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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


Estudos Afro-Brasileiros - ANT 7701-07320 (2020/2)
Profª Flavia Medeiros Santos
.
RESENHA DO DOCUMENTÁRIO “ÔRÍ”

ÔRÍ, Brasil, 1989, cor, 91’. Direção: Raquel Gerber; produção: Angra Filmes Ltda., Fundação do
Cinema Brasileiro.¹

Resenha por Luiza Lese Pereira

Lançado em 1989, Ôrí é um documentário brasileiro que nasce do encontro entre


dois projetos: cinematográfico (Raquel Gerber, diretora) e histórico (Beatriz Nascimento,
roteirista e narradora). O filme acompanha atividades dos movimento negros brasileiros
entre 1977 e 1988, conectados pela diáspora africana, e tendo o quilombo como ponto
central. Apresenta, também, parte da história pessoal de Beatriz Nascimento².

Produzido no contexto da Ditadura Militar e construído a partir de uma abordagem


multifacetada, Ôrí reúne um amplo conjunto de imagens e sons associados à cultura
afro-brasileira. Percebe-se grande interesse no registro de pessoas, eventos e lugares
tanto no território brasileiro quanto em países africanos. Há também mapas, paisagens,
fotografias e pinturas. As rotas e deslocamentos parecem planejados, posicionando os
sujeitos no mundo, conferindo significados nas relações, por meio de visões decoloniais,
femininas e negras. É um movimento político pela busca e afirmação de uma identidade
negra, constituída na experiência da diáspora e na transmigração, unindo África, América
e Europa e compondo a chamada civilização transatlântica.

Ao se afirmar como “atlântica”, Beatriz dá a noção do recorte espaço-temporal


utilizado em sua narrativa. Esse retorno ao oceano marca acontecimentos históricos cujas
consequências repercutem ainda hoje. O intercâmbio transatlântico comercializou não
apenas corpos africanos, mas suas almas. Assim, a experiência corpórea da travessia
interligou-se à alma.

A palavra “Ôrí” provém da língua iorubá e significa, literalmente, “cabeça”, sendo


um ponto importante que conecta o ser humano com o mundo espiritual. Beatriz propõe
“Ôrí” como possibilidade para a construção da identidade negra diaspórica, relacionando
cabeça e corpo, pessoa e terra, e devolvendo a essas pessoas sua humanidade. “Ôrí” se
constitui pelo rito, unindo passado, presente e futuro, ancestralidade e momento.

A importância dada à ancestralidade também fica evidente quando analisamos as


imagens escolhidas, as quais demonstram uma união entre o espiritual e o político.
Assistimos trechos de encontro político, que marcaram o (re)nascimento dos movimentos
sociais, dos quais cito o FECONEZU – Festival Comunitário Negro Zumbi, em São Carlos,
em 1980; a reocupação da Serra da Barriga – União dos Palmares, em Alagoas e o III
Congresso de Cultura Negra das Américas São Paulo, em 1982. Dentre os marcos
históricos testemunhados, destaco o surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU),
em 1978, do qual Lélia Gonzalez³ foi uma das fundadoras; a definição, nesse mesmo ano,
do Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro; e o centenário da
Abolição da escravatura, em 1988. Esses encontros e eventos, os ensaios e desfiles de
Escolas de Samba, os rituais de religiões afro-brasileiras, apresentações de banda soul
music, são como extensões da História dos povos africanos diaspóricos.

A voz e os pensamentos de Beatriz trazem relatos bastante complexos. Ao longo


da obra, ela narra brevemente a origem da cultura brasileira, por meio de uma abordagem
afrocentrada, assumindo a contribuição dos povos africanos para a construção das
“Américas”. Dessa forma, a diáspora conecta tanto os continentes quanto os modos de
vida do povo afro-brasileiro, apresentando a organização de seus territórios, desde o
próprio corpo (individual) até a ocupação dos espaços/territórios (coletivo).

A obra denuncia a omissão dada a questão racial nas sociedades


latinoamericanas. Isso fica explícito logo de início, quando somos inseridos na Quinzena
do Negro na USP, em 1977, com destaque para a Conferência Historiografia do Quilombo,
que é proferida por Beatriz. Esse momento marca um processo de reconhecimento
público de seus estudos acerca de quilombos. Em sua fala, sob seu ponto de vista como
historiadora negra, ela chama a atenção para a visão de que negros e negras, enquanto
objetos de pesquisa acadêmica, só eram estudados enquanto seres escravizados. Sua
proposta, então, é o deslocamento radical da senzala para o quilombo, ressignificando
sua importância.

A concepção de Beatriz quanto ao quilombo é de território de resistência, que


emerge a partir da não aceitação/subordinação da escravização e da fuga, estabelecendo
uma nação aculturada fundamentada na raíz da língua Banto NTU. O quilombo aparece,
assim, como uma metáfora para um território que se deseja retornar, porém que já não
existe. Enquanto espaço geográfico, ele não desapareceu, mas foi atualizado nos
espaços contemporâneos habitados pela população negra ― as favelas ―, dando
continuidade à experiência histórica de exclusão/marginalização, segregação e
resistência. Porém, ele deixa de ser só um território geográfico e torna-se simbólico, ou
seja, um “lugar de memória” que se estabeleceu a partir do próprio corpo negro.

Na mesma linha, Fanon (2008) afirma que corpos negros são conhecidos enquanto
objeto de estudo de brancos e foram atrelados a uma História de escravidão. Para ele, a
libertação desses corpos objetificados começa com a recuperação e ressignificação desse
passado eurocêntrico, num processo de desalienação. Já Gonzalez (2008) critica o
sistema patriarcal-racista, visto como responsável pela ideologia do branqueamento que
estabelece e reforça a crença no mito da superioridade racial, resultando na fragmentação
identitária, além de objetificar os corpos, principalmente de mulheres não-brancas. A
libertação viria através da conscientização das opressões, sobretudo pelo Movimento
Negro brasileiro.

O documentário propõe mudanças radicais na narrativa da História brasileira, a


partir de uma revisão da formação nacional, reivindicando uma abordagem afrocentrada.
A figura de Zumbi, herói civilizador e líder do Quilombo dos Palmares, serve assim como
um guia para contar essa história outra do Brasil.

NOTAS
¹ Ficha técnica completa em:
http://bases.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&l
ang=p&nextAction=lnk&exprSearch=ID=025653&format=detailed.pft#refine

² Maria Beatriz Nascimento nasceu em Aracajú, Sergipe, em 12 de julho de 1942. Sendo a


segunda filha mais nova dentre 10 irmãos, aos 7 anos, migra com a família para Cordovil, bairro
na cidade do Rio de Janeiro. Cursou História na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
entre os anos de 1968 e 1971. Entre 1978 e 1981, realiza pós-graduação latu sensu em História,
pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com a pesquisa “Sistemas alternativos organizados
pelos negros: dos quilombos às favelas”. Porém, seu trabalho mais conhecido é o documentário
Ôrí (1989). Beatriz foi assassinada em 1995, deixando uma filha de 25 anos.

³ Lélia Gonzalez (Belo Horizonte, 1935 - Rio de Janeiro, 1994) foi uma intelectual, política,
professora e antropóloga brasileira. Foi fundadora, dentre outros, do Movimento Negro Unificado
(MNU) Seus trabalhos centram-se na articulação entre as lutas sociais com a demanda da
população negra, especialmente das mulheres negras, contra às ideologias e à hegemonia de
dominação (branca, machista e europeia).
REFERÊNCIAS
FANON, Frantz. 2008 [1952]. A experiência vivida do negro. In: FANON, Frantz. Pele
Negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, p.103-126.

FANON, Frantz. 2008 [1952]. À Guisa de Conclusão]. In: FANON, Frantz. Pele Negra,
máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, p. 185-191.

GONZALEZ, Lélia. 2018 [1988]. Por um feminismo afrolatinoamericano. In: Lélia


Gonzalez: primavera para as rosas negras. São Paulo: UCPA Editora, p. 307-320.

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