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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

LETRAS PORT./LIT
COMUNICAÇÃO E GÊNERO – FLORA DAEMON
GLEYCIELLE RIKELLY DIAS DOS SANTOS

Resenha - Filme “Vênus Negra”

O filme “Vênus negra’’ (Venus Noire, 2010), faz um relato sobre a vida de Saartjie
Baartman, uma empregada doméstica africana, de apenas 25 anos que foi levada à Europa
pelo seu patrão Caesar, que decidiu ganhar dinheiro fazendo “espetáculos” com a menina
ingênua, chamada de selvagem “Vênus Hotentote” (Etnias de línguas khoisan do Sudoeste
africano, relacionado com as línguas boxímanes, cujo conjunto forma, para muitos
especialistas, o chamado grupo Khoisan Central ou Khoi). No ano de 1810, em Londres,
havia um bairro onde eram apresentados espetáculos com participações de mulheres barbadas,
homens extremamente fortes e outras atrações consideradas anormais pela sociedade naquela
época. Foi neste cenário que a história de Saartjie foi inserida e começou a ser reescrita.

O corpo negro dela era vendido/visto com exótico e bizarro. (Saartjie pertencia à uma
tribo cuja característica predominante era o acúmulo de gordura nas nádegas e o chamado
"avental hotentote", uma anomalia na região genital.). Ela fazia as apresentações em um
teatro, dentro de uma jaula, com seu corpo exposto, ao som de chibatadas e gritos do seu
"dono". Ela dançava, avançava nas pessoas como animal, e era exposta ao ridículo. Caesar,
seu patrão, a segurava com força e dizia para a plateia: “Cheguem perto, não tenham medo,
eu tenho tudo sob controle. Apalpem, apalpem!!!” Enquanto mãos estranhas tocavam e
beliscavam seu corpo, gargalhadas altas e exageradas faziam coro dento do teatro, como se
fosse mesmo algo anormal e exótico a ser visto. Saartjie sofria calada, mas seus olhos deixam
explícita sua dor.

Em 1814 ela foi vendida a um Frances, o homem era domador de animais, a tratava
feito um, e exigia que ela fizesse as apresentações completamente nua, com o intuito de
despertar o prazer das pessoas, e é claro, ter mais lucro. Seu íntimo então, totalmente exposto.
Seu corpo entregue a quem quisesse fazer dele local a ser explorado, invadido. Em Paris,
Saartjie passou não apenas a ser exibida publicamente como uma criatura animalesca e
abominável, era obrigada a fazer shows eróticos e também a se prostituir.

Neste cenário/contexto teve início um estudo que ficou conhecido como “Ciência da
raça”, momento em que os europeus usaram pseudociência para depreciar corpos negros. Foi
então, entre os anos de 1814 a 1870, que houve algumas descrições e estudos científicas onde
a anatomia dos corpos de mulheres negras eram comparadas a anatomia dos corpos de
animais.

Saartjie foi submetida a inúmeros teses, exames, medições corporais. Com um único
objetivo: provar que algumas etnias são geneticamente superiores a outras. Ou seja, mas uma
tentativa de provar que o branco é superior em relação ao negro, mas desta vez com um
embasamento biológico. Um posicionamento pseudocientífico, é claro, mas que para alguns
pesquisadores daquela época fazia total sentido.

Depois de tanto sofrimento atrelado ao álcool, charutos e sexo, (um ano após sua
chegada em Paris), Saartjie fica doente e morre. Seu corpo é vendido aos cientistas, dissecado,
seu cérebro e seus órgãos genitais colocados em frascos e, posteriormente, seu corpo é
moldado em uma espécie de gesso, em tamanho real. Virou uma estátua. Até 1974, tudo isso
ficou exposto no Museu do Homem em Paris, e somente no ano de 1994, foi solicitado a
devolução para a África.

Diante de tudo isso, cabe então, inúmeros questionamentos: até onde o ser humano é
capaz de ir por pura curiosidade ou maldade? Por que um corpo fora dos “padrões” é tão
explorado/invadido? Quando a hipersexualização do corpo negro (sobretudo o feminino), vai
finalmente acabar? Qual foi, e qual é o papel da ciência na afirmação e reafirmação das
diferenças físicas/biológicas entre corpos negros e brancos? Escravidão velada, maquiada,
com liberdade verossímil deixou de ser escravidão? O colonialismo, o machismo, o racismo
nunca terão fim de verdade? A naturalização das pessoas (geralmente brancas) diante de uma
mulher negra, submissa, tratada feito animal, sofrendo agressões de inúmeros tipos, sendo
violentada, não é crueldade e falta de humanidade? O racismo promovido pelos europeus foi e
ainda é tão latente na sociedade? Há ainda, violência física, moral, psicológica, sexual
sobretudo contra a mulher em pleno século XXI? São perguntas que precisam ser pensadas,
repensadas e respondidas.

A história da Vênus Negra está inserida no contexto histórico do século XIX, mas sem
dúvida é pertinente também na contemporaneidade. A crueldade, o preconceito, pessoas que
não suportam as diferenças estão em todos os lugares, nas ruas, na sociedade de maneira
geral, nas redes sociais. É impossível manter os olhos fixos na “história” de Saartjie Baartman
sem fazer tais reflexões.

Sarah (Saartjie Baartman – mudaram seu nome, ela foi batizada na igreja católica,
como os colonizadores faziam com os escravizados que chegavam em “suas terras”),
roubaram suas raízes, sua subjetividade das piores maneiras possíveis. Tiraram sua liberdade,
sua vontade de viver. Tomaram posse da sua vida. E no final, a história/enredo não tem uma
reviravolta, como destino cruel e fim último, a morte. Seu corpo longe de sua terra vira objeto
de estudo, no museu do homem em Paris, que infeliz ironia, triste fim. Histórias precisam ser
contadas, mas histórias ruins não podem ser repetidas nunca. Nunca.

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