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REPRESENTAÇÃO DA FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO EM MENINO DE

ENGENHO, DOIDINHO E BANGUÊ, DE JOSÉ LINS DO REGO

Gizele Eishila Silva de Andrade


Orientador: Thiago da Câmara Figueiredo
Instituto Federal de educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

Resumo:

A formação do indivíduo se dá através da interação com diversos


fatores que influenciam o desenvolvimento de sua personalidade: aspectos
comportamentais e ideológicos e o contato com as instâncias sociais, como a
igreja, a família, a escola e o meio em que se vive. Na literatura, narrativas que
tratam da formação do personagem correspondem ao conceito de
Bildungsroman, romances de aprendizado ou de educação, em que há a
descrição e o acompanhamento do crescimento da criança ou adolescente até
sua fase adulta. Nessa proposta foram escolhidas três das obras de José Lins
do Rego: Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933) e Banguê (1934), que
complementam um ao outro, contando a história e o desenvolvimento do
personagem Carlos de Melo. Em Menino de Engenho, descobrem-se os
acontecimentos que levaram o garoto a ser criado pelo avô Zé Paulino, um dos
últimos senhores de engenho do Nordeste. Doidinho dá continuidade a
trajetória de Carlos, narrando a ida dele ao internato onde experimentará novas
experiências e aperfeiçoará suas antigas opiniões e conhecimentos,
resignificando a estrutura social do engenho, e até mesmo a figura de seu avô.
Banguê, o último livro sobre a vida de Carlos representa a transição da
juventude para a fase adulta ao focar no retorno dele da faculdade de Direito
para administrar o engenho herdado do avô. A trilogia permite ao analista
escrutinar a representação da formação do sujeito Carlos de Melo, estabelecer
relações com a biografia de José Lins do Rego e descortinar valores e
especificidades da sociedade canavieira. Para isso, serão utilizadas como base
conceitual as investigações teóricas de Freitag (1994), no que concerne a
Bildung, de Bakhtin (2011), a respeito do romance de formação, além da
autobiografia de José Lins do Rego (1956), que corresponde a Meus Verdes
Anos, e textos críticos dirigidos ao corpus deste estudo.

Introdução:

A representação da formação do indivíduo, se dá através do conceito


de Literatura de Formação ou Bildungsroman, que tem como característica
principal apresentar um protagonista em sua jornada da infância à maturidade,
em busca de crescimento espiritual, político, social, psicológico, físico ou moral.
A primeira obra considerada de aprendizagem e utilizada como ferramenta
para análise da trilogia de José Lins do Rego foi Os Anos de Aprendizado de
Wilhelm Meister (1796), do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe.
Bakhtin (2000) apresenta os tipos de romances que constituem o
romance de formação, que é o romance de viagens, o romance de provas, o
romance bibliográfico, o romance didático pedagógico e o romance de
formação ou educação.
“O herói, carente de traços particulares, é um ponto móvel no espaço”
(BAKHTIN, 2000, p.223). O personagem precisa estar em constante mudança
de cenários, pois é isso que possibilitará a interação com a diversidade, que
colaborará de forma mais eficiente para a sua formação.

“Os deslocamentos no espaço


possibilitam ao romancista mostrar e evidenciar a
diversidade estática do mundo através do espaço
e da sociedade (países, cidades, etnias, grupos
sociais, condições especificas de vida)”
(BAKHTIN, 2000, p.223).

Nesse estudo, irá ser analisado fatores que se destacam e colaboram


para a representação da formação do indivíduo Carlos de Melo, personagem
principal da trilogia. Para melhor compreensão, esses aspectos serão
destacados em subtemas ao longo do trabalho, como o livro que inicia a
história, a figura do avô, educação escolar e religiosa, as mudanças de
cenários e sexualidade. O objetivo é deixar evidente os quesitos que
contribuem para a formação e aprendizado do personagem, diante dos
acontecimentos, provas, costumes e contatos que constroem o caráter do
herói, de acordo com o desenvolvimento e crescimento, contando também com
o mundo em constante evolução.
Artigo:

Menino de engenho e as realidades descritas (1932)

Esse primeiro livro tende a apresentar um pouco da realidade nordestina e


seus problemas, como a transição dos engenhos para as usinas, a decadência
e falência dos engenhos, uma verdadeira passagem e transformação social.
No romance, o personagem Lula de Holando brevemente citado se torna uma
figura de grande importância pois representa o senhor de engenho decadente
que teima em manter a fachada aristocrática “ e o açúcar subia e descia – e o
santa fé sempre para trás, caminhando devagar para a morte, como um doente
que não tivesse dinheiro para a farmácia”, (REGO, 1933, p ). A obra também
deixa claro resquícios da escravidão ainda presentes. Pode-se analisar com a
figura da tia Sinhazinha, famosa pelo seu comportamento rude e autoritário:

“As pobres negras e os moleques sofriam dessa criatura


uma servidão dura e cruel. Ela criava sempre uma negrinha, que
dormia aos pés da sua cama, para judiar, para satisfazer os seus
prazeres brutais. Vivia a resmungar, a encontrar defeitos, poeira
nos móveis, furtos em coisas da despensa, para pretexto das
suas pancadas nas crias da casa” (REGO, 1932, p. 28).

Aparece também, a figura do Antônio Silvino que é muito interessante, pois


representa imagens que tratam de aspectos culturais locais, com a inclusão da
temática do cangaço, forte traço da região, um homem o qual todos temem
como pode-se observar no trecho:

“A casa toda ficou debaixo de pavor. O nome do cangaceiro era


o bastante para mudar o tom de uma conversa. Falava-se dele
baixinho, em cochicho, como se o vento pudesse levar as
palavras. Para os meninos, a presença de António Silvino era
como se fosse a de um rei das nossas histórias, que nos
marcasse uma visita” (REGO, 1932, p.32).

O livro descreve ainda um pouco da verdadeira realidade após a abolição:

“RESTAVA AINDA A SENZALA dos tempos do


cativeiro. Uns vinte quartos com os mesmos alpendres na frente.
As negras do meu avô, mesmo depois da abolição, ficaram
todas no engenho, não deixaram a rua, como elas chamavam a
senzala. E ali foram morrendo de velhas. Conheci umas quatro:
Maria Gorda, Generosa, Galdina e Romana. O meu avô
continuava a dar-lhes de comer e vestir. E elas a trabalharem de
graça, com a mesma alegria da escravidão. As duas filhas e
netas iam-lhes sucedendo na servidão, com o mesmo amor à
casa-grande e a mesma passividade de bons animais
domésticos” (REGO, 1932, p. 69).

Ivone Soares de Andrade, em seu artigo, com o tema "Casa Grande e Senzala
e Sua Influência em Menino de Engenho", que é o segundo capítulo de seu
Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), comenta um pouco sobre essa
realidade após a escravidão, concordando de certa forma, com a análise feita
nesse tópico.
O autor dedica o capítulo 22 a apresentar a vida da senzala pós-
abolição, das negras alforriadas que, na prática, não saíam da
condição de escravas, pois não tinham para onde ir,
continuavam com suas crenças e a procriar “livremente. (IVONE,
2010, p. 3).

Figura e papel do avô Zé Paulino:

O avô de Carlinhos, o coronel José Paulino, avulta na importância dominadora,


o senhor todo poderoso e admirado por todos, o dono de engenho com uma
imagem privilegiada na sociedade da época. O Zé Paulino era um grande
senhor de engenho, uma espécie de patriarca absoluto da região, como um
prefeito, administrava pessoalmente dando ordens e fazendo a justiça que
acreditava ser eficiente, imagem de homem bom e generoso, pois “o velho zé
paulino governava os seus engenhos com o coração. Nunca o vi com armas no
quarto. Umas carabinas que guardava no guarda roupa a gente brincava com
elas, de tão imprestáveis” (REGO, 1932, p.79). Ou seja, o coronel era
reconhecido e admirado, inclusive pelos seus funcionários, que viam nele uma
figura generosa por oferecer trabalho.
Vale ressaltar aspectos da mudança de imagem a respeito do avô na cabeça
de Carlos, que vai se degradando ou sendo reconstruída de acordo com os
novos aprendizados, quando entra no internato e volta ao engenho depois da
Faculdade. Ainda criança, Carlos via o coronel como um verdadeiro herói. A
valorização do avô continua evidente ao passar dos anos, e a ideia da
existência de alguém cheio de qualidades admiráveis para se espelhar, o avô,
para ele, era literalmente como uma figura insubstituível e superior: “Um santo
este meu avô, e ali com ele, na mesa do hotel eu lhe media o tamanho, a
superioridade sobre os outros. Que valia o pai do Pão-Duro, junto dele? ”
(REGO, 1933, p. 19). Na escola, em doidinho, ele teve a oportunidade de
presenciar diversas situações, porém continuando com a admiração
inicialmente, entretanto, com algumas imagens diferentes, como a percepção
da realidade sobre a autoridade.
Uma questão muito interessante era o mundo de Carlos como neto de um
senhor de engenho. Pode ser observado o quanto era acentuado essa questão
de Carlos ser neto do Coronel e o quanto exercia influência sobre a sociedade
no trecho em que ele relata quando muda de escola:
“Depois mandaram-me para a aula dum outro professor, com
outros meninos, todos de gente pobre. Havia para mim um
regime de exceção. Não brigavam comigo. Existia um copo
separado para eu beber água, e um tamborete de palhinha para
“o neto do coronel Zé Paulino”. Os outros meninos sentavam-se
em caixotes de gás. Lia-se a lição em voz alta. A tabuada era
cantada em coro, com os pés balançando, num ritmo que ainda
hoje tenho nos ouvidos. Nas sabatinas nunca levei um bolo, mas
quando acertava mandavam que desse nos meus competidores.
Eu sentia-me bem com todo esse regime de miséria. Os
meninos não me tinham raiva. Muitos deles eram de moradores
do engenho. Parece que ainda os vejo, com seus bauzinhos de
flandres, voltando a pé para casa, a olharem para mim, de bolsa
a tiracolo, na garupa do cavalo branco que me levava e trazia da
escola” (REGO, 1932, p.47).

Ou seja, também era considerado superior a filhos de outros senhores de


engenho, porque o Zé Paulino também era considerado superior a todos da
região, isso justifica todo o seu poder, autoridade e influencia na região. Agora
analisando a visão de Carlinhos sobre isso, de fato ele se torna cada vez mais,
uma pessoa que gosta de estar acima, de representar uma figura importante.
Isso vai fazer com que ele queira ser igual ao avô e esse vai passar a ser um
dos seus desejos.
A realidade é que o avô, possui um papel extremamente influenciador no
desenvolvimento de Carlos, uma figura presente na vida dele mesmo quando
esteve longe, no internato ou na faculdade e até mesmo após a sua morte.
Pois, até o "fim" Carlos permanece na tentativa de agir perfeitamente e
semelhantemente ao avô, que julgava tão pleno.

Educação escolar e religiosa:

Sobre instituições sociais como agentes socializadores e responsáveis por


influenciar o indivíduo temos a visão de Freitag:
“As instituições, longe de serem camisas de força constituem
uma moldura socialmente preestabelecida, no interior da qual o
educando tem um espaço de formação e circulação limitado,
mas suficientemente generoso para não ser asfixiado pelas
normas e exigências sociais” (FREITAG, 1994, p.11).
A primeira instituição escolar citada no primeiro livro é a casa do Dr. Figueiredo
que funcionava como uma escola, mais uma vez o menino se depara com algo
novo, e agora vai estar aumentando seus contatos com a escrita e leitura que
serão melhores desenvolvidos no internato que é apresentado no livro
Doidinho posterior ao Menino de Engenho. Inicialmente Carlos fica
empolgado, inclusive pelo tratamento diferenciado por ser neto do todo
poderoso Zé Paulino:
“Botaram-se para aprender as primeiras letras, em casa dum dr.
Figueiredo, que viera da capital passar um tempo na vila do
Pilar. Pela primeira vez eu ia ficar com gente estranha um dia
inteiro. Fui ali recebido com os agrados e as condescendências
que reservavam para o neto do prefeito da terra” (REGO, 1932,
p.46).

É nessa nova instituição, a escola, que pode-se observar o contato acentuado


com instituições religiosas, tal que antes, não existia já que não tinha muitas
referências, embora nem no engenho nem no internato tenha uma figura
religiosa para tomar como exemplo, o seu avô não era religioso “Eu era um
menino sem contato com o catecismo. Pouco sabia de rezas. E esta ausência
perigosa de religião não me levava a temer os pecados. ” (REGO, 1932, p.
116).
Tendo em vista as novas influencias em relação a educação religiosa,
observasse que o garoto vai adquirindo sentimentos de culpas, o que antes
não existia: “ Dormi com aquelas palavras nos ouvidos. Meninos que fedem à
distância, coração imundo”(REGO, 1933, p.). O diretor assim como o avô de
Carlos não era religioso, tinha relações com a igreja de forma superficial
visando vantagens políticas e econômicas, e no livro a superficialidade era
analisada pelo personagem. Ele, depois do contato com os ensinamentos
bíblicos passa a se julgar, assim como suas ações, pensamentos e decisões.
Os olhos de Carlinhos se abre para algumas realidades, chagando a comentar
algo muito interessante sobre a realidade da relação da pobreza com a religião,
e a proximidade ou distância causada pelo tipo de classe social a qual
pertence:

“Mas que pecados prevaleceriam diante de suas


misérias, de seus estômagos vazios, de seus corações
cândidos? Jesus Cristo amava os pobres, dizia a história
sagrada. Logo aquela gente toda seria a sua gente. Os que Ele
queria para companheiros de seu paraíso. Ali só havia pobreza.
Os ricos eram bons demais para a confissão. Não se pensa em
pecado com a barriga cheia. A fome é que nos traz essa vontade
de purificação” (REGO, 1933, p. 41).
O contato com a religião e os ensinamentos bíblicos faz com que ele questione
devido aos problemas e os desejos impulsivos em relação a sexualidade, como
se os ensinamentos bíblicos fossem de fato o correto e tudo que aprendera nos
seus anos de engenho o tornasse impuro e diz: “E nem o medo de Deus, que
estava em toda parte, me salvava das deleitações libidinosa. Limpava o corpo,
tirava p lodo do meu pescoço, embora ficasse de alma encardida” (REGO,
1933, p. 54). Ele de fato se culpa pelos comportamentos adquiridos e
enraizados, ninguém antes chegara para dizer que as práticas eram incorretas
porque Deus disse que era incorreto.
Depois do internato, não é dado muita atenção ao que diz respeito a uma figura
divina, Deus é citado, mostrando a influência dos ensinamentos que
permaneceram em seus pensamentos, fazendo parte de sua formação, mas
prossegue sem muita religiosidade.

Voltando as relações envolvendo a escola, no internato em Doidinho, a


realidade era bem diferente, existia a figura do Mestre e a submissão dos
educandos. Um retrato do cenário real das escolas da época em que se passa
a história.
Iranilson Buriti de Oliveira, em seu artigo com o tema "Infância e Cultura
Escolar na Obra Doidinho, de José Lins do Rego" , fala um pouco sobre esse
aspecto:
"Os educandos tinham seus corpos culturalmente fabricados
para obedecer, para calar, para engolir a seco o choro
provocado pelas palmatórias, pelos “bolos”, pelos castigos que
punham os “rebeldes” em quartos escuros sentados num
tamborete ou em cima de caroços de milho, porque chorar
convulsivamente era agredir aos ouvidos do seu mestre."
(BURITI, p. 4).

Doidinho, retrata justamente a chegada de Carlos no internato que é um


cenário responsável por desfazer diversas zonas de conforto. Esse é um
ambiente de aprendizados e reflexões, novos costumes e descostumes. Nesse
contexto, aparenta ser cabível citar um trecho do projeto de tese de doutorado
de Thiago da Camara Figueredo, com o tema "A literatura e o Processo de
Formação do Indivíduo: Análises de Romances do Século XVIII ao XXI.:
"O tema fundamental de Doidinho é mesmo a experiência inicial
de Carlos de Melo no Instituto Nossa Senhora do Carmo ou no
colégio do seu Maciel, como era mais bem conhecido o
internato. O romance retrata pouco menos do primeiro ano letivo
do garoto. Se o engenho está para a liberdade, a escola tem
valor inverso. Trata-se de um ambiente de opressão onde o neto
do coronel, desacostumado a obrigações e habituado aos mimos
da família e dos empregados, precisará forjar uma nova
identidade." (FIGUEREDO, 2016, p.51).
Seguindo a linha de raciocínio de Figueredo a respeito dos mementos de
Carlinhos na escola, é bastante interessante a afirmativa:
"Não é a ausência de regalias que incomoda o menino no
primeiro instante, e sim a frieza ou a seriedade da escola, a
disciplinar falta de afeto." (FIGUEREDO, 2016, p. 52).

Ideia essa que, entra em concordância com o estudo de BURITI sobre a


realidade dura dos internatos, retratada no livro, mas que, é um reflexo da
sociedade da época.
Carlos, em alguns momentos, toma os castigos como ferramentas eficazes em
sua evolução, quando diz: "O velho Marciel tinha razão. Em pouco tempo
adiantara-me bastante. O medo do bolo vencera o rude da d. Sinhazinha."
(REGO, 1933, p.27). Esse reconhecimento é uma ferramenta para seu
aprendizado. Avalia o que parece ser desagradável, como algo mesmo assim,
produtivo.

Sexualidade:

No engenho o convívio não era restrito, existia o contato com os empregados,


os filhos deles, os tios e primos etc. As negras do engenho, algumas que são
as primeiras figuras sexuais. As experiências sexuais se fizeram presente
relativamente cedo na vida de Carlos.
A prima Maria Clara, primeira namoradinha, a qual acreditava merecer todo o
respeito, é uma personagem que influencia nesse aspecto da vida do garoto.
Carlinhos desenvolve bastante o contato com a sexualidade, aos poucos se
descobrindo e são aspectos que influenciam muito no seu desenvolvimento. A
negra Luísa e Zefa Cajá, são as principais figuras sexuais: “Só pensava nos
meus retiros lúbricos com o meu anjo mau, nas masturbações gostosas com a
negra Luísa. E comecei a querer-lhe um bem esquisito. Um bem que me
arrastava ao rabo de sua saia para onde ela ia” (REGO, 1932, p.118). Além
disso, existe a frequente realidade levemente descrita no livro sobre o sexo
com animais envolvendo as crianças do engenho. No internado se apaixona
por Maria Luíza, que desperta nele outras sensações como a de parecer forte:
“Baixei a vista para não ver Maria Luíza. Passava a mão para a meia dúzia de
bolos sem uma lágrima. Não chorava pela primeira vez. O amor dera-me esta
coragem de leão” (REGO. 1933p. 33).

Já depois da faculdade quando volta ao engenho, conhece a Maria Alice, talvez


a paixão que mais mexeu com os sentimentos de Carlinhos. A Maria Alice, é
uma moça casada, por quem ele se apaixona de forma muito intensa: “Quando
abri os olhos estava apaixonado por Maria Alice. Porque só podia ser paixão
aquela inquietude toda que me invadia, se por acaso deixasse de vê-la.”
(REGO, 1934, p. 20).
No internato em sua adolescência tentava limitar suas práticas por causa dos
ensinamentos religiosos, agora ele faz isso com medo de desagradar a tão
querida Maria Alice “Se visse aquilo, que nojo teria Maria Alice? (...) Se Maria
Alice viesse a saber que o dr. Carlos, como ela me chamava, mantinha uma
amante de pés no chão, com a boca fedendo a cachimbo... (REGO, 1934, p.
14).

Mudança de cenário.

Bakhtin (2000) considera o romance de formação como sendo o que pela


primeira vez na história da literatura, realiza a historiarão do tempo, ou seja,
que representa um personagem envolvido nos problemas de seu momento
histórico, que se move em um cenário dinâmico numa dimensão temporal viva,
que constrói o seu caráter a partir das experiências de seu destino. Não se
trata de um herói finalizado, e sim de um herói em constante devir. Menino de
engenho inicia a história de um personagem que em análises se encaixa
nesses detalhes, a mudança de cenário é constante. Levando em conta que, a
sociedade em que está instalado está em transições, evoluções e mudanças,
assim como o garoto, que cresce e vira um adulto passando por diversos
agentes socializadores, muitos ambientes e acontecimentos, inclusive do
mundo em evolução que irá contribuir para o seu desenvolvimento e formação.
Após a morte da mãe, ele é levado ao engenho, aí está a primeira mudança, é
levado para um ambiente completamente diferente, com costumes particulares
e é nesse ambiente que irá desenvolver sentidos e pensamentos iniciais. O
mundo onde Carlos está não é inerte, ele está também em constante evolução.
E com o ambiente novo que é a ida ao internato, será possível avaliar um
pouco mais das consequências dessa mudança e sua existência. O mundo
para Carlinhos começa a ampliar-se, colaborando para que ele aperfeiçoe seus
antigos conceitos e sua visão de mundo, antes para ele existia apenas aquela
vida no engenho, onde passou tantos anos sem sair. A mudança de cenário
provocou essa ampliação, e ele vai refletir até sobre seus conceitos em
relação ao avô.
“Naquele tempo o Brasil para mim não existia. O meu
mundo, o meu país tinha os seus limites nos limites do
Santa Rosa. Que me importava o presidente da
República? Quem mandava em todos nós era velho Zé
Paulino. O povo do Pilar não lhe vinha fazer festas?
Levara-me certa vez o meu avô para a sua posse na
prefeitura” (REGO, 1933 p. 48).
“Agora no colégio eu já sabia de muita coisa. E quanto mais sabia, mais ia
vendo que o velho Zé Paulino não era tão grande como eu pensava. Era bem
pequeno o seu poder, comparado com o dos governadores e dos presidentes.
Uma ocasião chegou não sei quem com um jornal da Paraíba atacando meu
avô” (REGO, 1933, P. 48). Nesses trechos pode-se observar também um
pouco do coronelismo que fazia parte daquele ambiente, daquele mundo, que
era uma prática de cunho político-social, própria do meio rural e das pequenas
cidades do interior, que floresceu durante a Primeira República 1889-1930 e
que configura uma forma de mandonismo em que uma elite, encarnada
emblematicamente pelo proprietário rural, controla os meios de produção,
detendo o poder econômico, social e político local. Práticas que com o fim dos
engenhos vai sendo extinta.
O outro cenário vivenciado foram os anos na faculdade, acompanhada da volta
ao engenho que já não era mais o mesmo, a evolução das usinas, a
decadência dos engenhos, a luta do Santa Rosa para sobreviver em
decorrência dos dias de velhice de Zé Paulino.
O engenho tomava outros rumos o qual Carlos não aceitara. Por mais que
tenha tentado Carlos não se vê mais em condições de sobreviver no universo
de sua origem embora tivesse consciência que deveria representar manter os
valores da tradição. E tenta esclarecer a não aceitação do triunfo das usinas
que iam absorvendo os engenhos. Aliás é nesse tempo que vai existir uma
nossa classe, em que o mestiço que foi criado naquele ambiente em extinção
vira o nosso símbolo de poder e força.
As usinas agora tomavam conta da economia e quem trabalhava nos engenhos
aos poucos iam migrando, pois diziam que na usina eram mais bem pagos,
uma outra realidade já que no engenho era costume trabalhar por muito pouco
já que tinham onde morar e o que comer: “Em termos corteses, com as
deferências de correspondência comercial, ele prevenia que não podia aceitar
a minha proposta, porque a usina lhe oferecera melhores condições” (REGO,
1934, p. 130). “A usina tinha terras dez vezes mais que o Santa Rosa,
seiscentos sacos por dia. Em dois dias uma safra de ano do meu engenho”
(REGO, 1934, p. 133). A diferença de desempenho era grande, o real fim da
vida dos engenhos. “A usina comia um por um os engenhos” (REGO, 1934, p.
133).
Ele se sente uma pessoa mais madura, diz que, com tantos anos fora, o
engenho se tornara muito pequeno. “O mundo crescera tanto para mim que o
Santa Rosa se reduzira a um quase nada. Vinte e quatro anos, homem, senhor
do meu destino” (REGO, 1934, p. 1). No final, Carlos aparenta querer
autonomia, se desfaz do engenho, depois de ter lutado para manter o Santa
Rosa, e ter tentado administrar como o Zé Paulino, ele acaba vendendo o
engenho para o tio que tanto queria as terras.
A admiração pelo avô começou quando criança, continuou em sua
adolescência, assim como na fase adulta. “Não fora o engenho que fizera
grande o meu avô. Ele é quem fizera grande o engenho” (REGO, 1934, p. 24).

Carlos passou por etapas em sua vida que contribuíram para torna-lo o que é.
Um menino de engenho, Carlinhos, Doidinho, Carlos de Melo e Dr. Carlos. A
formação desse personagem está representada nessa espetacular trilogia de
José Lins do Rego, que em análises não é possível separar ou dividir as obras
sem formar uma lacuna na história de Carlos de Melo.

Referências Bibliográficas:

REGO, Menino de engenho, 80º ed. Rio de Janeiro, JOSÉ OLYMPIO, 1932, 160p.

REGO, Doidinho, 37º ed. Rio de Janeiro, JOSÉ OLYMPIO, 1933, 141p.

REGO, Banguê, 23º ed. Rio de Janeiro, JOSÉ OLYMPIO, 1934, 235p.

FREITAG, O Indivíduo em Formação, 30 ed. São Paulo, CORTEZ, 1994, 112p.

BAKTIN, Estética da Criação Verbal, 2º ed. São Paulo, MARTINS FONTES, 2000, 414p.
FIGUEREDO, A literatura e o Processo de Formação do Indivíduo: Análises de Romances do
Século XVIII ao XXI , 2016.

IVONE, Casa Grande e Senzala e Sua Influência em Menino de Engenho, 2010.

BURITI, Infância e Cultura Escolar na Obra Doidinho, de José Lins do Rego

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