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Na Bíblia, Jesus aparece curando os doentes - Alexandre Teles

Saúde

LEPRA: A MALDIÇÃO DIVINA


Durante séculos, a regra foi uma só: discriminar os
doentes e privá-los do convívio social
MOACYR SCLIAR* PUBLICADO EM 28/02/2019, ÀS 12H00

Em 29 de março de 1995 o então presidente da República,


Fernando Henrique Cardoso, assinou a Lei 9 010, que diz, em
seu Artigo 1º: “O termo ‘lepra’ e seus derivados não poderão ser
utilizados na linguagem empregada nos documentos oficiais da
Administração centralizada e descentralizada da União e dos
Estados-membros”. No Artigo 2º são listados os termos que
podem ser usados. Em vez de lepra, hanseníase. O termo
“leproso” dá lugar a “doente de hanseníase”. Não é difícil
descobrir a motivação que levou a essa providência. “Lepra” é
:
uma palavra estigmatizada. O Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa diz que, no sentido figurativo, “leproso” é aquele
cujo convívio é maléfico ou extremamente desagradável, uma
pessoa perversa, ruim, que provoca repulsa, nojo.

Essa má imagem é antiga, porque antiga é também a doença. A


hanseníase leva muito tempo até se manifestar, anos às vezes.
Afeta principalmente a pele e os nervos periféricos (isto é,
aqueles que não estão no crânio ou dentro da coluna vertebral).
Na pele aparecem lesões características. Quando as marcas são
muito salientes e aparecem no rosto, constituem a chamada
“face leonina”. Já o comprometimento dos nervos leva à
anestesia: o portador de lepra muitas vezes não sente picadas
ou queimaduras e pode até sofrer acidentes por causa disso.
Também podem ocorrer atrofia muscular e deformidades.

É verdade que não podemos estar totalmente seguros quanto a


diagnósticos feitos na Antiguidade. É bem provável, aliás, que
houvesse confusão com uma grande variedade de doenças de
pele, sobretudo aquelas de aspecto repulsivo. De qualquer
modo, pelo menos desde o século 6 a.C. há referências à lepra
na Índia, na China e no Egito (onde foram achados esqueletos
antigos com a marca da doença). Isso confirma a impressão de
que a moléstia se originou no Oriente e de lá foi se espalhando,
:
levada por tribos nômades ou por navegadores, como os
fenícios – atribui-se ao grego Hipócrates, o pai da medicina, a
expressão “doença fenícia” para se referir à ela. Soldados da
Grécia, retornando das campanhas de Alexandre, o Grande, na
Índia, teriam trazido a doença. Exércitos romanos, por sua vez,
introduziram-na na Europa Ocidental, nas colônias criadas na
Espanha, Gália e Inglaterra.

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Símbolo de impureza?

Uma pergunta se impõe: de tantas doenças que existiam, por


que a lepra foi selecionada como símbolo de impureza?
Podemos fazer algumas conjeturas a respeito. Em primeiro
lugar, porque é uma afecção da pele, a parte mais visível do
corpo humano – se ela comprometesse órgãos internos, não
teria o mesmo impacto nem poderia sequer ser diagnosticada à
época. Além disso, temos o aspecto desagradável, às vezes
repulsivo, das lesões. Por ultimo, mas não menos importante, a
lepra é contagiosa (ainda que o potencial de contágio seja
baixo) e sua transmissão supõe contato entre corpos, contato
que frequentemente poderia ser de natureza sexual, portanto
pecaminoso.
:
Na Antiguidade, um povo conferiu à lepra um papel
especialmente relevante, ainda que sombrio, em sua cultura: os
hebreus. No Antigo Testamento, os termos “lepra” e “leproso”
aparecem nada menos do que 54 vezes, sobretudo no livro do
Levítico. Quando, em Alexandria, a Bíblia foi vertida do hebraico
para o grego (na chamada versão dos Septuaginta, os setenta
sábios que fizeram o trabalho), a palavra tzaraat foi traduzida
como “lepra”, um termo grego que quer dizer “escamoso”,
“portador de escamas”, e que provavelmente designava outra
doença. Mas a equivalência acabou ficando para a posteridade.

Entre os hebreus, o diagnóstico da lepra não estava a cargo dos


médicos e sim dos sacerdotes. Ela era considerada evidência de
pecado, que se traduzia tanto na corrupção da carne como na
do espírito – não raro, era vista como expressão de um castigo
divino. Segundo o texto bíblico, quando o rei Uzias quis
queimar incenso no templo, uma cerimônia que era reservada
exclusivamente para os sacerdotes, Deus o puniu com a
doença. Mesmo sendo rei, foi obrigado a morar em uma casa
isolada e, ao morrer, não foi enterrado no cemitério dos
soberanos.

O diagnóstico
:
O Levítico, nos capítulos 12 a 14, dá minuciosas indicações
sobre o diagnóstico da doença. Alguns destes critérios eram de
certeza: ulceração, afundamento da pele, embranquecimento
dos pelos. Identificado o leproso, este tinha de deixar a casa,
recolher-se a um lugar previamente designado, cobrir a boca
com um pano e anunciar, alto e bom som, que era impuro.
Também a constatação de cura estava a cargo do sacerdote,
que, de acordo com os rituais, podia promover a reintrodução
do doente na comunidade.

No Novo Testamento a lepra também é mencionada, mas com


um sentido diferente. Jesus tem compaixão pelas pessoas,
ajuda-as, cura-as. Dois episódios são muito ilustrativos; o
primeiro aparece em Mateus (capítulo 8, versos 1 a 4). “Um
leproso veio a Ele e ajoelhou-se dizendo: ‘Senhor, se quiseres,
podes me tornar limpo’. Jesus estendeu a mão e tocou-o: ‘Eu o
quero, fica limpo’. Imediatamente a lepra desapareceu. Então
Jesus disse a ele: ‘Não digas nada a ninguém; mas vai, mostra-te
ao sacerdote’.” Já em Lucas (capítulo 17, versos 11 a 19) aparece
uma outra passagem: “A caminho de Jerusalém Jesus
atravessava a região entre a Galileia e a Samaria. Entrando
numa vila, dez leprosos apareceram. Mantendo a distância, eles
disseram: ‘Jesus, Mestre, tem piedade de nós!’ Quando Ele os
:
viu, disse: ‘Ide e mostrai-vos para os sacerdotes.’ À medida que
se afastavam eles foram ficando curados”.

O diagnóstico da doença era feito por membros da igreja /


Ilustração: Alexandre Teles

Essas narrativas não falam só da doença, mas do papel


desempenhado por Jesus em meio à crise religiosa, política e
social que viviam então os judeus, como membros de uma
comunidade que, submetida ao domínio romano, envolvia forte
desigualdade entre a elite dos ricos e a casta sacerdotal, de um
:
lado, e a massa faminta e doente de outro. Jesus cura os
leprosos, porque tem poderes para tanto, mas remete-os aos
sacerdotes. A estes cabia dar o “atestado de limpeza”. Podemos
supor, contudo, que existe aí um recado de Jesus ao
estabelecimento religioso, o aviso de que uma nova e poderosa
liderança estava surgindo. A tensa e conflituosa coexistência
entre Jesus e a religião oficial terminará com seu martírio.

Exclusão social

Se Jesus curava leprosos, o cristianismo acabou endossando os


estigmas do Levítico, reforçando-os até. Isso pode ter sido
consequência da disseminação da lepra na Europa. Um fato
que alarmou Aretaeus da Capadócia, famoso médico da época:
quem, pergunta ele, não fugiria de um leproso – mesmo sendo
este o pai, o filho, um irmão – diante do risco do contágio? A
Igreja foi mais longe: os concílios de Ancyra, em 314, e de Lyon,
em 583, restringiram severamente o contato de leprosos com
pessoas sadias. O modelo de diagnóstico era semelhante ao do
Levítico, mas agora estava a cargo de uma comissão, composta
de um bispo, vários clérigos e também de um leproso,
considerado “especialista” na matéria. Feito esse diagnóstico,
passava-se ao processo de exclusão social, que se
acompanhava de um ritual impressionante. O leproso era
:
vestido com uma mortalha, rezava-se uma missa fúnebre de
corpo presente e, acompanhado de padres e de familiares, ele
era então conduzido ao leprosário ou ao lugar onde ia habitar,
fora dos limites da comunidade.

As instruções para os leprosos eram minuciosas. Não podiam


entrar em igrejas, hospedarias ou casas. Não podiam tocar
objetos de uso comum (corrimões de escada, por exemplo) sem
luvas. Tinham de usar uma vestimenta especial e carregar
matracas ou sinetas que anunciassem sua presença. Poderiam
pedir esmolas, a serem colocadas num saco amarrado na
extremidade de uma longa vara. O leproso era considerado
portador de um apetite sexual muito desenvolvido, o que
aumentaria o risco de transmissão da doença – portanto, não
podia deitar com qualquer mulher que não fosse sua esposa.
Disposições posteriores, de caráter civil e emitidas pela coroa,
proibiram inclusive os leprosos de casar. A doença não poupava
nem mesmo reis, como foi o caso de Balduíno IV, o “rei leproso”
de Jerusalém, que teve de renunciar ao trono quando a doença
o cegou.
:
O rei Balduíno IV, durante a Batalha de Montgisard / Domínio
público

Instituições para a internação de doentes de lepra começaram


a surgir já no século 4, e daí por diante foram brotando por
toda a Europa cristã: no século 7 na França, no século 8 na
Alemanha, no século 9 na Irlanda, no século 10 na Inglaterra, no
século 11 na Espanha, no século 12 na Escócia e nos Países
Baixos... Presume-se que as Cruzadas, incrementando o
intercâmbio entre Ocidente e Oriente, tenham estimulado o
surgimento de novos casos. O número de leprosários chegou a
19 mil, mas essa cifra, de cronistas da época, pode ter sido
exagerada. O mesmo provavelmente ocorreu com a frequência
da doença: alguns autores sustentam que vários casos de lepra
correspondiam na verdade a sífilis – o que contesta a teoria de
que esta última doença teria sido trazida da América pelos
marinheiros de Colombo. Diferentemente dos hospitais
modernos, os leprosários não se destinavam a curar doentes –
mesmo porque não havia qualquer tratamento para a lepra –,
mas como abrigo, como refúgio religioso. Funcionavam sob o
controle de uma abadia ou mosteiro. O leproso tinha de
obedecer a um minucioso código que relacionava deveres e
transgressões.
:
Tratamento

No fim da Idade Média, os casos de lepra começaram a diminuir


na Europa Ocidental. Seria um resultado da interrupção do
intercâmbio com o Oriente? Talvez (o antigo filósofo francês
Michel Foucault viu uma coincidência no desaparecimento de
leprosários e no surgimento de hospícios: a doença mental, diz
ele, assumiu o estigma antes atribuído à lepra, ocupando sua
função no imaginário da sociedade). De qualquer modo, a
doença se disseminou pelo mundo. Da Índia, migrou para a
China e depois para o Japão. Na África Ocidental foi introduzida
por exploradores e colonizadores. De lá chegou ao Caribe, ao
Brasil e a outros países da América por meio do tráfico de
escravos.
:
Armauer Hansen, médico que identificou o causador da doença
/ Wikimedia Commons

A partir do fim do século 19, notáveis progressos foram


registrados no conhecimento e no tratamento da doença. Em
1873 o norueguês Armauer Hansen identificou o micróbio
causador da doença (é em homenagem ao cientista que a lepra
é chamada de hanseníase). Ficava claro, finalmente, que se
tratava de um fenômeno natural e não era o resultado de
pecado ou maldição. Ao contrário do que se pensava, a doença
é muito pouco contagiosa. Às vezes só é adquirida depois de
anos de contato com enfermos – o micróbio também existe em
animais (nos tatus).

Começou então a busca por tratamento. A princípio foi usado,


sem grandes resultados, o óleo de uma planta conhecida como
chaulmoogra, aplicado sob a forma de dolorosas e pouco
eficientes injeções. As pesquisas continuaram, novas drogas
foram aparecendo, e por fim chegou-se à conclusão de que só a
combinação delas venceria a resistência microbiana. Assim, em
1981, a Organização Mundial da Saúde passou a recomendar a
:
terapia múltipla (chamada também de poliquimioterapia, ou
PQT), incluindo as drogas dapsona, rifampicina e clofazimine. O
tratamento se prolonga às vezes por mais de um ano, mas o
percentual de cura é alto. O fim de um estigma milenar.

Mesmo nome, mesmo mal


Duas histórias bíblicas ligaram Lázaro à lepra

Pintura retrata a parábola do primeiro Lázaro citado


:
na Bíblia / Stock Photos

No dicionário, a palavra “lázaro” designa aquele que


tem lepra. Do nome Lázaro derivam a pejorativa
“lazarento” e “lazareto” (sinônimo de leprosário). O
termo se origina de uma parábola narrada por Jesus
na Bíblia (Lucas, capítulo 16, versos 19 a 31): “Havia um
homem rico que se vestia de púrpura e de linho
finíssimo e que todos os dias se banqueteava
esplendidamente. Havia também um certo mendigo,
chamado Lázaro, coberto de chagas, que jazia à porta
daquele, esperando alimentar-se das migalhas que
caíam da mesa do rico; até os cães vinham lamber-lhe
as úlceras”. Os dois morrem, o pobre é levado para o
céu, o rico queima no inferno. Este último implora que
Lázaro ao menos refresque com umas gotas d’água a
ponta de sua língua, mas isso lhe é negado: o castigo
tinha de ser completo. O detalhe interessante é que as
chagas do lendário Lázaro aos poucos foram sendo
interpretadas como lepra, o que associou o
personagem à doença. No Novo Testamento há
menção a um outro Lázaro, nascido em Betânia,
próximo a Jerusalém. Era filho de Simon, um amigo a
quem Jesus costumava visitar. Lázaro tornou-se assim
um seguidor de Cristo. A certa altura, adoeceu
gravemente. Jesus foi chamado mas, quando chegou,
fazia quatro dias que o jovem tinha falecido. Jesus
então ressuscitou-o. Mais tarde Lázaro tornou-se um
dos primeiros bispos da nova religião. A ordem de São
Lázaro foi fundada no século 12 para prover cuidados
aos leprosos. Os cavaleiros da ordem, que fundaram
um leprosário perto de Jerusalém, durante o período
das Cruzadas, também tinham a doença.
:
Saiba mais

As Máscaras do Medo: Aids e Lepra, Italo Tronca, 2000

* Moacyr Scliar (1937-2011) foi médico e escritor brasileiro.


Artigo publicado originalmente na versão impressa.
:
Europa Cristianismo História Lepra Igreja Bíblia

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