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DON
TEREZO
CRISTINO
(há no chão uma longa estrada de ferro/desenho de estrada de ferro. a plateia está disposta em duas
fileiras paralelas ao trilho, formando um corredor. os atores devem transitar somente pelo perímetro
da ferrovia. don está de pé no centro, terezo está sentado à sua direita e cristino deitado à sua
esquerda. ouve-se o apito do trem e o sinal ferroviário.)
DON – Parado, em pé, na ferrovia Nossa Senhora da Boa Morte, espantando mosquito, piscando
debaixo da luz doida de um poste que não se decide.
TEREZO – Sentado na linha ferroviária, quase passando frio, sentido cheiro de grama, ouvindo o rugido
da máquina que nunca chega.
CRISTINO – Amarrado no trilho do trem, igual um cartum prestes a ser esmagado. Amarelo de medo.
DON – Do nada o meu relógio fica maior que a minha cabeça e eu só sei contar de um até sessenta.
CRISTINO – NÃO! Não é assim que se conta, porque entre o um e o dois tem uns sessenta uns, e entre
o dois e o três tem mais sessenta e os espaço entre os ponteiros do relógio ficam cada vez mais
apertadinhos, porque de quando em quando eu descubro que são mais sessentas e sessentas e
sessentas...
TEREZO – Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez!
(pausa)
DON – Parado, em pé, na ferrovia Nossa Senhora da Boa Morte, espantando mosquito, piscando
debaixo da luz doida de um poste que não se decide.
TEREZO – Sentado na linha ferroviária, quase passando frio, sentido cheiro de grama, ouvindo o rugido
da máquina que nunca chega.
CRISTINO – Amarrado no trilho do trem, igual um cartum prestes a ser esmagado. Amarelo de medo.
DON – Aconteceu mais ou menos assim...
TEREZO – Quer ajuda para sair daí? Tenho um compromisso com o trem.
CRISTINO – Pois eu também, agorinha mesmo tinha acabado de me conformar com a ideia da morte.
DON – Querem ajuda para sair daí? Tenho um compromisso com o trem.
TEREZO – Pois eu também. Já faz muito tempo que eu me conformei com a ideia da morte...
CRISTINO – Não! Não é assim que se conta, porque entre o um e o dois tem uns sessenta uns, e entre
o dois e o três tem mais sessenta e os espaço entre os ponteiros do relógio ficam cada vez mais
apertadinhos, porque de quando em quando eu descubro que são mais sessentas e sessentas e
sessentas...
DON – Mas não tem lado, só tem frente. Um trem só anda em linha reta.
DON – Embaixo?
TEREZO – Sim.
TEREZO – Sim.
DON – Mas então você não vai a lugar algum, quem vai é o trem.
TEREZO – O trem chega independentemente da minha escolha, mas ele só passa por cima de mim se
no momento exato eu escolher estar no lugar exato, para algum lugar eu vou.
TEREZO – Dentro?
TEREZO – Um trem inteiro é grande demais para mim. Prefiro espaços apertados. Tipo o espaço entre
as rodas e o trilho, cabe direitinho eu e todas as minhas vontades. E você? Vai para onde?
TEREZO – Mas para fora não é lugar. Só é lugar se você tiver embaixo, encima, do lado ou para dentro.
DON – Para quem foge, pouco importa o lugar para onde o trem vai. O que importa é de onde ele está
saindo.
CRISTINO – Onze, doze, treze, catorze, quinze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove, vinte!
DON – Parado, em pé, na ferrovia Nossa Senhora da Boa Morte, espantando mosquito, piscando
debaixo da luz doida de um poste que não se decide.
TEREZO – Sentado na linha ferroviária, quase passando frio, sentido cheiro de grama, ouvindo o rugido
da máquina que nunca chega.
CRISTINO – Amarrado no trilho do trem, igual um cartum prestes a ser esmagado. Amarelo de medo.
CRISTINO – Quando acordei já estava assim desse jeito. Amarrado. Ontem mesmo eu sonhei com um
anjo que me puxava da cama até o trilho.
TEREZO – Deve ter sido o seu ex-marido. Sabem como eles são: os ex-maridos. Vez em quando dá
uma dessas na veneta e não tem quem segure. Deve ter ficado magoado e quis se vingar.
CRISTINO – Foi, foi ele sim. Ele me ligou ontem a noite, mas eu não atendi. Aí ele veio lá em casa e me
arrastou até o trilho do trem. Engraçado. Ele não sabia dar nó nem em gravata. Os seus cadarços era
eu que amarrava.
TEREZO – Que coisa mais ridícula um homem crescido que não sabe dar nó em cadarço.
CRISTINO – Ele era um crianção, foi por isso que nos separamos.
DON – Mas ele era um homem bom, não ia fazer uma coisa dessas.
DON – Vinte e um, vinte e dois, vinte e três, vinte e quatro, vinte e cinco...
CRISTINO – Não! Não é assim que se conta, porque entre o um e o dois tem uns sessenta uns, e entre
o dois e o três tem mais sessenta e os espaço entre os ponteiros do relógio ficam cada vez mais
apertadinhos, porquê de quando em quando eu descubro que são mais sessentas e sessentas e
sessentas...
TEREZO – Me arrisco a dizer que tudo deu errado, minha vida todinha é um acúmulo de fracassos.
Acordar todo dia é um fracasso. Levantar da cama é um fracasso.
(as repetições quase beiram a sobreposição, mas ainda pode-se ouvir nitidamente o que cada um fala)
CRISTINO – Vinte e seis, vinte e sete, vinte e oito, vinte e nove, trinta!
(pausa)
DON – E só por isso merece morrer? Eu é que não vou virar cúmplice de um suicídio duplo.
TEREZO – Vinte e seis, vinte e sete, vinte e oito, vinte e nove, trinta!
CRISTINO – Não! Não é assim que se conta, porque entre o um e o dois tem mais sessentas e sessentas
e sessentas e sessentas...
CRISTINO – Nem o tempo passa. Se não passa o tempo o trem não passa.
CRISTINO – Pode.
TEREZO – Subi num trem e levei um jogo de facas, dez quilos de cocaína, três galões de cloro ativo,
um carregamento de explosivos, dois tigres de bengala, uma banheira cheia de água e uma torradeira
elétrica.
CRISTINO – Pode.
TEREZO – Trinta e um, trinta e um, trinta e um, trinta e dois, trinta e três, trinta e um.
CRISTINO – Ele é igualzinho a mim. Só que não fala. Ele nunca me abandonou. Está por todos os cantos.
Esperando pelo momento exato em que eu fechar os olhos.
CRISTINO – Debaixo da cama. Atrás do roupeiro. Entre os tijolos e a tinta da parede. Dentro da
cafeteira. Do outro lado do espelho. Ele não para de me olhar sem dizer nada. Se eu morrer eu sei que
foi ele.
TEREZO – Acha que ele vai gritar quando o trem passar por cima dele.
DON – Quando o trem passar por cima dele ou quando o trem passar por cima de você?
CRISTINO – Um mesmo trem não pode matar três pessoas numa viagém só.
DON – Um mesmo trem também não pode levar embora um viajante se deixar para trás uma maçaroca
de carne.
CRISTINO – É preciso ser um viajante para subir no trem. Para estar debaixo dele pode ser qualquer
um mesmo.
DON – Então quer dizer que um mesmo trem pode sim matar três pessoas numa viagem só.
TEREZO – Quarenta!
DON – Debaixo do trem.
CRISTINO – Hoje quem faz aniversário são os fantasmas da ferrovia Nossa Senhora da Boa Morte.
Figuras completamente anônimas no legado de nossa pequena cidade que foram espatifadas para
baixo do trem e ninguém nunca deu falta.
TEREZO – Jamais esqueceremos os seus nomes, porque nunca foram sabidos. Vítimas de um
acidente-múltiplo, possível suicídio-doloso e provável homicídio-triplo. Sua carniça foi levada pelo
trem e atravessou inúmeras cidades adiante. Deu a volta ao mundo, desceu na estação seguinte,
trocou de plataforma, voou de balão, pegou ônibus, balsa, carro de boi, apenas para voltar andando
para a cidade só para serem enterrados debaixo da ponte com todos os outros indigentes.
CRISTINO – Três minutos de silêncio para esses pobres fantasmas, os pastorinhos poltergeists self-
martirizados da cidade.
TEREZO – Amém.
TEREZO – Quarenta e um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove.
CRISTINO – NÃO! Não é assim que se conta, porque entre o um e o dois e o três e o quatro e o cinco e
o seis tem mais sessenta e sessenta e sessenta e sessenta...
DON – Meu primeiro presente de criança foi um par de tênis de corrida. Deve ter tido outros, mas o
primeiro que eu lembro foi esse.
TEREZO – Que presente mais sem cabimento, um par de tênis de corrida para uma criança.
DON – Mas eu lembro de não ter reclamado. Lembro do meu pézinho de criança sendo engolido por
aquele calçado que era quase maior do que eu.
DON – Todas as minhas decisões estão psicanaliticamente justificadas nesse par de tênis de corridas.
Não aceito entrar num tribunal se não estiver calçando eles.
TEREZO – Deixou para trás um cargo na repartição pública.
DON – Esses dias eu comprei uma esteira, ela não me levou a lugar nenhum.
DON – Uma vez passei por todos os terminais de ônibus da cidade, só para ter para onde ir. Eu sei
cada linha de ônibus dessa cidade. Todos os horários de partida e de chegada.
DON – Tem que haver critério. Veículos de grande porte quase nunca não são uma má ideia.
CRISTINO – Cinquenta!
DON – Parado, em pé, na ferrovia Nossa Senhora da Boa Morte, espantando mosquito, piscando
debaixo da luz doida de um poste que não se decide.
TEREZO – Sentado na linha ferroviária, quase passando frio, sentido cheiro de grama, ouvindo o rugido
da máquina que nunca chega.
CRISTINO – Amarrado no trilho do trem, igual um cartum prestes a ser esmagado. Amarelo de medo.
TEREZO – Me encolho até ficar pequenininho à medida que o rúgido férreo se aproxima de mim.
CRISTINO – O lugar mais seguro do mundo é amarrado nos trilhos de um trem. Aqui eu posso fechar
os olhos sem ter medo de nada.
TEREZO – Cinquenta e um, cinquenta e dois, cinquenta e três, cinquenta e quatro, cinquenta e cinco,
cinquenta e seis, cinquenta e sete, cinquenta e oito, cinquenta e nove...
(pausa)
TEREZO – Ajoelhado na estrada de ferro, rezando uma Ave Maria, gemendo, chorando, sentindo frio
de verdade.
CRISTINO – O barulho chega, mas chega sozinho e vai embora. Sem mais nenhum vagão para
acompanhar.
CRISTINO – Eu.
DON – Eu.
FIM.