Você está na página 1de 14

Linda Hutcheon (1989).

Uma teoria
da Paródia. Lisboa: Edições 70.
o receptor reconstrói como referentes da mensagem. A «rea-
lidade» original satirizada pode incluir costumes, atitudes,
tipos, estruturas sociais, preconceitos, etc. (1979, 247-8)

A análise de Ben- Porat da interacção da paródia como a sátira


na série televisiva Mad é demasiado complexa para não ser repro-
duzida neste contexto. Trata-se, no entanto, de leitura necessá-
ria para quem se interesse por este tópico.
Há ainda uma outra razão para a confusão entre paródia e sátira,
na teoria e na crítica. A paródia não deve ser considerada ape-
nas como uma entidade formal, uma estrutura de assimilação ou
apropriação de outros textos. Nesta confusão, não é apenas a
intrincada interacção textual da paródia com a sátira que induz
em erro; nem o ignorar da diferença em relação ao tipo de «alvo»
(intramural versus extramural), sempre de censurar. O capítulo 3
seguinte referir-se-á ao papel da ironia nesta mistura comum de
géneros, pois é tanto ao nível pragmático como formal que a paró- O ALCANCE PRAGMÁTICO DA PARÓDIA
dia, hoje em dia, se diferencia, não só da sátira, como das defi-
nições tradicionais que exigem a inclusão da intenção de Todo o pintor inteligente transporta toda a cultura da
ridicularizar. pintura moderna na cabeça. É ela o seu objecto real,
sendo tudo o que ele pinta simultaneamente uma
homenagem e uma crítica a ela.

Roherr Motherwell

A maior parte dos estudos sobre a paródia argumentam que


se trata de uma forma mais restrita, em termos pragmáticos, do
que a alusão ou a citação. Por outras palavras, existem muitas
razões possíveis para aludir ou citar do que para parodiar. Poder-
-se-á rodear a crítica, insinuar sem afirmar directamente; poder-
-se-á optar pôr exibir o conhecimento pessoal ou utilizar os textos
de outrem para servir de apoio autorizado; poder-se··á apenas pre-
tender poupar tempo (Ben-Porat 1976, 108). A paródia moderna, Y
no entanto, ensina-nos que possui muitas mais utilizações do que
as definições tradicionais do género estão dispostas a conside-
rar. Todavia, muitos ainda acham que a paródia que faça outra
coisa que não seja ridicularizar o seu «alvo» é falsa paródia.
Uma conclusão lógica deste tipo de raciocínio é que as epopeias
cómicas que não desacreditam a epopeia não podem ser rotula-
das desta maneira (Morson 1981, 117). Argumentar assim, equi-

68 69
vale, evidentemente, a ir contra toda a tradição do uso do termo. notável.liº"~~1!~~':ltºpiçº col~giºdeBat:dqs» a biblioteca não con-
Gostaria de argumentar que o mesmo é verdadeiro em relação teria quaisquer obras de crítica literária e «o único exercício crí-
à paródia em geral, apesar da longa tradição - que data do tempo tico pedido aos estudantes seria a escrita de paródias» (1968, 77).
de Quintiliano (1922,395), pelo menos - que afirma que a paró- Esta função mais séria da paródia tem potencial para permitir
dia deve ser considerada pejorativa em intenção e ridiculariza- um âmbito pragmático mais vasto, para além do ridículo, não
dora no seu ethos ou resposta pretendida. O âmbito obstante poucos optarem por a alargarem nessa direcção; «o ridí-
tradicionalmente permitido parece ser ;<divertimento, irrisão e, culo crítico» (Householder 1944, 3) continua a ser o propósito
por vezes, escárnio» (Highet 1962, 69). A maior parte dos teó- mais vulgarmente citado da paródia.
ricos concorda implicitamente com o ponto de vista de Gary Saul Tem havido, no entanto, importantes oposições a esta limita-
Morson (1981, 110, 113, 142) de que é suposto que uma paró- ção do ethos paródico ao escárnio. Fred Householder (1944, 8)
dia tenha autoridade semântica mais elevada do que o seu origi- chamou a atenção para o facto de, nas utilizações clássicas de
nal e que o descodificador tem sempre a certeza de qual a voz palavra paródia, humor e ridículo não serem considerados parte
com a qual se espera que esteja de acordo. Ainda que este último do seu sentido; de facto, acrescentava-se outra palavra quando
ponto possa ser verdadeiro, vimos que o «alvo» da paródia nem se pretendia ridicularizar. Ao examinar no Oxford English
sempre é o texto parodiado, em especial nas formas de arte do
século xx. DictionQ,ry a história
1696 emdiante, Howarddo Weinbrot
uso da palavra
(1964, paródia em inglês, que
131) argumentava de
Theodor Verweyen (1979) separou as teorias da paródia em o ridículo ou o burlesco não eram por certo os únicos sentidos
duas categorias: as que a definem pela sua natureza cómica e do termo, em especial na epopeia cómica do século XVIII, como
as que preferem acentuar a sua função crítica. O que é comum também já vimos. No entanto, esse século assinalou, de facto,
a ambos os pontos de vista, no entanto, é o conceito de ridículo. quer uma valorização do espírito, quer uma mistura quase para-
Como subgénero do cómico, a paródia torna o seu modelo cari- digmática de paródia e sátira, que tendeu a dominar nas tentati-
cato: esta é uma tradição. Mas mesmo como «departamento de vas subsequentes de desenvolver uma teoria da paródia; de então
crítica pura» (Owen Seaman, citado por Kitchin 1931, XIX) a para cá, a paródia tinha de ser engraçada e pejorativa, como decre-
paródia exerce uma função conservadora, e fá-Io através do ridí- tou o Abbé de Sallier em 1733. Mas, se já não aceitamos a limi-
cuio, mais uma vez. A maioria dos teóricos querem incluir o tação da forma da paródia a uma composição em verso de certo
humor ou a irrisão na própria definição de paródia (ver, por exem- tipo, por que haveríamos de aceitar uma limitação de ethosultra-
plo, Dane 1980; Eidson 1970; Falk 1955; Macdonald 1960; passada? Também dentro de uma perspectiva pragmática, mais
Postma 1926; Stone 1914). Era provavelmente por esta razão uma vez parece não haver uma definição trans-histórica da paró-
que Max Beerbohm achava que a paródia era mais especialidade dia; nada é provavelmente tão dependente culturalmente como
da juventude do que da sabedoria madura (1970, 66). o ethos. Por que há-de o modelo de Sallier (que apresenta a ati-
Para outros, todavia, a paródia é uma forma de crítica artís- tude do parodista para com o «alvo» como de agressão e crítica
tica séria, embora a sua acutilância continue a ser conseguida ridicularizadora) ser necessariamente relevante hoje - em espe-
através do ridículo. Reconhecidamente, como forma de crítica, cial tendo em conta que os textos paródicos modernos, de Eliot
a paródia tem a vantagem de ser simultaneamente uma reacria- a Warhol, sugerem o contrário? No entanto, como Wolfgang Kar-
ção e uma criação, fazendo da crítica uma espécie de explora- rer (1977, 27) documentou de forma tão extensiva, grande parte
ção activa da forma. Ao contrário da maior parte da crítica, a dos trabalhos sobre a paródia continuam actualmente a aceitar
paródia é mais sintética que analítica na sua «transcontextuali- esta limitação.
zação» económica do material que lhe serve de fundo (Riewald Existem algumas excepções a esta conclusão. Há um crítico
1966, 130). Entre os que defendem esta função da paródia que traça uma distinção útil entre as paródias que se servem do
(v_eJPavi~ 1951; Lea cock 1937; Lelievre 1958; Litz 1965), texto parodiado como alvo e as que se servem dele como arma
W. H.Aude"Il-)alvez seja o que a articulou de maneira mais (Yunck 1963). A última está mais próxima da verdadeira paródia

70 71
moderna, irónica, alargada, ao passo que a primeira é o que tem do modelo mais estático de Jakobson (1960) e entrando num qua-
sido considerado, de maneira mais tradicional, como paródia. dro de referência mais vasto. Este tipo de «situar» tem um inte-
Outra distinção semelhante é a diferenciação de Markiewicz resse óbvio para uma discussão da utilização contextual da ironia
(1967, 1271) entre paródia sensu largo, que é um refazer imita- na paródia. Dado que a ironia verbal é mais que um fenómeno
tivo, e paródia sensu stricto, que ridiculariza o seu modelo. Mas semântico, o seu valor pragmático é de igual importância e deveria
ambas dependem, mais uma vez, do cómico, e não, como eu ser incorporado como um ingrediente autónomo, não apenas em
prefiro, do irónico. Assinalar a diferença através da ironia é uma definições, mas em análises que envolvam o tropo. A recente
maneira de lidar com aquilo a que chamo o âmbito do ethos paró- insistência de Catherine Kerbrat-Orecchioni neste ponto tem um
dico ou aquilo a que outros chamaram a sua ambivalência (Alle- interesse particular, à luz do seu próprio trabalho anterior (1976),
mann 1956, 24; Rotermund 1963, 27). que comungava da tradicional limitação semântica a ironia à anti-
No fim do segundo capítulo sugeri que uma das razões para frase, à oposição entre um sentido pretendido e afirmado ou, sim-
a confusão termino lógica entre sátira a paródia reside na sua uti- plesmente, à marcação de um contraste (Booth 197 1974, 10;
lização comum da ironia como estratégia retórica. Os críticos Muecke 1969, 15). Mas este contraste semântico entre o que é
ajudaram a confundir-nos anunciando que «a sátira deve paro- afirmado e o que é significado não é a única função da ironia.
diar o homem" (Morton 1971, 35) e que a «ironia e sátira ocul-
tas contra o texto parodiado» constituem parte necessária do efeito
paródico de uma obra (Rose 1979, 27). Como sugere a última
- é frequentemente tratado como se fosse demasiado óbvio para
O seu outro papel de importância maior - a nível pragmático
justificar discussão: a ironia julga. Contudo, nesta ausência de /
li
,I

citação, a ironia parece, de facto, desempenhar o seu papel nesta diferenciação entre as duas funções parece-me residir uma outra
embrulhada taxonómica. Como tropo, a ironia é fundamental para chave a confusão taxonómica entre paródia e sátira.
o funcionamento da paródia, como para o da sátira, mas não A função pragmática da ironia é, pois, a de sinalizar uma ava-
necessariamente da mesma maneira. A diferença importante liação, muito frequentemente de natureza pejorativa. O seu escár-
emana do facto de a ironia possuir uma especificidade simulta- nio pode, embora não necessariamente, tomar a forma de
neamente semântica e pragmática (Kerbrat -Orecchioni 1980). expressões laudatórias empregues para implicar um julgamento
Logo, como verificámos em relação à paródia, a ironia deve ser negativo; ao nível semântico, isto implica a multiplicação de elo-
examinada de uma perspectiva pragmática, bem como da pers- gios manifestos para esconder a censura escarnecedora latente.
pectiva formal (antifrástica) vulgar. Uma abordagem pragmá- Ambas as funções - inversão semântica e avaliação pragmática ""-
tica que se concentre nos efeitos práticos dos signos é estão implícitas na raiz grega, eironeia, que sugere dissimula-
particularmente relevante para o estudo da interacção da ironia ção e interrogação: há uma divisão ou contraste de sentidos, e
verbal com a paródia e a sátira, porque o que se pode de tal estudo também um questionar, ou julgar. A ironia funciona, pois, quer
é uma exposição das condições e características da utilização do como antifrase, quer como estratégia avaliadora que implica uma
sistema particular de comunicação que a ironia estabelece den- atitude do agente codificador para com o texto em si, atitude que,
tro de cada género. Em ambas, a presença do tropo sublinha a por sua vez; permite e exige a interpretação e avaliação do des-
necessária postulação quer da intenção codificada inferida, quer codificador. Tal como a paródia, a ironia é também um dos «pas-
do conhecimento do descodificador, de molde a permitir a pró- sos inferenciais» de Eco (1979, 32), um acto interpretativo
pria existência da paródia ou da sátira como tais. . controlado, evocado pelo texto. Ambas devem ser, portanto, tra-
Poucos críticos discordam de que a interpretação da ironia tadas pragmática e formalmente.
envolve realmente que será para além do texto em si (o texto Nos primeiro e segundo capítulos um texto paródico foi defi-
como entidade semântica ou sintáctica) para chegar à descodifi- nido como uma síntese formal, na incorporação em si mesmo de
cação da intenção irónica do agente codificador. Trabalhos recen- um texto que lhe serve de fundo. Mas o duplicar textual da paródia
tes em pragmática (Warning 1979; Wunderlich 1971) têm tentado (ao contrário do pastiche, da alusão, da citação, etc.) tem por
definir o acto de linguagem como um acto «situado», indo além uma função assinalar a diferença. Partindo da dupla etimo-

72 73
logia do prefixo para, defendi que, a nível pragmático, a paró- até privilegiado. A patente recusa pela ironia da univocalidade
dia não se limitava a produzir um efeito ridicularizador (para semântica equipara-se à recusa pela paródia da unitextualidade
como «contra» ou «oposição»), mas que a sugestão igualmente estrutural.
forte de cumplicidade e acordo (para como «ao longo de») per- A segunda função, avaliadora, da ironia verbal tem sido sem-
mitia um alargamento do âmbito da paródia. Esta mesma distin- pre pressuposta, mas raras vezes discutida. Talvez que a difi-
ção entre sentidos de prefixos tem sido utilizada para defender culdade de localizar a ironia textualmente tenha feito com que
a existência quer dos tipos cómicos, quer dos tipos sérios da paró- os teóricos sett:t:!hªl]1.~sqllivado estudar esta outra função, muito
dia (Freund 1981, 1-2), mas pretendo ir além disto, utilizando-a importante;C!tUXQniª.:-- asuaninçãopfãgmáfíêàr. Quase todos
para diferenciar§ethos "da paródia do da sátira, examinando a eles estão de acordo em que o grau eteifóitónico num texto
sua utilização comum-dâironia como estratégia retórica. Se bem é inY.~I~rnent~.proporcional ao número de sinais abert()sºt:ç~s:-
que a paródia não seja, de forma alguma, sempre satírica (Clark sái[ospi1raélobtenção ctesseefeito (Alleman 1978, 32.~;.AJmansi
e Motto 1973, 44; Riewald 1966, 128-9), a sátira utiliza, com 1'97~( '422;' Kerbrai -Orecchioni 1977, 139). Mas<fis'~inais:devem
frequência, a paródia como veículo para ridicularizar os vícios por força existir dentro do texto, de forma a permífii ao desco-
ou loucuras da Humanidade, tendo em vista a sua correcção. Esta dificador inferir a intenção avaliadora do codificador. E a ironia
mesma definição orienta a sátira para uma avaliação negativa e é geralmente às custas de alguém ou de alguma coisa. Seria, por-
uma intenção correctiva. A paródia moderna, por outro lado, tanto, nesta função pragmática, e não semântica, que residiria
raramente possui tal limitação avaliadora ou intencional. A obra na pronta adaptabilidade da ironia trocista ao género da sátira.
deSylvia Plath tem sido vista como uma reelaboração (ou paró- Por outras palavras, nestas du~sfllIlções diferentes, embora
dia) feminista dos modelos do modernismo masculino que ela obviamente complementares, dq troporetórico da ironia pode-
herdou. O seu espírito competitivo poderia levá-Ia a opor-se a ria residir essa outra chave da confusão terminológica entre paró-
essa herança, mas ela também poderia ir buscar-lhe força (Oil- dia e sátira. Visto que ambas se servem da ironia, ainda que por
bert 1983). A outra diferença fundamental entre os dois géneros meio de afinidades diferentes (uma estrutural, a outra pragmá-
e, evidentemente, a da natureza - intramural ou extramural - tica), são com frequência confundidas uma com a outra. Isto dá
dos seus «alvos». à ironia uma importância crucial da definição e distinção entre
Voltemos agora às duas funções da ironia: a semântica, con- os dois géneros. Mas não podemos limitar a chamar a atenção
trastante, e a pragmática, avaliadora. Ao nível semântico, a iro- para os paralelos formais da ironia e da paródia, se queremos
nia pode ser definida como um assinalar de diferenças de sentido compreender a complexidade das implicações desta confusão
ou, simplesmente, como antifrase. Como tal, paradoxalmente, genérica: temos de considerar a pragmática, os efeitos práticos
ela tem origem, em termos estruturais, na sobreposição de con- dessa mensagem codificada, e depois descodificada, que vem a
textos semânticos (o que é afirmado / o que é intencionado). ser rotulada de paródica.
Existe um significante e dois significados, por outras palavras. Tenho vindo a argumentar que devemos considerar todo o acto
Dada a estrutura formal da paródia, tal como foi escrita no capí- da énonciati6Jn, a produção e recepção contextualizadas de tex-
tulo anterior, a ironia pode ser vista em operação a um nível tos, se queremos compreender o que constitui a paródia. Deve-
microcósmico (semântico) da mesma maneira que a paródia a mos, portanto, ultrapassar esses modelos de intertextualidade I
um nível macrocósmico (textual), porque também a paródia é texto / leitor, levando-os a incluir a intencionalidade codificada/
um assinalar de diferença, e igualmente por meio de sobreposi- e depois inferida e a competência semiótica. Nesta mesma direc!
ção (desta vez de contextos textuais, em vez de semânticos). Tanto ção, devemos também tentar expandir a visão orientada para o
o tropo, como o género combinam, pois, diferença e síntese, alte- receptor da interacção comunicativa paródica, cuja melhor repre-
ridade e incorporação. Devido a esta semelhança estrutural, gos- sentação é a da obra de Theodor Verweyen (1973, 1977). Tenho
taria de argumentar que a paródia pode servir-se, fácil e vindo a utilizar o termo ethos praticamente da maneira definida
naturalmente, da ironia como mecanismo retórico preferido, e pelo Groupe MU (1970, 147), mas com maior ênfase no processo

74 75
de codificação. Por ethos entendo a principal resposta intencio- Foi esse tipo de ira codificada, comunicada ao descodificador
nada conseguida por um texto literário. A intenção é inferida através da invectiva, que levou Max Eastman a descrever o âmbito
pelo descodificador, a partir do texto em si. Sob alguns aspec- da sátira como «graus de causticidade» (1936, 236). A sátira não
tos, pois, o ethos é a sobreposição do efeito codificado (tal como deveria ser confundida com a invectiva simples, apesar de tudo,
é desejado e pretendido pelo produtor do texto) e do efeito des- pois o objectivo correctivo do ridículo desdenhoso da sátira é
codificado (tal como é obtido pelo descodificador). Obviamente, central para a sua identidade. Ainda que a sátira possa ser des-
a utilização que faço do termo ethos não se assemelha à de Aris- trutiva (Valle-Killeen 1980, 15), existe também um idealismo
tóteles, mas está relacionada de perto com o seu conceito de implícito, pois ela é, com frequência, «descaradamente didác-
pathos, essa emoção com a qual o orador codificador procura tica e seriamente empenhada numa esperança no seu próprio poder
investir o ouvinte descodificador. Um ethos é, pois, uma reac- de efectuar mudança» (Bloom e Bloom 1979, 16). Existe, não
ção intencionada inferida, motivada pelo texto. Se quiséssemos obstante, um lado agressivo no ethos da sátira, como Freud e
postular um ethos para a paródia e a sátira, teríamos de incluir Ernst Kris (1964) observaram. Quando discutirmos a sobrepo-
igualmente o da ironia. Uma visualização simples das inter- sição da sátira e ironia, veremos que seria no extremo da escala
-relações resultantes assemelhar-se-ia à figura 1. irónica de ethos em que um desdenhoso riso amargo é suscitado
Embora este modelo simplicíssimo tenha a desvantagem de que a sátira se casaria com a ironia mais eficazmente.
parecer no papel tão estático como o de Jakobson (1960), deve Tradicionalmente, também se tem considerado que a paródia
ser visto como tomando a forma de três círculos sobrepostos e possui um ethos negativamente marcado: o ridículo. Em O Dito de
em constante movimento, variando as proporções da inclusão Espírito e as suas Relações com o Inconsciente, Freud (1953-74,
mútua em cada texto particular a ser considerado. Para uma maior voI. VIII) reduzia a paródia a «disparate cómico» (176), mas
clareza da análise, no entanto, cada ethos deveria ser discutido centrava-se depois na sua intenção simultaneamente agressiva e
no seu estado hipoteticamente isolado, antes de examinar as suas defensiva (201). O exemplo do ataque irónico de Beerbohm à
sobreposições. A simplicidade deste diagrama tornar-se-á ilu- confiança depositada por George Moore em Pater na secção de
sória uma vez que acrescentemos as inter-relações dinâmicas Dickens de A Christmas Garland (1921, 179-85) constitui um
triplas. exemplo do tipo de paródia que Freud teria em mente. Aqui,
A ironia'{erbal (não situacional) é representada na figura 1 Beerbohm «apanha» as digressões, vacuidade, gosto pela trivia-
por um círculo a tracejado para nos reco~dar que se trata de ull1a lidade e erros dos ensaios de Moore sobre Balzac e o impressio-
entidade diferente das outras: é umtrop()e não Ull1 génerq. nismo francês onde Tintoretto é flamengo, os modelos de
Mas também ele possui um ethos. O ethos geralmente aceite da Palestrina têm flancos estreitos e as cores de Renoir são «sub-
ironia é escarnecedor (Groupe MU 1978, 427). Neste sentido fuscas». O seu ataque irónico mais subtil surge com a sua des-
está «marcado» - no sentido linguístico do termo - pela codi- crição do motivo erótico na Arabella Allen, de Pickwick Papers
ficação de uma maneira definida: aqui, pejorativamente. (As Aventuras Extraordinárias do Sr. Pickwick):
Sem este ethos escarnecedor, a ironia deixaria de existir, por-
que o contexto pragmático (codificado e descodificado) é o que Strange thoughts ofher surge up vaguely in me as I watch
determina a percepção da distância ou contraste entre contextos her - thoughts that I cannot express in English [' .. J Elle
semânticos. Este ethos contém, todavia, dentro de si mesmo uma est plus vieille que les roches entre lesquelles elle s 'est assise;
graduação, que vai do risinho ligeiro à mordacidade irónica comme le vampire elle a été jréquemment morte, et a appris
acumulativa do refrão repetido por Marco António «Bruto é um les secrets du tombeau (184-5).
homem honrado» em Júlio César.
A sátira, como a ironia, possui um ethos marcado, que é ainda A estupenda ironia aqui é que essas palavras, escritas em fran-
mais pejorativa ou negativamente codificado (Morier 1961, 217). cês por não poderem ser expressas em inglês, são uma tradução
A este pode-se chamar um ethos desdenhoso ou escarnecedor. das palavras inglesíssimas de Pater utilizadas para descrever

76 77
a Mona Lisa. Este mesmo marcar pejorativo do ethos da paró- mais familiares como veículo para a sua sátira, para acrescentar
dia pode ser encontrado hoje, por exemplo, na intenção inferida ao impacto inicial e reforçar o contraste irónico. O discurso de
por detrás das figuras entumecidas de Fernando Botero em geral, Jacques das Sete Idades do Homem, em As You Like It (Como
mas, em particular, nas paródias aos retratos de Rubens da sua Lhe Aprouver, II, rn) foi utilizado como forma de lançar ataques
segunda mulher. Da mesma forma, a famosa e polida pintura a tudo, desde a intemperança à inaptidão política. The Weekly
de Napoleão, da autoria de David, no seu gabinete de trabalho Dispatch patrocinou uma série de sátiras, formalmente basea-
é posta a ridículo pelo carácter incompleto da pintura de Larry das no famoso solilóquio de Hamlet To be or not to be, mas
Rivers, ironicamente intitulada The Greatest Homosexual. visando o fiasco do Canal de Suez (5 de Agosto de 1883).
Há até uma paródia aos elementos de composição de David: a Em nenhuma destas sátiras o texto parodiado era ridicularizado;
assinatura floreada do nome do pintor num rolo de papel é alte- logo, o ethos da paródia não era negativo, ainda que o da sátira
rado para um stencil pouco romântico e nada individualizador. o fosse.
À luz de paródias como estas, há a tentação de concordar com A marcação possível muito positiva do ethos da paródia é clara
a tradicional marcação pejorativa do ethos paródico. Mas apren- no respeito que muitos artistas mostram no seu tratamento paró-
demos com outras formas de arte modernas que a distanciação dico das obras-primas consagradas da arte moderna. O Peixe Dou-
crítica entre a paródia em si e o texto que lhe serve de fundo rado, de Matisse, como fundo para a Still Life with Gold Fish,
nem sempre conduz à ironia às custas da obra parodiada. Tal de Lichtenstein, não é escarnecido, apesar das alterações feitas:
como as epopeias cómicas de Pope (Paulson 1967, 6), muitas o aquário foi ampliado e centrado; as formas planas de Matisse
paródias actuais não ridicularizam os textos que lhes servem de foram ainda mais aplanadas; a janela azul e vazia do original
fundo, mas utilizam-nos como padrões por meio dos quais colo- foi preenchida por edifícios tirados do anterior Interior com Peixe
cam o contemporâneo sob escrutínio. O verso modernista de Eliot Dourado, de Matisse; um pormenor de um retrato a traço que
e Pound é provavelmente o exemplo mais óbvio deste tipo de lembra o próprio Matisse, foi acrescentado (Lipman e Marshall
atitude, a qual sugere um ethos quase respeitoso ou deferente. 1978,87). Da mesma forma, Tom Wesselmann presta homena-
Mas, mesmo no século XIX, quando a definição ridicularizadora gem a Matisse no seu Grande Nu Americano n. o 26. Trata-se
da paródia era a mais corrente, vimos que este tipo de reverên- de uma paródia às pinups eróticas, mas também de um tributo
cia era muitas vezes percebida como subjacente à intenção da ao Nu Cor de Rosa, de Matisse, nas suas cores, pose e linhas
paródia. Os volumes de recolhas de paródias de Hamilton gerais. No entanto, a inclusão de uma reprodução de A Blusa
(1884-9) revelam que as obras são parodiadas na proporção da Romena, de Matisse, cria uma dimensão satírica: a postura reca-
sua popularidade. Citando as palavras de Isaac d'Israeli, «os paro- tada e o traje europeu comentam ironicamente o aparentemente
distas não desperdiçam o seu talento em produções obscuras» desavergonhado nu americano. Semelhantes relações de respeito
quando apresentam os seus «galhofeiros respeitos» (1886, 1). Por poderiam ser vistas entre Jasper Johns e Duchamp ou Richard
estas recolhas, podemos ver que Tennyson, Browning e Gray Pettibone e Stella. É, no entanto, importante não esquecer que
(pela Elegy) são seguidos de perto pelos mais reverenciados dos esta variedatle reverente de paródia é como o tipo mais pejora-
seus predecessores: Milton e Shakespeare. tivo num aspecto significativo: também aponta para a diferença
O que também se torna claro com estas paródias é a razão para entre textos. Muito embora a paródia marcada pelo respeito se
a retenção de um ethos rígido, negativamente marcado para ache mais próxima da homenagem do que do ataque, essa dis~
a paródia, apesar das provas em contrário: estas paródias res- tanciação crítica e marcação de diferença continua a existir.
peitosas eram utilizadas para fins satíricos. Mais uma vez, a con- Por estas razões, o ethos postulado para a paródia deveria pro-
fusão genérica faz a sua entrada. Não é Shakespeare que é vavelmente ser rotulado de não marcado, com uma série de pos-
escarnecido nas muitas paródias tópicas, satíricas, dos seus dis- sibilidades de ser marcado. De acordo com o sentido oposicional
cursos mais conhecidos que surgiram na Punch e noutras revis- do prefixo para (como «contra»), podemos postular uma forma
tas. Os satiristas optaram por servir-se das paródias aos textos desafiadora ou contestatária da paródia. Este é o conceito mais

78 79
comum do género, aquele que exige um ethos ridicularizado r.
Abundam os exemplos daquilo a que tradicionalmente chama-
mos paródia: Orphée aux Enfers) o Orfeu no Inferno, de Offen-
bach, é uma inversão paródica do sério mito grego, ao nível do ~
-- o;:l
o~+-'U)--l;;'S.s.c:~Z;:lO'o....,U)Q)C•>o•...Q)o::U)~•......;:loQ)ooai§I .::loo;::bDS;;'SoQ)Sc
....Q)
.....•

t-ook
CI1
....
C)
•...
""'<:o
<O
"-<Q)

~~aÍ
<:O
;:l
.::.:
....,
.c:
U)•...
.... 'O
libreto. Ao nível musical, a sua paródia escarnecedora de Orfeu CI1
....,
....
ll)
CJ)U)
<:O
..c::
;:l ·iiJ
.::.:
;;:
<:O
<:,>.
<:)o
<:O
'<:0<:O
<:O

<:O

e Eurídice, de Gluck, na abertura é sublinhada pela melodia e


ritmo de can-can incongruentes.
Não obstante, precisamos igualmente desse outro sentido de
para como «próximo de» para poder explicar o ethos mais res-
peitoso ou deferente que pode ser reclamado, não só para muita
da arte moderna, mas para a paródia litúrgica primitiva (Frei-
denberg 1974, 1975) e, sob alguns aspectos, até para o carnava-
lesco bakhtiniano (1968). O verdadeiro antepassado deste ethos
é, provavelmente, a imitação clássica e renascentista. A utiliza-
ção feita por Spenser do Ariosto na Faerie Queene é simultanea-
mente um tributo ao mestre e uma incorporação suplantadora.
Por isto, à sua prática pode chamar-se paródica, como poderia,
todavia, chamar-se à de Luciano Berio na sua Sinfonia. Na capa
do disco (Columbia MS 7268), Berio explica que a terceira sec-
ção da sua obra pretende ser uma homenagem a Mahler:

A minha intenção aqui não era nem destruir Mahler


(que é indestrutível), nem representar um complexo pes-
soal acerca da «música pós-romântica» (não tenho nenhum),
nem sequer desfiar alguma enorme anedota musical (fami-
liar entre os jovens pianistas). As citações e referências
foram escolhidas não só por causa da sua relação real, mas
também pela sua relação potencial com Mahler.

O terceiro movimento da Segunda Sinfonia de Mahler é utili-


zado como um «receptáculo» para a paródica «transcontextuali-
zação» de dúzias de citações de outros compositores. A obra de
Berio é menos composta do que reunida, de maneira a permitir
a percepção da diferença pelo ouvinte, através da transforma-
ção mútua de todas as partes que a compõem.
Além deste ethos reverente da paródia, existe pelo menos uma
outra marcação possível: mais neutra ou galhofeira, próxima de
um grau zero de agressividade, quer perante o texto de fundo,
quer o de primeiro plano. Aqui, a mais ligeira das ridiculariza-
ções de que ironia é capaz encontra-se envolvida no sinal paró-
dico da diferença. O tríptico de Lichtenstein, segundo três das

80
:2 René Magritte,
'Perspective (Le Balcon
Ide Manet), 1950. 4 F. J. de Goya,
©ADAGP Paris 1985.
As Majas na Varanda
Fotografia: Raf Van den Direitos reservados,
'Aeele; cedida por Museum The Metropolitan Museum
Van Hedendaagse Kunst, of Art.
Gante.
Doação da Sr.ª H.O.
Havemeyer, 1929, H.O.
Havemeyer Collection

3 Edouard Manet,
Le Balcon.
Fotografia: cedida por 5 Mel Ramos, Plenti-Grand Odalisque, 1973.
Musées Nationaux - Colecção Daniel Filippacchi; fotografia: cedida por
Louis K. Meisel Gallery, Nova Iorque.
Paris (Jeu de Paume).
6 J. A. D. Ingres, La Grande Odalisque. Fotografia: cedida por Musées Nationaux - Paris (Louvre).
[FJ

.;::
GIl
p.,
I
X
;:l
~
GIl

.S
+-'
GIl

Z
[FJ
O)
,O)
[FJ
;:l
.,..,
"'"
'-<
o
o..
GIl
"O
UO)
()
.~
'>-<
GIl
'-<
bJJ
o
+-'
o
1",

lr":>
00
m
ri
[fJ
U
~
r=l

@
o
U":l
m
ri
.;
'\l)
'-
o
U
>::
\l)
'"
~
()
a
'"
'"
a
~
o~
lfJ
lfJ
<:ti
()
p:;
o

GIl
p.,

8 Jacques-Louis David, Napoleão no seu Gabinete de Trabalho. m

National Gallery af Art, Washington; Samuel H. Kress Collection


1961 (Francês, 1748-1825; Data: 1812; Tela: 2,039X1,25l).
vistas de Monet da Catedral de Ruão, é talvez um exemplo desta
marcação. Lichtenstein amplia e separa os pontos de cor de
Monet, revertendo assim a técnica poíntillíste e tachíste que deixa
que os olhos fundam as unidades de tinta. Nesta irónica inver-
são, ele escarnece as teorias ópticas da pintura, especialmente
do cliché que afirma que não é possível entender uma pintura
deste tipo antes de haver uma distanciação física dela. Outro
E
'Q)
exemplo deste ethos brincalhão que derruba dos pedestais seria
.c:
ç:: a «escultura» de Robert Rauschenber, Odalisk. O seu título coloca-
ç::
oU -a numa relação paródica com as odalisques, de Ingres e de
2:
(])
Matisse. A mudança de linguagem, como veremos em breve,
~ oU
é, já por si, um sinal. A obra consiste numa caixa num poste,
.c:
-+-'
[fj
que se assemelha, suponho, a um torso e uma perna. Esse poste
§ está firmemente ancorado numa almofada, o símbolo tradicio-
~ nal da lúxuria nas pinturas anteriores. Os lados da caixa são deco-
(])
.c:
(.) rados com reproduções, quer de nus clássicos, quer de pínups
.
-+-'
~ modernas, e toda a caixa está envolvida num véu típico de harém .
:'g
-+-' O toque brincalhão final é talvez a galinha empalhada, posta em
w.
t- cima da caixa. Dada a mudança de linguagem do título, esta pre-
<.O
00 tende, provavelmente, ser uma visualização ou um trocadilho
,...,

2 literalizado da expressão francesa que designa uma cortesã dis-


~ pendi osa - a poule de luxe. O que é importante ter em mente
'E aqui, todavia, é que a paródia - seja qual for a sua marcação
'f;j - nunca é um modo de simbiose parasitária. Ao nível formal,
o
~ é sempre uma estrutura paradoxal de sínteses contrastantes, uma
~
"O espécie de dependência diferencial de um texto em relação a outro.
I::
.8
"-'
O ethos destas três entidades - paródia, ironia e sátira - foi
::3
ü discutido, até agora, apenas num estado hipoteticamente puro
,~
~
" que, de facto, raramente existe na prática artística. É por isso
....:]
que o modelo utiliza CÍrculos sobrepostos e em movimento. (A
-+-'~
(])
ironia, tal como o tropo utilizado para ambos os géneros, deve
ç::
oU obviamente obter o máximo de espaço para se movimentar. Se,
2: dentro do ethos escarnecedor da ironia, existe uma gradação -
"O
•..
oU do riso desdenhoso ao sorriso conhecedor - então, no ponto em
;:l
"O
o que a ironia se sobrepõe à sátira será esse riso desdenhoso que
ji.1
se fundirá com o ethos escarnecedor da sátira (o que sempre
o
,...,
implica uma intenção correctiva). Por exemplo, em Dublíners
(Gente de Dublin), Joyce visa seriamente os valores e costumes
de uma cidade que ele simultaneamente amou e odiou. Mas em
altura alguma ele chega a ter de articular directamente a sua inten-
ção satírica; pode deixá-Ia ao veículo da sua ironia selvaticamente

81
avaliadora (ver Hutcheon e Butler 1981). No outro extremo da por um lado, um tipo do género paródia (nos termos de Genette
escala irónica está o sorriso afectado, o sorriso sabido do leitor (1979) que é satírico e cujo alvo é ainda outra forma de discurso
que reconhece o jogo paródico de Stanislaw Lem, por exemplo. codificado: Zelig, de Woody Allen, ridiculariza as convenções
A Perfect Vacuum, de Lem (1978, 1979), contém inteligentes da televisão e do documentá rio cinematográfico.
recensões borgesianas de livros inexistentes que parodiam as con- Por outro lado, além desta paródia satírica, há a sátira paródica
venções literárias. Muitas, por exemplo, são suaves ataques escar- (um tipo do género sátira) que visa algo exterior ao texto, mas
necedores ao nouveau romano Uma, que de diz ser a recensão que emprega a paródia com veículo para chegar ao seu fim satÍ-
de um romance publicado pelas Éditions du Midi (em vez de rico ou correctivo. Num mundo pós-nietzscheano que aceita a
Minuit), chama-se Rien du tout, ou la conséquence. Somos infor- morte de Deus, Bertolt Brecht pôde ainda parodiar as estruturas
mados de que o seu tema é o nada beckettiano muito em voga, convenientemente familiares da Bíblia na sua obra satírica, Ascen-
o não ser, a negação; de facto, trata de rien du tout. são e Queda da Cidade de Mahagonny. A inversão da fuga dos
A sobreposição do ethos dos géneros da paródia e da sátira israelitas, de Moisés como chefe, e de Cristo como salvador é
(envolvendo, geralmente, também a ironia) resultaria na infe- paródia utilizada com intenção satírica, ainda que (acharam
rência, por parte do descodificador, de uma intenção codificada alguns) com uma boa dose de um sentimento eliotiano implícito
difusa. Com uma paródia marcada pelo respeito, tal poderia apre- de evocação de um mundo perdido de dignidade humana. O con-
sentar um reconhecimento de, ou até uma deferência para com, texto cristão parece ser rejeitado, ao mesmo tempo que se aspira
o texto parodiado, com o «alvo» difuso talvez incluído na parte a ele (Speirs 1972, 162-9), no ataque de Brecht à «cidade do
que é colocada em primeiro plano no texto. As homenagens de paraíso» do materialismo. Os mandamentos tornam-se sinais pres-
Chaim Soutine a Rembrandt nas suas pinturas de carcaças de bois critivos paródicos num mundo que normalmente oferece «calma,
surgem-nos à lembrança. Na sua marcação contestatária, esta concórdia, whisky, mulheres» (Brecht 1979, 2, III, 23). Brecht
sobreposição paródica com a sátira levaria, provavelmente, a um pode repelir com desdém o modelo cristão de transcendência pro-
desafio cínico. O lirismo e harmonia formais e referenciais do videncial, mas são as semelhanças entre Cristo e o involuntário
Angélus du soir, de Millet, transformam-se ironicamente nas e relutante redentor, Jimmy, que se tornam mais evidentes à
modernas visões petrificadas da ilustração de Dali para Les Chants medida que a obra se desenrola: o julgamento do empobrecido
de Maldoror e Reminiscências Arqueológicas do Angélus de Mil- Jimmy tem o seu Barrabás (Toby Higgins) e, antes da sua morte,
let, bem como na máscara mortuária de O Atavismo do Crepús- Jimmy pede água e, a seguir, trazem-lhe vinagre. A acrescentar
culo. Claro que Dali estava obcecado por esta pintura e chegou à utilização estrutural da paródia feita por Brecht ao nível do
a escrever um longo estudo psicosexual sobre ela (1963), enredo, a música de Kurt Weill também é paródica na sua reei a-
porque lhe aparecia constantemente como um intruso na sua boração respeitosa, mas contextualmente irónica e propositada
vida - como desenho em chávenas de chá, estampas, postais do Messias, de Handel. A combinação dos dois modos de paró-
e até rótulos de queijo. A paródia às formas artísticas veio a ser dia com o ethos de desprezo da sátira faz desta obra um dos exem-
utilizada por Dali como sátira dos clichés de uma sociedade de plos mais claros e mais complexos da sátira paródica. O próprio
consumo. Semelhante sobreposição de paródia e sátira pode ver-se Brecht afirmou que Mahagonny prestava «tributo consciente à
na obra de Francis Bacon. O retrato imponente do Papa Inocên- irracionalidade da forma operática» com o seu realismo minado
cio X, de Velàsquez, reflecte a estabalidade, coerência e poder pela música (1979, 2, III, 87), mas que o seu objectivo reál era
de um mundo passado; as versões paródicas de Bacon transfor- «mudar a sociedade» (90).
mam o trono numa jaula que parece uma cama, fazendo com Mas haverá algum momento em que os três círculos do nosso
que a autoridade ceda o passo à restrição e ao terror. diagrama original se sobreponham totalmente, sem eclipsar nada?
Há duas direcções possíveis que a sobreposição de paródia e A havê-Io, envolveria ambos os géneros, utilizando ambos o tropo
sátira podem tomar, dado que o objectivo da paródia é intramu- irónico na sua capacidade máxima. Este seria o momento de
ral e o da sátira é extramural - isto é, social ou moral. Existe, subversão potencialmente máxima - quer em termos estéticos,

82 83

i
11'

I
...1
quer sociais. E seria também o momento da suprema sobrede- -Palais, ao mesmo tempo. Bonjour Monsieur Manet não escar-
terminação pragmática. Poucas obras nos vêm à memória, mas necia realmente, nem de Manet, nem da outra exposição; quando
A Modest Proposal (Proposta Modesta .... ), de Swift é, por certo, muito, actuava como um outro tributo a um artista que era,
uma delas. Se uma interacção de ethos tão complexa é possível, por sua vez, considerado um grande utilizado r das formas de
o nosso diagrama simples original tem de ser necessariamente outros pintores. Com efeito, numa época de ideologia natura-
transformado, como acontece na figura 2. lista documental, Manet era considerado um pasticheur, tirando
Ao nível pragmático, podemos ver agora mais claramente essa o plano geral do seu Déjeuner sur l 'herbe, de Rafael, e o tema
outra razão para a confusão dos géneros da paródia e da sátira, em si de Ticiano (Clay 1963,6). Nada mais adequado, pois, do
a que reside na sua utilização comum da ironia. No segundo capí- que montar uma contra-exposição que mostrava como outros se
tulo, como aqui, a relação hermenêutica e formal próxima entre tinham inspirado em Manet e, dessa forma, chegado a acordo
paródia e ironia era sugerida. Ambas estabelecem aquilo a que com o próprio Manet. Muitas vezes, o método de substituição
Michael Riffaterre chama uma dialéctique mémorielle (l979-b, era a paródia, e o leque inteiro do seu ethos era visível. Ainda
128) no espírito do descodificador. Trata-se de um resultado da mais complexa que a relação mais ou menos respeitosa de Matisse
sua dupla estrutura de sobreposição comum, que, não obstante, com Manet (Forcade 1983) é a de Picasso (Bernadac 1983). Uma
assinala paradoxalmente diferença - em termos semânticos ou das primeiras pinturas de Picasso chama-se Paródia à Olímpia
textuais. Esta dependência diferencial, ou mistura de duplica- de Manet. Servindo-se do mesmo modelo, mas indo mais longe
ção e diferenciação, quer dizer que a paródia funciona intertex- que Cézanne na sua Olímpia Moderna (embora não tão longe
tualmente como a ironia funciona intratextualmente: ambas ecoam como Robert Morris na sua obra de «performance minima!», Site),
para marcar mais diferença que semelhança. É esta ambivalên- Picasso inscreveu-se a si mesmo na nova obra e inverteu as con-
cia paradoxal da ironia que permite a Thomas Mann servir-se venções do original (já de si tomadas da Vénus de Urbino, de
da paródia para expressar tanto o seu respeito, como as suas dúvi- Ticiano): Olímpia é negra, a criada é susbtituída por um amigo,
das acerca da tradição literária (Heller 1958b; Honsa 1974). Con- os frutos substituídos por flores. Por outras palavras, o voyeu-
tudo, a interacção entrei Doctor Faustus e o Fausto, de Goethe, rismo implícito do original é ironicamente reelaborado dando a
é tão essencialmente de 'diferença como o é a paródia mais tradi- sugerir uma cena de bordeI. Mas L 'Exécution de Maximilien,
cionalmente ridicularizaqora do texto de Goethe que encontra- de Manet (que é, já por si, um eco do Tres de Mayo, de Goya),
mos em Faust, de Robért Nye. é utilizada de maneira algo diferente como estrutura paródica
Um leque de ethos pragmático está com frequência implícito de fundo para Massacres en Corée, de Picasso. Aqui, o propó-
nessas distinções entre tipos de paródia: negativo versus cura- sito parece ser aumentar o horror e o drama através do contraste
tivo (Highet 1962); crítico versus divertido (Lehmann 1963); afir- irónico de massacres anónimos plurais com a execução român-
mativo versus subversivo (Dane 1980). Prefiro manter a ideia tica individual. Ao contrário da sua anterior paródia escarnece-
de um leque de ethos intencionais, em vez de tipos formais de dora mais suave ou das suas múltiplas reelaborações de Las
paródia opostos, por causa da semelhança estrutural gue sustenta Meninas, de Velàsquez, esta sátira paródica tem um ethos nega-
todos estes tipos (repetição com diferença crítica). E na dimen- tivo mais fortemente marcado.
são pragmática que reside a diferença entre tipos de paródia, e Nenhuma destas obras é realmente ridicularizadora, contudo,
o centrarmo-nos nesse facto poderia também explicar a distin- quero chamar-lhes paródias, tal como os seus criadores fizeram
ção, ao invés da confusão, entre a paródia e sátira: paródia cura- com frequência. Rosamund Tuve (1970) encontrou-se numa posi-
tiva parece-nos perigosamente próximo de sátira. ção semelhante ao tentar descobrir por que tinha Herbert cha-
Uma das manifestações mais evidentes do alcance possível do mado a um dos seus poemas A Parodie. O poema sacralizava
ethos paródico pode ver-se na exposição que teve lugar no Cen- uma canção de amor secular, Soules joy, now Iam gone. Para
tro Pompidou, em Paris, no Verão de 1983, que foi organizada explicar quer o título não inocente, quer a natureza não ridicula-
como contraponto à principal exposição de Manet, no Grand- rizadora deste tipo de paródia, Tuve virou-se para a paródia

84 85
· musical, porque Herbert era músico e pode ter pretendido pôr tÍmento (as variações de Dudley Moore sobre a marcha do Colonel
o poema em música, e porque o conceito de paródia musical Bogey, em Beyond the Fringe), até ao amor e respeito (os famo-
é muito mais amplo. Numa das suas formas, a contrafacção é, na sos Concertos de Gala, de Victor Borge), mesmo dentro deste
realidade, apenas uma forma deliberada de imitação (Verweyen segundo sentido de paródia musical.
1973,8-9). A prática de Herbert está muito próxima do que vimos O primeiro é, contudo, potencialmente o mais frutuoso aqui:
na paródia moderna: ele remodelou formas familiares para a paródia como transmutação e remodelação de formas musi-
dizer qualquer coisa de sério com um impacto maior (Freeman cais existentes (Finscher e Dadelsen 1962, 815) sem qualquer
1963, 307). intenção cspecificativa ou ridicularizadora. Isto não quer dizer
A analogia musical a que Tuve recorreu para explicar o tipo que o ridículo não seja possível. Pelo contrário, é um entre um
de paródia de Herbert é sugestiva. Em música, a paródia tem leque de ethos possíveis ou de respostas pretendidas. O facto de
dois sentidos distintos que lembram o âmbito de ethos paródico outros artistas além de Herbert poderem ter tido uma noção musi-
que temos vindo a examinar. O seu primeiro sentido está mais cal da paródia é sugerido pela observação do parodista John Barth,
próximo do ethos respeitoso da paródia ou até da prática renas- recordando o seu primeiro treino em música na Juilliard:
centista da imitação. Como género, a paródia musical é uma ree-
laboração aceite de material preexistente, mas sem intenção No fundo, continuo a ser um fazedor de arranjos, cujo
ridicularizadora. O New Grave Dictionary of Music and Musi- máximo prazer literário é pegar numa melodia recebida
cians define paródia, neste sentido, como um exerCÍcio genui- - um velho poema narrativo, um mito clássico, uma con-
namente recriativo de variação livre. Vimos que a paródia se venção literária enxovalhada, um pedaço da minha expe-
tornou, mais uma vez, importante na música moderna, mas há riência, uma série da New York Times Book Review - e,
um elemento que tem de ser acentuado, que reforçaria a defini- improvisando como umjazzman dentro das suas restrições,
ção de paródia como repetição, mas repetição com diferença: reorquestrá-la para o propósito presente (1982, 30).
na paródia musical que é a Pulcinella, de Strawinsky, há uma
distância entre o modelo e a paródia que é criada, por meio de Parte desse propósito presente é mostrar diferença, diferença
uma dicotomia estilística. Isto é verdadeiro até em relação ao irónica, bem como semelhança.
ethos reverente da paródia em música: Prokpfiev prestou tributo A ironia pode ser simultaneamente incluir e excluir; sugere
ao espírito e urbanidade de Haydn e outros na sua Sinfonia Clás- tanta cumplicidade como distância. Nisto, parece-se com o fun-
sica, mas continua a existir um sentido de diferença. cionamento do riso, quer social (Dupréel 1928, 228-31), quer
Isto é mais evidente no segundo sentido, não genérico, da paró- psicologicamente (Levine 1969, 168). Mas dizê-Io não equivale
dia musical - a noção mais tradicional de uma composição com a equacioná-la como riso ou o ridículo. A ironia, ao exigir códi-
intenção humorística. Frequentemente, este tipo de paródia em gos comuns para a compreensão, pode ser uma estratégia tão
música, como nas outras artes, é um fenómeno limitado, exclusiva como o ridículo. É uma força tão potencialmente con-
restringindo-se geralmente à citação de temas isolados, ritmos, servadora camo o riso correctivo, escarnecedor. A paródia que
acordes, etc., e não à reelaboração mais global que funde ele- exibe ironia para estabelecer a distância crítica necessária para
mentos antigos e novos e que caracteriza quer a paródia musical a sua definição formal, trai também uma tendência para o con-
do século XVI, quer a moderna. Neste tipo mais tradicional de servadorismo, apesar do facto de ter sido louvada como o para-
paródia, nobres fraseados reconhecíveis são muitas vezes apli- digma da revolução estética e da mudança histórica. É para este
cados a temas inapropriados, como quando Debussy recorda Tris- paradoxo da paródia que nos dirigiremos agora.
tan und Isolde na sua Golliwog's Cake Walk. Tal como na
literatura ou na pintura, este tipo de paródia tem frequentemente
uma pulsão conservadora exagerando idiossincrasias estilísticas.
O âmbito do ethos paródico permite tudo, desde o simples diver-

86 87

Você também pode gostar