo e masoquismo, conforme Freyre. A consciência de se saber o senhor absoluto sobre os seus
submissos, conquistados ou comprados, lhe dava o direito de agir conforme quisesse com eles. Esse
sadismo se desenvolveu no Brasil aos extremos, devido às chances que aqui se apresentavam: o abuso
sexual da mulher índia e negra, os açoites e torturas aos negros, o direito de matar, de maltratar,
humilhar. O próprio Coronel José Paulino faz uso dessa línguagem sádica, muito embora na maior parte
dos casos se restrinja apenas a linguagem. À família de trabalhadores, cujo pai supostamente estava
doente ele responde: “_Boto pra fora. Gente safada(...)Pensam que não sei? Toco fogo na casa” (R,36).
Um outro exemplo de domínio sádico, mesmo se fazendo puramente de palavras, se percebe pela reação
de um trabalhador que ele encontra cortando uma árvore :
“Quem lhe deu ordem para botar abaixo este pau d’arco?
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_Foi o Dr.. Juca, respondeu mais morto do que vivo  Seu Firmino Carpina”(R,39)
Em uma única passagem descreve o narrador um ato de castigo de seu avô, que como todo senhor
possuia também o direito de justiçar. Um cabra fora acusado de engravidar uma das mulatinhas, pela
situação e palavras do cabra pode-se reconhecer o poder do senhor:
“O meu avô mandou botar o cobra no tronco. E nós fomos vê-lo, estendido no chão, com o pé
metido no suplício.”
“O coronel me mata, mas eu não me amarro com aquela peste.”
“Morro aqui, e não caso.(...) O Coronel pode me picar de facão.”
“E no tronco ele ficaria até se resolver a casar com a sua vítima.”
“No outro dia voltei para junto do prisioneiro. As pernas presas já estavam inchadas, apertadas
demais no buraco do tronco.(...)
Na hora do almoço eu mesmo fui levar ao preso o prato de comida. Estava com o corpo todo
dormente. Aquela imobilidade de mais de vinte e quatro horas ia deixando entorpecida a circulação”(R,42-
43).
Por fim descobriu-se que o verdadeiro culpado era o próprio filho do Coronel, que aparentemente
não sofreu castigo algum.
Exceto esse caso de punição o Coronel é no entanto descrito como um homem muito justo para com
seus submissos. Semelhante coisa não se pode dizer no entanto de outros senhores, cuja maldade sádica o
narrador também relata:
“Os negros de Ursulino toda manhã levavam uma chibatada, na porta da senzala, para esquentar o
corpo.”(R,69)
“_Tio Leitão dava nos negros como em bestas de almanjarra.”(R,89)
Um certo Manuel Antonio Brito mandara castigar o mestre de seus filhos, por desconfiar que ele lhe
roubara dinheiro (o que mais tarde se revelou falso): ”E judiaram com o homem de tal forma, para
descobrir o roubo, que o deixaram para morrer.”(R,90-91).
No engenho do Brejo os carpinas reclamaram por só receberem bacalhau para comer e beber apenas
água o dia inteiro. Foi-lhes dado então carne de peru. E “num domingo, o mestre saiu para dar umas voltas
nos arredores. Viu um negro com uma porção de urubus nas costas:
_O que é isto, moleque?
_É peru pros carpinas.
Os oficiais anoiteceram e não amanheceram na propriedade. E rebentou ferida pelo corpo deles.
Estiveram para morrer um tempão.”(R,70)

 grifo do autor do trabalho


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Sádicos eles poderiam ser também com os próprios familiares, principalmente com as mulheres, que
não passavam de escravas brancas. O velho Duda do Riachão não gostava de mulheres, se ocorria de lhe
nascer uma filha, ele dizia à parteira apenas, sem ao menos olhar a crianca: “_Acabai com ela.”
Há ainda o tio de Coronel Paulino, o velho Manuel César, o qual até José Paulino temia, por ter
fama de brabo e falar gritando com todo mundo. Uns animais que fugiram do Santa Rosa para seu
engenho ele mandou por na almanjarra dia e noite sem dar o que comer. Ninguém de Santa Rosa se atrevia
buscar os animais, apenas o irmão mais moço de Paulino, chamado Quincas, ousara ir buscá-los. Como
vinganca o velho Manuel César protegera mais tarde o assassino de Quincas, seu seu sobrinho.
Mais um exemplo dessa maldade por puro sadismo é a história de Major Ursulino contada pelo
próprio Coronel José Paulino, ela é de um requinte de sordidez típica àquela época de escravidão:
“_O Major Ursulino de Goiana fizera a casa de purgar no alto, para ver os negro subindo a ladeira
com a caçamba de mel quente na cabeça. Tombavam cana com a corrente tinindo nos pés. Uma vez um
negro dos Picos chegou na casa-grande do Major, todo de bota e de gravata. Vinha conversar com o
senhor de engenho. Subiu para prevenir das destruições que o gado do engenho fizera na cana dos Picos.
Ele era feitor de lá. O seu senhor pedira para levar este recado. O Major calou-se, afrontado. Mandou
comprar o negro no outro engenho. Mas o negro só tinha uma banda escrava. Pertencendo a duas pessoas
numa partilha, um dos herdeiros libertara a sua parte. Então o Major comprou a metade do escravo. E
trouxe o atrevido para a sua bagaceira. E mandou chicoteá-lo no carro, a cipó de couro cru, somente do
lado que lhe pertencia.”(R,89)
Os senhores de engenho sempre foram os representantes do poder, “brigavam pelos seus partidos,
profanavam templos de Deus, arrombando urnas e queimando atas.”(R,72) E esse sadismo dos engenhos
excedeu, conforme Freyre, o campo sexual e doméstico se fazendo também presente num campo mais
largo, social e político. O mandonismo, o coronelismo, a ditadura, sempre encontrando uma massa
passiva, capaz de se comprazer e até mistificar os tiranos do quais são vitimas. “(...)no íntimo, o que o
grosso do que se pode chamar ‘povo brasileiro’ ainda goza é a pressão sobre ele de um govêrno másculo e
corajosamente autocrático.”(F,114) Como fruto dessa época de sádicos e masoquistas temos no Brasil um
regime conservador “sustentado do sadismo do mando, disfarçado em ‘princípio de Autoridade’ ou
‘defesa da Ordem’”.(F,114)

O masoquismo do escravo

Nas análises de Freyre o sadismo de senhor corresponde diretamente ao masoquismo de escravo.


Esse masoquismo se mostra pela submissão ilimitada, pela passividade, pelo misticismo da figura da
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autoridade toda poderosa representada pelo senhor de engenho.


Masoquismo esse que criou raízes na alma do brasileiro, e que mesmo a abolição não conseguiu
erradicar.
Mesmo após a abolição muitos escravos permaneceram sob o jugo do senhor, por livre vontade e
por não terem outras possibilidades, como no engenho de Coronel Silvino onde a “senzala não
desaparecera com a abolição. Ela continuava pegada à casa-grande, com as suas negras parindo, as boas
amas-de-leite e os bons cabras do eito.”(R,59). Carlinhos relata: “Restava ainda a senzala dos tempos do
cativeiro. Uns vinte quartos com o mesmo alpendre na frente. As negras do meu avô, mesmo depois da
abolição, ficaram todas no engenho, não deixaram a rua, como elas chamavam a senzala. E ali foram
morrendo de velhas.(...) E elas trabalhavam de graça, com a mesma alegria da escravidão. As duas filhas e
netas iam-lhes sucedendo na servidão, com o mesmo amor à casa-grande e a mesma passividade de bons
animais”(R,54-55). Também Coronel Paulino relata o resultado do 13 de Maio: “Levantei-me de
madrugada, para ver o gado sair para o pastoreador, e me encontrei com a negrada, de enxada no ombro:
iam para o eito. E aqui ficaram comigo. Não me saiu um negro só. Para esta gente pobre a abolição não
serviu de nada. Vivem hoje comendo farinha seca e trabalhando a dia. O que ganham nem dá para o
bacalhau.”(R,90)
Carlinhos descreve também os maquinistas do engenho, homens alegres, dos quais escutava história
picantes, mas que quando sentados à mesa com o senhor transformavam-se em puro servilismo:”Na hora
do almoço vinham chamar os mestres. Na mesa nem pareciam aqueles das histórias: todos calados, de
cabeca baixa, comendo. Ficava a olhar para eles, naquela humildade de seus modos.”(R,71)
Vivendo em condições miseráveis, em meio ao lixo, tendo um quase nada para comer, submetidos à
autoridade do senhor de engenho, esses servos “livres” mostravam-se ainda assim passivos, agradecidos
até: “Eles pareceiam felizes de qualquer forma, muito submissos e muito contentes com seu destino. A
cheia tinha-lhes comido os roçados de mandioca, levando o quase nada que tinham. Mas não levantavam
os bracos para imprecar, não se revoltavam. Eram um cordeiros.
_O que vale é a saúde e a proteção de Deus, diziam sempre.
Mas coitados, com que saúde e com que Deus estavam eles contando!”(R,29-30).
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MULHER DE ENGENHO

A situação da mulher branca

A situação da mulher no engenho, como pessoa livre e branca, embora se diferisse muito da situação
da escrava, ainda assim era uma situação de subordinada. Já foi mencionado no capítulo anterior o ódio
do velho Duda do Riachão, que mandava matar suas filhas recém-nascidas.
Muitas delas eram analfabetas, pois os pais não queriam que aprendessem a ler e a escrever,
inclusive baronesas e viscondessas do império, cujos modos eram os dos mais grosseiros, como relata
Freyre (F,387). Algumas ainda eram confiadas a Recolhimentos, onde aprendiam a ler, coser e rezar.
Nesses Recolhimentos aprendiam também que escravos eram filhos de Deus e que “A necessidade de uns e
a escravidão de outros, imposta pelas leis humanas, ou em penas de seus delitos, ou para lhes acautelar um
maior mal’, é que estabelecera a ‘acidental desigualdade’”(F,387) .
A inglesa Mrs. Kindersley, que esteve no Brasil no século XVIII, achou a situação das mulheres
horrosa, eram ignorantes e beatas. Carlinhos descreve da seguinte forma duas mulheres de um engenho
vizinho: “Nenen do Seu Lula, a sua filha, educara-se nos colégios de Recife. Falava diferente do meu
povo. Eu olhava para ela sentindo uma criatura que nunca tinha visto. Sentava-se como se estivesse de
castigos, sem um movimento de vida, numa posição só, desde que entrava até que saía. E Dona Amélia,
pequenina, petrificava-se também, na etiqueta. Sabia tocar piano, casara-se com o Coronel Lula de
Holanda, no Recife” (R,77).
Viviam enclausuradas, só saindo para ir a igreja. Sempre sob a vigília de mucama de confiança ou
pessoa mais velha, principalmnte durante a noite, as mocas cresciam pálidas, dóceis, medrosas e servís.
Mulheres frágeis, angélicas de grandes olhos tristes, como a mãe de Carlinhos: (..)guardo dela _ a doce
fisionomia daquele seu rosto, daquela melancólica beleza de seu olhar.(...),parecia mesmo uma figura de
estampa. Falava para todos com um tom de voz de quem pedisse um favor, mansa e terna como uma
menina de internato. Criara-se em colégio de freiras, sem mãe, pois o pai ficara viúvo quando ela ainda não
falava. Filha de senhor de engenho, parecia mais, pelo que me contavam de seus modos, uma dama nascida
para a reclusão.” “Horas inteiras eu fico a pintar o retrato dessa mãe angélica” “(...) Ela, cheia de pudor e
de recato”(R,6)
Também a prima Lili, criada no engenho de Santa Rosa, faz parte dessa galeria de mulheres doentes,
maltratadas pelos irmaos sádicos (“Eu lhe era menos agressivo que os irmaos”, relata Carlinhos, R,16).:
“Magrinha e branca, a prima Lili parecia de cera, de tão pálida. (...) Sempre recolhida e calada, nunca
estava conosco nas brincadeiras,”(R,15). “Lili não ia ao sol, vivia o dia todo calçada. Tudo lhe fazia mal: o
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chuvisco, o mormaço, o sereno. E só vivia nos remédios.” Ou a religiosa, bondosa e amendrontada Tia
Maria: “(...)ficava no seu quarto a rezar. Tinha muito medo dessa gente que vivia no crime. Quando me
viu a seu lado, abraçou-me, chorando.”(R,19)
As meninas eram criadas “em ambiente rigorosamente patriarcal,” viviam “sob a mais dura tirania
dos pais _ depois substituída pela tirania dos maridos.”(F,457) Também eram frequentemente maltratadas
pelos maridos, que eram seus verdadeiros donos,”a quem se dirigiam sempre com mêdo, tratando-os de
‘Senhor’”(F,381). “Sadistas eram, em primeiro lugar, os senhores com relação às esposas”(F,381),
Carlinhos conta que seu pai “discutia muito com” sua “mãe. Gritava, dizia tanta coisa, ficava com uma
cara de raiva que “ lhe “ fazia medo”, e sua “mãe saía para o quarto aos soluços”(R,5). Submissa, sem
qualquer sinal de rebeldia, como uma escrava “eu a via chorar e pronta a esquecer todas as intemperanças
verbais do seu marido”(R,6). E logo no início da história sua mãe é assassinada pelo próprio esposo, sem
que houvesse alguma razão, “vítima de um excesso de coléra do homem que tanto amara”(R,7).Dentro do
regime patriarcal-escravocrata a mulher foi muitas vezes “vítima inerme do domínio ou do abuso do
homem; criatura reprimida sexual e socialmente dentro da sombra do pai ou do marido”(F,418) Também
Judite, professora de Carlinhos, casada com um certo Dr. Figueiredo, era maltratada pelo marido: “Uma
vez a vi chorando, com os olhos vermelhos, e o Dr. Figueiredo saíndo de casa batendo a porta. E doutra,
enquanto eu ficava sozinho na sala com a minha carta na mão, ouvi no interior da casa um ruído de
pancadas e uns gritos de quem estivesse apanhando. Compreendi então que a minha bela Judite apanhava
do marido”(R,32-33).
A maioria dessas mulheres eram casadas cedo, durante o século XVI até o XIX ainda antes de
completarem catorze anos, apartir dos quinze anos já eram consideradas velhas, corria a idéia de que “a
virgindade só tem gosto se colhida verde”(F,389). Depois dessa idade a mulheres murxavam, ficavam
gordas, desdentadas, papudas de rosto enrugado: “Aos dezoito anos, já matronas, atingiam a completa
maturidade. Depois de vinte decadência”(F,389). Também era comum entre as famílias de engenho,
casarem-se as filhas com algum parente: “(...) Os casamentos tão frequentes no Brasil desde o primeiro
século da colonização, de tio com sobrinha, de primo com prima. Casamentos cujo fim era evidentemente
impedir a disperção dos bens e conservar a limpeza do sangue de origem nobre ou ilustre.”(F,384).
Também a Tia Maria, também chamada Maria Menina, a melhor amiga de Carlinhos no engenho, “(...)
estava se preparando para casar com o seu primo do Gameleira.”(R,74)

O sadismo da mulher branca

Que algumas dessas mulheres oprimidas tenham senham se tornado o contrário de santidade,
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verdadeiras opressoras, explica Freyre pela mesma teoria de opressão tirana por parte dos maridos. A
maior liberdade de algumas dessas mulheres consistia em judiar impiedosamente das escravas a sua
disposição. Escravas que desde a infância lhe faziam todos os favores, mesmos os mais mórbidos e brutais
(como veremos mais tarde, no capítulo sobre os meninos): “Sôbre a crianca do sexo feminino,
principalmente, se aguçava o sadismo, pela maior fixidez e monotonia nas relações da senhora com a
escrava(...)”(F,379), sendo ainda incrível que a maioria delas tornasse-se pacata e “virtuosa”. Sádicas e
senhoriais elas lidavam com todos os outros que estavam abaixo de si, com requintes de maldade, apenas
guiadas pelo prazer de causar o mal, tinham o hábito de falarem sempre aos gritos, com uma voz
estridente, dando ordens às escravas, como a velha Sinhazinha de Menino de Engenho, que ia “para dentro
e para fora, nas suas ordens para o jantar, gritando para os negros e os moleques com a mesma arrogância
incontestável.”(R,18). Carlinhos assim descreve sua Tia Sinhazinha, irmã de sua avó: “A minha Tia
Sinhazinha era uma velha de uns sessenta anos.(...) Era um temperamento esquisito e turbulento.(...)Era
ela quem tomava conta da casa do meu avô, mas com um despotismo sem entranhas. Com ela estavam as
chaves da despensa, e era ela quem mandava as negras no serviço doméstico. Em tudo isso, como um
tirano.(...)Logo que a vi pela primeira vez, com aquele rosto enrugado e aquela voz áspera, senti que
qualquer coisa de ruim se aproximava de mim. Esta velha seria o tormento de minha meninice.”(R,14-15)
Vivia a punir as crianças, trancava as frutas na despensa e as deixava apodrecer, apenas para fazer raiva à
gente da casa.(R,23)
“Sem contatos com o mundo que modificassem nelas, como nos rapazes, o senso pervertido de
relações humanas; sem outra perspectiva que a da senzala vista da varanda da casa-grande, conservavam
muitas vêzes as senhoras o mesmo domínio malvado sôbre as mucamas que na infância sobre as negrinhas
suas companheiras de brinquedo. ‘Nascem, criam-se e continuam a viver rodeadas de escravos, sem
experimentarem a mais ligeira contrariedade, concebendo exaltada opinião de sua superioridade sôbre as
outras criaturas humanas, e nunca imaginando que possam estar em êrro’”(F,380) . Houve muitos casos de
crueldade por parte de sinhás-mocas em relação a escravos, mandavam arrancar os olhos, os dentes,
entregavam a velhos libertinos, matavam a pancadas (F,380). Carlinhos conta que “as pobres negras e
moleques sofriam dessa criatura (velha Sinhazinha) uma servidao dura e cruel”(R,15). Inclusive ela “criava
uma negrinha, que dormia aos pés de sua cama, para judiar, para satisfazer os seus prazeres
brutais.”(R,15) As senhoras no engenho esbofeteavam, “espatifavam a salto de botina dentaduras de
escravos; ou mandavam-lhes cortar os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas. Tôda uma
série de judiarias.”(F,380). No oratório em santa Rosa havia uma santa mulata com uma criança no braco,
“uma que tinha no rosto a marca de ferro em brasa. _Ela era uma escrava, contavam os moleques. E a
senhora queimou o rosto dela com um garfo quente. Eu pensava sempre na Tia Sinhazinha quando os
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moleques falavam nesta senhora malvada.”(R,40)


O seu cotidiano consistia em arranjar pretextos para punir os outros: “Vivia a resmungar, a
encontrar malfeitos, poeira nos móveis, furtos em coisas da despensa, para pretexto de suas pancadas nas
crias da casa”(R,15). Era uma mulher odiada pelas negras, que viviam atadas aos pés de seu algoz, e os
meninos corriam dela com um demonio.
Sua fúria de destruicao não se limitava somente às negras e aos negrinhos, mas envolvia a todos que
fossem mais fracos que ela: “A velha Sinhazinha não gostava de ninguém. De mim nunca se aproximou.
Mas a propósito de nada, lá vinha com beliscões e cocorotes.(...) Numa ocasião, jogando pião na calçada,
o brinquedo foi cair em cima do seu pé. A velha levantou-se com uma fúria para cima de mim, e com o seu
chinelo de couro encheu-me o corpo de palmadas terríveis. Bateu-me como se desse num cachorro,
trincando os dentes de raiva. E se não fosse a Tia Maria que me acudisse, ela teria me
despedaçado.”(R,22-23)
Impulsos a esse sadismo, contribuiam o isolamento em que viviam as sinhás-donas, tendo por
companhia escravas passivas, a sua submissão diante do marido tirano, eles próprios sadistas em relação a
elas. Descarregavam todo seu ódio sobre as mucamas e as molecas em rompantes histéricos, passando
adiante a violência sob a qual viviam.(F,381)

A situação da mulher negra

A mulher negra escrava exerceu várias funções na formação da sociedade brasileira. Desde início
como força de trabalho no campo, como ventre gerador de força de trabalho, escrava sexual dos senhores,
cozinheiras na casa-grande, mucamas de meninos e meninas, contadoras de histórias e propagadoras da
cultura africana no ambiente senhoril. Em grande parte trazemos “a marca da influência negra. Da escrava
ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolegando na
mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-
assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou
no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem”,
lembra Freyre num arrojo lírico (F,331).
A maioria dos filhos dos senhores foram amamentados pelas amas-de-leite: “Muito menino brasileiro
do tempo da escravidão foi criado inteiramente pelas mucamas. Raro o que não foi amamentado por
negra”(F,391). Mesmo anos após a abolição essa função permaneceu, como lembra Carlinhos: “Na rua a
meninada do engenho encontrava os seus amigos: os moleques, que eram os companheiros e as negras que
lhes deram o peito para mamar; as boas servas nos braços de quem se criaram.”(R,55) Não raras vezes
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elas substituíam a própria função de mães dessas crias de brancas: “Nós não éramos seus irmãos-de-leite?
(Dos moleques). Eu não tivera estes irmãos porque nascera na cidade, longe da salubridade daqueles
úberes de boas turinas. Mas a mãe-de-leite de Dona Clarisse (sua mãe), a Tia Generosa como a
chamávamos, fazia as vezes de minha avó”(R,55).

A pobreza da mulher negra

Com algumas excessões, como no caso das mães-pretas, que moravam na casa-grande e tinham
honras de senhora, ou negras muito velhas que eram tratadas com respeito (“A velha Galdina era outra
coisa. Fora ama de braco de meu avô, e todos nós a chamávamos de vovó.(...). Não se falava com ela
gritando, e davam-lhe o tratamento de vossa mercê.”R,58), a maioria das negras e mulatas viviam na mais
absoluta pobreza, usadas e abusadas por todos. Carlinhos relata que as ex-escravas viviam entre paredes
de barro, dormiam em cama de tábua dura. Do quarto da negra Maria Gorda ele diz que “fedia como
carniça”(R,57). A situação das trabalhadoras, ou mulheres de trabalhadores, também era a das mais
miseráveis, em nada se diferenciando a do tempo do cativeiro, moravam em casebres, e, quando o avô
fazia suas visitas às casas “Acudia sempre uma mulher de cara de necessidade: a pobre mulher que paria os
seus muitos filhos em cama de vara e criava-os até grandes com o leite de seus úberes de mochila”(R,36).
Encontrava-se também mulheres doentias, abandonadas pelos maridos: “E numa casa de palha uma mulher
branca, como de madapolão, sem uma gota de sangue na cara, com um menino pequeno engatinhando no
chão quente do terreiro e o outro de peito, nos bracos: era a mulher de Chico Baixinho. Tinha parido há
oito dias, e o marido no mundo.”(R,38)

Função procriativa

A mais ampla função dessas mulheres foi no entanto a de procriação. Freyre afirma ser essa
sexualidade animalesca não uma característica do africano, mas sim o fruto do sistema escravocrata. “Não
há escravidão sem depravação sexual”(F,360). O erotismo, a luxúria, a depravação, têm, conforme ele,
suas raízes no tratamento do senhor branco, europeu, desejoso de “possuir o maior número de crias”,
dado às escravas , transformadas em puro objeto procriativo e de satisfação de prazeres. Daí o mito da
mulata sensual, curvas libidinosas, sempre sedenta de sexo, pronta a se entregar por qualquer migalha.
“Superexcitados sexuais foram antes êstes senhores que as suas negras ou mulatas passivas”(F,413). No
Santa Rosa as costureiras contavam que “o senhor de engenho do Poço Fundo tinha mais de vinte
mulheres”(R,17). Do avô do velho José Paulino se diz que “Espalhara sangue de branco por entre os
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caboclos daquelas redondezas”(R,92). O próprio Coronel Paulino tivera também uma vida “cheia de
irregularidades dessa natureza.”, e “Quando era mais moço, parecia um pai-d’égua atrás das negras.”
afirma a negra Generosa (R,115). Também seu filho, Tio Juca, homem de nível universitário, engravidava
negras, como vimos no primeiro capítulo. Zé Guedes, moleque companheiro de Carlinhos, fala de uma
mulatinha: “_Aquela ali já foi passada. Quem manda nela é o Dr. Juca”(R,34). E não só uma, mas muitas,
como conta Carlinhos: “E eu ia sabendo que meu Tio Juca tinha mulatas em quem mandava”(R,34). E as
tinha a um preço de migalhas: “De uma feita desceu numa casa de palha, onde só morava uma negra.
Ficou lá dentro uma porção de tempo. Quando saiu, ouvi a mulher dizendo: _Não vá esquecer do corte de
chita, seu xeixeiro”(R,34).
“Slave women were taught”, escreveu Calhoun, “that it was their duty to have a child once a year,
and that it mattered little who was the father” (F,417). As negras e mulatas do engenho de Santa Rosa,
embora livres, viviam grávidas, ganhavam uma cria após a outra como uma atividade bovina: “Não
conheci marido de nenhuma, e no entanto viviam de barriga enorme, perpetuando a espécie sem
previdência e sem medo”(R,56). Da boa cozinheira Generosa ele diz : “Tinha não sei quantos filhos e
netos.” As filhas das ex-escravas perpetuavam essa função de parideiras e “todo ano pariam o seu filho.
Avelina tinha filho do Zé Ludovina, do João Miguel destilador, do Manuel Pedro purgador. Herdavam das
mães escravas esta fecundidade de boas parideiras”(R,57). Muitas vezes era tanta sua atividade sexual, que
nem sabiam quem era o pai da crianca: “A negra Luísa me deixara, andava de barriga empinada, com as
dificuldades e os medos da primeira cria. Estava prenha e não sabia de quem. Diziam que era de todos os
cambiteiros do Santa Rosa”(R,111). Condição essa, que mesmo após mais de um século de abolição,
continua sendo caracterísca em regiões pobres, como as favelas - as modernas senzalas- onde as mulheres
encontram-se perpetuamente grávidas, lançando filhos no mundo, crianças sem pai, abandonadas à
pobreza.

MENINOS DE ENGENHO
Meninos e moleques

Meninos, assim eram chamados os rebentos brancos e legítimos do senhor de engenho. Moleques
eram os filhos das escravas, negrinhos, mestiços, escravos por hereditariedade. Na infância a vida dos
meninos e dos moleques não se diferenciava muito na sua selvageria, andavam sempre juntos,
compartilhavam da mesma ignorância, falavam a mesma língua, brincavam juntos, soltos pelas matos,
fazendo as mesmas experiências. O próprio Carlinhos metia-se “com os moleques por toda parte”(R,65).
Lopes Gama, no entanto, lamenta esse contato de seus primeiros anos: “Maneiras, linguagem, vícios, tudo
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nos innocula essa gente safada, e brutal, que á rusticidade da selvageria une a indolência, o despejo, o
servilismo próprio da escravidão.(...) Com os filhinhos destes vivemos desde que abrimos os olhos; e
como poderá ser boa nossa educação?(...) Mulequinhos, que nascem na casa paterna, são os companheiros
de de nossa infância(...)”(F,392).
Os meninos, futuros senhores, tinham toda a liberdade para vadiarem com os moleques na
bagaceira, descalcos, sujos, semi-selvagens. Tia Maria fala ao recém-chegado Carlinhos: “_ Você está um
negro(...) Chegou tão alvo, e nem parece gente branca. (...) De manhã à noite, de pés no chão, solto como
um bicho. (...) Não vá atrás destes moleques por toda parte”(R,13-14). Mas ficava-se apenas em palavras
e eles continuavam sempre juntos, soltos como animais: “O dia todo passávamos assim, nessa agitação
medonha”(R,14). E viviam mesmo quase como bichos, semi-nus ou inteiramente nus , com “as bimbinhas
de fora”(R,93). Numa visita a um sítio vizinho Carlinhos conta que “Um menino nu que estava na porta
correu assombrado para dentro de casa”(R,21), e assustadiços como animais do mato, desacostumados ao
contato com gente estranha, dois “meninos com medo correram para outra casa de perto. Depois foram se
chegando para nós, desconfiados como cabritos, sujos e de barriga grande. Mas, quando o meu primo quis
um jenipapo maduro, um deles trepou pelo pé-de-pau numa ligeireza de macaco”(R,22). As parentas
civilizadas da cidade ficavam horrorizadas com o desleixo da gente do engenho, uma delas chegou até a
escrever que “o povo do Santa Rosa só tinha de gente os olhos”, acusando José Paulino de herege e de
criar a gente do engenho como bichos (R,93).
Em geral durante a infância dos senhores, isso até completarem 12 anos e serem enviados a um
internato na cidade, eles cresciam junto aos moleques, seus irmãos-de-leite, não só amigos e
companheiros, mas acima de tudo, mestres: “O interessante era que nós, os da casa-grande, andávamos
atrás dos moleques. Eles nos dirigiam, mandavam mesmo em todas as nossas brincadeiras, porque sabiam
nadar como peixes, andavam a cavalo de todo jeito, matavam pássaros de bodoque, tomavam banho a
todas as horas e não pediam ordem para sair para onde quisessem. Tudo eles sabiam fazer melhor do que a
gente(...) Só não sabiam ler.(...) Queríamos viver soltos, com pé no chão e a cabeça no tempo, senhores da
liberdade que os moleques gozavam a todas as horas”(R,56). Assim eram educados os futuros senhores,
sendo iniciados pelos moleques, inclusive em “conversas picantes sobre as coisas do sexo. Por eles
comecei a entender o que os homens faziam com as mulheres, por onde nasciam os meninos. Eram uns
ótimos repetidores de história natural.(...) A nossa doce inocência perdia-se assim nessas conversas bestas,
no contato libidinos com os moleques da bagaceira”(R,56-57). Muito cedo já conheciam todas as doenças
sexualmente transmitíveis, sabiam de todas as libertinagens, aprendendo dos moleques: “O outro mestre
que eu tive foi o Zé Guedes, meu professor de muita coisa ruim.Levava-me e trazia-me da escola todos os
dias. E na na meia hora que ficava com ele, de ida e volta, aprendi coisas mais fáceis de aprender que a
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tabuada e as letras. Contava-me tudo que era história de amor, sua e dos outros. (...) Pelo caminho
continuava nas suas lições, falando de mulheres e de doenças-do-mundo. E nome por nome ele dava de
todas as doenças: cavalo, mula, crista-de-galo”(R,34). Sobre esses meninos escreve Freyre que raro o que
“não cresceu entre moleques. Brincando com moleques. Aprendendo safadezas com eles(...) Os olhos,
dois borrões de sem-vergonhice. A bôca como a das irmas de Maria Borralheira: bôca por onde só saía
bosta. Meninos que só conversavam porcaria”(F,391).
No entanto essa sincronia de costumes não fora forte o suficiente para dissolver as barreiras sociais
que classificavam o menino como senhor e o moleque como servo. Baseava-se numa igualdade enganosa,
e na maioria dos casos dando origem à muitas perverções. Carlinhos conta que ao acordar via os mesmos
“moleques das minhas brincadeiras da tarde, todos ocupados, uns levando latas de leite, outros metidos
com os pastoreadores no curral”(R,10). Ele lembra ainda que na escolinha, onde aprendia a ler com outros
meninos pobres, muitos deles moradores do engenho, havia para ele “um regime de exceção. Não
brigavam comigo. Existia um copo separado para eu beber água, e um tamborete de palhinha para ‘o neto
do Coronel Zé Paulino’. Os outros meninos sentavam-se em caixoes de gás”(R,33). mesmo sentado entre
seus amigos, na pobre escolinha, ele permanecia o senhor, com direito de castigar: “Nas sabatinas nunca
levei um bolo, mas quando acertava, mandavam que desse nos meus competidores”(R,33), e enquanto ele
ia e voltava da escola “na garupa do cavalo branco” os outros voltavam a pé para casa( R,34).

Sadismo de menino

Júlio Belo lembra que o melhor brinquedo dos meninos de engenho era montar a cavalo em
carneiros(F,379). No engenho em que cresceu a personagem Carlinhos os meninos também recebiam
carneiros para montaria: “Via chegar ao engenho os meninos do Zé Medeiros, do Pilar, cada um no seu
carneirinho arreado, esquipando pela estrada. E uma grande inveja enchia meu coração”(R,73). O próprio
Carlinhos recebeu um dia um carneiro para si, “Já vinha manso e era mocho. Carneiro nascido para
montaria”(R,73). Gilberto Freyre acrescenta que na falta de carneiros os meninos montavam nos
moleques, em brincadeiras muitas vezes brutais, nas quais os moleques serviam de bois de carro, cavalos,
burro de carga, etc. (F,379). Muitos desses meninos recebiam também do pai uma faca, Carlinhos lembra
dos parentes que vinham visitá-los, e cujos filhos ainda pequenos traziam botas e carregavam uma faca no
colete (R,72) . O Padre Lopes diz que essa atitude dos pais é que estimulava a malvadeza nos filhos:
“Pelos nossos mattos (com poucas, e honrosas excepções) é lastimosa a educação dos meninos. Ali o
primeiro divertimento que se lhes dá é uma faquinha de ponta (...) Assim muitos dos nossos matutos
armam cavalleiros da faca aos seus filhinhos, logo que estes podem enfiar-se em uma ceroulinha”(F,411).
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Ele lamenta a educação dada a esses meninos, de modos grosseiros, cruéis com escravos, se comprazendo
em matar avezinhas indefesas(F,411). O menino Carlinhos lembra que durante a seca as rolas sertanejas
desciam aos montes até o engenho e posavam na beira do rio, em busca de água: “Nó ficávamos de
espreita, de cacete na mão, para o massacre. E a sede das pobres rolas era tal que nem davam pelos nossos
intuitos. Matávamos a cacetadas, como se elas não tivessem asas para voar”(R,18).
Com certeza essa forma de se educar os filhos brancos é que contribuiu para o desenvolvimento de
muita perverção no menino e, mais tarde, para o sadismo do senhor de engenho. Tinham a liberdade para
fazer todos os tipos de safadeza, sendo muitas vezes apoiados pelos pais. Eles não ficavam só na caça e
judiação de passarinhos, na qual Carlinhos diz sentir “um prazer sem limites”(R,68), absovendo-se
“inteiramente com o esporte cruel”(R68), mas extrapolavam suas maldades, sem consciência do perigo de
suas brincadeiras cruéis, arriscando até a vida de pessoas inocentes, como lembra Carlinhos, cujo primo
Silvino queria fazer virar um trem, e botou por isso uma pedra na curva da rampa para causar um
desastre. Por sorte Carlinhos, que já via “pedaços de gente morta, cabeças rolando pelo chão, sangue
correndo no meio de ferros desmantelados”(R,46) afastou a pedra no último instante. Esse sadismo surge
na mais tenra infância na vida do menino e vai se tornando cada vez mais uma parte fundamental de sua
personalidade. Antes mesmo de chegar aos doze anos Carlinhos alimentava vinganças contra a velha
Sinhazinha, vinganças com impressionantes requintes de crueldade: “Queria vê-la despedaçada entre dois
cavalos como a madrasta da história de Trancoso. E cortada aos pedaços na serra do engenho”(R,23). Em
seus retiros em meio ao mato, passeando sobre as costas de seu carneirinho, Carlinhos se entregava a todo
tipo de pensamentos maus e vingativos: “Eu desejava também que a velha Sinhazinha morresse. Então
comecava a ver a minha inimiga trucidada, com os cavalos desembestados puxando-lhe o corpo pelos
espinhos”(R,68). Freyre afirma ter sido muito comum que os meninos recebessem, logo que deixavam o
berço, um ou mais moleques como camarada, ou melhor dito, como brinquedo. Esses negrinhos
subjugados aos caprichos do nhonhô, eram chamados leva-pancadas, sendo sempre punidos, tratados
desposticamente. Como já observamos neste capítulo os jogos e brincadeiras dos meninos acusam
“tendências acremente sadistas. E não era só o menino de engenho, que em geral brincava de bolear carro,
de matar passarinho e de judiar com moleque: também os da cidade”(F,409). Tornavam-se dos cinco aos
dez anos verdadeiros meninos-diabo, e é “de supor a repercurssão psíquica sôbre os adultos de
semelhandes tipos de relações infantís _ favorável ao desenvolvimento de tendências sadistas e
masoquistas”(F379). Assim resume ele as consequências doprazer sádico que florescia nos meninos:
“Transformava-se o sadismo do menino e do adolescente no gôsto de mandar dar surra, de mandar
arrancar dente de negro ladrão de cana (...); no gôsto de mando violento ou perverso que explodia nêle ou
no filho bacharel quando no exercício de posição elevada, política ou de admnistração pública; ou no
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simples gôsto de mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho.
Gôsto que tanto se encontra, refinado num senso grave de autoriedade e de dever, num Dom Vital, como
abrutalhado em rude autoritarismo num Floriano Peixoto”(F,113).

Sexualidade do menino de engenho. A sífilis

Outro aspecto da relação dos meninos com os moleques, é o da introdução à sexualidade. É no


contato com os negrinhos que eles recebem suas primeiras aulas de sexo, partindo-se muitas vezes da
teoria à prática.: “Através da submissão do moleque, seu companheiro de brinquedos e expressivamente
chamado leva-pancadas, iniciou-se muitas vêzes no amor físico”(F,113). Não raro o menino que não
perdeu a virgindade brincando com os moleques, que não aprendeu tudo sobre sexo com os negros.
Carlinhos lembra que sua “doce inocência perdia-se assim nessas conversas bestas, no contato libidinoso
com os moleques da bagaceira”(R,57). Além disso o engenho lhe oferecia “o amor por toda a parte: na
senzala, na beira do rio, nas casas de palha. Os moleques levavam-me para as visitas por debaixo dos
matos, esperando a vez de cada um”(R,117). E se eles não se ofereciam ao menino ele tentava pegá-los à
força, como Carlinhos que quis pegar o filho pequeno de João Rouco, mas foi corrido a tempo pelo pai
(R,118). Freyre escreve que a primeiras vítimas das atividades sexuais do menino não eram só os moleques
mas também os animais domésticos: “_ o menino é um antecipado sexual. Cedo se entrega ao abuso dos
animais”(F,415). Carlinhos conta que eles observavam os touros e as vacas, iniciando-se assim nos
“mistérios do sexo, antecipando-se por muitos anos no amor”(R,35). Ele próprio “Ficava horas seguidas
olhando, no curral, as vacas que mandavam de outros engenhos para reproduzirem com os zebus do meu
avô(...)”(R,102). E não só observavam a procriação dos bovinos como também tinham as suas cabras e
vacas “para entcontros de lubricidade. A promiscuidade selvagem do curral arrastava a nossa infância às
experiências de prazeres que não tínhamos idade de gozar”(R,35). Ele recorda ainda ter visto o primo
Silvino “à boca da noite, quando o gado chegado do pastoreador desconsava (...) trepado na cerca,
procurando pôr-se por cima de uma vaca mansinha”(R,35).
Vimos no capítulo sobre a mulher escrava qual a origem da desenfreada promiscuidade no regime
escravocrata: a necessidade de procriação, o status de escrava da mulher negra. O resultado mais perigoso
dessa promiscuidade foi a sífilis, que era a doença mais frequente no Brasil escravocrata, propagando-se a
vontade no ambiente voluptuoso dos engenhos, através da prostituição doméstica. Nessa época vivia-se
em um ambiente de grande libertinagem, as negras andavam semi-nuas, os adultos falavam de suas
experiências com os meninos, havia a falta de qualquer moral religiosa (“Eu era um menino sem contato
com o catecismo. Pouco sabia de rezas. E esta ausência perigosa de religião não me levava a temer os
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pecados” R,102). Carlinhos encontrara um certo dia uma coleção de postais de mulheres em todas as
posições de obscenidade no quarto do seu Tio Juca, e mesmo não tendo idade para entender o sentido
daquela pornografia “nojenta”, ficava-lhe “uma saudade ruim daquelas mulheres e daqueles homens
indecentes”(R,83). Ele lembra-se também das lavadeiras na beira do rio, que ficavam quase nuas, ele
tomava banho nu junto delas, olhando as suas partes descobertas, e elas apenas riam gostando de sua
curiosidade (R,117). O Coronel José Paulino também comenta que no seu tempo os negros “não andavam
nus como hoje, com os troços aparecendo”(R,90).Também os homens comentavam enfrente aos meninos
suas aventuras com mulheres, sobre suas doenças: “E o Seu Rodolfo falava também de mulheres. Quando
estivera no Jaburu, apanhara uma carga de gálico que lhe deixara o corpo numa chaga”(R,70). E
Carlinhos conhecia também o moleque Zé Passarinho, de uma “preguiça alcoolizada(...). Com os pés
roliços de bicho e o corpo rebentando em moléstias do mundo”(71). O próprio Tio Juca bebia “antes de
seu banho, um copo cheio de remédio para o sangue, dormido no sereno(...)”(R,11), remédio caseiro
contra a sífilis. De fato, afirma Gilberto Freyre, o Brasil parece ter -se sifilizado antes mesmo de se ter
civilizado: “A sífilis fêz sempre o que quis no Brasil patriarcal. Matou, cegou, deformou à vontade. Fêz
abortar mulheres (...) Uma serpente criada dentro de casa sem ninguém fazer caso de seu veneno. O
sangue envenenado rebentava em feridas”(F,362) A sifilização do Brasil data dos princípios do século
XVI, trazida pelo homem branco e espalhada ao índio e ao africano. A frequência dessa doença era tão
comum, que ninguém a receava, uma doença doméstica, como o sarampo e os vermes. Além disso a sífilis
não só era comum, como também um sinal de masculinidade, um motivo de orgulho.
Carlinhos desenvolvera no contato com os moleques e negras, uma sexualidade precoce: “Os meus
impulsos tinham mais anos que a minha idade(...) O sexo crescia em mim mais depressa do que as pernas e
os bracos”(R,102). Freyre comenta que o filho do senhor de engenho contraía sífilis “quase brincando
entre negras e mulatas ao desvirginar-se precocemente aos doze ou aos treze anos”(109). A negra ou a
mulata contribuíram muito para a precoce depravação do menino da classe senhoril, mas como diz Freyre,
não por sua raça, mas pela sua situação de escrava: “como parte de um sistema de economia e de família:
o patriarcal brasileiro”(F,413). Vilhena escreveu no século XVIII sore a situação das negras “e ainda
huma grande parte das mulatas, para quem a honra he hum nome chimerico e que nada significa, são
ordinariamente as primeiras que começão a corromper logo de meninos os senhore moços, dando-lhes os
primeiros ensaios da libidinagem em que de creanças se engolfão”(F,413). Carlinhos culpa a negra Luísa,
que era a comparsa de suas depravações antecipadas, o anjo mau de sua infância.: “Ia me botar pra dormir,
e enquanto ficávamos sozinhos no quarto, arrastava-me a coisas ignóbeis.(...) A moleca me iniciava,
naquele verdor de idade, nas suas concupiscências de mulata incendiada de luxúria. Nem sei contar o que
fazia comigo. Levava-me para os banhos da beira do rio, sujando a minha castidade de criança com seus
arrebatamentos de besta”(R,102). Tornara-se como que um escravo dessa negra, pensando continuamente
nos “retíros lúbricos com o” seu “anjo do mau, nas masturbações gostosas com a negra Luísa”(R,103),
seguia-lhe a toda parte, sentia ciúmes dos outros negros. Muitos estudiosos da cultura brasileira
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consideraram a mulata como um tipo anormal de superexcitação sexual, um elemento depravador da


inocência dos meninos. Mas Freyre comenta que na maioria dos casos “Não eram as negras que iam
esfregar-se pelas pernas dos adolescentes louros;(...) Êstes é que (...) criavam-se desde pequenos como
garanhões”(F,417). Os verdadeiros sadistas, conforme ele, foram os brancos: “o elemento ativo na
corrupção da vida de família”(F,417).
Carlinhos teve sua primeira experiência sexual muito cedo: “Tinha uns doze anos quando conheci
uma mulher, como homem”(R,115). Com a negra Zefa Cajá, a quem ele perseguia e ficava “olhando para
a mulata com vontade mesmo de fazer coisa ruim”(R,115) ficou várias vezes, e não saía de sua casa de
palha, viciado no sexo com a rapariga, “a grande mundana dos cabras do eito”(R,115). Mas, como era de
se esperar, contaminou-se logo de sífilis: “Mas eu tinha que pagar o meu tributo antecipado ao amor.
Apanhei doença do mundo”(R,115). Conforme Freyre depois dos doze anos o menino que não tinha
contato com mulher era considerado donzelão: “Ridicularizado por não conhecer mulher e levado na troça
por não ter marca de sífilis no corpo”(F,109). Ter sífilis tornou-se para o homem do tempo escravocrata
um sinal de orgulho. Martius notou que “o brasileiro a ostentava como quem ostentasse uma ferida de
guerra”(F,109). Após descobrirem que o menino Carlinhos havia sido contaminado com o vírus a negra
Zefa Cajá fora posta na cadeia, mas ele, pelo contrário, tornou-se objeto de orgulho: “E comecei a
envaidecer-me com a minha doença. Abria as pernas, exagerando-me no andar. Era uma glória para mim
essa carga de bacilos que o amor deixara pelo meu corpo imberbe. Mostravam-me às visitas masculinas
como uma espécime de virilidade adiantada. Os senhores de engenho tomavam deboche de mim, dando-
me confiança nas suas conversas.(...) E riam-se, como se fosse uma coisa inocente, este libertino de doze
anos”(R,116). Também o moleque Ricardo pegara a sua doença na mesma fonte. Ficara entrevado na
rede, sem poder andar. No entanto tinha orgulho de sua doença, mais forte do que a de Carlinhos, que
comenta: “Parecia um orgulho da ruindade de cada um”(R,117). E esse desleixo em relação a doença
arrasadora, contribuiu muito para o enfraquecimento do caboclo, do nordestino, do homem da cidade: “De
tôdas as influências sociais talvez a sífilis tenha sido, depois da má nutrição, a mais deformadora da
plástica e a mais depauperadora da energia” (F,109).

CONDIÇÕES DE HIGIENE NOS ENGENHOS


A falta de higiene e a alimentação precária
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Não só a sífilis foi grande destrutora de vidas e consumidora das energias dos homens e mulheres
brasileiras, mas também a falta de higiêne da época, e a alimentação monótona. Devido a monocultura
havia escassez de alimentação, que além disso era pobre em vitaminas. Essa má alimentação gerava
pessoas débeis e incapazes, gente anêmica e enfraquecida, uma verdadeira população de inválidos. Alguns
autores da época de Freyre davam grande importância a influência da dieta sobre o desenvolvimento físico
e econômica das populações, e o próprio Freyre acredita que pelo regime alimentício da época se explicam
muitas “importantes diferencas somáticas e psíquicas entre o europeu e o brasileiro(...)”(F,97). Enquanto
se plantavam hectares de cana-de-açúcar, algodão ou café, nas casas se comia quase só farinha e bacalhau.
Os milhões de párias inúteis, lembra Joaquim Nabuco (F,99), viviam em chocas de palha, dormindo em
rede, se alimentando de farinha com bacalhau ou charque. A pobreza alimentícia dos párias no engenho de
Santa Rosa também não era das melhores. O tipo de alimentação deles se repete no livro quase como uma
ladainha, tão monótona como o próprio regime de alimentação: “_No Santarém ninguém come, dizia uma:
é bacalhau no almoco e no jantar”(R,17); “Os moradores vinham então pedir o jejum, em bandos. Davam-
lhes bacalhau e farinha”(R,41). E os trabalhadores do campo “Paravam às dez horas, para o almoço de
farinha seca com bacalhau”(R,86). Os cabras do eito chegavam no engenho ensopados de chuva e
“Levavam bacalhau para a mulher e os filhos, e iam dormir satisfeitos”(R,110-111). Aos carpinas num
engenho do Brejo “_o senhor de engenho só mandava para eles bacalhau, na janta e no almoço. Passavam
o dia inteiro bebendo água com a boca seca.(R,70). E os ex-escravos do Coronel Paulino “Vivem hoje
comendo farinha seca e trabalhando a dia. O que ganham nem dá para o bacalhau”(R,90). Também se dizia
da casa de Seu Lula que “o povo de lá não comia, as negras viviam de jejum”(R,78).
A falta de higiene também fora causadora de muita doença e morte precoce. Já vimos que a gente do
engenho Santa Rosa vivia como “bichos”. Carlinhos descreve em vários momentos a situação nas casas
dos pobres onde “as galinhas e os porcos se criavam soltos, entrando por dentro de casa, como
gente”(R,21). Na cozinha dessa gente havia um “pote com água barrenta do rio, que bebiam”(R,21).
Também na senzala os “moleques dormiam nas redes fedorentas; o quarto todo cheirava horrivelmente a
mictório. Via-se o chão úmido das urinas da noite.(R,56). E na casa-grande em época de chuvas a cozinha
ficava “melada de lama, da gente de pés no chão que entrava por lá”(R,110). As crianças dos
trabalhadores viviam soltas em meio a sujeira, esfomeadas, doentias, Carlinhos fala desses “meninos nus,
de barriga tinindo como bodoque. E o mais pequeno na lama, brincando com o borro sujo como se fosse
areia de praia”(R,37). Essas condições miseráveis, medievais, permitiam o surgimento de várias doenças, e
os primeiros a sofrerem as consequências eram as crianças, os molequinhos, “Muitos deles, amarelos,
inchados, coitadinhos, das lombrigas que lhes comiam as tripas”(R,74).
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O tratamento das doenças

Outro fator contribuinte à mortalidade e à piora das doenças foi a própria medicina exercida naquela
época. Tanto a medicina oficial quanto o curandeirismo popular, baseavam-se na ignorância quase total
das causas das doenças, receitando medicamentos absurdos, baseadas em crendices, para a cura de
doenças, cuja origem era a simples falta de higiêne. Em livros de medicina se encontravam receitas “que
na verdade pouco se diferenciavam das dos curandeiros africanos ou caboclos”(F,405). Freyre afirma que
no “Brasil colonial parece-nos justo concluir terem médicos, comadres, curandeiros e escravos
sangradores contribuído quase por igual para a grande mortalidade, principalmente infantil e de mães, que
por épocas sucessivas reduziu quase de 50% a produção humana nas casas-grandess e nas
senzalas”(F,405). As mães dos moleques com verminoses no Santa Rosa “davam-lhes jaracatiá, e eles
passavam dias e dias obrando ralo como passarinho”(R,75). Carlinhos lembra que no engenho seu avô se
encarregava de tratar todas as doenças: “As moléstias do engenho tinham o seu diagnóstico e a sua
medicina certa: sarampo, bexiga-doida, papeira, sangue-novo. Saindo dali era febre. O velho José Paulino
tratava de tudo, fazia sinapismos de mostarda, dava banhos quentes, óleo de rícino, jacaratiá para
vermes”(R,81). A um carreiro, que teve o dedo do pé esmigalhado por um carro de boi, o velho José
Paulino, cortou-lhe “à tesoura aquele pedaço de carne dependurada, botou tintura de jacá na ferida e
amarrou com tiras de camisa velha o pé” do trabalhador (R,81). Contra a asma de Carlinhos se
“prescreviam vomitórios de cebolas-cecém.”(R,81), e ele se extenuava em vômitos desesperados. Também
contra a sífilis ensinaram-lhe remédios que ele tomava em segredo na beira do rio: “Dormia no sereno a
goma com açúcar para os meus males. Não melhorava”(R,116). Ao invés de ser enviado a um médico,
quem tomava conta de seu tratamento era o Tio Juca, que não lhe dava tréguas: “Levava-me aos banhos
para o tratamento rigoroso de seringa. Bebia refresco de pega-pinto em jejum, chá de urinana de manha à
noite”(R,117). Também o moleque Ricardo, contaminado de sífilis, curava-se “com os remédios caseiros:
as garrafas de raíz de mato com aguardente de cana”(R,116).

A religiosidade e os costumes africanos

Outro aspecto muito importante na formação da cultura brasileira foi a religiosidade. Diz-se
religiosidade, porque se baseia em costumes tanto católicos como africanos e indígenas. A influência da
religiosidade ou da ausência dela se faz sentir na pouca moral da gente dos engenhos, como já observamos
no caso de Carlinhos. O Catolicismo, o Cristianismo foi, como diz Freyre, o cimento da nossa unidade
(F,93). Todos os negros trazidos ao Brasil tinham de ser batizados e também dos estrangeiros que se
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instalavam no Brasil, se exigia que fossem de fé ou religião católica. Mas se tratava de um critianismo de
papel, ou de um catolicismo frouxo, menos ortodoxo e purista do que o calvinismo, por exemplo. Se
tratava de um cristianismo doméstico, lírico e festivo, de igrejas sempre em festas, mas que permitiu a
confraternização e a unificação entre as diferenças raças e classes socias. O que houve foi uma
confraternização de costumes, a religião do brasileiro surgindo do sincretismo de costumes católicos,
africanos e índios. Kloster observa que os “escravos tornados cristãos fazem mais progresso na civilização
(...) Não se tem lançado mão de constrangimento para os fazer adotar os costumes dos senhores, mas
insensívelmente lhes dirigem as idéias para êste lado; os senhores ao mesmo tempo contraem alguns
hábitos dos seus escravos e desta sorte o superior e o inferior se aproximam”(F,396).
No engenho de Santa Rosa os meninos mexíam no quartos da senzala, nos seus cofres, “onde elas
guardavam os seus rosários, os seus ouros falsificados, os seus bentos milagrosos”(R,55). Carlinhos conta
que nas “paredes de barro havia sempre santos dependurados(...)”(R,55). E religião no engenho era uma
religião dos dias de festa, quando então se abria o oratório repleto de estampas e imagens de santos, mas
em geral o quarto dos santos vivia fechado. Aos meninos ninguém ensinava o catecismo, e o avô José
Paulino não era devoto: “Não ia às missas, não se confessava, mas em tudo que procurava fazer lá vinha
um se Deus quiser ou tenho fé em Nossa Senhora.(...) O meu avô, nunca o vi rezando. Com ele, porém
contavam os padres das duas freguesias nas suas festas e nas necessidades”(R,39). Ele lembra-se ainda que
se pagava “muita promessa, dava-se muito dinheiro para as festas de Nossa Senhora. Mas nunca vi
ninguém do engenho numa mesa de comunhão, nem mesmo Tia Maria. O povo pobre do eito só se
confessava na hora da morte (...) E no entanto não tiravam Nossa Senhora da boca e faziam novenas a
propósito de tudo”(R,40-41). O mínimo de religiosidade que restava ainda era muito influenciada por
crendiçes: os meninos criam que se Menino Jesus deixasse cair a bola do mundo que trazia na mão, o
mundo se acabaria., falava-se do cego que foi curado pelo sangue de Jesus escorrido da cruz, as negras
“diziam que se o padre na missa do sábado não achasse a Aleluia, o mundo se acabaria de vez”(R,41). Era
portanto uma religião de enfeite, desvinculada do cotidiano, incapaz de criar bases morais e influir
diretamente no caráter dos homens. É preciso lembrar o que disse Carlinhos, quando de sua queda: “Eu
era um menino sem contato com o catecismo. Pouco sabia de rezas. E esta ausência perigosa da religião
não me levava a temer os pecados. Muito depois, esta miséria de sentimentos religiosos se refletiria em
toda a minha vida, como uma desgraca”(R,102).
Uma religiosidade mais baseada em crendices, do que em dogmas. Que dava espaço a outras crenças
populares, que conviviam juntas a fé crista, ou até mesmo a subpujando. O menino Carlinhos era
indiferente aos castigos do céu, os lobisomens faziam-lhe mais medo: “A minha religião não conhecia os
pecados e as penitências. O pavor do inferno, eu confundia com os castigos dos contos de
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Trancoso”(R,119). Histórias trazidas da África ou assimiladas dos índios, juntavam-se aos “medos”
portugueses: lobisomens, bicho papão, almas penadas, saci-pererê, papa-figo, etc.(F,372-373). A José
Cutia, personagem da infância de Carlinhos, chamavam de papa-figo: “Mas nós, quando o víamos passar
com as suas cestas de ovos, fugíamos da estrada com medo. Diziam também que ele comia fígado de
menino e que tomava banho com sangue de criança de peito. _Lá vem o papa-figo! _ era assim que
botavam a gente para correr de qualquer parte”(R,47). Também apareciam lobisomens no engenho, e se
contava os detalhes, havia gente que vira um homem virando bicho, gente que fora atacada pelo
lobisomem. Dele se dizia que bebia sangue de gente e de animais, um dia o “poldro coringa do meu avô
amanheceu (...) Com um talho minando sangue. O lobisomem andara de noite pelas estrebarias”(R,47).
Enquanto Deus era apenas uma idéia vaga, distante, o zumbi, que era a alma dos animais, o lobisomem, o
homem amarelo, o bicho-carrapatu, a cabra-cabriola, a caipora, a burra-de-padre existiam e criavam uma
vida real. Carlinhos diz do lobisomem: “Eu acreditava nele com mais convicção do que acreditava em
Deus”(R,46). Dos doidos se afirmava que alguns “o eram por influência do diabo. Metiam-se com
invocações, e o demônio tomava conta do corpo”(R,98). Os meninos de engenho eram educados através
dos medos, das aparições, e não através de moral. Carlinhos afirma ter acreditado em todas essas histórias:
“(...) e muitas vezes fui dormir com o susto destes bichos infernais. Na minha sensibilidade ia crescendo
este terror pelo desconhecido(...)”(R,47). E afirma que mesmo após do catecismo, já adulto, muita coisas
dessas crenças populares ficara por dentro de sua formação de homem(R,49).
A grande fonte de histórias para meninos, eram as negras ou amas-de-leite, que desde o berço
adormeciam os pequenos senhores com todos os tipos de histórias, misturando contos portugueses com
tradições africanas, adaptando-os muitas vezes a situação do Brasil. Na África há o akpalô que são
contistas profissionais: “O akpalô é uma instituição africana que floresceu no Brasil na pessoa de negras
velhas que só faziam contar histórias. Negras que andavam de engenho em engenho contando histórias às
outras pretas, amas dos meninos brancos”(F,374). Carlinhos recorda-se nitidamente da velha Totonha que
de vez em quando aparecia no engenho. “Ela vivia de contar histórias de Trancoso. Pequenina e toda
engelhada(...) Andava léguas e léguas a pé, de engenho a engenho, como uma edição viva das Mil e Uma
Noites. Que talento ela possuía para contar suas histórias, com um jeito admirável de falar em nome de
todos os personagens! Sem nem um dente na boca, e com uma voz que dava todos os tons às
palavras”(R,50). Ele lembra também como ela adaptava suas histórias tornando as assim mais próximas da
realidade dos meninos: “O que fazia a velha Totinha mais curiosa era a cor local que ela punha nos seus
descritivos. Quando ela queria pintar um reino era como se estivesse falando dum engenho fabuloso. Os
rios e as florestas por onde andavam seus personagens se pareciam muito com o Paraíba e a Mata do
Rolo. O seu Barba-Azul era um senhor de engenho de Pernambuco”(R,51). E assim essas histórias
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fantásticas, repletas de crenças populares, de fantasmas e africanismo acabavam tornando-se parte da


educação dos filhos dos senhores de engenho, e são até hoje no Brasil importantes elementos da cultura
popular e literária.

CONCLUSÃO

A quantidade de escravos desembarcados nos portos brasileiros, apartir do século XVI até o século XIX,
foi de aproximadamente 4.072.2003. Um contigente imenso, se comparado à quantidade de outros estrangeiros,
principalmente portugueses, que vieram para o Brasil. No entanto esses negros e os seus milhões de descendentes
foram a força escrava, a massa submissa, que deu sua vida nas enormes plantações dos engenhos, produzindo
riquezas e construindo, sob as chibatadas do capataz, a nova nação.
Uma nação que se construía não para eles, como se pode ver nesse trabalho, mas para os privilegiados, ou
seja, para os senhores de engenhos e seus filhos bacharéis. No entanto não se pode negar a enorme influência nos
costumes e na formação da cultura brasileira, nascida do contato do senhores com seus escravos. O papel
fundamental da escrava como geradora dos filhos que iriam constituir a população da nova terra.
Os paralelos entre a obra de Lins do Rego e de Gilberto Freyre, serviram para melhor iluminar aquela época
escravocrata de nossos avós, os muitos fatores que foram o germe da civilização brasileira atual. Eles foram um
dos primeiros intelectuais a refletirem e descreverem a situação dos primeiros brasileiros, a se preocuparem em
ver a origem, a raíz, do que hoje se chama brasilianidade. Nesse sentido, embora rebentos diretos de famílias
patrícias, foram também os pioneiros na tomada de consciência do sistema e seus erros primordiais. Quem sabe os
iniciadores de uma mudança, que ainda muito lenta, permitiu que hoje, 113 anos após a abolição, um neto de
escravos possa ter a possibilidade de analisar suas próprias raízes.

BIBLIOGRAFIA

REGO, José Lins do: Menino de Engenho. Livraria José Olympio Editora, Rio, 1977. 24. Edição..

FREYRE, Gilberto de Melo: Casa Grande & Senzala. Editora Universitária de Brasília, Brasília, 1963. 13.
Edição.

FREYRE, Gilberto de Melo: José Lins do Rego. Em: Diário de Pernambuco. 15 de setembro de 1957.
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RAMOS, Cristiano: Memória de Zé Lins. Em: Cult 47, Revista Brasileira de Literatura - Ano IV,
junho/2001. Lemos Editorial & Gráficos Ltda, São Paulo, 2001. P.18-20.

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