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EXPERIMENTO CÊNICO

O GRITO DA COR
Por Dutti Moreira

PRÓLOGO

(Fundo musical com instrumental da música “Negri Drama”, dos Racionais MC’s. Um ator/bailarino entra
pela plateia executando um solo com uma corda, fazendo referência à temática da escravidão negra,
racismo, discriminação, etc).

ATOR/BAILARINO - “Ninguém nasce odiando outra pessoa por sua cor da pele, sua origem ou sua religião. As
pessoas podem aprender a odiar e, se podem aprender a odiar, pode-se ensiná-las a aprender a amar. O amor
chega mais naturalmente ao coração humano que o contrário.” Nelson Mandela

Após isso, o restante do elenco entra declamando a letra da mesma música, vendados e amarrados por uma
corda só.

Nego drama, entre o sucesso e a lama


Dinheiro, problemas, invejas, luxo, fama
Nego drama, cabelo crespo e a pele escura
A ferida, a chaga, à procura da cura

Nego drama, tenta ver e não vê nada


A não ser uma estrela, longe, meio ofuscada
Sente o drama, o preço, a cobrança
No amor, no ódio, a insana vingança

Nego drama,
Eu sei quem trama e quem tá comigo
O trauma que eu carrego,
Pra não ser mais um preto fodido

O drama da cadeia e favela,


Túmulo, sangue, sirene, choros e velas
Periferias, vielas, cortiços
Você deve tá pensando: “O que você tem a ver com isso?”

Desde o início, por ouro e prata


Olha quem morre, então Veja você quem mata
Recebe o mérito a farda que pratica o mal
Me ver pobre, preso ou morto já é cultural

Histórias, registros e escritos


Não é conto nem fábula, lenda ou mito
Não foi sempre dito que preto não tem vez?
Então olha o castelo e não foi você quem fez, cuzão!
ATO I (FALAS DE PROTESTO)

(No proscênio, de frente para o público, os atores, desatam os nós da corda em suas mãos e
iniciam as falas de protesto)

ATOR I – Negro não nasceu escravo!


TODOS – Negro nasceu pra ser Rei!
ATOR II – Diante da injustiça, não me calarei.
ATOR III – O negro construiu o Brasil à base da violência.
ATOR IV – O negro é a própria resistência!
ATOR V – Muito suor e muito sangue derramado.
ATOR VI – Brasil, um país miscigenado.
TODOS – Minha cor não é motivo de vergonha!
ATOR I – Minha cor é minha identidade. É o que eu sou, é a minha verdade.
TODOS – Eu tenho a cor do BRASIL!
ATOR II – Brasil, um país de todos. Todos quem?
ATOR III – Brasil, terra de ninguém.
ATOR IV – Eu sou parte das estatísticas, das taxas de criminalidade.
ATOR V – Eu quero usar a minha liberdade.
ATOR VI – Negro é favelado, negro é negado.
TODOS – Negro é marginal, um bicho, um animal.
ATOR I – Negro é ralé, negro é mané. Negro não tem cultura.
TODOS – Que mentira! Que calúnia!
ATOR II – Não nos calaremos! Não desistiremos!
ATOR III – Foram 369 anos de escravidão. Estupro, maus tratos, rejeição!
ATOR IV – Há tempos houve a abolição e nada mudou...
ATOR V – O homem escrevo continuou.
ATOR VI – Escravo do racismo, do preconceito, da discriminação.
TODOS – Escravo da política, da economia, da televisão!
ATOR I – Escravo dos produtos, da propaganda, do celular na mão.
TODOS – Viva a Cultura Afro!
ATOR II – Viva os Orixás, Zumbi dos Palmares, Dragão do Mar!
ATOR III – Viva a terra da luz, viva o nosso Ceará!
ATOR IV – Primeiro Estado do Brasil aos escravos libertar!
ATOR V – Viva a nossa negritude!
ATOR VI – Viva a nossa juventude!
TODOS – Não iremos nos calar!
ATOR I – Abre o teu olho e vê...
TODOS – Que o negro vive, o negro crê!
ATOR II – Que o negro sou eu, que o negro é você!
TODOS – ABRE O TEU OLHO E VÊ!

(O elenco repete continuamente a última fala, retirando as vendas de seus olhos e caminhando para
o palco, posicionando-se de forma aleatória em preparação para o ATO II)

ATO II (LIBERDADE, LIBERDADE)

(Fundo musical instrumental de tambores africanos. O elenco, que até então se manteve estático,
começa a correr de um lado para o outro, em ritmo de fuga e de repente sai de cena. O mesmo
ator/bailarino do início, agora executa uma coreografia com a mesma corda. Ao final, o elenco
retoma à cena, correndo para a extremidade direita. O ator enlaça todos de uma vez e os puxa para
o centro do palco o vai girando-os de uma ponta a outra, enquanto eles gritam fervorosamente:)

ATOR I – Me solta, pelo amor de Deus! Sai de cima de mim!


ATOR II – Olorum vem me salvar, Olorum vem me salvar!!!
ATOR III – Não me bate, por favor! Tenha pena de mim!
ATOR IV – Respeita a minha história! Seu covarde! Filho da puta!
ATOR V – Seu desgraçado, imundo, me larga! Me soltaaaaa!
ATOR VI – Eu não vou pra senzala, eu não vou pra senzala! Eu não sou escravo!

(Todos gritam e arrebentam a corda, correndo pelo palco até parar na mesma posição inicial do Ato).

TODOS – “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós. E que a voz da igualdade, seja sempre a nossa
voz.”

(Na parte final da última fala, todos levantam o braço direto com punho cerrado em sinal de luta e
resistência. Aos poucos baixam o braço e vão se encolhendo, deitando-se no chão em posição fetal).

ATO III (CITAÇÕES E POEMAS DE NEGROS)

ATOR I – Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista.
(Angela Davis)

ATOR II – Na luta antirracista, todos temos lugar, mas o protagonismo é de quem sofre o preconceito
na pele. (Marianna Moreno)

ATOR III – Enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho dos olhos, haverá guerra. (Haile
Selassie)

ATOR IV – Eu tenho um sonho que meus quatro pequenos filhos um dia viverão em uma nação onde
não serão julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter. Eu tenho um sonho hoje."
Martin Luther King

ATOR V - A democracia só será uma realidade quando houver, de fato, igualdade racial no Brasil e o
negro não sofrer nenhuma espécie de discriminação, de preconceito, de estigmatização e de
segregação, seja em termos de classe, seja em termos de raça. (Florestan Fernandes)

ATOR VI – Ser negro no Brasil é, pois, com frequência, ser objeto de um olhar enviesado. A chamada
boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado, lá em baixo, para os negros e assim
tranquilamente se comporta. (Milton Santos).

ATOR I – Nascida em um tempo em que a tv era a cores


Eu, Não me via nela.
Eram poucos os negros em uma incrível janela.
Meu cabelo crespo não tinha representatividade.
Tranças, prender e alisar eram as opções.
Negra com traços finos, negra de alma branca,
filha de negro com branco… (Leandra Nel)
ATOR II – Uma raça de pessoas é como um homem individual; até que use seu próprio talento, se
orgulhe de sua própria história, expresse sua própria cultura, afirme sua própria individualidade, ela
nunca poderá se realizar sozinha. (Malcolm X)

ATOR III – Racismo, preconceito e discriminação em geral;


É uma burrice coletiva sem explicação.
Afinal, que justificativa você me dá para um povo que precisa de união?
(Gabriel O Pensador)

ATOR IV – É hora de todos os brancos abandonarem a ideia de superioridade e, de fato, atuarem no


combate ao racismo. Negação, silêncio, raiva, medo, culpa... essas são algumas das reações mais
comuns quando se diz a uma pessoa que agiu, geralmente sem intenção, de modo racista. Ser
abertamente racista não é algo socialmente aceitável. Ninguém quer ser visto assim. Mas cada vez que
se nega o racismo, impedimos que ele seja abordado e que nossos preconceitos sejam discutidos.
(Robin Diangelo)

ATOR V – Davam-nos água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca:
vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível
lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de
levá-los à sepultura asfixiados e famintos! (Maria Firmina dos Reis)

ATOR VI – Sou um negro, no tronco da demagogia


Levando chibatadas de hipocrisia
Preso na senzala da indiferença
E transportado no navio da ofensa
Sou um negro, atrás da minha liberdade
Sou crioulo, sou um negro de verdade
(Luiz de Jesus)

ATO FINAL (VAI FAZER O QUÊ?)

(Todos os atores permanecem estáticos. Fundo sonoro de briga ou desentendimento entre brancos
e negros, ao passo em que um ator interpreta um dos negros, recuando com medo, implorando para
não ser agredido. A cena finaliza com som de tiros e o ator cai ao chão, desacordado. Todo o elenco
ainda estático, coloca as vendas nos olhos e diz:)

TODOS – E aí vai fazer o quê? É você mesmo, vai fazer o quê?

(Fundo musical de mix de reportagens sobre crimes cometidos contra negros no Brasil. O elenco
recolhe o ator que está no chão e o carrega nos ombros saindo pela plateia, como num cortejo
fúnebre.)

FIM

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