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ESCRAVO DE QUEM?

Monólogo para Raimário Panta!


Chico Nascimento Magonleji
Ibirapitanga-Bahia, março, 2022.

Sinopse

Um homem preto, contemporâneo, preso em teias de “aranha”, (Armadilhas sociais do


conglomerado histórico, social e cultural contextualizado nas comunidades
escravizadas de qualquer tempo) debate-se, luta e grita o seu canto de liberdade, em
momentos de encanto e alucinação, conversa com a sua sobra, recita poemas e debate o
seu estado de ser, estar, viver e compreender a realidade, nunca, aceitar!

Personagem
Benkos Biohó

Inspiração

Benkos Biohó! O fundador do primeiro Quilombo (Palenque) das Américas.


Sua história começa no Arquipélago dos Bijagós, atual Guiné-Bissau. A presença de
escravagistas no arquipélago levou ao aprisionamento da família inteira de Benkos em
1596.
A terra dos negros liderados por Benkos ficou conhecida como Arcabuco, que quer
dizer “lugar de arvoredos intrincados” – mata fechada e, por isso mesmo, difícil de
invadir. Sem saber como derrotar os maroons, o termo para negros foragidos, o
governador de Cartagena, Gerônimo de Suazo e Casasola ofereceu um tratado de paz
em 18 de julho de 1605 – que autorizava os habitantes a circular pela cidade.
O tratado foi violado em 1619, quando, andando desprotegido, Biohó foi surpreendido
próximo à Muralha de Cartagena e aprisionado. Em 1621, Benkos foi enforcado – mas
a localização estratégica do quilombo seguiu protegendo seu legado. Com o
crescimento contínuo do quilombo, a coroa espanhola voltou a ceder, emitindo um
decreto real no ano de 1691 que fundava, oficialmente, o Palenque de San Basílio.
Desde 2005, ele é considerado Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Unesco. E
foi ali que os libertos de Benkos tornaram-se o primeiro povo negro livre das Américas.

https://super.abril.com.br/especiais/os-herois-desconhecidos-da-escravidao/

Cenário e objetos cênicos

Uma sala escura, com uma teia de aranha gigante feita em tiras de tecidos coloridos
resistente e corda de sisal. Uma elevação média de madeira (40 Cm), uma escada de
abrir com 3 degraus e uma sela sobre a escada, algumas tiras de tecido dependuradas do
teto, uma garrafa plástica com água, um tecido colorido preso na teia.

Iluminação cênica

3 Pinos verticais de luz branca, posicionados em vértices de um triângulo equilátero


(teto); dois pontos laterais de luz vermelha, dois pontos laterais de luz amarela, um
ponto frontal de luz azul, três pontos de luz branca no chão.
Abertura (4minutos)

Música instrumental percussiva, Benkos faz movimentos performáticos como se


quisesse se libertar da teia, cansa e dobra o corpo sobre a elevação de madeira.

Cena única

Benkos – (Erguendo o corpo do elevado de madeira, ri) Eles acreditam que


conseguiram me deter! Eu sou Benkos Biohó! Sou a minha própria história insubmissa,
fui rastreado pelo cheiro fétido do racismo, finquei a minha vida no desespero dos
escravocratas, nunca entreguei o meu corpo nem a minha alma, sou filho da liberdade,
eu escrevo a minha história, eu produzo o alimento da minha liberdade, o sonho!
(Grita) Guiné Bissau! Guiné Bissau! Bijagós... Bijagós! A terra que pariu a minha alma
é livre, o torrão que rasgou o tratado do meu domínio acelera as batidas do meu coração,
a terra que não chora, eu não choro, os meus irmãos e irmãs nunca se detém diante dos
mandatários senhores, aprisionadores da vida! Eu sou Benkos Biohó, a estrela negra de
uma bandeira verde, vermelha e amarela, sou o hoje, o agora... sou a resistência
ancestral do meu povo preto!
(Olha para a sua própria sombra) Não tenha medo de mim, mas responda-me, por que
me segues? (Encosta-se na escada) Quem é você que acompanha os meus passos?
Você viu? Ontem a noite, eles bateram em meu corpo, dei fuga para a minha alma se
esconder no último degrau! Essa é a forma mais simples de enfrentar a crueldade do
opressor... eu nunca deixo a minha alma sofrer as dores do desprezo, da violência de
cada açoite, da invisibilidade na minha existência! Não posso dizer que é fácil, mas toda
vez que eu te vejo assim... olhando-me e seguindo-me, mesmo sem saber para onde eu
vou, penso que existe uma cumplicidade entre nós! Eu vou perguntar de novo... quem é
você? Seria o eu oculto e solidário? O anverso do medo? A minha coragem disfarçada
de zombaria? A minha porção mulher? A vaidade do meu caminhar? Ou seria um
sonho? Não responde, não é? Eu ínsito, ninguém pode me acompanhar sem identidade!
Eu sou Benkos Biohó, eu permaneço Benkos Biohó por uma eternidade, carrego a
minha ancestralidade africana, mesmo que eu feche os olhos, continuo me enxergando
numa trilha guiada por ideias e ideais de liberdade! Não entrego o meu corpo ao jugo de
senhor ninguém, mesmo sentindo as dores de um corpo açoitado dia e noite, quando não
por chicote, por palavras duras, ferrenhas, por ofensas e desumanização... (Agarra-se
ferozmente na teia) eu sei o que eles querem! Sei tudo o que é desejo dos opressores.
Desejam aniquilar os meus sonhos, provocar-me até o suicídio, apagar a minha
trajetória, sim, porque ao me desumanizar, eu perderei a minha dignidade, perderei a
minha lucidez de homem negro, estarei subalternizado e enterrado nas catacumbas dos
esquecidos. Milhares de pessoas subjugadas, homens e mulheres tiveram os seus sonhos
destruídos, brutalmente foram afastadas das suas crias, despejados de seus lares,
perderam tudo... devastaram os seus lugares de fala, ensurdeceram os seus gritos... que
cena perversa, um horror contínuo que mora nas minhas lembranças! Nenhum deles
conseguiu aprisionar a minha alma (música instrumental percussiva, coreografa um
percurso de fuga, com o corpo arqueado, vai se esgueirando e sempre olha pra trás, a
música vai abaixando, dá o texto). O inimigo é perigoso, as armadilhas estão
espalhadas por todos os lugares, são ofertas diárias de privilégios, falsas cartas de
alforria, armas para maltratar os seus, mas o tempo é de luta, todos os tempos são de
lutas e resistências, (Fala para a plateia) nunca se venda! Eles vão mergulhar a sua
cabeça e o seu corpo em um saco escuro, sem luz, sem norte e sem piedade, vão atirar
você num precipício sem fim, nem a morte se aproxima para amenizar a sua agonia,
cuidado, eles estão por toda a parte!
(Sobe a escada e senta-se sobre a sela, conversa com o vasilhame de água) O meu
cavalo tem asas, ele sabe a onde eu vou... lembre-se, todas as vezes que você sabe aonde
vai, ninguém consegue desviar o seu caminho. Nem sempre foi assim, os atalhos eram
colocados como caminhos mais curtos e mais atraentes, muitos se perdiam, caiam na
boca do dragão, o dragão era um senhor que dominava tudo, que maltratava a todos, que
saciava a fome em troca de trabalho bruto, pesado. Violava todos os direitos, eram
poucos, mas deixavam de existir diante da sua crueldade. Eu fugi! (Som de trovão.
Desce da sela, pega o tecido colorido e abraça. Dá o texto como se estivesse vivendo o
momento da fuga) Fuji desesperadamente pela fresta da liberdade, bastou um descuido,
arranquei outros irmãos, devolvi a eles o bem maior das suas vidas, juntos, fundamos o
primeiro quilombo das américas, agora, são favelas, são destroços de uma sociedade
faminta, rastejando de mãos estendidas pedindo piedade aos novos senhores que
castigam pobres, pretos e pretas. Eu não durmo o sono dos justos, senti o laço da forca
acariciando o meu pescoço, aos poucos, ouvi o som dos cavalos em disparada, o laço
apertando de vez a minha vontade continuar lutando, foi assim, o acordo de trégua era
falso, tudo não passou de uma grande emboscada... Só tive tempo de esconder os meus
sonhos, esses não podem ser apagados, nunca! (Braços abertos para o alto, recita.)

Liberdade abstrata! (Metralhadora)


Chico Nascimento Magonleji

O etnocentrismo deseja apagar-me,


Se eu desapareço...
Levo comigo as minhas histórias,
Os meus cantos não serão ouvidos,
Os atabaques serão silenciados,
As minhas escritas dirão quem fui,
As minhas palavras cravarão refúgios,
Os meus sonhos dirão quem sou,
Negro.
Negro?
Negro!
Festivo, honrado, libertador...
Liberta a dor
De mim
Dos meus
Das minhas
Pretas cozinheiras,
Pretas “domésticas”,
Pretas solitárias,
Pretas exploradas,
Pretas silenciadas,
Pretas subalternizadas,
Pretas violentadas...
Liberta a dor
Da fome,
Da metralha que adora
Acertar vidas pretas como alvos!

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