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HEROÍNA SOLITÁRIA.

de Camilo Pellegrini

ELIZABETH, solitária em sua cápsula espacial, luta desajeitada contra um gravador.

ELIZABETH - Como é que funciona essa porcaria?... Nessas horas é que um homem faz
tanta falta...

ELA consegue apertar o botão para gravar.

ELIZABETH - Um, dois, três, testando... Alô... Alô...

ELA aperta outro botão e ouve sua voz em OFF

ELIZABETH (OFF) - Um, dois, três, testando... Alô... Alô...

ELIZABETH - Graças a Deus! Vamos lá.

ELA aperta de novo o botão de gravar.

ELIZABETH – (INFORMATIVA) Aqui quem fala é Elizabeth, são quatro e trinta da ma-
nhã, horário de Brasília, do dia nove de junho de 3008, se você estiver ouvindo isso prova-
velmente já estarei morta. Na verdade sei que orelhas terráqueas não podem mais me escu-
tar, (SONHADORA) sabe lá como reagirão outras formas de vida ao ouvirem os ruídos
incompreensíveis desse meu desabafo. Mesmo assim, prossigo. (SECA) Como descrever a
solidão devastadora que sinto, anulada, perdida nessa cápsula de sobrevivência? (SAU-
DOSA) Tudo começou com um acampamento aparentemente inofensivo. Cabanas à beira
de um belíssimo lago. Fomos eu e minhas queridas amigas, a Tina, a Âmber, e também o
Charles, um carinha que eu estava paquerando. (DESILUDIDA) Qual não foi minha sur-
presa ao encontrar Âmber no banheiro do acampamento com um machado cravado na tes-
ta. Tina tomou uma flechada nas costas e seu corpo foi atirado pela janela cabana adentro a
fim de me aterrorizar. Charles estava fincado do lado de fora da porta, seus belos olhos
azuis não estavam mais lá. (TENSA) Logo me vi sem ninguém, meu primeiro grande mo-
mento de solidão, sendo atacada brutalmente por um assassino mascarado que se recusava
a morrer. (AFLITA) Facas voavam em minha direção, espetos, peixeiras, arpões, lâminas
mil. (MAIS CALMA) Que triste a ilusão da vitória quando consegui cortar a cabeça do
implacável matador com uma serra elétrica. Voltei depressa ao Rio de Janeiro, desampara-
da, meus melhores amigos tinham ficado pra trás. Me deparei com minha querida cidade
infestada por pernilongos mutantes, gigantescos aedes-aegipty, tão temidos no milênio
passado ainda pequeninos, agora do tamanho de mamutes graças ao eterno descaso das
autoridades. Papai morreu empalado no ferrão de uma dessas odiosas criaturas. Minha
irmã sofreu apenas um arranhão, mas depois de cinco minutos faleceu tomada por uma
dengue alucinante. Mamãe se afogou no naufrágio da balsa tentando escapar pra Niterói.
Decidi fugir pra São Paulo, dizem que também votam mal por lá, mas parecia não ter tanto
mosquito. Tinham acabado de lançar no mercado um estranho hidratante prometendo eli-
minar toda ruga. Só que madames saiam do shopping onde haviam experimentado o tal
cosmético transformadas em zumbis. Na condição de morto-vivas, só podiam se alimentar
de cachorro-quente ou cérebro humano. Em poucas horas acabou o estoque de salsichas e
as macabras caíram sedentas nos miolos da escassa população que não fora contaminada.
Roubei um lança-chamas numa loja de artigos de segunda mão e taquei fogo nas paulistas,
defendendo minha vida daquelas dentadas o quanto pude. Na última das barricadas, co-
nheci Plínio. (SAUDOSA) Um homem de encher os olhos. Quarenta anos ou mais, um
pouco grisalho, braços fortes. Salvou minha vida três vezes. Ele me jogou pra dentro de
sua picape vermelha e tocamos pra Brasília enquanto nosso companheiros eram dizimados.
(TORCE O NARIZ) Brasília já não era mais aquela ensolarada capital. Uma nuvem negra
se instalou pela cidade toda, lá nunca mais foi dia. As ruas rapidamente se povoaram de
vampiros. (TRISTE) Um deles me levou Plínio. O outro me fudeu a picape. Rasgou os
pneus com suas unhas postiças. Um terceiro me arrancou as roupas enquanto tentava me
morder. Lá estava eu correndo nua pela Praça dos Três Poderes sendo caçada por vampiros
de terno. (REVELA) Corri pra lá porque sabia que o prato em cima do Congresso Nacio-
nal não era só uma piração do Niemeyer. (VITORIOSA) Aquela calota monumental era
uma nave espacial secreta, Plínio havia me contado! Foi pra lá que eu fui, na ânsia de sal-
var minha pele! (CONFIANTE) Era fato, o planeta Terra estava com os dias contados.
Consegui embarcar, outros seis tripulantes me esperavam lá, escondidos dos sanguessugas,
mas nenhum deles sabia pilotar a nave. Plínio havia me dado um manual de instruções sujo
de sangue. (ETÉREA) Decolamos dali e minutos depois vimos nossa querida Terra se es-
facelar num jato de luz. (SEGREDA) Olhei para o mais jeitosinho da tripulação e fui logo
dar em cima. Éramos nós sete os últimos seres humanos e eu não pretendia ficar pra titia.
O nome dele era Mauricio. Até que não era de se jogar fora, um sorriso bonito, sabe?
(EXAUSTA) Mas ele encontrou um grande ovo gosmento na fuselagem da nave, de lá
saíram tentáculos que se colaram em seu rosto. (SINISTRA) Conseguimos desgrudar
aquela nojeira da cara dele mas já não era mais o mesmo Maurício de antes. Horas depois
uma lagartixa cabeçuda surgiu de seu tórax espatifando suas costelas. (IMERSA EM SUA
DOR) Enquanto o monstrinho fugia de nós pude ver o coração de Maurício parando de
bater por mim. Pra nosso assombro, o bichinho esquisito cresceu e foi matando os outros
tripulantes um a um. Quando fiquei sozinha com o alien, abri a porta da nave. O vácuo fez
o serviço, arrancou dali pra fora os corpos de Maurício e dos outros, os ímãs da geladeira e
o monstro assassino também, e com isso tudo também minhas esperanças foram ejetadas.
(APOCALÍPTICA) Agora estamos sós, eu e meus óvulos. A última mulher, fugida da
Terra extinta. (PAUSA) É isso. (PAUSA) Eu só queria deixar aqui registrado. (PAUSA)
Então tá. (PAUSA) Como é que se desliga isso?

ELIZABETH aperta um botão.

ELIZABETH – E agora pra ouvir? Como era mesmo?

ELIZABETH tenta alguns botões sem sucesso.

ELIZABETH – Por que não vai, meu Deus? O que aconteceu? Puta merda, será que não
gravou? Nessas horas é que um homem faz falta.

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