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Paulo Prado e Gilberto Freyre brindaram esta excitação sexual sem freios com
páginas ensaísticas, bonitas e sugestivas ainda hoje. Mas, conforme fomos
ganhando maturidade científica, acostumamo-nos também a desbastar
conotações ideológicas subjacentes às formulações cativantes destes autores.
Em Prado, nota-se a presença de teorias racistas, a preocupação com os rumos
do Brasil já nação, o temor de que, na melhor das hipóteses, isto aqui se tornasse
um grande Portugal - e nunca uma civilização moderna e progressista, nos
moldes europeus e conforme aos anseios da elite cafeeira paulista do primeiro
quartel do século. Em Freyre, discípulo de Boas e educado à luz da diferenciação
entre raça e cultura, pode-se ir mais longe e rastrear análises sofisticadas. De
coito em coito, o colonizador português minorava os efeitos negativos do ralo
contingente populacional metropolitano e gerava habitantes necessários à
ocupação do solo e à produção de riquezas, abandonando-se à "vibração
erótica", à "tensão procriadora que Portugal precisou de manter na sua época
intensa de imperialismo colonizador".' Polígamo, a brancarrona gorda vagando
ciumenta pela casa-grande, as negras e mulatas dengosas parindo bastardinhos
na senzala, reinventava em terras brasileiras o modo de vida dos ancestrais
mouros, manifestado também no amor pela terra - "agrarismo mouro" -, pelos
pomares bem plantados, pelas nascentes e córregos onde os ecos do imaginário
muçulmano impeliam-no a procurar a "moura encantada".
Prado e Freyre foram pioneiros na utilização que fizeram das Visitações do Santo
Ofício ao Brasil; o primeiro, inclusive, arcou com a publicação das Denunciações
da Bahia e de Pernambuco, que integram a Primeira Visitação. Deixaram-se
enredar pelo fascínio do relato, onde, a cada página, pulsam práticas
condenadas pela Igreja como pecaminosas, heréticas, desviantes. Não se
preocuparam em compreender as Visitações como parte integrante de
determinado momento histórico, nem se debruçaram com cuidado sobre o
universo mental em que se engastavam os hábitos sexuais ali descritos. Des-
cuidaram do caráter específico e captaram do documento os traços necessários
à montagem de uma explicação geral, ensaística, de que sobrenadava -
principalmente em Prado - o caráter nacional de nosso povo. No historiador
paulista, faltou percepção antropológica e, sobrou desencanto: a visão
pessimista da formação social cimentada pelo vício e pelo pecado endossa a
ótica reprobatória do Santo Ofício, e Paulo Prado não faz a ultrapassagem do
discurso inquisitorial. Em Freyre, a frouxidão dos costumes descritos pelos autos
da Visitação integrou a análise pioneira da sociedade escravista colonial; as
observações assistematicas sobre sexualidade e religiosidade popular, apesar
de iluminadas, são antes credoras de intuição genial do que de um estudo mais
detido. Hoje, ao falar da vida sexual na colônia, é obrigatório reportar-se ao autor
de Casa Grande & Senzala; mas ele ficou sobretudo como o que primeiro tratou
do assunto, mostrou sua importância sem, entretanto, dar conta de sua
complexidade.
Não cabe no âmbito deste artigo discutir as relações entre o Concílio de Trento
e as Visitações Inquisitoriais: elas parecem ter passado ao largo das
deliberações romanas, já que a prática tridentina demorou certo tempo até se
voltar para o mundo ultramarino que, no último decênio do século XVI, já recebia
visitas de inquisidores metropolitanos. De qualquer forma, o olho vigilante e a
violência do Santo Ofício português ajudaram a transformar o homem moderno
no "animal confessante", a "bête d'aveu" de que fala Michel Foucault e que,
segundo este autor, tanto deveu à moral católica instaurada a partir do Concílio.
O temor difuso e onipresente suscitado pela terrível instituição fazia de fato com
que nunca se estivesse só no leito conjugal ou no ato amoroso. Práticas menos
usuais, prazeres exacerbados, pequenos caprichos comuns nos jogos do amor
podiam chegar aos ouvidos dos familiares e dos inquisidores, que, então,
intimavam o acusado a um interrogatório. Era comum, nestes, lançar mão de
recursos que atiçavam a memória dos infelizes acusados, obrigando-os a
resgatar atos que haviam se perdido no tempo e acabavam sendo lembrados
ante o impacto das intimidações e a possibilidade sempre presente da tortura.
Em 1594, quando andou em Pernambuco, a Visitação do Santo Ofício arrancou
de Ana Seixas um depoimento singelo e comovente: amedrontada, confessou
ter tido duas relações anais com o marido, num período de 14 anos; pediu
perdão, disse ter cedido às suas insistências e, desta forma, procurado agradá-
lo, pois era "bem casada em amor e amizade com o dito seu marido". Este
também depôs, solidário: "os ditos pecados fez na dita sua mulher contra
vontade dela, a qual, com medo dele, consentiu".
Coitos anais não geravam filhos. Na sua simplicidade, Ana Seixas parecia estar
alerta a esta questão delicada, pois teve o cuidado de completar que, após
penetra-la assim, retro ou more canino, o marido entretanto ejaculou no seu vaso
natural. Em outras palavras: não se evitaram filhos.
Assim, para São Jerônimo, o marido que desejasse a esposa com tal ardor que,
não fosse ela, sua esposa a desejaria da mesma forma, cometia pecado
gravíssimo. Este santo que a iconografia renascentista, fixou na sua rejeição à
vida, sempre escrevendo, crânio de caveira ao lado, desprezava o casamento e
o considerava um estado inferior. Santo Agostinho, por sua vez, valorizava o
matrimônio, entendendo-o como obra de, procriação desejada por Deus, pela
natureza e em muito superior ao mero encontro carnal; era o remédio de Deus
contra a impudicícia e a concupiscência: só dentro do casamento, e visando a
procriação, é que o sexo era tolerado.
Era esta imagem, cara a Santo Agostinho, que Ana Seixas procurava
desenterrar dos escombros do prazer pelo prazer: afinal, o coito terminara com
derramamento de esperma na vagina, cumprindo a função que dele se esperava.
Justificando seus coitos com os propósitos curativos que dizia ser capaz de
obter, frei Luís resgatava ainda do universo popular á identificação entre o ato
sexual e o ritual eucarístico. No final do século XVI, Paula Sequeira dizia "as
palavras da consagração da missa com que consagram a hóstia na boca do dito
seu marido quando ele dormisse e que ele amansaria e poria toda a sua afeição
nela". Numa época em que amor e casamento eram freqüentemente
dissociados, é cabível que as esposas lutassem para obter o amor dos próprios
cônjuges. Na mesma época, Guiomar de Oliveira também conhecia esta prática,
que incluía ainda palavras latinas e se destinava a fazer "endoidecer de amor e
bem-querer o homem a quem se destinava".
Era portanto uma ética cristã que legitimava amor e sexualidade no Brasil-
colônia, manifestando-se tanto na vertente culta na popular. A documentação
inquisitorial constitui lugar privilegiado para a observação do cruzamento entre
estes dois níveis, e lança luz sobre o modo de constituição do universo popular,
relegado quase sempre - inclusive pelos historiadores franceses citados neste
artigo - a segundo plano." No encaminhamento das questões feitas aos
interrogados, evidencia-se a presença desta ética cristã; mas ela pulsa também
nas respostas, mostrando-se constitutiva do universo mental dos colonos. Podia
ficar adormecida sob o apelo de prazeres heterodoxos, mas aflorava ante o
medo despertado pelas Visitações. De forma mais transparente nos argumentos
de Ana Seixas, nas confissões de Guiomar de Oliveira e de Paula Sequeira; mais
embaralhada nas práticas sincréticas da Nóbrega, de Maria Joana, de frei Luiz.
A sexualidade específica da colônia não se traduzia simplesmente num
desregramento sem peias: isolado, este não explica nada. Há que atentar - como
fez Gilberto Freyre de forma pioneira - para os traços próprios de uma formação
social escravista, onde senhores subjugavam escravos, montavam neles como
o menino Brás Cubas; extorquiam carícias e prazeres. Mas há que considerar
ainda as - matrizes européias que, aqui, muitas vezes se recombinavam e
revelavam as diferentes fórmulas de cópula possíveis entre o popular e o erudito,
lançando luz, simultaneamente, sobre a problemática do Velho Mundo e do
Novo. Também os hábitos sexuais europeus poderiam parecer excessivos, à
mercê de lubricidades desenfreadas e de libidos mórbidas: D. João V, suas
monjas e toda uma plêiade de nobres portugueses freiráticos; o hábito francês
de recorrer ao Parlamento de Paris para examinar os casos de impotência
masculina, atentamente acompanhados por testemunhas oculares e celebrados
em pasquins; os excessos e obsessões olfativas de Henrique de Navarra e até
mesmo a obstinação do astrólogo inglês Simon Forman que, cinqüentão,
mantinha relação sexuais com a própria esposa uma vez a cada três dias da
semana." O que pensaria dele o persa de Montesquieu?