Você está na página 1de 56

EDITORIAL P(ftESENÇA

ORIGENS DA FILOSOFIA BURGUESA


DA HISTORIA
MAX HORKHEIMER

ORIGENS
DA
FILOSOFIA BURGUESA.
DA,
HISTORIA

EDITORIAL li I
PRESENCA
INTRODUÇÃO

por Alfred Schmidt

Enquanto toda a filosofia social apresentar como seu


resultado final algumas teses •. . encontra-se ainda muito
imperfeita; não precisamos tanto de meros resultados, ~as
muito mais do trabalho de investigação («Studium»). Os re-
sultados de nada servem sem o desenvolvimento que os pro-
duziu - já o sabemos desde Hegel - e os resultados são
ainda piores que inúteis, quando se estabelecem para sempre
e se não deixam retransformar em premissas.

Friedrich Engels, 1844 em


Deutsch-Franzõsischen Jahrbücher

Torna-se cada vez mais evidente nos argumentos contra e a


favor da actual discussão sobre aquilo que, como teoria crítica,
Título original: influenciou a autoconsciencialização do movimento de protesto es-
ANFÃNGE DER BüRGERLICHEN GESCHICHTSPHILOSOPHIE tudantil, sobretudo no nosso país, que mesmo aos olhos de alguns
© Copyright by S. Fischer Verlag GmbH, Frankfurt am Main, 1970 dos seus apoiantes, a história desta teoria se apresenta pmito pouco
Tradução de Maria Margarida Morgado clara. A tendência, da consciência dominante, de rejeitar desde logo
Ilustração da capa de Rui Ligeiro como meramente arquivável o pensamento histórico, estende-se tam-
Reservados todos os direitos bém aos outros. Na maior parte dos casos a sua argumentação parece
para a língua portuguesa à bem mais fraca do que seria de esperar à luz das realizações objec-
EDITORIAL PRESENÇA, LDA. tivas da Escola _de-Frankfurt. Renova-se então e sempre a discussão
Rua Augusto Gil. 35-A - 1000 LISBOA entre ~QE!<?logQS q~ çrientação .analítica e. a0:Iternativa empirismo-

7
-especulação, há muito considerada equívoca, sobretudo porque os hoje a teoria crítica, qual a importância dos seus problemas e dou-
mais jovens defensores da dialética ainda não conseguiram definir trina poderia ser formulada mais concretamente do que até aqui o foi.
adequadamente a sua relação com a filosofia, nomeadament~ Jt Que uma breve introdução se limite a esboçar levemente a
hegeliana. m:_oblemática..!i~o~fico:histórica exposta nestes trabalhos e nem se
De grande pertinência seria então a nóvel investigação dos atreva a discuti-la, é compreensível. Contudo, o leitor que agora
primeiros escritos de Horkheimer, o verdadeiro fundador da escola, começa a estudar Horkheimer precisa ser alertado para certos pontos
que conjugam, em ~~ct tradição marxista, com o retomar da dia- fundamentais.
lética, a mais mordaz crítica ao idealismo heg~liano çom• •.
os - o.\.,gue..,··-
.·· .►-'
a·v·-
'
o -, Horkheimer nunca apresenta as suas .ideias sob uma forma
¾é extramamente actual--:.. métodos das ciências do espíritô;('Uma codificada (o que é uma característica da totalidade da sua obra),
coisa sabemos com certeza: que estas obras se afastam muito menos desligadas dos objectos do seu interesse, mas sempre de um modo
do plano seu rival de inimizada «filosófica» da ciência do que ou- crítico e Jelacionadas com o presente do material histórico. É por
tros trabalhos posteriores do homem de Frankfurt, surgidos aliás isso que encara sempre a história da filosofia sob o aspecto de uma
noutras circunstâncias. Se Horkheimer pretendia, no início dos anos .filosofia da história. Esta obra demonstra de modo paradigmático
30, realçar a necessidade de uma mais rígida investigação dos factos como deveria ser uma história da filosofia escrita segundo os prin-
em relação às construções vazias da filosofia social de então, durante cípios do materialismo em função dos seus métodos. Nunca aquela
os anos 50 e 60 tornava-se necessário, face à superioridade dos mé- disporia de um esquema de interpretação acabado e que se manteria
todos empíricos na sociologia, insistir na vitória da necessidade im- abstracto-idêntico (como é o caso na maior parte da literatura mar-
preterível de um pensamento teórico específico. Isto poderia, por xista), pois seria enriquecida a nível do conteúdo, quer dizer, modifi-
sua vez - como o provam as controvérsias com Adornoser assaz cada em relação ao objecto «representado».
mal compreendido, como se a consciencialização crítica, que não Falemos então resumidamente do contributo do conceito de
capitula perante limitações sociológicas ou do trabalho, conduzisse ~i~t,?ria de Horkheimer para o do conhecimento. Se a sua execução
a uma «sociologia de visão do mundo» empiricamente não legiti- é encarada como um momento produzido (e produtor) do conflito
mada. O que não se poderia aplicar a Adorno, permanentemepte _e_ntre a natureza e a sociedade 1 torna-se impossível desenvolver uma
orientado, através de uma auto-reflexão do empirismo, no sentido «teoria do conhecimento» que erradamente, se julga no mundo real,
capaz de se situar de uma vez por todas acima da relação sujeito-
de assegurar de tudo o direito deste ao conhecimento «concreto».
-9bjecto; porque o «ser espiritual do homem» permanece «refugiado
Por tudo isto recomenda-se hoje que se deite um segundo olhar
no processo de vida do corpo social, ao qual pertence e que deter-
aos primeiros trabalhos de Horkheimer. Principalmente por duas
mina a sua actividade. A realidade não é nem uma coisa compacta,
razões: Neles se exprime globalmente, com maior força do que em nem a consciência de um espelho em branco, . . . que pode ser em-
outras publicações posteriores da escola, o equilíbrio próprio dos baciado ou limpo por sábios.' Mas toda a realidade ·é idêntica ao
empíricos em relação à teoria, consequência da crítica ao idealismo,. processo de vida da humanid~cle, no qual nem a natureza nem a
que já mencionámos. A outra razão é que estas Q!?ras pode!!!__!QI.. de... sociedade, nem mesmo as suas relações se mantém inalteráveis:»(1 ) ·
grande ajuda para situar historicamente a teoria crítica como uma
interpretação específica do marxismo, produzida por circunstâncias, ( 1) «Afãnge der bürgerlichen Geschichtsphilosophie» ( Primórdios da
únicas. À luz de um tal posicionamento, a pergunta sobre o que é Filosofia burguesa da história), p. 55.

8 9
Que o conhecimento não exprime qualquer razão imutável .das coi- tura lógica dos conceitos ambiciosos, nem a pretensão de validade
sas, mas que como momento do todo social de Hegel está na base justificam uma diferença radical dos dois grupos de ciências ... »(4 )
da «fúria de desaparecer» não justifica, como expõe Horkheimer, A separação da i:iatureza e da história tem de ser produzida pelo
qualquer relativismo - abstracto -, mas a necessidade de um filo- próprio J>rocesso histórico da vida do homem. Enquanto este per-
sofar: «A confiança num pensamento rigoroso e preciso e a cons- manecer envolvido na mera natureza, é--lhe mais adequado adoptar
ciência da dependência de conteúdo e estrutura do conhecimento um método crítico «explicativo» do que um «compreensivo» -
não se excluem, antes se completam. Que a razão da sua eternidade exactamente porque nele já se dá lugar a uma praxis mutável, a
nunca possa ser consciente, que um conhecimento pertence a uma um «humanismo activo»( 5), que representa um mundo mais razoável.
época determinada, mas que nunca é válido para todo o futuro
histórico, que a reserva da dependência temporal nem sequer atinge
o conhecimento que determina - este paradoxo não anula a verdade
desta afirmação. Pois faz parte da essência do verdadeiro conheci-
mento nunca ser Bmitado,»(2)
Um conhecimento do qual é consequência, para Horkheimer,
não Só a crítica de cada metafísica precocemente «interpretativa»,
identificadora de sujeito e objectô, como também a crítica de cada
tentativa - como sempre disfarçada <<materialisticamente» - de li-
bertar a história panteisticamente como «ser substancial e indivisí-
vel»(ª), em que em vez de se compreender o distanciamento dos
produtores do seu produto este distanciamento se torna inexplicável -
Caso falhe a crença de que os factos históricos são oriundos de um
espírito trans-individual, torna-se desde logo questionável a separa-
ção metodológica entre as ciências da natureza e as do espírito:
«A investigação empírica de fenómenos históricos (scilicet a teoria
marxista) orienta-se para uma descrição o mais exacta possível e,
em última instância, para o conhecimento de leis e tendências, à
semelhança da investigação que se faz nas áreas de natureza trans-
cendental . . . Das ciências da natureza, mortas ou vivas, não há uma
forma que aponte para a mera «exactidão (Richtigkeit)>> e uma outra
que, ao contrário, aponte para a «verdade (Wahreit)», a física apenas
para a vida prática, e a história, a antropologia e a sociologia, por
seu lado, para a ideia de uma realidade mais elevada. Nem a estru-
(4) «Hegel und das Problem der Metaphysik» (Hegel e o Problema da
Metafisica), p. 94.
(2) Ibid., p. 57. (5) «Montaigne und die Funktion der Skepsis» (Montaigne e a função
(3) Ibid., p. 69. do cepticismo), tomo II, p. 139.

10 11
PREFACIO

Esta obra é um conjunto de estudos, escritos no intuito de


uma melhor auto-compreensão. Não ambiciona portanto conseguir
novos contributos /ilosóficos para a investigação. É opinião do autor
que t,ambém a reflexão que actualmente se faz sobre a história está
contida num lato contexto histórico, cujas raízes mergulham mais
fundo que no presente. Foi aspecto que levou o autor a inves-
tigar as primitivas f armas de maior relevância de alguns dos pontos
de vista tradicionais presentemente aparentemente pertinentes para
a compreensão da situação problemática da filosofia da história -
para com eles aprender algo de objectivamente útil.
Há porém grande mérito na publicação deste trabalho. Embora
não se desenvolva o ponto de vista filosófico-histórico do autor na
sua totalidade, expõem-se e ·discutem-se, contudo, em consequência
do objectivo originalmente proposto, os problemas nos seus traços
mais gerais em função do presente.
Para as análises da concepção psicológica da história, desen-
volvida a propósito de Maquiavel, ganham assim maior significado
não só as teorias modernas da história influenciadas pela psicologia,
mas também as questões da antropologia filosófica.
As objecções à concepçãode Maquiavel dirigem-se essencial-
mente ao conceito de sociedade) é dela que se fala no discurso de
Hobbes sobre a Doutrina do Direito Natural As suas ideias-chave
estão ainda contidas em muitas teorias jurídicas e estaduais da actua~
lidade. E também o problema da Ideologia, uma determinada
na luta social, já levantado no sistema de Hobbes, está actualmente
no cerne dos discursos filosóficos e sociol6gicos.
A ideologia produz as aparências, enquanto que a utopia pro-
duz, por seu lado, o sonho de uma, existência «verdadeira» e justa.
A ideologia intervem implicitamente em todos os juízas filosóficos
da sociedade humana. A ideologia e a utopia anseiam por ser com-
preendidas como atitudes de grupos sociais provenientes da realidaile
social total.
Vico adaptou para tema principal da sua «Nova Ciência» a
necessária dependência das esferas culturais em relação ao processo MAQUIAVEL E A CONCEPÇÃO PSICOLÓGICA DA HISTÓRIA
de desenvolvimento da humanidade. E o seu mais importante con-
tributo é a maneira como considera ,a mitologia o espelho das relações As oases das ciências da natureza da época moderna foram
políticas. Actualmente sente-se uma renovação 'do interesse filosófico lançadas do Renascimento. Compete a esta ciência estabelecer, com
pela mitologia, não apenas no sentido de uma forma de consciência a ajuda de experiências sistematizadas, as regras para, consoante os
ideológica, mas, também, com igual impacto, na procura da essência seus desejos e através do seu conhecimento, poder provocar ou evitar
do pensamento primitivo. certos efeitos; por outras palavras, para dominar o mais amplamente
Os problemas da filosofia aqui tratados não têm apenas em possível a natureza. Enquanto o comportamento intelectual do homem
comum uma mesma interpretação actual; apresentam-se também medieval se orienta sobretudo no sentido de reconhecer um sentido
sob a mesma forma de que aqui falamos - originados de uma e um objectivo do mundo e da vida, tendo-se assim esgotado na
mesma situação: nomeadamente da sociedade burguesa que se con- exegese da revelação, como nas autoridades re11g1,0S<:ts e
solida ~ se liberta das correntes do sistema feudal. E relacionam-se o homem do Renascimento, em vez de procurar os objectivos no
também necessariamente com as faltas, desejos, carências, e con- além, investigáveis na tradição, começa a pôr questões sobre as
tradições específicas dessa sociedade. Por isso aqui são caracterizadas causas neste lado de passíveis de ser comprovadas observação
como questões da «filosofia da história burguesa».» sensível.
Frankfurt am Main, em Janeiro de 1930. Esta nova ciência está portanto ligada a uma forte convicção
de que existe uma certa uniformidade no curso da natureza. Obser-
Max Hbrckheimer vações do tipo de: um corpo em queda livre adquire uma certa
velocidade ou a combinação de duas substâncias dá v ..... ~.., •. ,... a uma
terceira, cujas características são diferentes das dos seus componentes,
ou o acto de tomar um remédio afasta certos fen6111enos de into-
Em relação às NOTAS: Tendo em vista o objectivo proposto neste pre- xicação, só são de utilidade para a sociedade, quando são passíveis
fácio, as notas foram reduzidas a um mínimo indispensável, não se encon- de se repetirem igualmente no futuro, quer dizer, quando a fórmula
trando portanto aqui notas bibliográficas sobre as obras de filosofia da história
dos nossos autores. Poderão ser consultadas nos diversos livros de bolso de para a força da gravidade continua a ser a mesma, quando a com-
História da doutrina do estado e da filosofia. No mesmo sentido se evitou binação das duas substâncias dá sempre o mesmo resultado e quando
também, regra geral, fazer citações de edições originais, utilizando-se sobretudo
as traduções mais acessíveis. aquele remédio repele também em casos posteriores a intoxicação.

14 15
Pode-se considerar de modo muito vago esta semelhança dos fenó, da uniformidade no futuro na medida em que consideramos que o
menos futuros aos passados, podemos até dar grande realce às dissi- futuro corresponderá ao passado; o problema é que ao fazê-lo, pres-
militudes individuais de cada caso particular e sublinhar a possibi- supõe-se o que está a· ser posto em causa. Esta hipótese levantada
lidade de influências perturbadoras e a mutabilidade das condições: não pode ser comprovada nem por uma lei natural, nem por um
o valor das leis da natureza, às quais tão grande relevo foi dado na juízo de tipo matemático; porque a matemática aborda puras possi-
nova ciência fundada no Renascimento, depende da repetição futura bilidades, enquanto que na hipótese de uniformidade se está a afirmar
de tais casos, em relação aos quais as leis se devem manter válidas; algo àcerca do mundo real. É sem dúvida do conhecimento geral
quer dizer, dependente da possibilidade de aplicação das leis.(1) Na que sem este pressuposto, o conceito específico de natureza, como
nova ciência do Renascimento surge a possibilidade de leis naturais foi concebido na época moderna pelas ciências da natureza mate-
e com ela do domínio da natureza, logicamente dependente do pres- mático-mecânicas, seria impossível. A ciência da sociedade ,burguesa
suposto de que os fenómenos da natureza ocorrem regularmente. está indissoluvelmente ligada, no seu aparecimento, ao desenvolvi-
A convicção de que existe uma uniformidade está na base de mento técnico e industrial. Esta ciência não pode ser compreendida
uma especialização da Física e da Química, da introdução da mate- sem se considerar a relação de domínio da sociedade sobre a natureza.
mática nestas ciências, no aparecimento de uma antropologia e de Mas a sociedade não se baseia apenas no domínio da natureza
uma medicina científicas. A ciência, ela própria não é comprovável em sentido restrito, nem só na descoberta de novos métodos de ~ro-
cientificamente, sendo simplesmente um projecto hipotético. No po- c:lução, na construção de máquinas ou na obtenção de um certo nível
sitivismo do século XIX fez-se um esforço para a apresentar como sanitário, mas também e sobretudo no domínio dos homens sobre os,
um fenómeno da experiência, através da justificação de se ter che- próprios homens.~, E à totalidade dos caminhos que conduzem a esse,.
gado à conclusão por uma observação geral que tais uniformidades fim e dos meios que o permitem manter dá-se o nome de política.
ocorriam e que se podiam comprovar em qualquer ponto do tempo, A grandeza de .Maquiavel reside no facto de ter reconhecido, no
que um fenómeno ocorrido de uma determinada maneira constan- limiar da nova· sociedade, a possibilidade de uma\.dência da política,
temente e por toda a parte antes deste ponto no tempo, também equivalente nos seus princípios à física e à psicologia modernas e de
continuava a ocorrer do mesmo modo depois dele, pelo que estava ter enunciado os seus traços gerais de um modo simples e rigoroso.
provada indutivamente a hipótese da uniformidade.(2) Pouca impor- Não se trata aqui de analisar quão consciente Maquiavel estava desta
tância se dá porém ao facto de este tipo de raciocínio só ter força analogia, ou quais as motivações que sofreu, vindas da leitura de
comprovatória, quando se pressupõe à partida a premissa a demons- obras de escritores clâssicos ou investigadores seus contemporâneos:
trar. A uniformidade da natureza no passado s6 justifica a premissa a sua intenção está à vista. Na sociedade real os homens são domi-
nados por outros homens; o conhecimento de como se chega ao
poder e do que há a fazer para se o manter, consegue-se através da
(1) A formulação de leis da natureza, cuja aplicação futura é proble- observação e de uma investigação sistemática dos factos. Esta e
mática, possui naturalmente para a nova ciênciá um certo valor. Mas este ba- nenhuma outra é a única interpretação possível - à excepção das
seia-se na possibilidade de se encontrarem novas leis, cuja aplicação não seja
tão limitada. suas tentativas artísticas - das obras de Maquiavel e sobretudo da
(2) John Stuart Mill (Sistema de Lógica dedutiva e indutiva (?), tradu- sua obra principal: Drei Bücher Diskurse über die ersten zehn
zido para o alemão por J. Schrel, Braunschweig 1869, 1.ª parte, página 363, Bücher des Titus Livius (Três livros de disc_ursos sobre os primeiros
designa esta hipótese como um «exemplo de indução» . dez livros de Tito Lívio) e ainda da sua conhecida obra Der Fürst

16 t 17
(O príncipe) que se pode considerar como um excerto autónomo cura nela as .eternas regras segundo as quais os homens se deixam
da sua obra principal-, mas também da sua notâvel Geschichte von dominar.
Florenz (História de Florença).(ª) Logicamente não se deveria dissociar a preposição de uni-
Em busca do seu objectivo, o cientista tem de descobrir regras, formidade dos acontecimentos desta intenção cl~ Mª<ill:ͪY~l. Se os
em geral, fenómenos directamente perceptíveis. A excepção de cer- grupos humanos de cada estado não reagirem no presente e no fu-
tos problemas da astronomia, da geologia e de alguns outros ramos turo ·ª· semelhança do passado, se as paixões dos homens, às quais
do seu campo de conhecimento, o cientista encontra-se em situação se prendem essas reacções não se mantiverem as mesmas, então
de poder explicar os objectos da sua observação com todo o por- todas as obras de Maquiavel teriam iludido os objectivos do seu
menor desejado. Pode, regra geral, fazer experiências com os fe- autor, a sua própria ciência não passaria então, para ele, de um
nómenos, pois os seus conceitos e teses baseiam-se em grande parte mero sonho. Esta abordagem pragmática dá também forma externa
numa experiência pessoal ou pelo menos numa experiência sensível, às obras de Maquiavel. Quem folhear a sua obra principal, os Dis-
em princípio recorrente. A física e a química, bem como a psicologia cursos, notará que os capítulos começam geralmente com a repro-
e a medicina, encontram os seus objectos de observação no presente dução de um facto narrado por Lívio, a partir do qual se constrói
e dispõem de uma certa margem para as experiências arbitrárias a então - geralmente com base em mais exemplos tirados da história
fazer. O material da ciência de Maquiavel ocupa-se, pelo contrário, recente ou menos recente - uma tese mais generalizada. Na obra
sobretudo do passado. Como alto funcionário de Florença, à época Q Príncipe põem-se em evidência diversas questões políticas de· es-
um dos estados mais progressistas, Maquiavel pôde evidentemente pecial relevância para a condição de um príncipe, abordadas em
observar os acontecimentos políticos importantes dentro e fora de cada pequeno capítulo, regra geral, com base em exemplos. A Histó-
Itália; com a sua queda e enquanto se esforçava por recuperar o ria de Florença é uma obra única e exemplar: trata-se de uma co-
prestígio perdido, desenrolaram-se sob os seus olhos movimentos lectânea de recordações colocadas ao serviço da política futura.
sociais de não pequenas consequências. As suas obras são testemunho A afirmação de que os homens são, na essência, iguais, en-
da grande precisão e fidelidade com que acompanhou a sua época. contra-se formulada nos Discursos do seguinte modo: «os homens
Contudo são, na essência, portadoras de uma orientação histórica. estão pelo nascimento, vida e morte sempre submetidos à mesma
Para o investigador político, a par dos exemplos do presente, há a lei.»(') A teoria da igualdade da natureza humana marca toda a
considerar os do passado, dos quais se podem deduzir as leis gerais. obra de Maquiavel. «Pela observação de acontecimentos passados e
Quando Maquiavel analisa a história de Roma à luz de Lívio, pro- recentes», diz-nos na sua obra principal(5), «reconhece-se facilmente
que sempre dominaram os mesmos desejos e as mesmas determi-
nações nos corações de todos os estados e de todos os povos. Por-
tanto, quem analisar cuidadosamente o passado, pode com facilidade
( 8) I tre libri dé Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio (1531),
alemão: Discorsi, Politische Bebrachtungen über die alte italienische Geschichte prever os acontecimentos futuros em cada estado e utilizar os mes-
(Discursos, Análises politicas da história italiana antiga), Berlin 1922, em baixo mos meios que os seus antepassados usaram; ou caso não os encontre,
citada como Discorsi,· Il Príncipe (O Príncipe) (1532), a versão alemã foi sobre- pode descobrir novos meios, com base na semelhança dos aconte-
tudo divulgada na edição da Reclam: Machiavelhs Buch vom Fürsten (O Livro
de Maquiavel sobre o Príncipe), Leipzig O. J., em baixo abreviado para Fürst
(Príncipe),· Deli' istoiré Fiorentine (1532) citado do quarto tomo das Obras ( 4) Discorsi, p. 37.
Completas, München 1925, como Obras IV. (IS) Ibid, p. 83.

18 19
cimentos.» Num outro passo, Maquiavel exprime-se do seguinte modo: corajoso e mais tarde do mais esperto e justo. Logo que os prín-
«Os sábios dizem com razão que para prever o futuro é preciso cipes passam a ser eleitos por linhagem, a monarquia desemboca
consultar o passado, pois todas as coisas do mundo actual apresen- numa tirania: consequência desta são os golpes, as revoltas e trai-
tam semelhanças com as passadas. Porque são obra do homem, que ções contra os príncipes. Os instigadores da instabilidade não são
sempre teve e continua a ter as mesmas paixões, o resultado tem as massas, mas os mais poderosos e os mais ricos, que acabam por
também forçosamente de ser o mesmo.»(º) Aqueles que acham o seu pôr fim à tirania e constituem um governo aristocrático. Os filhos
caminho impraticável, que se recusam a acreditar que se possa trans- destes nobres também não conseguem manter o poder em suas mãos,
por o passado para o presente e imitar aquele, considera-os Maquiavel pois entregam-se constantemente, nas palavras de Maquiavel, à «am-
incultos e limitados: «... como se o céu, o sol, os elementos e os bição, à luxúria, transformando o governo de eleitos no de uns pou-
homens tivessem mudado na forma, no movimento e no poder em cos que não têm qualquer consideração pelos direitos dos cidadãos>>(ª)
relação ao passado... »(7) Torna-se então inevitável a sua queda e o restabelecimento da de-
Levanta-se neste ponto uma questão sempre presente na inves- mocracia. Esta tem contudo uma acentuada tendência para a cor-
tigação de Maquiavel. A quem serve a ciência da política? Quem rupção e consequentemente para se dissolver na anarquia, da qual
deve então, segundo Maquiavel, dominar os homens? Ou - numa um povo só se pode libertar por intermédio de um único ditador
. pergunta de maior cariz filosófico-histórico - que forma de domínio, poderoso, de um monarca. Recomeça então o ciclo. Não devemos
o que para Maquiavel é o mesmo que dizer: qual a forma de estado contudo imaginar e ainda seguindo Maquiavel, que toda esta série
que provou ser a melhor ao longo da história ou será que está ainda ou a sua repetição seria obrigatória num único e mesmo estado.
por criar? Existem, na opinião de Maquiavel, as. concepções mais <<Pois não existe quase um estado com tão grande força vital que
díspares, embora todas pareçam poder apresentar argumentos em possa sobreviver a tantas revoluções sem sucumbir.»(9 ) Há estados
seu favor. Na obra O Príncipe, que depõe aos pés de um Médici, poderosos que são aniquilados ou que são dominados pelos estados
louva a monarquia na sua forma rµais brutal como a única via para vizinhos; mas são de facto alterações deste tipo que põem em movi-
a unificação ·da Itália, enquanto que nos Dircursos considera, sem mento a tal circulação das formas de governo que Maquiavel eA-
qualquer ambiguidade, a república como a melhor forma de estado, plicou - inspirando-se em Polybios. ·
revelando constantemente simpatias republicanas e até mesmo de- . «Os países tentam quase sempre, aquando dos períodos de mu-
mocráticas. dança, passar da ordem para a desordem e de novo da desordem
De qualquer modo, Maquiavel é de opinião que nenhuma para a ordem. Não está na natureza das coisas do homem manterem-se
forma de estado pode resistir durante muito tempo. Tal como n~ inalteráveis. Quando atingem a mais elevada perfeição, quando já
passado os governos se sucederam uns aos outros, o mesmo ocor- não podem subir mais, têm forçosamente de descer. De igual modo,
rerá sempre. Há um determinado ciclo que se repete com a regula- quando se encontram em baixo, bem nas profundezas da sua de-
ridade das leis da natureza. sordem e sem poder descer mais, começam a sua ascenção. Res-
A primitiva forma de governo, fruto da reunião dos homens vala-se constantemente do bem para o mal e do mal para o bem.
que viviam dispersos, é a monarquia, surgida da escolha do mais Porque a coragem engendra a satisfação, a satisfação o ócio, o ócio

( 6) Ibid., p. 303. (S) Ibid., p. 12.


(T) Ibid., p. 6. (9) Ibid., p. 13.

20 21
a desordem, a desordem a decadência. De igual modo, é da deca- Apesar de todas as aparentes contradições há um único padrão,
dência que nasce a ordem, da ordem a coragem, desta a glória e para Maquiavel totalmente evidente, segundo o qual se medem todos
a felicidade.»( 10) É então fácil de concluir que mesmo no caso de os valores. A ele se agarra imutável e sem ambiguidade. Não é por
uma certa forma de governo ser a melhor, nunca durará eterna- amor aos monarcas ou aos governos republicanos que este escritor
mente, pois traz já em si a semente da sua própria destruição. Ma- os aconselha, mas sim para promover o poder e a grandeza, a se-
quiavel especifica então os prós e os contras de cada forma de go- gurança do estado burguês enquanto tal. Muitos comentários se te-
verno. Um mérito total não o reconheceu em nenhuma delas. Mas, .cem e alguns mesmo exaustivamente sobre os acontecimentos polí-
no fundo, limitou-se a oscilar entre a monarquia e a república, afas- ticos na Itália de Maquiavel e sobre a sua participação pessoal na
tando o domínio aristocrático para razões a justificar posteriormente. política, mas muito pouco ficou dito sobre o resultado teórico im-
De resto, explica: «Onde existe ou está instituída uma igualdade portante da sua experiência. Falando com maior clareza, Maquiavel
(na distribuição da riqueza), forma-se uma república; onde, pelo insiste na ideia de que o bem-estar de todos estaria dependente do
contrário, existe uma grande desigualdade (na distribuição de ri- desenvolvimento das relações sociais (Verkehr), do alargamento sem
queza) forma-se uma monarquia; nos outros casos constitui-se algo limites da capacidade burguesa para o comércio e a indústria, do
sem quaisquer condições e de curta duração.»{11) jogo livre das forças económicas. Um tal desenvolvimento social só
Sabemos hoje que, pelas teorias de Maquiavel, os seus conse- poderia porém ser assegurado através de um estado poderoso. ~ta
lhos convêm sobretudo aos príncipes e aos republicanos, mas não só doutrina utilizou-a ele não só quando participou em acções diplo-
expressou os interesses destes de um modo tão global e completo, máticas e nas lutas burguesas de Florença, como também acreditava
como também o fez em relação às medidas que os opositores dos poder encontrá-las em toda a história do mundo, sobretudo no pe-
príncipes deveriam tomar para os derrubar - e isto por vezes até ríodo áureo da Roma antiga. A política só se torna, para Maquiavel,
n,um mesmo capítulo. Dá conselhos tanto aos govefI\OS como àqueles na função mais nobre do filósofo, na medida em que o estado é a
que conjuram contra eles. Interessar-se-á Maquiavel apenas pelo jo- condição para o desenvolvimento das forças burguesas de cada um
go de forças sociais em disputa, estará ele agarrado à luta do poder e do todo colectivo.
como a expressão mais intensa de vida, quando - entusiasmado pelas Um conceito chave n~ sua ciência é o da ·virtú' (virtude).
lutas políticas do seu tempo- resolve investigar todas as ·suas leis, Sobre o seu significado muito foi escrito e com raz.ão, pois toca-se
sem se preocupar com os resultados e movido apenas por um inte- num ponto nevrálgico do pensamento histórico de Maquiavel. O con-
resse apaixonado? A luz da filosofia moderna de vida foi assim que ceito 'virtus' teve um papel decisivo na história da filosofia. As mu-
se compreendeu Maquiavel. Na brilhante propaganda pela indepen- danças de sentido são por isso difíceis de definir, porque o sentido
dência da Itália, no capítulo final de O Príncipe, o prazer - que só pode ser compreendido no contexto de uma certa época. O seu
erradamente se detecta - de uma exibição de força vital parece mais conteúdo é melhor compreendido, quando se parte do princípio que
importante do que a justificação objectiva. Mas numa tal concep- 'virtus' (virtú, vertu) designa a essência das qualidades desejadas e
ção - embora não totalmente errada ao nível psicológico - falha consideradas honestas na esfera em que o conceito é utilizado. Um
o sentido objectivo do pensamento de Maquiavel.. homem que possui 'virtus' é um homem «direito», um homem como
deve ser. O espírito político e militar do romano que deixa o trabalho
(1º) Obras IV, p. 268. comum para os escravos é também designado por 'virtus', bem assim
( 11 ) Discorsi, p. 112. como mais tarde a humildade cristã. O conceito no sentido em que

22 23
Maquiavel o usa engloba simultaneamente a nobreza e bravura clás- mundos possível. A este mais alto objectivo da actividade humana
sicas, albergando igualmente o elemento moderno do trabalho e da devia, para Maquiavel, submeter-se a moral e a religião. Ao seu ser~
habilidade para o ganho. Maquiavel despreza a classe aristocrática viço se poderia, segundo ele, enganar, difamar, torturar e matar.
não só porque se opõe às reformas, ou porque trava o caminho ao · · ·· .Ós meios para dominar o homem, que Maquiavel foi encontrar
desenvolvimento burguês, na medida em que impede a formação de na história, sempre tiveram uma utilização política, embora nunca
governos centralizados e de grandes estados, mas também porque · fosse apresentado como intenção esse objectivo mais elevado. Quan-
não faz qualquer trabalho burguês. «Para explicação da designação do no famoso oitavo capítulo de O Príncipe se explica que o príncipe
'aristocratas'», diz-se em Discursos( 12 ), «digo que assim são chamados pode quebrar contratos, não precisa de manter a sua palavra, quando
aqueles que vivem ociosamente dos seus rendimentos no excesso, Maquiavel revela como a religião sempre tentara, em todas as épocas,
sem qualquer preocupação com a agricultura ou qualquer outra manter tranquilas as classes sociais dominadas, quando sem qualquer
profissão. Estas pessoas são perniciosas numa república e em cada escrúpulo compara a religião pagã com a cristã, quando aponta para
país, sobretudo quando além dos rendimentos mencionados, possuem o extermínio de grupos humanos inteiros como um outro meio apro-
ainda castelos e vassalos que lhes obedecem.» Quem quiser fundar priado em certas condições, em resumo, quando demonstra que os
uma república só o conseguirá, segundo Maquiavel, quando tiver bens mais sagrados e as mais negras faltas serviram em todas as
· «destruído toda a aristocracia.»(113 ) Um estado é bom, possui 'virtú', épocas como meios nas mãos de dominadores, formula uma impor-
quando as suas condições permitem que os seus ,burgueses possam tante doutrina da filosofia da história. O seu erro - que a época
ostentar a 'virtú'. Devem ser pessoas confiantes, fortes e desinibidas, seguinte, com a doutrina da razão de estado tomará ainda mais
que possuem aquelas qualidades, que na época eram apanágio de grosseiro - reside no facto de ter igualmente aplicado ao passado
um grande empresário, de um comerciante, de um marinheiro e de e ao futuro os meios de domínio que foram condições indispensáveis
um banqueiro. O bem-estar geral depende, segundo Maquiavel, do para a ascensão da burguesia no seu tempo e no seu país. Uma tal
fÍorecimento destas profissões. Prova da sua visão política do mundo ·eternalização da vigên?ia temporal é um erro específico da nova
é o facto de a ascensão da classe burguesa no Renascimento ter sido filosofia da história.
realmente a condição para o grande progresso social. Só agora se Maquiavel pretende que a classe dominante se sirva a partir
começa a compreender quais as implicações que o conceito corrente de agora dos meios que até então tinham sido usados instintivamente.
de «maquiavelismo» arrasta consigo no sentido de uma radical au- Só que Maquiavel deixa-se arrastar pelo prazer ingénuo da desco-
sência de escrúpulos políticos; completamente «sem moral», Maquia- berta do homem renascentista e negligencia o princípio mais im-
vel promove a submissão de todas as considerações a um fim último, portante quanto à aplicação dos meios: a camuflagem, o segredo,
que a ele lhe parece o mais elevado: ~a criação e manutenção de um a ilusão. A religião não deve ser usada como meio político, quando
estado forte e centralizado como condição da prosperidade burguesm é expressamente designada como tal; as faltas de naqa servem aos
Se se conjugar o conteúdo de O Príncipe e de Discursos na frase governos SF forem declaradas publicamente como seu instrumento
«os meios justificam os fins», é preciso acrescentar pelo menos de -~~~ necessário.! Apesar de todas as semelhanças, a nível de estrutura,
que fim se trata, nomeadamente da instauração do melhor do:; que existem entre a ciência de Maquiavel e as disciplinas das ciências
0
naturais, fundadas também no Renascimento, sente-se uma grande
( 1 2) Ibid., p. 110 ss. diferença em relação ao uso que delas se faz. Se o cientista da natureza
( 18 ) Ibid., p. llJ. divulga as leis que descobriu, nada tem a recear pela sua possibili-

24 25
dade de aplicação. Mas as possibilidades estabelecidas por Maquiavel social. O nível da cultura humana é mostrado pela quantidade de
não poçlem ser convenientemente exploradas, a não ser quando apre- 'virtú'; isto é, no presente, a liberdade burguesa.
sentadas como calamidades do passado, totalmente afastadas do Um meio importante que contribuiu, segundo Maquiavel, para
presente. O que entusiasmou o filósofo e estadista Bacon e alguns o progresso cultural foram as lutas entre as classes sociais. Estas
séculos mais tarde Hegel, foi o facto de nas obras -de Maquiavel lutas, que ele encara basicamente como lutas burguesas, não são
ser dito o que é ·. e não o· que deveria ser segundo qualquer opinião para ele algo de pernicioso, mas muito mais uma condição essencial
pessoal ou qualquer preconceito dominante, isto é, o que no fundo de ascensão. Estas lutas sentiu-as ele da forma mais penetrante nos
contradiz a própria intenção de Maquiavel. Quando Frederico II conflitos entre nobres e burgueses. <<Parece-me>>, diz ele na sua obra
acabou de escrever o seu Antimaquiavel, um grande filósofo ter- principal(16), «que quem condena as lutas entre a nobreza e o povo,
-lhe-ia dito, segundo Diderot(14 ): - Sire, penso que a primeira lição condena também o primeiro motivo para a manutenção da liberdade
que Maquiavel daria aos seus alunos seria a de contradizerem a romana. Quem dá mais atenção aos gritos e ao barulho de tais lutas
sua obra. que aos efeitos benéficos, não reflecte que em cada comunidade a
Enaltecendo apaixonadamente o estado forte, Maquiavel apoia- mentalidade do povo difere da dos grandes e poderosos e que é do
-se na fé que sente nas possibilidades do progresso espiritual e moral. seu antagonismo que surgem todas as leis em prol da liberdade».
· O progresso da cultura e até mesmo o seu aparecimento, estão, do No prólogo de História de Florença Maquiavel explica: «Realmente,
seu ponto de vista, determinados materialmente. Em Discursos em minha opinião, parece-me que nenhum outro argumento ilustra
ensina(15) «que os homens só produzem algo de bom por necessidade. melhor o poder da nossa cidade do que aquele que estâ contido
Logo que têm livre poder de escolha e podem fazer o que querem, nestes conflitos. Pois enquanto estas lutas tiverem o poder sufi-
gera-se o caos. É por isso que se diz que a fome e a pobreza tor- ciente para aniquilar a maior e mais poderosa república, a nossa
nam os homens trabalhadores e que as leis os fazem bons.» A tota- parecer-nos-ia sempre mais forte e maior.>>(17) Mencionando os
lidade das relações de trabalho não provem portanto, em última meios utilizados pela plebe em tais lutas e descrevendo como «todo
análise, de uma origem ideal, mas são resultado da necessidade. o povo gritava contra o senado e este contra o povo, como a de-
Nem mesmo a moralidade surge de intenções culturais orig,inalmente sordem reinava pelas estradâs, as lojas eram fechadas, como o povo
estabelecidas, nem de forma alguma se baseia em quaisquer impulsos fugia de Roma»(18) prossegue dizendo que eram coisas de assustar
morais, deriva. sim das relações sociais determinadas pela necessidade. os que as lêem, mas necessárias na vida de um estado. «São também
: Moral, é, por assim dizer, 11ma acção que segue as leis e os costumes as exigências de povos livres, raramente inimigos da liberdade, pois
. vigentes na sociedade civilizada. Nem a humanidade no seu todo, surgem ou da própria opressão ou do medo de se deixarem opri-
•nem o indivíduo se lançam desde logo neste caminho da nobreza, mir. »(19) J\.1:elhores e mais livres disposições seriam normalmente
dignidade, bondade e justiça; existem, é claro, relações causais na- a consequênciá.' destes movimentos
turais: a constante formação e o conteúdo específico da moral são
determinados pelas necessidades sempre novas do desenvolvimento
( 16)Ibid., p. 16.
( 17)Obras IV, p. 6 ss.
( 14) Diderot, Oeuvres Completes, Paris 1876, T. XVI, p. 33. (18) Discorsi, p. 16 ss.
(15) Discorsi, p. 15. (19) Ibid., p. 17.

26 27
Mas Maquiavel conhece igualmente as lutas entre a aristo- deve, dar lugar ao medo do Inferno. Observai o modo de agir dos
cracia e os príncipes e sobretudo as lutas do popolo, isto é, da homens. Haveis de reparar que todos os que conseguiram muito
burguesia e da plebe, isto é, dos trabalhadores das manufacturas poder ou grandes riquezas, os conseguiram através da violência e
das docas e do mar, contra aqueles que arrastam as suas existências' da ,burla. Mas aquilo que conseguiram pela astúcia ou pela ver-
ociosas pelos campos e cidades renascentistas. Estamos nos primór- gonha mascararam-no sob os nomes de conquista e ganho, para
dios do moderno proletariado. «Aconteceu em Florença que pri- esconder a abjecção das suas aquisições. Quem por estupidez ou
meiro se dividiu a aristocracia no seu seio depois a aristocracia do burrice evita estes meios, arrasta-se toda a vida pelos caminhos da
povo (popolo) e por último o povo (Volk) da populaça (Põbel); e pobreza e da servidão. Os criados fiéis serão sempre criados e as
após uma vitória acontecia frequentemente que o partido vitorioso •· pessoas honestas serão sempre pobres.»(21 )
se subdividia também ele em dois. Estas divisões provocaram um Maquiavel conheceu e descreveu portanto os diferentes tipos
tão grande derrame de sangue, tantas expulsões e a destruição de de lutas de classe da sua época. Apesar dos sacrifícios que requerem,
tantas famílias como não há relato no passado de outra repúbli- são para ele, como observador da história universal, uma condição
ca.»(20) Em História de Florença começa por se esboçar um movi- necessária para o desenvolvimento do homem. Nestas disputas vio-
mento de reforma e de salários por aqueles que trabalhavam nas t1entas os homens são movidos pelas circunstâncias exteriores, reve-
corporações de lanifícios ou outras. Maquiavel dá a palavra a um 'i•~ t·-. J lando-se também aqui a necessidade como causa do progresso. Não
dos «mais apaixonados e também dos mais experientes revolucio- · "J estará assim comprometido o sentido do empenho de Maquiàvel,
nários», que diz a dada altura: «Vamos ao encontro de uma vitória / será esta teoria materialista compatível com a sua ideia de que o
1
certa, porque aqueles que se nos poderiam opôr são ricos e estão conhecimento das leis históricas pode melhorar muita coisa? Estarão
divididos. A .sua divisão dar-nos-á a vitória; a sua riqueza nas nossas os homens preparados para intervir no curso da história?
m~os ajudar-nos-á a consegui-la. Não se deixem assustar com a Em O Príncipe é a certo passo analisada, e como sempre em
idade do seu sangue, que nos atiram à cara. Todos os homens têm Maquiavel do ponto de vista prático, a pergunta: - «Qual a in-
a mesma origem, todas as famílias têm a mesma idade, a todos fluência da sorte nos assuntos dos homens?»( 22) Sorte é para ele
a natureza criou iguais. Dispam-nos e logo verão que são iguais aqui tudo o que não depende da vontade do homem. «Sei que há
a nós. Vistam as roupas deles e a eles as nossas e logo verão, sem muitos que acalentaram e ainda acalentam a opinião que os acon-
qualquer sombra de dúvida, que parecemos nós a aristocracia, eles tecimentos do mundo são governados pela sorte e por Deus, que
a populaça. A única diferença entre nós e eles é a pobreza e a os homens não podem, com toda a sua esperteza, melhorá-los ou
riqueza. Dói-me saber que há alguns de entre vós que se arrepen- lutar contra eles. Poderia então pensar-se que não valeria a pena
dem do acontecido por escrúpulos e que se querem furtar a novas agirmos, que nos poderíamos entregar nas mãos do destino... À me-
acções. Se realmente o querem, não são os homens que eu pensava dida que reflectia sobre isto, senti-me por vezes inclinado a reco-
que fossem. Não vos deveis deixar assustar pela consciência ou nhecer a verdade desta opinião. Mas como o livre arbítrio do
pela vergonha. O vencedor pode vencer utilizando quaisquer meios, homem se lhe opõe frontalmente, afirmo que a sorte pode dominar
nunca se deve envergonhar e nunca deve ouvir a voz da consciência. metade de todos os assuntos do homem; mas a outra metade está
Quem como ós tem a recear a fome e o cárcere, não pode, nem
(21) Ibid., p. 176. ss.
( 2 2) Fürst (O Príncipe), p. 176 ss.
( 2 º) Obras IV, p. 6.

28 29
a nosso cargo. Comparo a sorte a um rio perigoso que quando Maquiavel concedeu à actividade humana uma ârea de mano-
cresce inunda as margens, destrói ârvores e edifícios, depositando ~ ' no seio da qual e através de decisões da: vontade, o. curso· da
aqui aluviões e ali arrancando pedaços de terra. Todos fogem dele Jatureza e da sociedade pode ser influenciadoi Mas serão estas de-
e todos lhe cedem; ninguém lhe consegue fazer frente. E contudo c!sões livres? Haverá algo no homem que não dependa de factores
hâ medidas que os homens poderiam tomar nas épocas mais calmas, naturais, algo de transcendente à natureza, algo absoluto ou um
como erguer diques e taludes para forçar as âguas dos rios por livre arbítrio? Ao contrârio das correntes protestantes, o filósofo
canais ou para diminuir o seu caudal, tendo em vista a diminuição do Renascimento italiano respondeu que não. Quando Maquiavel
dos estragos. O mesmo se passa com a sorte, que se revela em toda fala de uma capacidade para tomar decisões, não pensa de modo
a sua força, onde ainda se não tomaram quaisquer medidas, e se algum numa instância mais elevada do que o curso da natureza.
extravasa com violência por onde ainda não há diques nem taludes A vontade está tão condicionada por factores naturais, nomeada-
que o possam dominar.»( 23 ) Teremos sempre de contar com os mente os impulsos, as tendências naturais contra as quais nada pode
factores da natureza; também a história da técnica, na qual o ter feito, como o está a queda de uma pedra pela força da gravi-
homem entra em disputa com a natureza, tem as suas próprias dade. Maquiavel prepara, embora não justifique exaustivamente
leis, que não poderemos esquecer. Mas se não se pode anular o nem o desenvolva, o ponto de vista filosófico de que os impulsos
poder da natureza, pode-se em grande parte controlá-lo. E isto não humanos estão integrados no grande mecanismo da causalidade.
é apenas válido para os fenómenos naturais num sentido restrito, O homem é um pedaço da natureza, não se podendo furtar às
para os objectos das ciências da natureza, mas igualmente para os ,suas leis. Possui liberdade na medida em que pode agir de acordo
.fenómenos de natureza social. Mesmo a sucessão de formas de go- com as decisões que toma, não a possui se por liberdade se entender
verno que Maquiavel defende é no fundo uma lei da natureza. a ausência de condicionamentos naturais. Deste aspecto se falarâ
Pode-se tentar encurtar as fases más e alongar as boas; podemos no próximo trecho.
lan~ar-nos no empreendimento de conseguir um estado o mais dura- Houve grandes estadistas e príncipes que concordaram com
douro possível pela combinação de formas de governo, como exis- a filosofia de Maquiavel, quando este considera todos os movi-
tiam, segundo Maquiavel e o seu abonador clássico Polybios, na mentos históricos como políticos e quando, para assegurar à 'virtú'
Roma republicana (consules, senado, tribunas do povo); IQ.as in- uma propagação o mais poderosa possível, preconiza o estado forte
verter o ciclo, inverter o curso dos tempos, conduz-nos apenas à como a forma suprema de estado dos homens que fazem a história.
podridão. Maquiavel acredita que «sente-se bem aquele que nas Mas à medida que a direcção económica e consequentemente cul-
suas acções acompanha o espírito da época; e que aquele que entra tural das repúblicas italianas foi passando para as grandes monar-
em conflito com a sua época estâ predestinado ao malogro.»( 24) quias nacional, os Discursos republicanos, a obra principal de Ma-
No cerne desta questão deparamos com a doutrina de Hegel sobre quiavel, ia perdendo significado e apenas O Príncipe se mantém
os grandes homens, que diferem dos fantasistas, porque se mani- no centro das atenções. No século da «Aufklãrung» apenas se con-
festam e agem em relação ao que existe na sua época, enquanto tinua a ler esta última obra, embora desde logo veementemente
que o fantasista ultrapassa sonhadoramente a realidade. recusada como defesa da tirania e ataque aos direitos do homem e
·,1a humanidade. Maquiavel surge como o defensor dos príncipes que
( 23 ) Ibid., p. 117. desprezam os homens, que não se submetem a quaisquer leis morais,
( 24 ) Ibid., p. 118. que governam com veneno e punhais, que não têm palavra e que

30 31
ais monstros. Segundo este ponto de vista são as paixões e os
protegem uma religião que afinal consideram errada. A crítica que lsos que determinam o curso das coisas, justificando até a al-
constantemente se tem feito, até hoje, a Maquiavel incide na sua 1t1nanc1.a da ordem e desordem e a sucessão das formas de governo.
indiferença moral: os conselhos que teria dado aos governos seriam princípios espirituais deveriam ser, na essência, os mesmos em
imorais e ainda por cima não teria compreendido a força moral todas as épocas; são considerados, aliás, como todas as outras for-
como factor de poder político. De facto, Maquiavel não descurou a ps da natureza como não tendo história. As diversas combinações
moral como factor de poder; só que, para ele, a honestidade ou deso- dos mesmos elementos espirituais que produzem as diferenças de
nestidade de um carácter, a concordância ou choque entre a aparência carácter dos soberanos não são explicadas nesta visão da história,
moral e a opinião pessoal (Gesinnung) do seu portador não tinham ir,.as acontecem por acaso. E também as verdadeiras lutas da história,
q1:1al@er .significado. A opinião (Gesinnung), enquanto destituída de bem como as ideias dos homens, devem ser sobretudo explicadas
efeitos soêia1s;· e·também posta de lado por Hegel como inconsciên- pelas suas diversas personalidades. Os carácteres reagem a influ~n-
cia da individualidade específica e por Nietzsche como insignifi- cias exteriores, ao meio ambiente humano e trans-humano. Assim,
cância da pura interioridade. Maquiavel cujo último objectivo histó- um príncipe bondoso responderá à pobreza dos seus súbditos com
rico é a instauração de uma boa ordem social, julga os carácteres medidas político-sociais, enquanto que outro, cruel, o fará através
não segundo a sua moralidade subjectiva, mas em função da sua de um poder despótico.
. importância política. A particularidade de comum a Maquiavel e A física e a psicologia explicam a totalidade da vida humfl,na.
aos críticos da sua «moral» reside muito mais na sobrevalorização «Creio,» escreve Maquiavel numa carta( 26 ), «que a natureza deu ao
do papel histórico do carácter. Opositores e seguidores de Maquiavel, homem tantas consciências, como lhe deu rostos diferentes. Daí que
Richelieu e Frederico, o Grande, Diderot e Fichte, todos estão de cada um proceda de acordo com a sua consciência e as suas ideias.»
acordo num ponto; que depende apenas da natureza dos homens A falta da visão histórica de Maquiavel reside no facto de ele co-
que governam, se dominam os outros homens justa ou injustamente, locar esta maneira «de pensar e sentir» apenas dependente de facto-
violenta ou moderadamente, fanática ou tolerantemente. Para os res naturais historicamente imutáveis e de modo algum de modifi-
dominados só uma coisa tem realmente importância: a qualidade cações sociais completadas no decorrer da história. No sentido da
individual do dominador - naturalmente condicionada de maneiras ciência moderna, só se pode ~xplicar aquilo que em função da muta-
diversas pela natureza. Frederico defende que os reis tê.m poder bilidade se mantém constante; enquanto se considerou o átomo como
para fazer o bem e o mal «se assim o decidiram» e enumera, para uma unidade imutável, o átomo era, sem dúvida,o último material
corroborar o seu ponto de vista, a par de um Nero, Caligula e explicativo da física. Os carácteres dos homens são, do mesmo modo,
Tibério, os nomes dos bons imperadores romanos, «os nomes santi- para Maquiavel, o último material explicativo do curso da história,
ficados de um Tito, um Trajano e António... »(25) Se mais tarde, porque se compõem dos elementos espirituais constantes, dos mes-
no período da «Aufklãrung», não só os filósofos, mas também os mos impulsos e paixões.
próprios príncipes condenam os princípios de Maquiavel, então nesta Mas esta abordagem é dogmática. O facto de· os elementos
interpretação psicológica da história, isto dever-se-ia ao facto de físicos e psíquicos, que determinam a formação da natureza humana,
os príncipes desta época terem sido melhores pessoas do que os estarem contidos na realidade histórica não tem qualquer relevância.
soberanos re11ascentistas e barrocos, que teriam vindo ao mundo
(26) Obras V, p. 464.
( 25 ) Frederico, o Grande, Antimaquiavel, Prólogo.
33
32
Não devem por isso ser tomados como unidades fixas e inalteráveis
es acompanhar a sua época; é infeliz todo aquele que, ao con-
e possíveis últimos factores explicativos. Os príncipes «esclarecidos»
através das suas acções se diferenciar da época e da ordem
do século XVIII governaram naturalmente com maior humanismo
lecida das coisas.» Mas nem mesmo assim se consegue salvar
que Alexandre Borgia ou Luis XIV. Mas se se pode dizer que o
trina da natureza imutável do homem. No Renascimento não
rei de Inglaterra respeita os seus súbditos por humanidade, então
ceram nem Fredericos nem Voltaires na obscuridade, porque
é igualmente verdadeiro dizer que ele é humano por respeitar os
pura e simplesmente eles não existiram. Entre os mestres da~ cor-
seus súbditos. Também o respeito depende de condições históricas.
porações da cidade medieval não existiam as moder~as me_ntahdades
Não é só o comportamento exterior de um governo, como também
do empresário ou do administrador, que apenas nao teriam opor-
as suas intenções (Gesinnung) que sofrem os condicionamentos das
fb.nidade de exercer a sua actividade; entre os aprendizes da corpo-
reais relações de poder no estado, e estas, por sua vez, formam-se
ração não haveria qualquer consciência semelhante à que é hoje
com base na totalidade da vida social. No Renascimento, a bur-
própria dos operários do sector industrial. Apenas s~ pode~ arr~n-
guesia precisava de um déspota armado de todos os seus meios de
poder, para poder derrubar todos os obstáculos ao desenvolvimento
Jar vagas analogias. Os carácteres dissociados da sua epoca sao mm~~
Irreais; quando se isolam estas pessoas dos contextos da «~ufkla-
das suas relações sociais (Verkehr); o primeiro filósofo da história
rung» restam apenas fantasmas. Do mesmo modo, não existe na
da época moderna delineou um ideal correspondente. Durante a
Prússia de Frederico um César Borgia; quando se diz de qualquer
«Aufklãrung» a burguesia estava já tão fortalecida, tinha já atin-
nobre aventureiro arruinado, que acaba na forca, que tem lJ.ma
gido uma posição de poder tal que pôde precindir da arbitrariedade
«natureza de Borgia», só que nasceu na época errada, é apenas um
de um déspota ou de uma corte dispendiosa. O absolutismo acabara
modo de dizer. Com as verdadeiras relações alteram-se não só radi-
de cumprir a sua função de destruição do feudalismo e produzira
calmente as disposições práticas, as formas de governo ou as leis,
a necessária centralização do estado. Um príncipe bem sucedido,
mas também a própria natureza humana se modifica. Na base de
que se sente como o primeiro servidor do estado é produto e não
todas as relações humanas, isto é, o modo como o homem organiza
c~usa, da transformação social completada. No Renascimento o
seu governo teria encontrado um rápido fim. a sua subsistência, está a submissão a uma transformação. Esta
dÓspoleta as modificações da esfera espiritual, da ciência, arte, meta-
Maquiavel e com ele os defensores de uma abordagem psico-
física e religião. .
lógica da história bem o poderiam ter confessado - naturalmente
É falsa a afirmação de que os tempos mudaram, mas que a
com uma restrição decisiva. Claro - poderiam argumentar - que
condição do homem se mantém a mesma. Não depende do carácter
os tempos mudam e com eles a sorte dos carácteres individuais.
dos governantes, se estes pretendem dominar os homens justa ou
Mas, por exemplo, no Renascimento existiram exactamente os mes-
injustamente, com violência ou temperança, fanática ou tolerante-
mos homens que no século XVIII, só que aqueles não teriam qual-
mente. A teoria da natureza humana eternamente igual a si mesma,
quer possibilidade de se impor, nem se poderiam ter destacado em
que aparece constantemente no moderno pensamento filosófico da
consequência das condições de então, «... já que os tempos são
história, a teoria dos mesmos impulsos e paixões está errada. Natu-
diferentes>>, escreve Maquiavel( 27), <<e a ordem das coisas diversa
ralmente que também não é de sustentar a posição oposta, de que
realiza os seus desejos ad votum e só é feliz aquele que nas sua~
os homens de épocas e culturas diversas são radicalmente diferentes
( 27 ) Ibid.
uns dos outros, o que nos levaria a não poder compreender adequ~-
damente os homens de tempos passados. Perante um tal agnost1-
34
35
cismo histórico nada mais haveria a fazer do que renunciar a toda
e qualquer interpretação da história. Corresponder-lhe-ia uma dou- não ter considerado as condições sociais para manutenção ou mo-
trina psicológica de mundos e «milieu» de homens e animais espe- dificação de qualidades psíquicas. A excepção de Hegel, quase todos
ciais, separados e inacessíveis uns aos outros. No plano histórico os filósofos da época moderna cometeram o mesmo erro de Ma-
há a contrapor a este radicalismo céptico o seguinte: um homem quiavel. Na actual psicologia das profundida~es compree~d~-se a
num primitivo estádio de desenvolvimento só excepcionalmente con- vida espiritual individual como um desenvolvimento condic10nado
segue compreender ou prever uma forma de vida mais avançada; por situações do meio ambiente. Aprendemos a reconhecer na f~-
mas a nossa razão mais organizada, conjugada com o facto de que mília O factor mais importante do meio ambiente; só que esta varia
mesmo em estados psíquicos importantes conservamos o ser primi- consoante a época histórica e a posição social dos seus membros.
tivo e reagimos frequentemente como os homens de estádios de Se houve certos modos de reacção que se mantiveram até hoje rela-
desenvolvimento mais atrasados, possibilitam-nos uma investigação tivamente constantes, é possível explicar cientificamente, no presente,
eficaz daqueles homens que possuem uma espiritualidade estruturada a dependência do ·carácter das relações sociais, em que um deter-
de modo diferente. E compreendemos ainda os homens de outras minado indivíduo se encontra inserido e onde se desenvolve. É por-
culturas porque a nossa vida na sociedade está de tal modo orga- tanto impossível uma antropologia filosófica, isto é, uma,.. teoria. d_e
nizada que os nossos pensamentos, sentimentos e objectivos vão, um modo de ser humano especial, no sentido de declaraçoes defm1-
. a nível do conteúdo, ao encontro deles. _As _formas de sociedade tivas sobre a ideia de homem, imutável e intocável pela história.••
que conhecíamos estavam, na essência, de tal modo organizadas Enquanto estas tentativas se mantiverem, no presente, ao níve~ ~e
que apenas a uma parte relativamente pequena dos homens se podia resultados empíricos de investigações, sem negar a sua cond1Jªº
permitir a sua cultura, enquanto que as massas eram constante- provisória, têm o mérito de elevar os problemas. e ~esultados ac~ma
mente obrigadas a renunciar aos seus impulsos. A forma de socie- da esfera das ciências especializadas e de contnbmr para a onen-
dade imposta por circunstâncias materiais era até hoje a divisão tação da investigação dos contextos da realidade... Além disso, pre-
entre trabalho e organização da produção, dominantes e dominados. param os nossos sentidos para determinar a concepção do homem
Por isso, a vontade de justiça, por exemplo, no sentido de igualdade que as teorias histórica e sociológica implic~m. Só po~emos fal~r
social - isto é, a vontade de ultrapassar estas oposições - terá for- da essência do homem quando esta se mamfesta. Quaisquer afir-
çosamente de constituir um conteúdo de consciência comum a todas mações definitivas sobre a essência do real cont:adiz o car~cte~ de
as épocas que se desenrolaram até hoje. A exigência de justiça como probabilidade de todas as previsões de acontec~mentos obJectl~os.
supressão de privilégios e instauração de igualdade provém das ca- Podemos hoje evitar a posição ontológica de Maqmavel de uma psique
madas sociais mais baixas e dominadas. A qual se opõem, no sen- variável sem ter de abdicar na história de explicações psicológicas.
tido de manter essa desigualdade, os conceitos dos dominantes: A crítica a Maquiavel não se dirige contudo ao seu conceito
capacidade, nobreza, valor da personalidade. Tais conceitos só po- estático de homem, mas muito mais contra aquilo a que se chama
deriam desaparecer com os princípios sociais que os condicionam.
0 seu Naturalismo. Critica-se o facto de ele considerar os fenómenos
Só que, com base nas relações sociais até aqui vigentes parecem históricos como processos naturais, de querer fazer derivar causal-
facilmente características básicas e eternas da natureza humana. mente todos os acontecimentos de necessidades materiais e da pre-
Contudo o erro de Maquiavel não foi acreditar na uniformi.. disposição natural dos homens para entrar em conflitos políticos.
dade do carácter dos -homens que se impuseram na história, mas Mas este é um fraco argumento. Pois assim como sempre houve
\ uma necessidade científica de explicar cada fenómeno como natural
36
37
em certas condições, é também legítima a tentativa de investigar O mero conceito biológico do homem corresponde em Ma-
fenómenos históricos sob o ponto de vista da sua interdependência quiavel, como em muitos outros, a uma concepção naturalística da
causal. A censura do Naturalismo pressupõe dogmaticamente uma natureza, em que esta é encarada essencialmente como «envolvente>>
diferença metódica básica entre o trabalho do cientista e o do histo- (umgebend) e condicionadora dos homens e não como uma natureza
riador. Utilizar criticamente o conceito Naturalismo neste contexto condicionada, trabalhada e modificada pelo homem. Aquilo a que
. é o mesmo que contrariar a investigação dos contextos históricos. chamamos natureza está num duplo sentido dependente do homem:
.;:: As acções do homem são aqui precipitadamente apresentadas como primeiro, durante o processo de desenvolvimento do homem, a na-
'· ~ necessárias, não muito diferentes da falta que se acabou de apontar tureza é constantemente modificada pelo curso da civilização; se-
à psicologia de Maquiavel. gundo, os próprios elementos conceptuais de que fazemos derivar
O argumento do naturalismo só pode ser justificadamente o conteúdo da palavra natureza dependem da época da humanidade
usado contra Maquiavel, se por ele se entende que as relações dia- que se atravessa. Por outras palavras: o fenómeno do conhecimento
léticas entre a natureza extra-humana e a humana são simplificadas da natureza como tal está condicionado. É igualmente naturalista
em função do ponto de vista da primeira. Maquiavel considera os a ingénua aceitação das leis naturais e do conceito de natureza por
· homens uma espécie da natureza, semelhante a muitas outras es- elas determinado como um ponto de partida absoluto para todas
pécies animais. Cada indivíduo, qualquer que seja o seu grupo ou as explicações. A natureza está tão dependente da vida dos homens
época, é olhado como um exemplar da sua espécie, tal como se como, inversamente, esta vida depende da natureza. O mesmo vale
pode apresentar como exemplo de uma espécie a abelha, a formiga para a relação indivíduo-sociedade; não podemos compreender o
ou até mesmo o átomo. Quando fala de diferenças entre os indi- conteúdo de qualquer destes conceitos sem reconhecer as implica-
víduos, refere-se às diferenças naturais no sentido restrito, tal como ções de cada um no outro; todas estas implicações não são elas
próprias imutáveis, mas possuem uma história. Maquiavel dá os
um zangão não é exemplo de uma obreira ou um exemplar espe-
primeiros passos para ultrapassar o naturalismo, isto é, para reco- ...,,
cialmente fraco, doente ou anormal uma amostra regular da sua
nhecer leis sociais específicas, em parte na sua teoria da mudança
espécie. Os homens representam aqui exemplos, que se podem trocar
cíclica necessária das formas de governo e em parte também, nos
uns pelos outros, de uma espécie biológica; a natureza orgânica e capítulos em que se apresentam as classes como determinadoras
inorgânica faz-se sentir sobre os indivíduos que reagem de acordo de um desenvolvimento cultural. Não aplicou felizmente este ponto
com as características da sua espécie, sendo a história a soma das de vista relativo às tendências gerais de movimento de toda a so-
reacções individuais. :!,lJlla ...abordagem naturalista o facto de as ciedade ao seu pensamento base; pois julga poder justificar os movi-
d_iversas reacções dos homen~. derivarem do conceito de indivíduo mentos das classes sociais, como aliás to.da a vida política, com o
entendido como .espécie ,biológic~) sem se tomarem em consideração conceito de indivíduos isolados.
aqueles momentos em que os indivíduos são condicionados não pela
natureza extra-humana, mas pela sociedade em desenvolvimento,
pelas avassaladoras leis sociais. A sociedade possui as suas leis pró-
prias, sem cuja investigação os homens teriam tão pouco significado
como a sociedade sem os indivíduos ou estes privados da natureza
extra-humana.

38 39
li
DIREITO NATURAL E IDEOLOGIA

Maquiavel, o primeiro filósofo da história da época moderna


6 um defensor de uma sociedade burguesa em ascensão,. As exigên-
cias e o desenvolvimento desta sociedade correspondem aos prin-
cípios da sua concepção histórica. Na sua época, a unida nação
italiana era condição de uma burguesia italiana preparada para
enfrentar a concorrência. Contudo, o maquiavelismo é característico
de todos os países, cuja sociedade necessite de um forte governo
centralizado para quebrar os laços de uma economia medieval fe-
chada e com ela os restos do feudalismo. Este governo centralizado
deverá destruir todos os elementos contrários e perturbadores e
possibilitar, ultrapassado todo o medo e todo o horror de um pe-
ríodo de transição, através de um poder brutal, a livre circulação,
segura e uniformemente regulamentada, de produtos, em resumo,
preparar os caminhos para a mais vasta e independente ordem bur-
iuesa possível. Richelieu criou, a partir de princípios maquiavélicos,
um estado unitário em França. Napoleão, cuja função histórica
após as desordens da revolução francesa foi a de reintroduzir a
ordem e estabilidade burguesas e que logo foi abandonado pela bur-
guesia francesa, depois de o ter feito, escreveu um corQentário sobre
Maquiavel. Fichte, que defendia a liberdade e o ideal burguês, es-
creveu uma obra em defesa de Maquiavel e Hegel, em cuja filo-
sofia a burguesia alemã - por toda a parte limitada na sua ex-
pansão e política - encontrou a sua mais ideal e inequívoca expressão,
não se limita a concordar objectivamente com Maquiavel, como
também o eleva bem alto na sua consideração. Hobbes é o filho

41
de um país em que, na sua época, se lançaram as bases para um da amnistia do Parlamento. Quando Carlos II sobe ao trono e lhe
livre desenvolvimento da sociedade burguesa. A sua filosofia da volta a estender a mão, fá-lo porque sabia que Hobbes permanecera,
história pode ser encarada, ao contrário da de Maquiavel, cujas no fundo, um monárquico. Só que apenas o era enquanto homem
ideias de imediato pouca influência real tiveram no seu próprio privado; como filósofo servia todo o governo forte que se encon-
país, tanto como consequência, como causa da prática. trasse ao leme parecendo-lhe ser sua obrigação consolidar o seu
Nascido em 1588, ano em que a Armada foi destruída, filho poder. Dedico~ toda a sua ciência - tal como Maquiavel - nã.o
de um pastor medianamente culto de Oxford, Hobbes é um dos apenas a um monarca, nem a uma república, mas sobretudo ao mais
mais importantes filósofos da nova história. Enquanto que na filo- forte poder político.(2 8)
sofia da história seguiu os passos de Maquiavel, foi nas restantes o estadista florentino que raramente faz considerações abs-
disciplinas discípulo do grande Francis Bacon, filósofo- ao contrário tractas ou de princípios, aceitara simplesmente, de um modo aind.a
do que hoje se pensa - que pôs em jogo ideias decisivas para a nova mais ingénuo, a analogia entre política e filosofia, entre a . explt-
filosofia. A vida de Hobbes estende-se por 91 anos e abrange, em cação das ciências da natureza e a explicação histórica. O sistema
grande parte, o período das lutas finais entre a burguesia inglesa filosófico de Hobbes, um dos documentos intelectuais mais brilhan-
. e o feudalismo. Teve portanto oportunidade de se certificar de que tes e incisivos do seu tempo, baseia-se por seu turno sobretudo numa
a coroa precisou de um poder incondicional para não ser derrubada análise teórica desta analogia na estrutura da composição natural
e também de como, para manter a sua posição, foi obrigada a sacri- e social, isto é, na estrutura física e de união dos homens no estado.
ficar este poder aos interesses «nacionais», isto é, àqueles interesses É impossível compreender as suas doutrinas sobre o estado e a
burgueses que na Inglaterra de então coincidiam, na essência, com história, desconhecendo a sua concepção da natureza; esta mesma
os da abastada burguesia protestante. A vida de Hobbes estendeu-se
ainda por uma parte do reinado de Isabel 1, assistiu depois ao fraco (28) Há a considerar as seguintes obras: Ober dem Bürger (~ob:e o

governo de Jacob I e por fim também às consequências da política cidadão), (1642), Leviathan oder über Inhalt, Form und Macht des geistlichen
und bürgerlichen Staates (1651) (Leviathan ou sobre o conteúdo, forma ou
da Casa Real inglesa, orientada pura e simplesmente para o aumento poder do estado intelectual e burguês), Ober den Menschen (Sobre o homem)
dos domínios dinásticos: a queda da coroa. Embora pessqalmente (1658)· especialmente interessante é a obra Behemoth oder Das lange Par-
sempre considerasse a monarquia como a melhor forma de governo lamen~ (Behemoth ou o Longo Parlamento), um ensaio histórico em forma de
e embora, por causa disso fosse obrigado, em 1640, quando se insti~ diálogo sobre a revolução de Cromwell de 1640 até à Restauração. Apesar da
tuiu o «Longo Parlamento», a fugir de Londres e a permanecer protecção de Carlos II e apesar dos seus ataques, inseridos a med.o, a. C:omwell
e aos independentes, Hobbes não conseguiu permissão para ~ 1mp~1mtr, um_a
11 anos em França, sempre considerou - muito no espírito de Ma- vez que aumentava cada vez mais a influência dos seus opos1~ores mtelectua1s
quiavel - a forma de estado como relativamente secundária face à na corte acabando por ser publicada postumamente. Os católicos e os protes-
existência efectiva de qualquer forte poder senhorial. Assim se tantes chegaram ainda a proibir parte das suas obras em vida• do autor. Três
explica que o emigrante em França se tivesse relacionado e até anos depois da sua morte, a Universidade de Oxford fez sair um decret~ co~tr~
mesmo cultivado relações de amizade com Carlos II, Príncipe de a sua doutrina condenável de que toda a autoridade burguesa emanaria primt•
tivamcnte do povo (Ferdinand Tõnnies, Thomas Hobbes Lebe und ~.ehre
Gales, exilado, que mantinha a sua corte em St. Germain, mas que (Thomas Hobbes, Vida e Obra, Stuttgart 1925, p. 65) e as obras Vom Burger
posteriormente com ele se tivesse zangado, pois Hobbes respeitava (Do cidadão) e Leviathan foram publicamente queimadas pelos estudantes.
o governo republicano de Cromwell; por volta de finais de 1651 o governo atrasado dos Stuarts estava, no fundo, orientado contra todos os
regressa a Londres como cidadão leal ao novo regime, em função interesses da burguesia inglesa.
43
42
lugar no espaço. Não lhe chama matéria (para ele apenas um con-
mergulha no conceito mecanicista do mundo, que a nova sociedade ceito geral e derivado, que lembra demasiado Aristóteles) mas corpo.
em ascensão contrapôs ao cosmos medieval como solução de todos Tudo o que, por direito, se pode chamar substância ou realidade
os enigmas. é corpo; todas as alterações são movimentos de partes de corpos,
Galileu fizera derivar tudo de processos mecânicos, nomeada- que teremos de seguir em outros movimentos parciais. Dimensão e
mente do movimento das mais pequenas partículas. Até O mais forma são características constantes dos corpos; cor, cheiro, ruído,
complicado fenómeno, a transformação de grandes massas, pode meros modos subjectivos da percepção deles. As mais importantes
ter a sua origem no movimento de átomos. Contra a concepção leis do movimento são as mais importantes leis do mundo natural
medieval, ainda hoje detectável na visão do mundo <<natural», de e não existe qualquer outro mundo.
que a imobilidade seria o estado original e sempre próprio a todas Um mecanismo composto por partes corpóreas é aquilo que
as coisas, a doutrina de Galileu surge como feito histórico mundial também o homem é; distingue-se de todos os outros corpos da na-
ao defender que o movimento uniforme e rectilíneo seria o mai~ tureza não porque certos fenómenos obedeçam nele a outras leis
simples conceito da física; que, de um ponto de vista geral, a úno- que não as mecânicas, mas pura e simplesmente por uma maior
bilidade e a mobilidade teriam de ser encaradas relativamente. Para complexidade da sua estrutura e das suas funções. Hobbes comparou
. Galileu não é o movimento enquanto tal que se deveria explicar, o coração a uma pena, os nervos a fios, as articulações a rodas que
mas a aceleração ou abrandamento e a mudança de direcção. Assim põem o corpo em movimento. Se Hobbes foi ou não atormentado
se formava o Deus de Aristóteles - o motor imóvel do mundo - pela questão de o homem se distinguir de uma parte dos outros
o primeiro impulso e simultaneamente o travão do movimento corpos pelo menos pela sua consciência, o que é um facto é que
- perfeitamente imóvel, pelo menos para a filosofia da natureza. se debruçou sobre ela de diversos modos, em várias fases da sua
Foi a esta nova concepção, alicerçada no Renascimento, que vida, embora nunca se expressasse clara e inequivocamente sobre
HQbbes emprestou, de maneira radical, a sua expressão sistemática este assunto. Oscila entre a doutrina de que também as sensações
fec?ada. Toda a ciência é, para ele, conhecimento das causas pri- e os fenómenos conscientes são afinal fenómenos materiais - como
me1ras, nunca se devendo portanto contentar· com a mera consta- aliás todos os outros - e o conceito de que certos fenómenos podem
tação ou descrição de factos. As causas de todas as modificações ser encarados ora como psíquicos, ora como físicos, tratando-se não
dos corpos são os movimentos das suas partes. Contudo, · Hobbes de reais diferenças, mas apenas de diversas possibil.idades de orga-
não pertencia propriamente ao atomismo. Para esta escola, que con- nização de conceitos. De qualquer modo, reza assim a sua opinião,
tava entre os seus membros Gassendi, amigo de Hobbes, todos os o facto consciência não permite qualquer outra explicação da acti-
seres eram constituídos por pequeníssimas partículas, imutáveis indi- vidade humana para além da mecânica, devendo-se de qualquer
., . . '
v1s1ve1s e mdependentes: os átomos; estes possuem certas caracterís- modo entender os movimentos humanos exactamente como os mo-
t~cas como peso e impermeabilidade, embora sem verdadeiras qua- vimentos da atmosfera que se originam em movimentos parciais.
lidades sensíveis. Hobbes não aceita estas pequenas partículas de O estado age em relação aos indivíduos, como estes relativa-
matéria; para ele grande e pequeno são conceitos relativos, que mente às partes teciduais do seu corpo, isto é, como qualquer sis..
apenas se revestem de significado em relação ao sujeito considerado· tema físico em relação aos seus componentes materiais. «Tal como
aquilo que parece ao físico a mais pequena partícula não o é nece:s~ num mecanismo de relógio ou em qualquer outro mecanismo com-
sariamente num sentido absoluto. Contudo, Hobbes está plenamente plicado não se pode reconhecer o significado de cada parte ou roda,
convencido de que não há nada mais real que aquilo que tem o seu
45
44
a não ser desmontando-a, analisando isoladamente o material, o por exemplo, o prazer estético é condicionado por oscilações etéreas,
desenho e o movimento de cada parte, também na análise do direito emanadas por corpos luminosos que irradiam na retina dos olhos,
do estado e das obrigações dos súbditos não é necessário dissolver o nervo óptico e o cérebro até ao coração e que daí provocam o
realmente o estado, mas que este seja considerado como tal, isto é, prazer. Movimentos imanentes, eles próprios, da natureza envolvente
que se reconheça realmente a condição da natureza humana, quais ou do interior dos corpos são por todo o lado as causas que mate-
os seus lados capazes e incapazes de se fundir num estado e de que rializam proporcionalmente o prazer e o desprazer. Do prazer ou
modo as pessoas se têm de ligar entre si se querem atingir uma desprazer ou - do ponto de vista físico - de promoções ou obstá-
unidade. »( 29) Tal como se deveria analisar a natureza das mais pe- culos à circulação é que surgem de acordo com as lei da necessi-
quenas partículas da matéria, para compreender as coisas grandes, dade, os actos de vontade dos homens. Numa mais precisa analogia
tal como na física se teria de questionar constantemente no sentido c~m a mecânica, os «movimentos» da alma estão divididos em
do infinitamente pequeno, também a partir da natureza das pequenas atractivos e repulsivos. Aqueles pertencem o amor, o desejo, a aqui-
partes do esqueleto do estado, nomeadamente dos homens, se po- sição e a vontade de guardar; a estes, a dor a repulsa, o medo. Quando
deria explicar a origem das relações do todo, do estado. o senso comum separa as dores espirituais das corpóreas, desconhece
Assim se torna mais agudamente visível na teoria sistemati- que se trata em ambos os casos de um idêntico qualitativo, com a
camente bem comprovada de Hobbes o erro de base da teoria da diferença de que nas dores corpóreas apenas uma certa área cir-
•história de Maquiavel. A partir do conceito de indivíduos isolados, cunscrita do corpo é atingida, enquanto que nas espirituais se atinge
cuja condição Hobbes considera, numa clara analogia com as carac- todº o corpo na sua função. É neste contexto que Hobbes divide
terísticas dos corpos inorgânicos, como eterna e imutável, é que diversas dores numas que provocam a atracção e a aquisição e
todas as alterações sociais no estado, política e religião, moral noutras que repelem ou provocam resistência.
e direito devem ser explicadas. Cada um destes indivíduos reage a Não pode consequentemente existir nesta filosofia espaço para
movimentos exteriores numa necessidade incondicional. Vistas do a chamada liberdade da vontade; as obras da história da filosofia
interior, as reacções humanas apresentam-se como certas vivências, classificam geralmente Hobbes com base neste ponto de vista. Mais
sentimentos e impulsos. A antropologia de Hobbes baseia-se no prin- importante é, sem dúvida, a diferença entre a liberdade da vontade
cípio de que todos os afectos, com base nos quais agimos, são efeitos e a da acção, com a qual Hobqes fomentou essencialmente a questão
rigorosamente necessários de fenómenos mecânicos no nosso corpo da liberdade. A teoria do livre arbítrio, que só ganhou peso numa
e também no mundo exterior. As funções do corpo humano são oposição consciente às novas ciências da natureza que então se
colocadas e mantidas em movimento pelo coração. Este recebe ele estavam a espalhar, não logo na Alta Escolástica, mas só no tempo
próprio para sua actividade impulsos contínuos de certos tecidos da Reforma e Contra-reforma, parte do pressuposto que as acções
quando se inspira. O coração bombeia o sangue pelo corpo, man- do homem não podem ser explicadas por causas naturais. Existiria
tendo assim os órgãos em actividade. O que promove a circulação uma instância em nós próprios, possuidora do liberum arbitrium
sanguínea causa prazer, o que a obstrói, desprazer. De modo análogo, indifferentiae, que de si próprio, sem seguir as leis naturais, isto é,
por desejo, de diversas possibilidades de acção realizaria uma deter-
( 29) Thomas Hobbes, Grundzüge der Philosophie (Princípios da Filoso-
minada. Esta teoria não depende meramente de um interesse reli-
fia), segunda e terceira partes, doutrinas do homem e do cidadão, Philoso- gioso, mas igualmente de um interesse social. Sem o livre arbítrio
phischen Bibliothek Band, 158, Leipzig 1918, abaixo citado como Grundzüge. há dificuldade em justificar a responsabilidade perante Deus, a con-

46 47
denação no nosso mundo e no além. Quando, já em tempos mais
passageiro de um navio não se encontra impedido de se atirar ao
recentes, os juristas protestaram contra o uso de justificar a prática
jurídica com a teoria do livre arbítrio, será bom salientar que já
mar quando o desejar. Mas também nesta situação o homem tem
Hobbes e depois dele a «Aufklãrung» contribuiriam para esta teoria
;tanta liberdade, quantos os modos que encontrar para se movimentar.
com poderosos argumentos.
S 6 nisto que consiste a liberdade do cidadão . . . Só que em cada
' 11tado e em cada família em que existam escravos, os cidadãos livres
Quando num caso único desconhecemos as causas motoras de
• os filhos de família têm, em relação aos escravos, o privilégio de
um comportamento, não se justifica qualquer probabilidade de que
possuirem os cargos mais honrados no estado ou na família e de
a reacção em questão seja impossível de ser colocada num contexto
possuirem mais coisas supérfluas. E a diferença entre um cidadão
causal. Para Hobbes reveste-se de um muito maior significado um
livre e um escravo reside no facto de o livre apenas servir o estado
indício teórico de liberdade positiva no lugar de uma explicação
o o escravo servir, para além deste, também o seu concidadão. Qual-
e clarificação de um limite artificial das ciências, cujo objectivo é
nunca parar em qualquer ponto da investigação. Quando desconhe-
quer outra liberdade é uma libertação das leis do estado e convém
uclusivamente aos chefes.» Estas exposições de Hobbes provam cla-
cemos os mecanismos das acções humanas não temos de modo algum
ramente que não se fala na liberdade do querer, mas na de agir.
o direito de construir cadeias causais dogmáticas, embora também
' ,Livre ar,bítrio no sentido idealista não existe para ele, somente a
não devamos seguir - erradamente - um problema a partir de um
Ut,ertação de obstáculos que limitam as nossas possibilidades de
conceito de liberdade que limite de antemão a ciência.
acção. E esta varia consoante o indivíduo, a situação e a classe.
«Em minha opinião» - diz Hobbes(ªº)- «a liberdade não é
Não são só os obstáculos externos, mas também os internos, como
mais que a ausência de tudo o que impede o movimento. Por isso
por exemplo as consequências esperadas, que limitam as nossas
não existe liberdade num reservatório fechado de água, pois o reser-
acções. Aquele passageiro no navio não saltará para o mar, apesar
vatório impede a sua circulação; ao contrário, torna-se livre, quando
de ter o caminho livre para o fazer, na medida em que é «normal»;
o reservatório é quebrado. Cada um possui mais ou menos liberdade
para alguém de passagem, não envolvido na questão, é indiferente
quanto maior ou menor espaço para o movimento tiver. Por esta
se a entrada numa casa lhe é realmente vedada ou proibida sob
razão, aquele que estiver fechado numa espaçosa prisão terá mais
pena de morte. Em ambos os casos, que Hobbes definiu como obstá-
liberdade que quatro enclausurados numa prisão acanhada. E tam-
culos directos e indirectos, a vontade não é ela própria livre, mas
bém se pode dar o caso de o homem ter liberdade para 'um lado e
determinada por uma série de causas.
não a ter para o outro. Assim, o peão é limitado deste ou daquele
O livre arbítrio, negado por Hobbes, seria um momento, que
lado por muros ou portões que impedem que cause prejuízos nas
indiferenciadamente uniria todos os homens, altos e baixos, ricos
sementeiras ou vinhedos limítrofes. Outros obstáculos semelhantes
e pobres, doentes e sadios, jovens e velhos; um bem comum no sen-
:são exteriores e incondicionais; e neste sentido, são livres todos os
tido teológico de que todas as pessoas são do mesmo modo filhos
escravos e todos aqueles que se submetem ao poder, que não se
de Deus, ou no sentido da «Aufklãrung» que salienta a igualdade de
,en~ontram acorrentados ou enclausurados. Outros obstáculos atingem
todos os homens por motivos políticos. Contudo, a liberdade de acção
umcamente a vontade; não impedem incondicionalmente o movi-
que Hobbes reconhece é, pelo contrário, bem diversa. É em relação
mento, mas directamente, influenciando a nossa escolha. Assim, o
a ela que Hobbes nomeia sobretudo as diferenças de situação social.
Na última citação que fizemos falava-se em relação aos escravos
( 80 ) Grundzüge, p. 175 ss.
e aos senhores de «coisas supérfluas», isto é, de luxo. Se escravo
48
49
e senhor tiverem ambos vontade de usufruir esses objectos e de com turais», para reconhecer as causas que levam à formação dos es-
a sua ajuda produzir prazer, serão então, no conceito de liberdade tados. Tal como a física daquele tempo considerava as partes, os
idealista, impossíveis de distinguir: querer ou não a pura discussão átomos em si, para das suas características compreender as coisas
filosófica se eles serão neste sentido livres, diz respeito a ambos dadas, tal como a física fez originar o mundo do caos, isto é, de
na mesma medida. O resultado teórico de uma tal discussão englo- matéria considerada independentemente das suas relações, quis-se
ba-os indiferenciadamente num conceito comum afastando-se nessa igualmente abstrair das relações sociais dos homens para depois
medida da realidade, «passando por cima deles». Pelo contrário, o poder fazer orginar dos indivíduos, enquanto únicos pontos de refe-
conceito de liberdade de Hobbes conduz para dentro da realidade. rencia, todo o estado. Pensava-se bastar examinar como os indiví-
Os mecanicistas físicos e os discípulos de Maquiavel partem a priori duos independentemente das relações, eram movidos pela força das
do princípio que o escravo e o seu senhor têm de desejar e querer suas características no «estado natural», arranjavam relações e as
consoante a sua natureza. Só que quando o senhor consegue o seu fortaleciam no estado, para compreender o estado histórico dado.
prazer, pode saboreá-lo. Se o escravo satisfizer o mesmo desejo, Portanto, para Hobbes, nem a história universal nem a história
paga-o com a morte. Ê esta diferença de liberdade que interessa natural são, no verdadeiro sentido, ciência da política; a doutrina
considerar na realidade social; para a sua discussão de nada serve do estado é muito mais construída do pensamento puro. Os seus
· aquele outro conceito de liberdade. princípios são determinados do seguinte modo: Já que são o prazer
Para melhor compreender a análise de Hobbes sobre como os e o desprazer que movem o homem, considera-se como bem supre-
homens - cujas acções são portanto explicáveis a partir de causas - mo a vida, como pior mal a morte. No estado natural, a vida
se reunem em estados, produzem cultura, em resumo, fazem a sua de cada um é seriamente ameaçada. Embora cada um possua, devido
história, é de salientar que Hobbes não pretendia acima de tudo à ausência de leis, um direito natural a tudo, tem de estar constan-
apresentar a verdadeira origem dos estados. A sua corrente de pen- temente alerta para que o mais forte e ocasionalmente até o mais
samento, característica para muitos filósofos da história até depois fraco lhe não tire tudo; Até o mais fraco pode roubar ao mais
de Rousseau e Kant, decorre muito mais no sentido do contrato forte o bem supremo, a vida; aquele Romantismo vitalista que acre-
de estado: para aprender a conhecer as verdadeiras causas, que Jus- dita que na natureza triunfa sempre aquele que possui maior valor
tificam sempre, e por toda a parte, a existência do estado, não é biológico, é um erro. A condição natural é caracterizada pelo ape-
necessário o estudo da história passada. Do mesmo modo, segundo tite ilimitado de cada um e simultaneamente também pelo seu medo
Hobbes, o cientista da natureza não necessita seguir a verdadeira de todos os outros. Domina o «bellum omnium in omnes». Do medo
realização de uma coisa na natureza, para poder anunciar de que cresce a necessidade de segurança, desta a prontidão para prescindir
causas se originou. O físico conhece as características das pequenas de uma liberdade sem limites, constantemente ameaçada, para gozar
partículas materiais de que a natureza se compõe, conhece-as inde- de uma limitada em paz..Assim se celebra um contrato social do
pendentemente da sua relação num determinado corpo e pode por "piedo e esperança, como compromisso entre o nosso ilimitado ins-
isso construir mentalmente, com base no conhecimento de condições tinto de agressão e o nosso ilimitado medo.
parcelares, neste caso, das leis do movimento da matéria, como as Como na condição natural ainda não existe qualquer governo,
coisas surgem fisicamente. De igual modo temos apenas de consi- o contrato primitivo é celebrado não entre ele e os governadores,
derar os indivíduos independentemente das suas relações no estado, mas entre os futuros cidadãos do estado. Com base na sua vontade
portanto tal como eles teriam de agir sem estado, em condições «na- concordante, cada um transfere a soberaneidade para um homem

50 51
1
t
fi'

ou um agrupamento, que daí em diante, por meio desse contrato, Leviathan, o «Deus mortal», que põe e dispõe a seu bel-prazer e
f exerce o domínio. A vontade do soberano, à disposição do qual se
encontra toda a força e todo o poder daqueles que celebraram o
perante cuja vontade todos os outros mortais emudecem.
Hobbes define assim o estado como resultado necessârio da
contrato, representa, com a sua vontade única, a vontade de todos. disposição dos indivíduos. Esta derivação é simultaneamente a jus-
Como tal, a autoridade deriva originalmente do povo, baseia-se na tificação das leis naturais dos deveres políticos básicos. Enquanto
vontade de todos os indivíduos ou, pelo menos, na da maioria dos que o direito positivo é idêntico às leis vigentes no estado, o direito
que tiveram assento na primeira reunião. Mas abstraindo desta ori- natural é, para Hobbes, tudo o que da natureza do homem se provar
gem, cada um perante o estado, isto é, em relação ao soberano, necessário para as suas acções, na medida em que for acompanhado
já não possui qualquer liberdade, sendo obrigado a submeter-se por uma reflexão racional. Segundo palavras suas(81 ) trata-se de
totalmente às suas leis: a vontade do estado é idêntica à vontade do tudo o que temos de fazer ou permitir que seja feito, de modo
chefe, quer venha de uma direcção monárquica de um único homem racional, «em prol de uma manutenção o mais longa possível da
ou de uma republicana. Para Hobbes, absolutista incondicional, toda vida e das estruturas.» A função do estado que deve resultar da
a limitação ao poder supremo é contra o sentido do contrato ori- lei natural é a garantia da paz interior do cidadão.
ginal. Claro que no contrato se estabelecem também as obrigações Quando os professores e alunos da Universidade de Oxford
· daqueles que detêm o poder estatal, só que não são os cidadãos condenam as doutrinas de Hobbes e queimam publicamente as suas
que podem reclamar face aos chefes; estes apenas são responsáveis obras, estão perfeitamente cientes do perigo das teorias do contrato
perante Deus e a razão. social e da lei natural. Pois à convicção medieval de que os gover-
Uma vez o poder confiado e dado por todos em mão, ninguém nantes, e com eles toda a organização corporativa e de classes, teria
mais pode inverter essa transmissão, por mais que se associe a outros. sido estabelecida por ordem divina, sobrepõe-se a opinião de que
Hobbes desperta aqui da filosofia natural a comparação do estado o estado e a sociedade vão buscar a sua existência e justificação
surgido da convenção com os conceitos matemáticos definidos por à vontade do povo, cujo bem estar é o seu único ohjectivo. Os po-
convenção. Só se possui uma única vez a liberdade de decisão, só deres feudais vêem-se obrigados a explicar as organizações e insti-
uma única vez se podem definir os conceitos como se pretende. Logo tuições retrógradas, os privil~gios e autocracias recorrendo à sua
que seja fechado um contrato, nada mais há que o possà abalar. bênção por Deus e à tradição. Defendia-se a «respeitabilidade» e
Quem na geometria não seguir as definições, comete erros; quem a «divindade» - o último Romantismo chama-lhe o «acréscimo or-
infringir as leis do estado, é um criminoso ou rebelde. Tal como as gânico» - contra a orientação burguesa primitiva de maior felici-
convenções geométricas foram, em última instância, criadas para dade do maior número. Hobbes e com ele os clássicos representantes
construir máquinas, também as convenções do contrato primitivo da teoria do contrato e do novo direito natural, como Grotius e
Pufendorf, Christian Wolf f e Rousseau, mas também Fichte e em
foram encontradas para erguer a mais poderosa de todas as má-
geral a maioria dos grandes filósofos da burguesia até ao começo
quinas: o estado. A função desta máquina gigantesca é manter afas-
do século XIX, justificam, com base no contrato original e no di-
tado o medo da primitiva condição de anarquia e esmagar todos
reito natural, as exigência daquelas camadas que se pretendem li-
os monstros que possam fazer perigar a paz e a segurança do ci-
bertar das formas feudais transformadas em cárceres. Pois também
dadão, sobretudo o Behemoth, o monstro da rebelião. O estado
também não é, na verdade, nada mais que o maior monstro, o ( 31 ) Ibid., p. 91.

52 53
os chefes têm certos deveres a cumprir segundo esta teoria. Mesmo tivos acima nomeados, faz parte dos deveres do chefe promulgá-
não se tendo de submeter a qualquer instância burguesa - para -las. »(35)
Hobbes isso seria uma contradição lógica à sua definição de sobe- A teoria burguesa, segundo a qual o bem do estado seria a
rano - também eles têm de corresponder a todas as exigência ine- mais importante lei, tem para Hobbes, bem como para muitos dos
rentes ao sentido do contrato. Segundo Hobbes, o chefe não deve seus primeiros representantes, um sentido que o mais recente de-
apenas zelar pela paz interior, nem mesmo pela vida nua, tem é senvolvimento modificou por completo. Se então o ênfase recaía
de promulgar e fazer cumprir leis que proporcionem uma existência essencialmente sobre o facto de se ter de perseguir o bem do estado,
o mais prazenteira possível a todos os cidadãos.(32) pois só assim se asseguraria a riqueza de cada um, hoje aquele
Hobbes divulga pormenorizadamente as medidas governamen- ponto de vista ético significa, pelo contrário, que cada um perde
tais para a riqueza do cidadão, de acordo com a situação de então. algo de importância face ao todo e até que cada um se deveria
Naquele tempo, em que o comércio e indústria se encontravam entregar, a si próprio e à sua vida, a este todo. A razão desta alte-
ainda pouco desenvolvidos, as medidas estatais para o seu fomento ração funcional do conceito de bem do estado pela materialização
tinham de ter um âmbito mais generalizado que em séculos poste- e «absolutização» do conceito de estado deve-se sobretudo procurar
,riores. A política mercantil assenta essencialmente na necessidade na circunstância de, na época de Hobbes, as exigências estatais e
de acção e tutela dos ramos de negócio burgueses. Hobbes faz de- legais da burguesia se situarem quase completamente ao nível de
rivar estas exigências de um direito natural do contrato original. uma elevação da situação material da maior parte da sociedade
Assim escreve, por exemplo,( 33): «Existem... apenas três vias para de então. No decorrer da história até ao dia de hoje, os interesses
a riqueza dos cidadãos, produtos da terra e do mar, trabalho e do estado e os gerais raramente se têm revelado conceitos equiva-
poupança; os deveres dos chefes só têm de se orientar para estes. lentes. Assim, também os sacrifícios exigidos pelo estado foram
As leis que favorecem a agricultura e a pesca, multiplicando assim muitas vezes difíceis de motivar com uma identidade dos reais inte-
as receitas do mar e da terra, servem a primeira via. Todas as leis resses de cada um. Se, no início, no conceito de bem do estado,
contra a preguiça e as outras que promovem a actividade são van- objectivos e meios se encontravam unidos numa simples unidade
tajosas para a segunda.» (Podemos nesta altura pensar ainda, por de relação, gradualmente o estado vai-se tornando teoricamente um
um lado, nas leis contra a mendicidade e a vagabundagem,' com as fim próprio, materializado numa substancialidade independente.
quais se pressionavam os desempregados em condições terríveis para Decerto que a falta de clareza é um traço característico das
as manufacturas; por outro, nas subvenções, sobretudo para a nave- primeiras teorias. O estado como unidade diferenciada da nação e
gação). Para além da navegação, Hobbes nomeia como especial- o estado como concentração das diversas classes sociais com os seus
mente importantes «as artes mecânicas, pelo que entendo a activi- diversos interesses, portanto estado e sociedade, ainda não são com-
dade de todos os altos artífices, e a matemática, a fonte da arte pletamente distintos. Mas estas diferenciações vão-se, na verdade,
da navegação e da indústria.>>(34) Expresasmente o que ele quer di- desenvolvendo; desde o período mercantil até ao presente foram-se
zer é que: «uma vez que... leis deste tipo dizem respeito aos objec- tornando cada vez mais evidentes como contradições da vida real,
apesar de numerosas teorias continuarem ainda muito presas a
Hobbes na sua formação de conceitos. A desvalorização filosófica
(ª2) Ibid., p. 213 s.
( 33) Ibid., p. 221.
( 34 ) Ibid. ( 35) Ibid., p. 222.

54 55
dos testemunhos da realidade - como é conduzida na filosofia da divergir e modificar-se, que por isso o estado se pode transformar
actualidade e sobretudo nas diversas orientações da fenomenologia - de uma expressão dos interesses objectivamente gerais numa parti-
pode e deve ser considerada no contexto destes problemas. Se já cular, é um ponto de vista que vem obstruir o mito do contrato.
não há possibilidade de salvar enquanto facto a unidade de estado A teoria de Maquiavel sobre a mutabilidade e degeneração das formas
e sociedade, adivinha-se uma formação social correspondente como de estado, na qual a revolução não estava apenas incluída como
substancialidade de pureza imperturbada. Tende-se a guardar na crime, mas também como necessidade histórica, é mais global e
ideia como «verdade>> aquilo que se não pode verificar na realidade adequada do que a rígida teoria natural do estado defendida por
e a olhar com desprezo para os «factos em ,bruto», que parecem Hobbes e pelos seus seguidores; pois esta nada sabe das modifica-
querer afastar-se da ideia, mas aparentemente nada afirmam contra ções nas profundezas da vida social, justificando pelo contrário a fé,
ela. Contra isto seria de afirmar que estado e sociedade são dife- entretanto ainda mais fortalecida, na eternidade da condição pro-
rentes um do outro. A sociedade não é una, mas fraccionada em clamada pelos teorizadores filosóficos do estado.
si; o papel do estado depende sempre de quais os grupos sociais Neste ponto Hobbes submete-se portanto ainda ao instinto
do estado que estão objectivamente representados numa determinada dos grandes políticos do Renascimento. Teve, contudo, o mérito de
situação. apresentar de forma sistemática as reflexões fragmentadas daqueles
· Para além disso, a ingenuidade de Hobbes é sobretudo evi• sobre a relação da política com a natureza. Se as censuras de iplo-
dente no facto de considerar o regime absolutista como condição ralidade e de repugnância pelo descortinar de relações objectivas
para a melhoria das condições de todos e de o afirmar, não se con- entre ideia e realidade não se ergueram ainda mais alto contra
tentando contudo em justificá-lo directamente ou por princípio, mas Hobbes do que contra Maquiavel, deve-se em parte à circunstância
julgando necessária a sua derivação da lei natural e sobretudo dos de os livros de Maquiavel se terem revelado mais acessíveis, pelo
deveres do contrato social. O direito natural é para ele essencial- seu método não sistemático, do que as representações abstractas
mente um substituto do mandamento religioso medieval. Reportan- de Hobbes; este em nada ficou atrás da agudeza dos italianos, antes
do-se à natureza e à razão, uma parte da nova filosofia até ao pelo contrário, ainda a elevou pela sua ampla justificação. Prova-
século XVIII procura emprestar à nova ordem a santidade que velmente a atenção adversári~ de Hobbes terá sido também desviada
fazia parte da antiga, através de uma religiosidade intacta.· Duma pelo «Tratado teológico-político» de Spinoza, que pouco depois pôs
tal consagração precisavam os filósofos não apenas perante o seu o mundo em movimento e que se debruça centralmente sobre as
público, mas também perante si próprios; não surge de uma re- mesmas questões, resolvendo-as num sentido idêntico ao de Hobbes.
flexão objectiva, mas é efeito de um mecanismo psicológico social.. Hobbes leu ainda, na sua velhice, o livro de Spinoza, pouco depois
mente activo. A discussão filosófica, que se arrasta de Hobbes até do seu aparecimento e - com certeza por medo das então fume-
à «Aufklãrung», gira em torno da questão se as instituições estatais gantes fogueiras em Inglaterra - deu apenas a entender obscura-
seriam justificadas por Deus ou pela razão natural. Se esta última mente que a obra de Spinoza, numa linguagem ainda· mais ousada
opinião é naquela época a mais progressista, ambas são ilusórias, que os seus próprios escritos, exprimia os seus pensamentos.
encobrindo as razões que levaram ao aparecimento do estado. A jus- É dos seus princípios filosóficos gerais que Hobbes tira ilações
tificação pelo direito natural e contrato social contém, de forma para a política e a cultura, que vão de encontro às visões filosófico-
dissimulada, a noção de que foram os interesses de vida natural dos -históricas de uma série de outros pensadores. Esta poderia consi-
homens que criaram o estado. Que estes não são unos, que podem derar-se a orientação materialista na filosofia da história da bur-

56 57
guesia em ascensão, caracterizada por Maquiavel, Spinoza, Pierre mação; o seu fim é a manutenção do poder daqueles que a pro-
Bayle, Mandeville e alguns pensadores radicais da «Aufklãrung» pagam. Segundo a contraposição à forma de sociedade, contra a
francesa como Holbach, Helvetius e Condorcet. qual se orientam as recentes teorias, são a igreja e os padres que
Abstraindo da natureza que se espraia espacialmente - assim surgem como autores destes erros histórico-humanísticos. Esta teoria
decorre a corrente de pensamento - não existe qualquer realidade. surge como exigência histórica universal. Nem todas as camadas
Os homens são, eles próprios, um pedaço da natureza e subme- sociais que tiveram uma influência decisiva nos governos em todo
tem-se às suas leis gerais como todos os restantes seres. A história o passado se encontram incluídas, pois Maquiavel, Hobbes e Spinoza
nada mais é que o contar de uma sequência de acontecimentos na estão de acordo em que nenhum domínio real imaginável poderia
natureza humana, tal como a restante história natural descreve prescindir destes métodos e consequentemente nem todo o estado;
acontecimentos de outras áreas naturais. O verdadeiro conhecimento este teria muito mais de arrancar os meios ideológicos de poder dos
refere-se sempre à realidade natural existente em proporções iguais velhos poderes e aplicá-los a si próprio, mesmo se numa limitação
na natureza inorgânica, vegetal, animal e humana, nos indivíduos mais inteligente. O facto de estes filósofos terem generalizado histó-
e sociedade por eles constituída. Também o estado e a sociedade rico-filosoficamente a sua visão da necessidade da ideologia, é com
que conceptualmente ainda não são diferenciados, pertencem à rea- certeza uma das razões do seu afastamento na literatura posterior.
lidade, já que são formas de organização dos indivíduos. Como qual- · «Não duvido», diz-nos no Leviathan('ª ), «que se a proposição. que
quer outra máquina em funcionamento, têm de ser considerados afirma que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois ângulos
enquanto relações de partes reais, elas próprias também reais. O pro- de um quadrado tivesse sido contra quaisquer direitos de propriedade
blema da relação alma/ corpo também não ultrapassa conceptual- ou, melhor dizendo, os interesses daqueles que possuem bens, esta
mente a natureza; não existem almas autónomas para sempre li- teoria teria sido, se não contestada, pelo menos reprimida com a
gadas. ou independentes do corpo, nem espíritos ou fantasmas, anjos redução a cinzas de todos os livros de geometria - pelo menos se os
ou diabos, que sejam mais que natureza: todas as actividades humanas seus defensores insistissem em levá-la avante.»
que acontecem consciente ou inconscientemente, arbitrária ou pro- Hobbes fornece pormenorizadas análises sobre o uso que o
positadamente, actuam sob uma necessidade das leis da natureza. clero dá à religião; mesmo . as mais remotas teorias filosóficas da
Se assim é, surge a interrogação de como as ideias morais, escolástica são colocadas numa relação com os interesses reais. En-
metafísicas e religiosas teriam surgido, de como a convicção da contramos disto um exemplo no primeiro diálogo de Behemoth(37 ),
existência de fenómenos não naturais e sobrenaturais pôde dominar uma das obras que se debruça especialmente sobre este problema.
os homens durante séculos. Como surgiram estes extraordinários Os interlocutores são A e B. Após uma longa exposição sobre a
erros, porque se mantêm? Assim se coloca, em princípio, o problema escolástica, A explica qual o significado que a aceitação da filosofia
da ideologia, apenas abordado com métodos suficientes no período
pós-hegeliano. De resto, a resposta de Hobbes e dos seus seguidores,
já apontada por Maquiavel, é muito simples: todas as ideias que se ( 36 )Citad,o em Tõnnies, ibid., p. 178.
afastam da teoria exacta da natureza humana e não humana, foram (37) Thomas Hobbes, Behemoth oder das Lange Parlament (Behemoth
ou o Longo Parlamento) traduzido por Julius Lips como apêndice à sua obra
inventadas por pessoas que pretendem dominar outras. No cerne
Die Stellung des Thomas Hobbes zu den politischen Parteien der gro{3en en-
de todas estas ideias está a argúcia e a mentira. A sua causa pri- glischen Revolution (A posição de Hobbes face aos partidos políticos da grande
meira é por um lado a sede do poder e por outro uma precária for- Revolução inglesa), Leipzig 1927, p. 139 ss., em baixo citado como Behemoth.

58 59
aristotélica teve. Também ela foi «transformada numa componente aos seus objectivos.» A: «Eu também não; segundo penso não lhes
da religião, já que se apoiava numa grande parte de artigos absurdos trouxe nada de bom, embora nos tivesse por acaso prejudicado bas-
referentes à natureza do corpo de Cristo e à posição dos anjos e tante. Porque as pessoas que acabaram por se cansar do descara-
santos no céu, pensaram que estes artigos se poderiam transformar mento dos padres e puseram à prova a verdade daquelas doutrinas
em dogmas, porque alguns deles traziam vantagens, outros respeito que lhes eram impostas, começaram a investigar o sentido da Sa-
pelo clero - e mesmo para os menores de entre eles. Pois se con- grada Escritura, na sua linguagem erudita, começando a estudar o
seguiram que o povo acreditasse que o menor de entre eles podia latim e o grego. Familiarizaram-se então com os princípios demo-
fazer o corpo de Cristo, gostava de ver quem não quereria mostrar- cráticos de Aristóteles e Cícero, por simpatia com a sua eloquência
-lhes o seu respeito e quem não teria sido generoso em relação a foram aderindo cada vez mais e em maior número à sua política,
eles ou à Igreja, sobretudo durante uma doença ou se pensassem que até que se degenerou na insurreição sobre a qual nos debruçamos
aqueles faziam ou lhes traziam o redentor.» B pergunta: «Mas, agora.» Naquilo que os franceses radicais do século XVIII preten-
nessas fraudes, qual foi a vantagem que a doutrina aristotélica lhes deram transformar - numa intenção propagandística da burguesia
trouxe?>> A responde: «Deram mais uso à sua escuridão que à do seu país que então acordava - no motor dos acontecimentos
sua doutrina. Nenhuma obra de filosofia clássica pode ser compa- históricos, pensava Hobbes•- em cujo país a burguesia tinha jâ
rada à de Aristóteles no que toca ao jeito de confundir os homens assegurado uma vasta participação no poder público - reconhecer a
com palavras, de provocar disputas, que acabavam por terminar nas causa imediata e perniciosa dos fenómenos históricos até então:
decisões da Igreja Romana. E, contudo, utilizaram muitos pontos a «Aufklarung>> surgida de instâncias materiais, que preparava a
desta doutrina de Aristóteles como, por exemplo, primeiro a doutrina Revolução.
das substâncias separadas» B: - O que são substâncias separa- Hobbes que não surge, à semelhança dos filósofos franceses,
das? A: - Substâncias separadas sem corpo. B: - Separadas de essencialmente como combatente contra os últimos bastiões do feu-
quê? A: - De tudo o que existe. B: - Não compreende a subs- dalismo, mas como arauto do começo da nova ordem, parte directa-
tância de um objecto que na realidade não deveria existir, mas que mente deste conhecimento para as deduções lógicas do novo estado.
importância lhes dão? A: «Muita, nas questões que dizem respeito Uma vez que os homens são facilmente conduzíveis devido às suas
à natureza de Deus e à condição da alma após a morte no céu, no inclinações por concepções mórais e religiosas, e uma vez que, como
inferno e no purgatório. Tu e qualquer um sabe quão grande é a o demonstra o passado, tais influências ideais são um meio impor-
obediência e quanto dinheiro eles extorquem ao povo por estes meios. tante dos chefes, o novo estado tem de as arrancar aos poderes do
Aristóteles, ao contrário, considera a alma a primeira causa do mo- passado e servir-se das suas em plena consciência.
vimento do corpo e consequentemente da própria alma. É disto Segundo o ponto de vista de Hobbes, durante a Idade Média,
que se utilizam na teoria do livre arbítrio. Como e o que ganham esta influência ideal foi exercida sobretudo pelas universidades. Ne-
com isso, não to quero dizer.» las se formaram muitos homens cultos, que tiveram d!l dirigir uma
A conversa toca ainda na função de outras teorias de Aristó- quantidade de práticas intelectuais, para se afirmar como a única
teles, bem como nas diferenças entre ele e a escolástica e adopta de situação capaz de ajuizar sobre as questões decisivas dos homens.
repente a seguinte orientação. B: «Estou agora a ver como eles in- Nas universidades aprendem a «obra de arte, tudo o que queriam
terpretam a lógica, a física, e a metafísica de Aristóteles, mas con- para fazer com que os seus leitores acreditem para desviar a força
tinuo sem perceber como podem adequar as teorias políticas deste da verdadeira razão à força de 'forceps' de palavras: quero com isto

60 61
dizer, diferenças que nada significam e que apenas servem para sucesso, quanto mais estiverem convencidos da verdade daquilo que
deixar boquiabertas multidões de gente inculta. Os leitores infor- divulgam e ensinam.»
mados eram tão poucos, que estes novos doutores nem se preo- A magistral simplicidade com que estas concepções são expres-
cupavam com o que eles poderiam pensar. Estes escolásticos deveriam sas, está ainda mais claramente patente na explicação a nível de
dar bom nome a todos os artigos de fé, em que os papas obrigavam conteúdo daquilo que, segundo Hobbes, deve ser ensinado nas ins-
a acreditar de tempos a tempo . . . das universidades saíram também tituições de ensino público sobre a ética e a interpretação da re-
todos os padres, que se espalharam pelas cidades e pelo campo, para ligião. Uma vez que na sua época os interesses do estado, por ele
obrigar o povo a uma obediência incondicional aos canônes do propagandeado, correspondiam aos das camadas futuramente mais
Papa ... >>( 38 ) ricas economicamente da sociedade inglesa, ele próprio podia, com
Este instrumento de trabalho, que provou a sua importância convicção, propor abertamente que se ensinasse, como a verdadeira
no decorrer da história de modo tão evidente, tem de se colocar e única base de direito para todos os deveres do homem, a segurança
agora ao serviço de uma nova e boa causa: a do estado burguês. deste estado. Como ainda se desconhecia a diferença entre estado
A paz interior é, para Hobbes, em grande parte condicionada pelas e sociedade, podia-se acreditar na proposição de que toda a moral,
ideias que são plantadas nos homens. As universidades enquanto se não tiver sido deduzida do direito natural como virtude burguesa
?,S mais importantes plantações das concepções dominantes têm de, de flexibilidade, é idêntica às leis promulgadas pelo estado. De outro
segundo ele, na organização do seu trabalho científico, ser pensadas modo, nunca Hobbes poderia ter passado por cima daquilo que tâm-
no intuito de corresponder aos objectivos do estado. Aquilo que fi- bém jâ escapara a Maquiavel, que os meios ideais de poder, cuja
zeram na Idade Média pela Igreja devem agora fazer pelo novo estado utilização se recebe do passado, não podem prescindir da sua utili-
imperialista de direito natural, nacional, considerado a melhor zação eficaz da escuridão secreta, que a envolveu no passado em
forma de governo. Hobbes manifesta-se muito claramente sobre relação ao seu fim. Para Hobbes, o estado é idêntico à garantia da
istm( 39) «Os erros, irreconciliáveis com a tranquilidade do estado, maior riqueza possível para o maior número possível dos seus ci-
chegam à alma dos súbditos incultos, em parte através dos cátedras, dadãos. No caso de o estado não preencher esta condição e, em
em parte através das conversas diárias das pessoas, que em conse- consequência, necessitar da maneira mais premente dos seus instru-
quência da falta de outra actividade, ocupam os seus longos tempos
mentos de poder, o método de Hobbes de designar abertamente as
de ócio com leituras; e estas pessoas formaram a sua opinião à partir
relações entre poder do estado e bens ideais, daria os piores resul-
daqueles professores, que nas universidades públicas ensinam a ju-
tados. Ele próprio exigiu como condição de sucesso dos professores
ventude. Por isso se tem de, por outro lado, se se quiserem valorizar
públicos que estivessem plenamente convencidos da verdade daquilo
doutrinas salutares, começar pelas universidades. Ali se devem ali-
cerçar os verdadeiros princípios ou os princípios considerados verí- que divulgam e ensinam. Mas a utilização da verdade como ins-
dicos para uma doutrina do estado; os jovens que ali forem ensi- trumento de poder, tem na história o seu caso particular. Parece
nados poderão, mais tarde, esclarecer as massas particular ou publi• estar, de facto, ligada às camadas em ascensão. Mas· é mutâvel e
camente. E isso fá-l0wão eles tão mais prontamente e com maior pouco fiel. No processo de consolidação destas camadas a verdade
vai-se retirando gradualmente das ideias que levam ao seu conhe-
(118) Ibid., p. 138. cimento. Embora o teor anunciado com convicção se conserve o
(119) Grundzüge (Princípios), p. 217. mesmo, vê-se abandonado pela verdade como aconteceu com a má-

62 63
xima «Iiberté, égalité, fratemité>> a propósito das prisões da repú- a segurança do estado e consequentemente também a sua própria
blica francesa. dependem do cumprimento do dever.(42)
Que o defensor do poder não pode vencer apenas com a verda- Que Cristo é o redentor prometido no Velho Testamento, esta
deira política, estava à partida determinado para Hobbes. Quando proposição de fé vale para Hobbes como condição suficiente da bem-
-aventurança; pois assim se ficará preparado para aceitar que o
explica que o estado teria de pôr ao seu serviço Igreja e religião,
seguir os mandamentos contribui para a glória eterna. «Concordo
trata-se, para ele, da exploração de ilusões pelo estado; o conheci-
por isso>> diz-se no final do primeiro diálogo importante de Behe-
mento é, para ele, aliás, idêntico ao conteúdo da teoria da natureza
moth(43) <<que os homens têm de ser levados a gostar da obediência,
e do estado. «Não gosto da intenção de transformar a religião numa através de pregadores e nobres, que na sua juventude beberam bons
ciência, quando deveria ser uma lei. Embora não seja a mesma em princípios nas universidades; que nunca conseguiremos uma paz
todos os países, é em cada país incontestável.»(40) O estado possuiria duradoura até que as próprias universidades ... sejam reformadas
aquelas ilusões, que para os seus fins lhe seriam mais úteis explicar neste sentido e o clero souber que não possui outra autoridade para
como religião, legalizaria o culto correspondente e de acordo com a além daquela que lhe é conferida pelo mais alto poder civil.» Cons-
prática da Igreja inglesa deixaria que fosse tratada e divulgada por ciente torna-se por conseguinte a religião que coloca ao serviço do
uma série de sacerdotes por ele assalariados. Tal como anteriormente domínio da sociedade «o medo de poderes invisíveis.»
os padres tinham inventado reflectidamente e mantido inalterada a No pensamento do filósofo burguês Hobbes, e segundo a sua
religião para os seus próprios fins, o estado teria agora de fazer o posição histórica, existe não só uma tendência de consolidação, mas
mesmo pela sua: «O medo de poderes invisíveis, sejam o que este também ligada a ela - uma outra ligada a uma penetração crí-
inventou, seja os que são transmitidos pela tradição, é religião quando tica de ideias e teorias sociais.
é definido pelo estado, e crença quando não o é.»(41 ) É portanto Ele próprio é autor da proposição(.. ): «Um homem privado
o medo, característica-base da natureza humana que deve ser posto tem sempre a liberdade, uma vez que o pensamento é livre, de acre-
ao serviço do estado através da religião.>> Tudo o que é necessário ditar ou não, no fundo do seu coração, nos factos que são apre-
para a vida espiritual, na fé ou na tradição é - reconheço-o - sentados como milagres, consoante ele consiga ou não reconhecer
quais as vantagens da fé das pessoas, que acreditam e defendem o
assentado tão simples quanto possível na Bíblia: crianças obedecei
milagre, e poderá então presumir, se deverão ser considerados mila-
aos vossos pais em tudo, servi os vossos senhores! Deixai que toda
gres ou mentiras.» Este ponto de vista envolve uma dialética histó-
a gente se submeta a um mais alto poder, seja o rei ou aqueles que
rica explosiva, nomeadamente quando os pensamentos primeiramente
por ele foram enviados! Amai a Deus de toda a alma e ao próximo
como a vós mesmos, são palavras da Sagrada Escritura, suficiente-
mente bem compreendidas. Mas nem as crianças, nem a maior parte ( 42 ) Ibid., p. 50- Também Hegel reconheceu a religiosi9ade «de tipo
das pessoas compreendem porque é seu dever fazê-lo. Não vêem que certo» na produção de idolatria contra a verdade e ordem legal estatal. (Hegel,
Grundlinien der Philosophie des Rechts, publicado por Georg Lasson, da Philo-
sophischen Bibliothek, .tomo 124, Leipzig 1921, Prólogo; em baixo citado como
Grundlinien.
(40) Behemoth, p. 140. (43) Behemoth, p. 155.
( 41) Ibid. (44) Tõnnies, p. 263.

64 65
«privados>> e limitados a uma crença em milagres ganham uma resso- consideradas eternas. A história surge então sobretudo como um
nância pública como crítica geral de ideias dominantes. processo, no qual a humanidade ganha total posse da razão; e nele
O problema base que a filosofia da história de Hobbes aqui se daria, sem mais, a melhor organização da sociedade, que se deseja
levanta é - como acabámos de mencionar acima - o da ideologia. como estádio final. Uma vez que esta é determinada pelos princípios
Este conceito, na realidade muito mais complexo, existe para Hobbes
não ainda pelo teor, mas pelo sentido. De qualquer modo é, para
\, ,,,,
li.:···>·.·.·.·.
do direito natural - conservação do bem geral através de uma se-
gura actuação do egoísmo individual - e uma vez que estes princí-
ele, simplificado como essência daquelas convicções que num deter- pios formulam a substância da sociedade burguesa, esta teoria signi-
minado período imperam numa dada sociedade e se destinam a fica objectivamente uma concepção da história como progresso para
manter intacta a forma desta sociedade. A opinião de Hobbes, e 1 o ideal da sociedade burguesa com a sua distribuição de propriedade
com ele a de Spinoza e de toda a «Aufklarung» pode ser formulada e livre concorrência. Este progresso é comparado às ideias do pró-
do seguinte modo: só se pode entender o curso da história desde então,
se tomarmos em consideração, como um dos factores mais impor-
tantes, a orientação das pessoas por meios ideológicos. Na Alta Idade
1
1
prio pensador temporalmente condicionadas, mas consideradas eter-
nas. É aqui que reside uma diferença entre Hobbes e a «Aufklãrung»:
aquele acredita ingenuamente que a razão como que teria sido dada
Média teriam sido sobretudo os nobres e os sacerdotes que, por meio pronta no início, apenas encoberta por certas manobras, sobretudo
da ideologia mantiveram uma estrutura social, de cuja estabilidade pela táctica de confusão lançada pela Igreja, enquanto que para os
duradoura derivava essencialmente a sua supremacia. Contrapõe-se filósofos da «Aufklarung», à excepção de Rousseau, só se consegue
a razão à ideologia. A primeira, denominada por Hobbei:. <<a razão a razão com base na experiência socialmente organizada - decerto
legal» é idêntica à ciência e ao direito natural, é a suma essência também, segundo eles, depois de ultrapassadas as dificuldades co-
de todas as proposições baseadas num conhecimento autêntico.(45 ) locadas pelos chefes. Se para Hobbes o conhecimento já existe
Para Hobbes e para a «Aufklãrung>>, a razão compõe-se então à partida, como na história da Bíblia, e apenas é enegrecido pelo
de uma série de conhecimentos, engrandecível a qualquer hora com pecado do homem, assim limitado na sua eficácia, para a «Aufklã-
base na experiência ou no pensamento lógico consequente; mas as rung» é uma lei natural, localizada no início da ideologia, que apenas
próprias estruturas desta série devem encontrar-se fixas de uma vez pode ser suplantada no decorrer do processo histórico.
por todas, e uma vez encontradas nada mais deveria haver que as
Todas as concepções têm em comum o facto de a razão se
pudesse alterar. Em consequência, não existe apenas pura ê sim-
manter eternamente a mesma, de podermos abarcar a verdade em
plesmente um conceito válido de natureza, mas também um, espácio
toda a sua multiplicidade aqui e neste momento de uma vez para
e temporalmente de validade geral, da moralidade e do verdadeiro
todas. Enquanto que a verdade é um fenómeno ao qual as pessoas
interesse de todos os homens, todas as categorias relativas a ideias
da sociedade e do estado, uma vez reconhecidas como certas, são se dirigem, ou de que se afastam, ela própria mantém-se intocável
pela história, pelo destino temporal dos homens. Esta teoria, cuja
problemática se torna apenas clara na filosofia de Hegel, com a re-
( 45 ) Em toda a «Aufklãrung» inglesa e francesa, o conceito «razão» ligião por ela contestada como ideologia, revela assim a sua seme-
(Vernunft) designa o conhecimento certo e a posse humana dele. Que os filó- lhança, pois também ela promete dar uma verdade absoluta e con-
sofos alemães em volta de Christian Wolff tivessem adaptado a palavra «Raison»
apenas no sentido de uma riqueza psíquica, .teve como consequência uma enor- clusiva. Parte do princípio de que o momento em que ela própria
me confusão, ainda não de todo afastada em Kant. surge, quase como se apropriou da verdade.

66 67
A nova filosofia considera assim a sua doutrina da natureza
que te há-de levar para fora, já estão à porta». Vejo que a filosofia,
e da sociedade como definitiva, pinta por isso a história completa-
mente preto no branco. Para todos os pontos de vista de épocas qu~ há-de contrariar e reprimir a tua, não durará muito tempo, nãú
passadas, que lhe são opostos, existe apenas o predicado de burla, mais que qualquer outra . . . Os factos da história da filosofia nãc
são aventuras - por muito pouco que a história universal seja apenas
na melhor das hipóteses, de erro; as realizações ideais do passado
romântica - nem apenas uma colecção de acontecimentos ocasionais
pertencem a uma má consciência ou a uma má compreensão. Na .
caminhadas de cavaleiros enganadores, que por eles se batem, se
'
verdade encontram-se certos pontos de contacto com o presente em
esforçam sem querer, e cuja actuação desapareceu misteriosamente.
certos pensadores da Idade Média, e mais ainda da Antiguidade, aos
E muito menos se subtilizou aqui um e ali outro ... »(46) - «No que
quais se tecem elogios especiais como manifestação esporádica de
respeita ao indivíduo, cada um é aliás um filho da sua época; como
genialidade, ao contrário da valorização na Idade Média, de um
tal, também a filosofia do seu tempo está compreendida em pensa-
Demócrito ou Epicúrio como defensores e arautos; mas é esta valo-
mentos. É igualmente insensato presumir que qualquer filosofia con-
rização, ela própria, que revela ainda mais pertinazmente a segu-
tinue para além do mundo do seu presente, que um indivíduo ultra-
rança da fé em si mesma, da verdade atemporal, que se possui firme,
passe o seu tempo, salte por cima de Rodes.»(47 ) O sentido das
ao contrário do mundo temporal e espacial que nos rodeia. Os pon-
ideias levantadas na história só o conseguimos abranger, segundo
to~ em comum com o pensamento religioso criticado consistem no
Hegel, quando as compreendemos independentemente dos condiçio-
facto de se arrancarem opiniões estranhas dos seus contextos, com-
nalismos dasua época, isto é, quando as consideramos em relação
parando-as com as próprias e depois se repudiarem ou aprovarem
com todas as esferas da vida social. «A religião de um povo, as suas
sem mais, sem se estar preparado para compreender um papel histó-
leis, as suas tradições, o estado de avanço das ciências, das artes, das
rico. Tal como o crente que encara o Apocalipse como verdade eterna
relações legais, as suas outras actividades, a indústria, para satisfa-
separa os hereges dos santos, também a filosofia do materialismo
zer as suas necessidades físicas, todos os seus destinos e relações
burguês separa, com base na sua própria «razão», parvos e aldrabões
e os seus vizinhos na guerra e na paz, tudo isto se encontra na mais
de sábios e mártires.
íntima relação . . . O que interessa é a determinação de que relações
Para esta posição, de na apreciação de fenómenos culturais
existem realmente.»(48)
do passado nos apaziguamos com um simples sim ou não e em vez
De Hobbes até à «Aufklãrung>> assegurou-se repetidamente
de compreender, compararmos, descobriu Hegel as seguintes ·pala-
uma tal relação (Hegel lembra ele próprio Montesquieu), embora
vras: «O todo da história da filosofia>> seria «um campo de batalha,
aquela fosse sempre considerada externamente. Relacionam-se todas
apenas coberto com as ossadas dos mortos ... um reino de indivíduos
as expressões de vida de um povo umas com as outras, ordenam-se
do passado, não apenas corporalmente mortos, mas sistemas refu-
tados, intelectualmente passados, dos quais cada um matou e sepul-
tou o outro. Em vez de «segue-me», neste sentido dever-se-ia muito
( 46 ) Hegel, Vorlesungen über die Geschichte der Philos;phie (Leituras
mais empregar, «segue-te a ti próprio>>, isto é, agarra-te às tuas pró-
sobre a História da Filosofia), tomo 1 (Obras Completas XIII, Berlim 1833,
prias convicções, mantém a tua opinião. Porquê aceitar uma es- p. 29 ss.)
tranha? . . . Mas segundo a experiência anterior fica bem mais pa- ( 47 ) Hegel, Grundlinien, p. 15.
tente que a uma tal filosofia se adequam bem mais outras palavras ( 48 ) Hegel, Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte, edi-
da Escritura, ditas ... pelo Apóstolo Paulo: «Vejo que os pés daquele tado por Georg Lasson, Phil. Bibl., .tomo 171a, Leipzig 1920, p. 100, citado
como Philosophie der Geschichte.
68
69
num <<Volksgeist» (espírito popular), mas não há qualquer empenho da humanidade, em que nem a natureza nem a sociedade, nem se-
em explicar sistematicamente o conteúdo das próprias concepções quer as suas relações se mantêm inalteradas. Assim, não se pode
religiosas, metafísicas, morais, com ,base na estrutura da sociedade compreender o conteúdo e tipo da condição intelectual dos homens
em questão. Mas é aí exactamente que reside o problema da ideo- sem conhecimento da época em que vivem e até - abstraindo dos
logia. Certo está que a falsa consciência autêntica no lugar de ciência primitivos - sem conhecimento da posição especial do grupo a que
se desmascara como tal; mas para o conhecimento da história não pertencem no processo social de produção. Desde o tempo dos pri-
é suficiente tratar as ideias religiosas ou metafísicas - na medida mitivos caçadores e pescadores que as funções vitais necessárias
em que não conseguirem acompanhar o desenvolvimento da ciên- para a manutenção e continuação da existência deixaram de se con-
cia - da mesma maneira que meros erros, tal como se rejeita uma jugar na pessoa individual, para o fazerem em diversos grupos dentro
falsa hipótese nas ciências da natureza, alegando erro de um qual- da sociedade. Com isto, também toda a vida intelectual foi obrigada
quer investigador. Fazer originar a religião de uma descoberta sub- a modificar-se e a desenvolver em si contradições. Uma história
jectiva do clero é errado, já porque as características, que, por exem- uniforme das ideias da arte, da filosofia, e da ciência, que abranja
plo, Hobbes pressupõe como motivos dos sacerdotes e dos nobres, largos períodos de tempo, limitando-se a puros traços de desenvol-
s09retudo o instinto mercantil, são momentos espirituais, apenas vimento espiritual é, por conseguinte, uma construção.
desenvolvidos pela sociedade burguesa. Hobbes viu-as contudo já à Pela primeira vez na nova filosofia da história é com Hobbes
sua frente e conseguiu pensá-las até ao fim; mas, por exemplo, para e com a «Aufklãrung» que se põe o problema da ideologia, ·isto
a Baixa Idade Média não eram de modo algum características. é, da relação de ideias dominantes reconhecidas como erradas com
As ideias significativas que dominam uma época possuem uma a situação social. Mas em vez de se considerar a ideologia na sua
mais profunda origem que a má vontade de alguns indivíduos. Estes dependência da sociedade, contentámo-nos com a psicologia do indi-
nascer:am, à partida, numa estrutura social, traçada pelo modo como víduo, de modo que acabaram por surgir como conteúdo e fim da
os homens ganham a vida na sua época. Tal como se encontram de religiosidade medieval condicionantes psicológicas do mundo burguês
certo modo determinados previamente para o primitivo caçador como: interesse privado, destreza, espírito mercantil, logro e lucro.
e pescador não só o seu modo de vida material, mas também os Contudo, nesta religiosidade, conhecimento e ideologia estão conti-
seus horizontes espidtuais, pelos processos simples em que são bbd- dos quase sem diferenciação;· ela é - o que apenas se revela numa
gados a ganhara sua existência; tal como a estruturação da vida observação da dinâmica social total - muito mais a forma de razão
com base nestes primitivos estádios de desenvolvimento acaba por medieval. Aquela filosofia estática parou contudo, no essencial, num
determinar igualmente não apenas os factos da vida dos indivíduos, mero confronto de «razão» e ideologia, sem as compreender a ambas
mas igualmente o seu conhecimento do mundo exterior, conteúdo no seu papel histórico. A orientação para um tal conhecimento
e construção da sua visão do mundo, do mesmo modo nas diferentes seria idêntica à auto-consciência crítica em relação à eternidade da
formas de sociedade o ser intelectual do homem se interlaça no pro- própria concepção. Teria de se ter conhecido o desenvolvimento
cesso de vida do corpo social a que pertence e que determina a sua material e ideal dos períodos anteriores como condição necessária
actividade. A realidade não é algo compacto, tal como a consciência da «Aufklãrung»; esta teria sido, segundo palavras de Hobbes(49 ),
não é um espelho em branco, passível de, no sentido da «Aufklã-
rung», ser perturbado por um bafo irracional ou injurioso ou limpo ( 49 Hegel, Phanomenologie des Geistes (Fenomenologia do espírito), edi-
por sábios; a totalidade da realidade é idêntica ao processo de vida tado por Georg Lasson, Phil. Bibl., tomo 114, Leipzig 1911, p. 367.

70 71
«esclarecida (aufgeklãrt) sobre si própria»; além disso, o princípio em algo fixo, um absoluto e obriga o conhecimento menos profundo
da mutabilidade das categorias, a sua relatividade histórica ter-se-iam a permanecer imóvel naquilo que não tem e si o seu fundamento ...
tornado evidentes e o conceito rígido de razão desta época, que tão A mencionada modéstia é a manutenção desta futilidade, deste
firme como a Idade Média acreditou em si, teria assistido à sua finito contra o verdadeiro- e por isso ela própria a futilidade»( 51 ).
dissolução. Num outro passo Hegel expõe que seria a dialética «que reinforma
A doutrina da relatividade histórica de conteúdos intelectuais esta informação, esta diversificação sobre a sua natureza finita e
não conduz ao relativismo histórico. A relatividade de uma propo- a falsa aparência da autonomia das suas produções e que a reconduz
sição e de uma ideologia são duas coisas diferentes. As fronteiras à unidade.»( 52)
daquilo que podemos com propriedade apelidar de ideologia são Esta já se encontra em Hegel completa em pleno espírito
constantemente impostas pelo estado actual do nosso conhecimen- e não primeiramente fragmento na história por completar dos
to.(50) O erro de Hobbes e dos seus seguidores não reside no facto homens. O próprio Hegel caiu na ilusão da «Aufklãrung», tão amar-
de terem levado a sério a ciência do seu tempo, nem de terem co- gamente por ele combatida: aplicou a dialética apenas ao passado
meçado a explicar as doutrinas, que com ela eram irreconciliáveis, e considerou-a completa na sua posição mental. Também ele, no
como bem sucedidas ilusões; o seu erro foi muito mais o de terem seu pensamento, transformou um momento histórico em eternidade.
considerado in summa como hipótese de razão eterna o seu próprio Só que como a realidade lhe surgiu como representação da id~ia,
repositório de conhecimentos, em vez de o considerar como um logo teve de, com a sua filosofia, idealizar - no sentido mais res-
momento do processo total social, para reconhecer que no seu pro- trito da palavra - e adorar também a base política em que se elevou,
gresso, a história se submete não só à análise, mas também à veri- quer dizer, o estado prussiano pré-revolucionário. Esta humildade
ficação e sob certas condições à mudança. perante o existente foi a falsa «modéstia>> do seu próprio pensamento.
A confiança num pensamento rigoroso e consciencioso e o
saber ém torno da relatividade de conteúdo e estrutura do conhe-
cimento não se excluem, antes são necessárias uma ao outro. Que
a razão nunca poderá estar segura da sua eternidade, que o conhe-
cimento depende de uma êpoca, mas que em época alguma ©stá
assegurado para todo o futuro histórico, que a reserva da depen-
dência temporal ainda atinge o conhecimento que a determina
- este paradoxo não anula a verdade desta afirmação, pois reside
na própria essência do verdadeiro conhecimento, nunca ser fechado.
Provavelmente é este o mais profundo significado de toda a filo-
sofia dialéctica. «Ê porém a pior das virtudes» - lê-se em Enciclo-
pédia - «uma tal modéstia do pensamento, que transforma o finito
(51) Hegel, Encycloplidie der Philosophischen Wissenschaften im Grun-
( 5 º) Na relatividade histórica de uma teoria o conhecimento nunca é drisse, (Enciclopédia das Ciências filosóficas em traços gerais) editado por Georg
idêntico à demonstração de que é ideológico. Carece muito mais da bem com- Lasson, Phil. Bibl. 33, Leipzig 1920, p. 336, citada como Encyclopãdie.
plicada comrrovação da sua função social. (52) Ibid., p. 192.

72 73
111
A UTOPIA

De Hobbes, como de Spinoza e da «Aufklarung», desprende-se


abertamente a confiança na forma de organização da sociedade bur-
guesa. Ela própria e o seu desenrolar são o objectivo da história,
as suas leis gerais são leis naturais eternas, cuja realização representa
não apenas o mais elevado mandamento moral, mas também a ga-
rantia de felicidade terrena. As grande utopias do Renascimento
são, pelo contrário, a expressão das camadas indecisas que tiveram
de suportar as despesas da transição de uma forma de economia
para outra. A história da Inglaterra dos séculos XV e XVI pode
elucidar sobre os lavradores expulsos de suas casas e quintas pelos
donos da propriedade, quando se transformaram aldeias inteiras em
zonas de pastagem, tendo por objectivo o fornecimento lucrativo
de lã aos manufactores de panos de Brabante. O destino dos bandos
nómadas, pilhadores de lavradores famintos, foi terrível. Dezenas
de milhar foram mandados as.sassinar pelo governo, muitos outros
forçados a trabalhar, em condições inacreditáveis, nas manufacturas
então em expansão. São exactamente essas camadas que representam
a primeira forma de protesto moderno. Por um lado libertos da
servidão, encontravam-se por outro, também libertos de todas as
possibilidades de ganhar a vida. A sua situação é a base da primeira
grande utopia da nova era, que acabou por dar o nome a todas as
posteriores, a Utopia de Tomás Moro (1516), atirado para o cárcere
após um conflito com o rei.(53 )

(5 3 ) Neste capítulo abordam-se para além desta, uma série de outras


utopias, em que se expõem conteúdos semelhantes, sobretudo o Sonnenstaat

75
novo tipo de economia possibilitou o abuso cada vez mais despro-
Os utopistas são testemunhas de como o lucro acumulado de porcionado desse poder de controle. E não apenas as condições no
uma economia mercantil se transforma na roda motriz da história. interior do território, como também a concorrência nacional - que
Das riquezas acumuladas nas cidades surgem perante os seus olhos desponta então entre as cidades italianas - terão consequências san-
as grandes manufacturas e outros empreendimentos, que derrubam grentas. Para os utopistas a causa das guerras, idêntica à da expulsão
economicamente o velho sistema de corporações e despoletam uma dos caseiros pelos senhores rurais ingleses, resumia-se ao lucro.
nova forma de produção dominante. De um lado concentra-se a Não é por acaso que os dois grandes utopistas, Tomás Moro
posse de possibilidades de trabalho: os patrões cultos e hábeis não e Campanella, eram católicos. Henrique VIII mandou executar o
possuem apenas saber e capacidades organizadoras dos novos mé- seu chanceler por este se manter fielmente agarrado ao catolicismo,
todos de produção, mas jgualmente os locais de trabalho, a matéria- recusando-se a reconhecer a suserania religiosa do rei; Campanella
-prima, as máquinas, os navios e outras facilidades, sem os quais reuniu, numa prisão espanhola, escritos inflamados pela expansão
deixou de existir trabalho lucrativo. Do outro lado concentra-se o de um império mundial hispano-papal e bradou contra os hereges.
total despojo de todos os meios, a fome e a miséria. Os sobrevi- Depois do seu julgamento - mal a pena de morte acabou de ser
ventes à servidão, as massas famintas das grandes cidades, os des- pronunciada - Tomás Moro explica aos seus juízes: «-· Sou, dizeis
troços humanos da ordem que se afunda, transformam-se em assa- vós, traidor e rebelde contra o rei. Oh não, meus senhores, vós o
lariados, obrigados a vender a sua força laboral. sois. Na medida em que vós vos separais da verdadeira Igreja, per-
A estas condições reagiram os utopistas com a palavra de ordem: turbais a sua unidade e a paz. Preparais um futuro terrível.>>(54)
A culpa é da propriedade! Na Idade Média a propriedade possuira Face à destruição da unidade e da paz, que ameaçava o futuro
um significado diferente do da época moderna. Valia então sobretudo da Europa através do desdobramento de forças individuais e da nova
como acumulação de bens para usufruto directo, não envolvendo economia de concorrência - necessariamente ligada ao aparecimento
necessariamente o domínio dos homens. Face à situação criada a de estados nacionais burgueses - para estes homens, historicamente
partir 'da Renascença é compreensível que a propriedade pudesse elucidados, que seguiam literalmente a sua religião, o idea] medieval
agora surgir aos utopistas como o demónio. Agora o poder basea- da Cristandade unificada deveria ter representado o paraíso. Embora
va-se cada vez menos em títulos senhoriais e direitos legítimos, agora no Concílio de Tridento a Igreja reconhecesse as novas condições
interessava cada vez menos quem era o senhor ou o mestre e o a que o catolicismo se teria de submeter como religião popular tra-
controle das pessoas e da sua força laboral tornava-se, cada vez mais, dicional o mundo poderia ainda representar - segundo pontos de
sinónimo de riqueza enquanto posse dos meios de trabalho. Este ' .
vista religiosos - uma ordem instituída em que se velava amda pa-
ternalmente pelos mais desfavorecidos. A memória das massas era
(Estado-Sol) (1623) de Campanella, monge do sul de Itália e um dos maiores ainda habitada pela Igreja medieval, ocupada em importantes funções
filósofos do seu tempo, (Para a apresentação de Campanella, consultar sobretudo sociais, sobretudo numa generosa ajuda aos pobres; ~ó que agora
Friedrich Meinecke, Die ldee der Staatrãson in der neueren Geschichte. (A que também ela se esforçava conscientemente por angariar formas
concepção de razão de estado na nova história), München e Berlim 1925).
Existe uma vasta literatura de utopia desde os admiradores radicais de Crom-
well, os Levellers, até à «Aufklãrung» francesa, cuja utopia característica (54) Proze{3akten (Actas de processo), citado de Emile Dermeng~em,
parece ser Code de la Nature (Código da natureza) do Abade Morelly (1755). Thomas Morus et les Utopistes de la Renaissance (Tomás Moro e os utopistas
As utopias dos séculos XIX e XX, possuidoras de um outro significado filosó- do Renascimento), Paris 1927, p. 86.
fico-histórico .encontram-se aqui fora de questão.
77
16
de poder e de dinheiro, desiste dessas funções. Moro e Campanella Tomás Moro, «tenho de fazer justiça a Platão e já não me admiro
mantiveram-se fiéis à sua fé, juntamente com largas camadas de que ele desprezasse prescrever leis para povos que pouco se impor-
povo, convencidos realmente da grandeza e salutaridade da doutrina tavam com a comunhão de bens. Este grande génio previu com cla-
católica. A sua ideia base, de uma humanidade unificada, nas pala- reza que o único meio de cimentar a felicidade pública reside na
vras de Campanella uma «monarquia universal», foi obrigada a in- aplicação do princípio de igualdade. Contudo, a igualdade é, em
flamar-se perante a desunião sangrenta da Europa, consequência da minha opinião, impossível num estado em que a posse é um direito
nova economia anárquica. individual e ilimitado; pois cada um procura, com a ajuda de di-
Como Maquiavel deve ter sido odiado por estes pensadores. versos pretextos e direitos, apropriar-se de tanto quanto pode e a
Pois o que para o florentino era uma facto, válido para todo o riqueza nacional, por maior que seja, acaba por cair na posse de
sempre - a utilização da religião como um meio da razão de estado alguns poucos indivíduos, que deixam os outros na miséria.»(56)
triunfante sobre a moral - era para aqueles a marca, mesmo a causa Também para os utopistas da «Aufklarung» a propriedade é
de todo o mal do presente. «Quase todos os príncipes são políticos a fonte histórica dos defeitos da alma humana, também Morelly
maquiavélicos», queixa-se Campanella, «e servem-se da religião como escreve, portanto em oposição a Maquiavel e a Hobbes: «Analisai
de uma arte de governar».( 55 ) Ambos os utopistas odiavam o que uma vez a vaidade, o orgulho, a ganância, a batota, a hipocrisia,
viall\ florescer não apenas nos grandes governantes, mas também a perversidade; dissecai igualmente a maioria das nossas virtudes
sobretudo nos pequenos príncipes italianos e alemães: entusiasmo aparentes; tudo se dissolve num delicado e perigoso elemento: o de-
religioso como fraseologia, como capa puída de mesquinhas tran- sejo de posse; até o encontrareis como base da atitude não egoísta
sacções monetárias nas cortes. mas teria esta peste universal, o interesse privado, esta febre la-
Para Moro e para Campanella a religião era o reservatório,
tente, esta tuberculose de todos os tipos de sociedade, conseguido
sem adulterações, da exigência de justiça perante a miséria real; pre-
conquistar um lugar onde não só não existe alimento, como nem
tendiam realizar a comunidade sagrada na terra, substituindo as leis
mesmo o mais ínfimo material perigoso? - Creio que é impossível
da livre concorrência pelos mandamentos de Cristo. O seu ponto
contradizer o impacto da afirmação de que onde não existe qualquer
de vista era irreconciliável com a concepção da natureza humana
que Hobbes retirara da realidade presente imediata: o homem-lobo, tipo de propriedade, não podei:ão surgir quaisquer das suas perigosas
mau por natureza. Ora acontece que segundo estes filósofos,' o consequências.>>(57 ) E Rousseau diz: «- O primeiro que cercou um
homem não é mau por natureza, podendo vir a sê-lo por força das pedaço de terra e se atreveu a dizer: - Isto é meu! - E que então
circunstância da sua vida na terra, sobretudo por causa da proprie- encontrou gente suficientemente parva que nele acreditaram, foi o
dade. Campanella condena Maquiavel por conhecer apenas os mo- verdadeiro fundador da sociedade burguesa. »(58)
tivos ruins dos homens. Nos homens não poderia apenas existir o
egoísmo, sem o impulso divino do amor ao próximo.
( 56 ) Tomás Moro, Utopia, Leipzig, o. J. (Reclam) p. 49 ss.
.
Os utopistas antecipam portanto a teoria de Rousseau dos
homens bons por natureza, estragados pelo contacto com a proprie- ( 57 ) Morelly, Code de la Nature ou le véritable esprit de ses loix (Código
da Natureza ou o verdadeiro espírito das suas leis), Paris 1910, p. 16.
dade. «Quando me entrego a estas reflexões» lê-se em Utopia de ( 58 ) J. J. Rousseau, Discours sur l'origine de l'inégalité parmi les hommes
(Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens), 2.ª parte, l.º pa-
(55) Meinecke, ibid., p. 123. rágrafo.

78 79
Mas existe uma verdadeira oposição entre Rousseau e os uto- A uto~ia ultrapassa o tempo. Das saudades provocadas por
pistas. Aquele nunca pensou em defender um recuar do desenvol- uma determinada situação da sociedade e que se alteram com cada
vimento histórico, ou melhor, uma distribuição igualitâria da proprie- mutação da realidade, quer ela construir, com os meios disponíveis
dade, enquanto que os últimos projectavam mentalmente uma so- no presente, uma sociedade perfeita: o país de sonho de uma fan-
ciedade comunista, sem propriedade privada, cuja realização lhes tasia condicionada temporalmente. A utopia esquece-se de considerar
parecia fantasticamente possível com os meios contemporâneos ao que o estádio de desenvolvimento histórico, a partir do qual é em-
seu dispor. Assim se explica que os seus países-desejo, ao contrário purrada para o esboço do seu país a-espacial, possui condicionalis-
dos esboços socialistas modernos de sociedades do futuro e ao con- mos materiais ao seu devir, existir e desvanecer, que é preciso co-
trário também da «Nova Atlantis» de Bacon, se não situem no fu- nhece~ exact~mente e avaliar, se se quer realizar algo. A utopia
turo, mas apenas num afastamento espacial do local de residência gostaria de nscar a dor da sociedade contemporânea manter nela
dos autores. O país Utopia de Moro situa-se numa ilha do oceano, o bem só para si, mas esquece que os momentos bo~s e os maus
o estado-sol de Campanella no interior do Ceilão. Para estes filó- são apenas modos diversos da mesma condição, porque se baseiam
sofos a sociedade perfeita pode ser erguida e.m qualquer época e n~s mes~os ~on~~c~onalismos. Para ela, a modificação do que existe
em qualquer lugar; se os homens puderem ser levados pela persua- nao se hga a d1f1c1l transformação das bases da sociedade mas à
são, manha ou até pela violência(59 ) a uma correspondente consti- cabeça dos sujeitos. '
tuição do estado. . Só que a doutrina utópica levanta assim uma dificuldade lógi~a,
A abstracção das relatividades históricas liga os utopistas a p01s,. s:gund? . ela, a propriedade material é a razão da objectiva
Hobbes. Pois tal como na teoria do contrato, a sociedade se fun- con~1ça~ espmtual dos homens; mas desta psique deve também, no
dava de um acto de vontade livre do cidadão, os utopistas acreditam sentido mvers?, ser b~nida a propriedade. No enquadramento geral,
poder fundar rima nova sociedade, sem considerar directamente as a falt~, de lóg1~a consiste em aqui se exigir às concepções humanas,
condições temporais, meramente com base numa livre resolução q~e ahas devenam ser in~uenciadas pelas más instituições existentes,
racional dos homens. Moro continua, dizendo que ter-se-iam apenas nao apenas - como estaria certo - o trabalho paciente da realidade
de sugerir aos governantes as medidas acertadas; pois o melhor é mas ~ambém o delinear de um .certo quadro ideal de uma sociedad;
inimigo do bom e as coisas só poderão estar todas bem, quando os perfeita, a nível de conteúdo, determinado até ao menor detalhe.
homens se tornarem também eles próprios bons. Isto levaria, ·acres- Reencontramos o mesmo conceito presunçoso de uma razão uni-
centa ele, cuidadosamente, ainda <<alguns» anos.(60) Provavelmente, versal absoluta, com que nos deparámos na teoria dos filósofos bur-
ele próprio interveio a favor da chancelaria de Henrique VIII com ~ueses, que ti~ha como função - em oposição aos utopistas - trans-
tais ideias utópicas. figurar a sociedade existente e de fazer passar as suas categorias
como eternas.
Moro e Campanella defendem que os bens necessários à socie-
( 5 9) Que o esboço utópico permita, de acordo com a sua existência,
a violência e a persuasão como meios de realização de uma ordem melhor,
provou Campanella com a sua própria vida, na medida em que depois de ter
pago a sua revolta com a prisão, voltou a seguir o seu ideal, tentando per-
suadir os detentores do poder através das suas obras.
( 60 ) Moro, ibid.
'
!
dade deverão existir em abundância numa organização racional-
mente estruturada do trabalho, onde se produz não para o lucro
de cada um, mas directamente para ir de encontro às necessidades
universais. À excepção dos doentes, todos são obrigados a trabalhar:
para Moro seis horas são o suficiente, para Campanella, apenas

80 6 81
quatro A utopia de Moro possui mais o carácter de uma associação realidade, em vez de seguir as fantasias daqueles: (pois alguns escri-
geral de cidadãos livres, conhecendo a eleição de funcionários; o tores inventaram repúblicas e principados, nunca vistos, nem nunca
estado-sol de Campanella aproxima-se do modelo da ordem monás- fundados na realidade) porque existe uma tão grande diferença entre
tica medieval. Se a ordem dos utopistas é mais humana, liberal, aquilo que lá acontece e aquilo que deveria acontecer, que aquele
esclarecida, mais inglesa que a do estado-sol, Campanella percebeu que desprezar o primeiro e apenas se orientar pelo segundo, mais
de modo mais inteligente a possibilidade de domínio da natureza prepara o seu declínio que a sua própria conservação».(º1 )
pela ciência em progresso. No seu país do futuro prevê uma série De facto, a utopia tem duas facetas, é a crítica daquilo que
de máquinas modernas; nesse ponto já aliás Bacon o precedera. Cam- é e a representação daquilo que deveria ser. O sentido está contido
panella está também convencido de que não só a natureza sobre- essencialmente no primeiro momento. Dos desejos de um homem
-humana se deixaria determinar e utilizar nas suas manifestações, pode-se chegar à sua situação verdadeira; através das felizes utopias
como se poderiam regular igualmente as novas gerações da sociedade de Moro, espreita a condição das massas inglesas, cuja saudade o
por intermédio da eugenia científica. humano chanceler descreveu. Claro que não reconhece nesta sau-
A estagnação em estados ideais e a incapacidade para reco- dade do passado a reacção à situação social em que ele, juntamente
nhecer as reais tendências de desenvolvimento vingaram-se no ca- com as massas, vive e padece, mas projecta o conteúdo desta ânsia
rácter do sistema utopista. Os pressupostos económicos para uma ingenuamente num além espacial ou temporal. A utopia da Renas-
direcção racional das oportunidades sociais, baseada na propriedade cença é o céu securalizado da Idade Média. Decerto que a construção
comum não existem sob forma alguma na sua época; pelo contrário, de um mundo do lado de cá, mais distante, ao qual se poderia chegar
a realização da sua forma imaginária tem significado um básico em vida, representa uma transformação radical em relação a épocas
entrave artificial ao desenvolvimento, dependente do desenrolar da em que o pobre apenas pode tomar parte em utopias depois de
iniciativa criadora de cada um numa livre concorrência. Numa época morto. Contudo, tal como o crente medieval pouco encontrou no
em q~e a personalidade de um capitão não é apenas decidida pelos céu do reverso da sua própria pobreza, também os utopistas pouco
seus sucessos na navegação marítima, mas em que «capitão>> era avistaram naquelas longínquas paradas da reacção à miséria da rea-
um conceito que designava igualmente o chefe dos outros ramos lidade sua contemporânea.
industriais com boas perspectivas, numa época em que, na sequência Dos filósofos apologistas do que existe ou do que acaba de
da ainda mínima racionalização da produção humana, existia todo surgir, distinguem-se os utopistas pelo conhecimento de que na or-
um mundo entre a consciência do chefe económico e a dos exe- dem burguesa pensada até ao fim, apesar da libertação do indivíduo
cutantes, tinha necessariamente de existir um mundo entre as con- do sistema de escravatura, a verdadeira miséria não é, nem pode ser,
dições de vida materiais de chefes e as de executantes. Propriedade suprimida. Quando Hobbes e Spinoza divulgavam que o novo estado
comum e condições de vida iguais, como as utopias preconizavam, era a expressão dos interesses gerais, tinham razão na medida em
teriam representado a morte da civilização. Por essa razão é que que a satisfação das exigências que certas camadas buJtguesas abas-
em comparação com Moro e Campanella, Maquiavel e Hobbes pa- tadas, o desenvolvimento dos seus empreendimentos num tempo
recem progressistas e é com direito que se diz em O Príncipe, rela- previsível, fomentavam a sociedade no seu todo. Estes filósofos eram
tivamente às tentativas de utopia: «Uma vez que ... tenho intenção de simultaneamente os médicos mais práticos; prescreviam o imediata-
escrever algo de útil para aquele que o entende, parece-me mais
acertado apresentar a verdade do modo como ela se encontra na ( 61 ) Fürst, p. 83 ss.

82 83
mente necessário, mesmo que provocasse dor em certas partes. Mas, tade únicas concorrentes e planear· o seu processo vital no interesse
ao contrário deles, os utopistas descobriram o mal social da economia, de todos. Por intermédio desta teoria que não conjuga meramente
sobretudo na existência da propriedade privada e acharam que o tra- o bem estar exterior, mas também o desenvolvimento da moral e da
tamento definitivo não dependia da modificação das leis, mas sim ciência com as relações dos homens na economia, os sonhos dos
das relações de propriedade. utopistas modernos ligam-se ao Estado de Platão e estão simulta-
Decerto que a comparação da sociedade a um organismo doente neamente pelo menos tão próximos da realidade como os apologistas
ou são é perigosa. Desvia a atenção do facto de que em grande me- do existente.
dida a sorte e a vida de largas camadas estão ligadas nada menos Quanto mais os interesses daqueles indivíduos, obrigados a
que «organicamente» à prosperidade do «todo». Se existiu na Alta sofrer na ordem social existente, ganharem em poder na sociedade,
Idade Média, em certos pontos da Europa, (analogamente a certas mais a doutrina da utopia da propriedade se tornará num conheci-
tribos primitivas com uma economia comum) uma tal relação or- mento actual. Decerto que saltar sobre o presente e ignorar, com
gânica entre indivíduo e sociedade, que o bem deste era idêntico a divulgação de uma perfeição total, as possibilidades do presente
à saúde de cada membro, o mesmo já não pode ser válido para o foi um erro. Mas é igualmente uma falta não conceber uma ordem
nosso tempo. Na linguagem de Hegels estes factos seriam formulados melhor e não reconhecer os seus pressupostos. «... seria melhor,
como a exterioridade dos momentos uns dos outros e a destruição lê-se em Crítica da Razão relativamente à utopia de Platão( 62 ), «se-
do todo. A comparação com o corpo doente da sociedade que é pre- guir mais de perto esta ideia e . . . iluminá-la por novos esforços,
ciso salvar, mesmo doendo em certas partes, apenas descura a insigni- em vez de a afastar para o lado como lixo, sob ·os miseráveis e per-
ficância de que estes pontos únicos são pessoas vivas, que existem niciosos pretextos da inoportunidade.» Kant alia-se, ele próprio, ao
com um destino próprio e uma existência única. Mas os utopistas erro dos utopistas no tocante aos pressupostos da realização, quando
entend~ram realmente a insignificância por cima da qual se passou, justifica a precária realização de um estado social perfeito sobre-
como as pessoas sofredoras, obrigadas pela sociedade a uma exis- tudo «com o desleixo das verdadeiras ideias pela legislação» e afirma
tência desumana. Nas suas obras estava contida a garantia de que que o importante seria ensinar estas ideias verdadeiras aos «legis-
nenhuma melhoria só jurídica, mas apenas a transformação radical ladores». Também ele se agarra ao fantasma de uma sociedade
das bases poderia produzir, no lugar de uma existência destruída harmoniosa, para cuja fundação dependeria, para ele, o juízo aceite e
e desumana, a unidade; em vez de injustiça, justiça. a boa vontade de todos os intervenientes. Mas não são os legisla-
Onde quer que se instituem as utopias, logo se dá prioridade dores do presente, mas aqueles grupos que experienciam a necessi-
a que o ganho seja devidamente elevado, não permitindo que todo dade em sequência da sua posição no processo de vida social, que
o bem seja usado pelo mal, como acontece geralmente. Em qualquer são os portadores naturais do conhecimento das raízes do mal - que
parte onde - como no caso presente - as leis económicas podem se reflecte na utopia e nos objectivos, aos quais está ligada a sal-
actuar livremente, dever-se-ia seguir, face às diferenças existentes vação.
da posse de bens, a repartição de felicidade e infelicidade não pelo Ao contrário do abandono do existente pelos utopistas, a ex-
valor ou mérito, mas apenas por acaso. A utopia defende que a so- plicação - naquela época progressista e aceite - dada pelos defen•
ciedade só pode realizar o objectivo que lhe é imposto pelo direito
natural burguês de satisfazer os interesses de todos, quando pres- 62
( ) Kant, Kritik der reinen Vernunf t (Crítica da Razão Pura) Leipzig,
cindir, enquanto base económica, da mecânica cega de muitas von- (Reclam) p. 267.

84 85
sores do direito natural foi a de que o novo estado burguês era, de cada um se pode desdobrar mais livremente, tem custos histó-
pela sua essência, garantia do bem comum, era a melhor de todas ricos universais.
as garantias de vida dos seus cidadãos. Que essa explicação se man- Aqui se evidencia a problemática de todo o idealismo, incluindo
tivesse rigidamente no futuro, sem nunca confrontar a realidade o de Hegel. Defende o seu pensamento idealista que toda a realidade
estatal com os novos objectivos, acabou por a transformar numa seria idêntica ao espírito absoluto, «a natureza e a história apenas
pura ideologia. A par da apologia ideológica de uma ordem caracte- servindo a sua revelação e sendo receptáculo da sua adoração.»(64)
rizada essencialmente pela negação das obrigações medievais, isto Assistimos a como «o espírito na história vagueia numa série de
é, pela livre concorrência, a utopia valia a princípio apenas como lados inesgotáveis, que com isso gozam e se satisfazem ... Neste
expressão de uma ânsia inconsciente, como pura ficção. Compreen- prazer da sua actividade apenas tem a ver consigo próprio>>( 65). Este
de-se contudo que esta ânsia possa prescindir da sua falta de poder pensamento não contém só algo de problemático, mas igualmente
exactamente na medida em que a sociedade amadurece para uma algo de fecundo. Pois deste modo a morte real e única dos homens
transformação das bases e para isso desenvolve as suas forças. Como individuais integra-se no sistema, parecendo ilusão, no mínimo jus-
já ficou dito, nos séculos XVI e XVII proibiu uma economia comum, tificada, perante a substancialidade espiritual sobrevivente, perante
sendo a concorrência necessária como condição para o maior desen- o espírito absoluto ou mesmo a consciência transcendente. Mas a
volvimento da sociedade.(63) Se este ponto é esquecido nas utopias, morte não se deve teoricamente tomar de modo algum «racional»
elas formulam afinal o objectivo final, de modo que cada empreen- (sinnvoll); muito mais se reconhece nela a inconsciência de toda
dimento político se lhe possa adequar. a metafísica do sentido e de toda a teodiceia. Decerto que aquele
A impossibilidade de realizar imediatamente este objectivo e sofrimento real, cujo reflexo é a utopia, é condicionado pelo pro-
a conveniência da ordem de propriedade contestada não justificam cesso, sem o qual a sua salvação é impensável, mas nada contradiz
mais a função de uma tal filosofia que a sabedoria que se sente
de modo algum as contradições que aqui imperam. O indivíduo
satisfeita no registo daquelas necessidades. É um facto que a história
sujeito à nova ordem apenas encontra refúgio no sonho, na mera
conseguiu fazer uma sociedade melhor de uma menos boa e que
interioridade; por isso mesmo a religião habita nessa época entre as
poderá realizar uma ainda melhor no seu decurso; mas um outro
camadas mais baixas. Estes indivíduos são o sacrifício com que o facto é que o caminho da história passa pelo sofrimento e miséria
«espírito universal» (Weltgeist) contribui para os seus elevados objec- dos indivíduos. Entre estes dois factos existe uma série de relações
tivos, pois sofrem um período de desenvolvimento histórico neces- clarificadoras, mas nenhum sentido justificativo.
sário para o progresso. São - para utilizar aquela comparação or- Estas considerações filosóficas impedem a condenação pre-
ganicista, cuja ambiguidade aqui se torna tão evidente - o sangue meditada daqueles empreendimentos em que os homens realizam
derramado pela cura, pela mesma cura que anseia pela sua própria de improviso a utopia, querendo introduzir a justiça absoluta sobre
necessidade, figurada na utopia. Uma condição social em que a força a terra. Na época de Tomás Moro, um homem detestado pelo
chanceler inglês, começa na Alemanha - com meios t~talmente ina-
dequados - um empreendimento desse tipo, à partida sem futuro,
Porque objectivos e meios disponíveis eram grotescamente desade-
( 63 )
quados, os estranhos caminhos dos utopistas para a realização das suas ideias
tomam-se compreensíveis; Moro quer convencer os chefes e Campanella pre- ( 64) Hegel, Enzyklopadie, p. 463.
para uma sublevação de monges em Calábria. ( 65 ) Hegel, Philosophie der Geschichte, p. 12.

86 87
que com ele falhou. Este homem era Thomas Münzer. Não quis se cada acontecimento é o triunfo da lógica ou da ideia, então agi-
esperar que a cristandade se realizasse após um longo caminho de lidade de joelhos e toda a hierarquia dos «sucessos>> de joelhos ...
sofrimento. Proclamou que também Cristo não fora paciente face E que escola da prosperidade é uma tal visão da história! Encarar
às injustiças sobre a terra e apoiava-se, para o justificar, nas próprias tudo objectivamente, contra nada se rebelar, nada amar, tudo com-
palavras de Cristo, chegando mesmo a contradizer os intérpretes preender, como é suave e brando ... Diria portanto: a histórica
teológicos. marca sempre: «Era uma vez» a moral «Não deveis» ou «não de-
A Thomas Münzer faltou a tolerância do idealismo. Os inves• veríeis ter devido». Assim se transforma a história num compêndio
tigadores e os políticos práticos conhecem e sabem que as condições, de imoralidade objectiva.»(66) Nietzsche cujo posterior desenvolvi-
complicadas e demoradas, mesmo para as mais pequenas melhorias mento filosófico o conduziu à adoração não da história do homem,
eficazes das necessidades sociais nunca mais poderão justificar a mas da história natural, da biologia, e que ao fim e ao cabo foi
resignação do sábio contemplativo. Quem reclama tolerância no vítima «na nua admiração do sucessm> da mera vitalidade, formula
sofrimento e na morte enquanto condicionados por disposições neste passo um ponto de vista da «Aufklãrung». A explicação to-
humanas - tem de atentar que a tolerância geral, que existe no talmente conseguida, o conhecimento da necessidade de um acon-
decorrer da história, é uma razão essencial de espera da necessidade. tecimento histórico, pode tornar-se para nós num meio de introduzir
Na filosofia da história o seguinte e sempre válido: A explicação a razão na história; só que a história não considerou qualquer razão
do curso da história até ao momento, que aliás ainda terá de ser «em si», não é uma substancialidade nem «espírito» perante o qual
realizada em grande parte, é algo diferente da sua justificação im- nos devamos curvar, nem «poder», mas um resumo abstracto de
possível. acontecimentos, resultado do processo vital social dos homens.
Nietzsche fez um juízo demasiado rigoroso e por isso sem A história não dá nem tira vida a ninguém, não impõe nem cumpre
grandes resultados, quando no seu ensaio Do uso e inconveniente tarefas. Apenas os homens reais actuam, vencem obstáculos e podem
da Hist6ria (Vom Nutzen und Nachteil der Historie) nos leva a des- conseguir reduzir a dor individual ou geral, provocada quer por
confiar de uma preocupação científica com a história. Mas quando eles próprios, quer por poderes naturais.
se faz uso da rivalidade entre a história e a utopia, pode-se então A autonomização panteísta da história num ser substancial e uno
mencionar Nietzsche. Sobre o enaltecimento do chamado «poder da nada mais é que metafísica dogmática.
história» escreve ele que «envolve praticamente todos os instantes
da nua admiração do sucesso e que conduz à idolatria do factual»,
para cujo serviço se ensaiou a locução muito mitológica e ainda
por cima bem alemã «considerar os factos» (Den Tatschen Rechnung
tragen).
Mas quem aprendeu a curvar as costas e a encolher a cabeça
ao «poder da história» acaba por acenar mecanicamente, e como
os chineses, o seu sim a qualquer poder, seja ele um governo ou
uma opinião pública ou uma maioria numérica, movendo os seus
membros exactamente ao compasso a que qualquer «poder>> puxa ( 66 ) Nietsche, Werke (Obras), edição de bolso, tomo II, Leipzig 1906,
as rédeas. Se cada sucesso contém em si uma necessidade racional. p, 178.

88 89
IV

VICO E A MITOLOGIA

A respeito de todos os acontecimentos, excluindo certas acti-


vidades humanas, a ciência responde apenas à pergunta da origem,
mas nunca à do objectivo. Contudo a questão do «para quê?» face
ao sofrimento e morte humanas radica em raízes psíquicas tão pro-
fundas que nunca poderiam ser silenciadas. Quando falham as ten-
tativas de pintar o presente feliz para todos, quanto a utopià na
qual se apagou o acaso, se não pode realizar, torna-se necessãria
uma filosofia da história, que tenta reconhecer por detrás da con-
fusão experimentada da vida e da morte uma boa intenção dissimu-
lada, em cujos planos o facto isolado, aparentemente incompreen-
sível e sem sentido, tem o seu valor, sem o saber. Se é verdade que
é a construção de um tal sentido dissimulado que forma a essência
de toda a verdadeira história da filosofia, então o italiano Gianbattista
V ico foi o primeiro verdadefro filósofo da história da modernidade.
A sua obra principal mostra intencionalmente que na história do
homem reinava a Providência, alcançando as suas metas através das
actuações dos homens, sem que estes disso tivessem ou precisassem
de ter urna clara consciência. A sua grandeza não reside decerto
na construção, mas na investigação empírica, que inicia nesta ocasião.
Vico, nascido em 1668 em Nápoles, ali veio a falecer em 1744.
Este homem, quase totalmente desconhecido em vida, primeiramente
professor particular e depois miserável professor de retórica na Uni-
versidade de Nápoles, um piedoso católico e um pequeno burguês
revela-se, na realidade, não só corno um dos maiores filósofos da
história, mas igualmente corno um sociólogo e psicólogo importante

91
e original. A juntar a tudo isto foi um renovador da filologia, fun- o único conhecimento verdadeiro e ao mesmo tempo, se o pensa-
dou a filosofia da arte e possui um jeito especial para grandes con- mento matemático será a verdadeira expressão da essência do homem.
textos culturais, nunca visto durante toda a sua vida, nem sequer A obra principal de Vico, a Scienz.a Nuova, a «Nova Ciência
nos séculos que se seguiram. Vico é uma prova de como a ocupação sobre a natureza comum dos povos», cuja primeira edição surgiu
com a história, quando esta tem como meta não um ensaio de apa~ em 1725, exibe na página do título uma imagem alegórica. Entre
rências superficiais mas igualmente a descoberta de contextos regu- outras coisas, depara-se com uma grande esfera repousando sobre
lares, pode ser portadora de uma fertilidade universal. um altar. Esta esfera, sobre a qual se encontra uma mulher de tronco
O próprio Vico se apercebeu do mesmo na sua polémica contra alado está à beirinha do altar e apoia-se apenas nele num dos lados.
a filosofia cartesiana. Descartes morrera em 1650. A sua filosofia Isto quererá demonstrar que até agora a realidade só foi considerada
aponta em muitos aspectos para o futuro, pois teoricamente abrira de um dos lados «apenas relativamente à ordem da natureza.»(ª1 )
não só caminho à investigação imparcial da natureza, como também Os filósofos - segundo Vico - também «não consideram» a reali-
constituíra, na fundação de uma teoria do conhecimento crítica, o dade «do lado que é característico dos homens: cuja substância tem
ponto de partida para orientações futuras na filosofia. As grandes a característica principal de ser social>>(68). Descartes defendera o
energias intelectuais que pressionavam o desenrolar e a formação conhecimento matemático como o único certo e verdadeiro, basean-
das. ciências naturais matemáticas, juntaram-se ao pensador francês, do-se para tal no princípio de que «reconhecemos inteiramente ap~nas
que foi simultaneamente o inventor da geometria analítica e ser- aquilo que fizemos nós próprios - um princípio que pode ser seguido
viram-se dos seus métodos e terminologia. O que se não limitou à desde Bacon, Hobbes, Descartes, passando por Leibniz, até Kant
investigação natural: também o catolicismo em renovação se apo- e Fichte como princípio filosófico. Sob o «nós» deve-se compreender
derou dos meios de conhecimento de Descartes para adequar a reli- a reflexão abstracta da razão, a essência do aparelho de pensamento
giosidade ao desenvolvimento cultural em progresso. Descartes era, isolado segundo o padrão da lógica tradicional. Vico aproveita o
na época de Vico, uma grande moda filosófica, era praticamente princípio do conhecimento exclusivo do realizado por si, tornando-o
impossível passar por cima de uma discussão da sua filosofia. no fio de prumo da sua filosofia - só que lhe dá um significado
A filosofia de Descartes constitui o correlato filosófico à con- completamente diferente e nunca ouvido. Aquilo que os homens
dição de a nova sociedade se ter transferido largamente para a ins- criaram eles próprios e aquilo que deve por isso ser o objecto mais
trução das ciências naturais matemáticas. As necessidades da econo- nobre do conhecimento - aquelas criações em que a substância da
mia mercantil em expansão, a necessidade de domínio técnico da natureza humana e do <<espírito» se manifestam de modo mais evi-
natureza morta conduziram à absolutização da matemática como dente - não são as construções fictícias da razão matemática, mas
único ramo do saber em que se podia confiar. O «cogito ergo sum» a realidade histórica. Com relação à sua própria empresa, diz Vico:
de Descartes, as profundas reflexões das suas meditações, obrigam-se - «Assim descarrila esta ciência, tal como a geometria, que cria
na totalidade da sua obra a justificar a matemática como único ela própria o mundo das grandezas, construindo e ob9ervando cor-
ramo do saber seguro. No postulado de «cogito» ganha os critérios
de clareza e nitidez; encontra-os então essencialmente apenas preen-
(67) Giambattista Vico, Die neue Wissenschaft über die geoneinschaf-
chidos na matemática, da qual já os teria provavelmente deduzido
tlieche Natur der Volker (A nova ciência sobre a natureza comum dos povos).
em segredo, quando os descobriu enquanto «cogito». A discussão Munchen o. J. (1924), p. 44.
com Descartes é a discussão sobre a pergunta se a matemática será (ºª) Ibid.

92 93
respondentemente os seus princípios; mas com muito maior realidade, parece-nos que se revela a fé num sentido divino e objectivo tera-
já que as leis que regulam os assuntos dos homens são mais reais pêutico da história que constrói o significado primordial da sua filo-
que meros pontos, linhas, superfícies e figuras.»( 69) sofia. Mas quando dá ao conceito de providência uma utilização
Maquiavel folheava a história, tendo por fito apenas a sua concreta, nada mais considera que a instância ou a lei através da
utilização prática em medidas directamente políticas; Hobbes igno- qual os homens, apesar dos seus impulsos individualistas, bárbaros
rara magistralmente os dados reais na sua construção do contrato e egoístas são conduzidos a uma formação social e cultural. As apa-
social: para ambos a ciência verdadeiramente segura, não apenas rências superficiais da história, entre as quais Vico distingue so-
a matemática e as ciências da natureza, mas também a doutrina do bretudo os motivos e acções do homem individual, não são o mais
homem, situavam-se a um nível de sublime separação e independên- importante; sem consciência dos indivíduos vai-se impondo, por de-
cia da história. Exceptuando Hegel e a sua escola, na nova filosofia, trás deles, uma sequência de formas de sociedade que possibilitam
a história é principalmente considerada como uma descrição de acon- a realização civilizadora dos homens.
tecimentos, passíveis de serem articulados para quaisquer fins prá- A procura destas leis secretas torna-se assim no verdadeiro
ticos ou de construção, mas que não tem qualquer significado para tema da «nova ciência». Vico salienta(72) que o verdadeiro signifi-
os acontecimentos teóricos decisivos. Uma tal metafísica - que pre- cado da palavra providência provém de 'divinitas', de 'divinari', isto
sume conseguir tornar acessível o mundo verdadeiro e com ele a é compreender o que está escondido. Determinou como função da
substância do homem, sem qualquer investigação histórica global - sua obra principal «compreender o que está ocluso, que actua sêm
só foi combatida com sucesso no século XIX. E contudo já Vico que as pessoas dêem por isso ou sobre elas próprias, opondo-se fre-
reconhecera - contra o Descartes, por ele tão detestado que uma quentemente aos seus planos.»( 73 ) Aquilo a que posteriormente Hegel
reflexão apenas proveniente do indivíduo terá de ser limitada e vã veio a chamar «a astúcia da raziio», atribuiu Vico à 'divinitas': rea-
e acima de tudo necessariamente errada. O auto-conhecimento do' liza ordens de civilização e por fim até uma vida social racional-
homem baseia-se apenas numa análise do processo histórico no qual mente determinada através da acção caótica dos homens e dos povos,
os homens agem e não na mera visão do interior de cada um, como em todo o sofrimento e miséria dos destinos de cada um, apesar da
o defendeu o idealismo subjectivo em todas as épocas. A economia, pouca inteligência, ganância de dinheiro, crueldade, fanatismo e
o estado, o direito, a ciência, a arte - todas as produções específicas até mesmo por intermédio destes momentos.
dos homens se transformaram na história e por isso devem ser com- Decerto que a questão da justiça para cada homem individual,
preendidos a partir não dos indivíduos isolados, mas apenas das re- em que foi colocada a utopia, não é para ser respondida, salien-
lações destes indivíduos, na linguagem de Vico, da sua característica tando as boas intenções de uma providência divina, se estes indi-
de sociabilidade. víduos são esmagados no caminho da história que deveria conduzir
Quando Vico fala da providência, «a rainha das actividades à luz. Vico encontra no seu catolicismo sossego para isto. Tenha um
humanas»( 1 º), quando, textualmente, a sua «ciência fornece de certo homem vivido num período escuro ou claro da história - depois
modo uma justificação da providência como facto hist6rico»( 71 ), da morte o juiz supremo pronunciará a sua sentença na medida
certa. O julgamento de cada um permanece para Vico transcendente
( 69) Ibid., p. 139.
( 70) Ibid. p. 119. ( 72) Ibid.
( 71 ) Ibid. p. 134. (78) Ibid.

94 95
à história. Para Hegel, para quem julgamento universal e história cada povo grego ou bárbaro exigia ter sido o primeiro de todos a
universal são indissociáveis, cuja religião consiste essencialmente na encontrar as comodidades da vida humana e a ter conservado a
fé numa teologia imanente, isto é, numa realização da justiça abso- tradição da sua história desde o início do mundo»(75) junta-se a dos
luta na história, a questão do sofrimento de cada um pela negação estudiosos, que pretendem que aquilo que sabem é tão antigo como
idealista do ser substancial da individualidade não se reveste de o mundm>(76). Vico tira partido do facto de «varrer os preconceitos
qualquer ponta de interesse. No exemplo de Hegel e de Vico de- da sabedoria inatingível dos antigos»( 77). É este o desenvolvimento
monstra-se que, pelo menos na modernidade, a fé verdadeira numa das coisas humanas: primeiro existiram as florestas, depois as ca-
religião manifestamente transcendente possibilita uma investigação banas, as cidades e por fim, as academias»(78). A condição humana
imparcial do lado de cá, como mistura panteísta de Deus e mundo, começa a sua caminhada numa escura e fértil história primitiva.
de razão e realidade. Como Vico mantém a jurisdição transcendente Quais as leis segundo as quais o desenvolvimento culminaria
para cada um, consegue investigar o curso da história com relativa em cultura é a questão que se levanta. «Para descobrir esta natureza
imparcialidade, tentando descobrir as leis internas do movimento das coisas humanas» Vico recorre ao seu princípio metodológico,
as tendências secretas e subterrâneas da história. Se em muitos as-' «a nossa ciência cai na confusão após uma rigorosa análise do pen-
pectos, a sua obra, menos grandiosa e englobante que a de Hegel, samento humano relativamente ao necessârio e ao útil na vida em
mas em muitas coisas semelhantes, é também em contrapartida, muito comunidade.»(79) A semelhança de Maquiavel, apenas mais consciente
mais empírica, significativamente menos construção que as especula- e consequente, parte portanto do princípio que as produções humantts
ções dos grandes idealistas que pretendiam sobretudo apresentar a se devem explicar como necessidades, melhor dizendo: como reacção
divindade do lado de cá. a necessidades materiais. É nas condições de vida externas, ligadas
Uma apresentação de estudos isolados de Vico consegue dar à primitiva natureza psíquica dos primeiros homens, que residem,
uma 1;1oção de quais os férteis conhecimentos, ainda hoje em grande segundo ele, os momentos explicativos da história do homem. Os tes-
parte inesgotados pela ciência, que foram por ele descobertos. temunhos de épocas remotas transmitidos através dos tempos, sobre-
Das obras do grande filósofo Bacon, que ele admirava acima de tudo da mitologia, são o material do qual se deduzem estes factos.
todos os outros, Vico adoptou a aversão àquela opinião, segundo Vico apresentou os primórdios da civilização num plano gran-
a qual os pensadores da Antiguidade clássica ou outros filósofos do dioso. Do medo dos elementos; personificados na medida em que o
passado teriam possuído o mais alto grau de conhecimento das coisas homem primitivo projecta o seu próprio ser no universo, surgem os
eternas e segundo a qual a condição humana deveria ter sofrido não primeiros mecanismos e tradições. Relâmpago e trovão, as intem-
um progresso, mas um declínio, um empobrecimento. De resto, o péries exteriores, obrigaram os homens a procurar locais seguros,
Vico católico vê-se obrigado a colocar o Paraíso e a criação divina, transmitindo-lhes ao mesmo tempo o medo dos gigantescos superiores.
segundo o dogma, no início. Mas utilizar o episódio bíblico do dilúvio A primitiva interpretação dos fenómenos da natureza pela projecção
para afastar radicalmente do horizonte a existência daquela epoca
dourada da ciência, fazendo com que - de acordo com a realidade -
a verdadeira história comece na escuridão e na barbárie. «A arro- (7 5 ) Ibid. p. 75.
(7º) Ibid. p. 76.
gância das nações>> diz-se em Nova Ciência(74 } que consistia em «oue (77) Ibid. p. 98.
( 7 8) Ibid. p. 100.
( 74) Ibid. p. 76. ( 79 ) lbid. p. 137.

96 97
do próprio ser na natureza, através portanto da animização das os que ele considera oriundos da mencionada conjugação enquanto
forças naturais, é a origem da poesia, coincidente com o início da pressupostos civilizadores. Chama-lhes as «quatro causas, de certo
civilização. Na medida em que o homem primitivo, na linguagem modo, os quatro elementos do universo histórico ... nomeadamente
de Vico «os gigantes>> (Giganten) arranjam abrigos por necessidade, religiões, casamentos, asilos e a primeira lei agrária.»(82 )
dá-se o primeiro impulso ao posterior desenvolvimento cultural. Como exemplo será apenas aqui abordada a teoria da mitologia
Estes renunciam «ao seu hábito animal de vaguear pelas florestas de Vico. Para ele, a mitologia é como que uma reacção de medo
da terra e adaptaram-se a um costume totalmente oposto, isto é, perante as poderosíssimas forças da natureza. Os homens projectam
permanecer longo tempo escondidos e sedentários nos seus ,bura- o seu próprio ser na natureza, isto é, os poderes naturais são, para
cos. »(80) Acompanhando o domínio gradualmente maior da vontade eles, à partida, substancialidades vivas do mesmo tipo que eles pró-
sobre os instintos do corpo «seguiu-se a autoridade do direito na- prios, apenas realmente mais fortes, poderosos e fecundos. O ponto
tural; pois na medida em que eles permaneciam longo tempo e de vista de Vico, com o qual se afirma como precursor da interpre-
habitavam os locais onde se encontravam, por acaso, na altura do tação antropológica da religião por Ludwig Feuerbach, é extrema-
primeiro relâmpago, tornavam-se sobre eles senhores pela sua ocupa- mente claro. Depois de abordar a natureza do homem primitivo,
ção; a ocupação é sinónimo de posse duradoura e origem de toda continua: «Os primeiros fundadores da humanidade pagã deveriam
a propriedade sobre a terra. Estes são portanto os pauci quos aequus ter sido do mesmo tipo daqueles que foram produzidos pelo pode-
amavit Jupiter. De acordo com o sentido histórico desta expressão, roso abalo do ar, quando 200 anos após o dilúvio, depois de a têrra
os gigantes daqueles esconderijos, daquelas terras, tornavam-se nos ter secado o suficiente, de repente surgiram relâmpagos e trovões
chefes dos chamados «gentes maiores» que consideravam Jupiter o no céu. Nessa altura alguns poucos gigantes (os mais fortes, pois
primeiro Deus e que evoluiram para os primeiros senhores e as pri- viviam dispersos pelas florestas nos cumes das montanhas, tendo
meiras comunidades».( 81 ) Pois depois de os gigantes terem sido for- ali o seu poiso, à semelhança dos mais fortes animais, ergueram
çados· pela natureza a tornarem-se sedentários, não se limitaram a - assustados e fora de si, pela monstruosa manifestação, cuja causa
ficar nas suas moradas em cavernas, mas aprenderam a construir desconheciam - os olhos e prescrutaram o céu. Como num caso
cabanas e a fixar-se nos sítios mais férteis - já que começaram a destes a natureza do espírito humano o leva a atribuir uma tal mani-
agricultura-desde que ali pudessem encontrar também uma. boa festação ao seu próprio ser, tnas também como o seu ser era o do
protecção. homem, apenas composto por gigantescas forças corporais e que
É certamente interessante o modo como Vico faz derivar os exterioriza as suas selváticas paixões aos gritos e urros, o homem
pressupostos da civilização da conjugação da situação material exte- inventou que o céu era um enorme corpo com vida, ao qual chamou
rior com a natureza instintiva dos homens. Embora recorra à pro- Jupiter, o primeiro dos Deuses, denominados «gentes maiores», que
vidência divina em toda a parte onde manifestações deste tipo ocor- pretendia comunicar-lhe algo através do sibiliar do relâmpago e o
rem sem a vontade consciente dos homens, dá explicações perfeita- estrondo do trovão.»(83 )
mente imparciais que em princípio concordam frequentemente com Vico explica assim <<que numa condição anárquica a provi-
os mais modernos pontos de vista. São sobretudo quatro momentos dência deu aos selvagens e violentos um empurrão no sentido da

(8º) Ibid. p. 162. (82) Ibid. p. 265.


( 81 ) Ibid. (88) Ibid. p. 153 ss.

98 99
humanidade e formação de um estado, na medida em que despertou surgiram não da burla individual, mas fruto de um necessário de-
neles uma ideia confusa de divindade, que aqueles na sua ignorância senvolvimento.
atribuíram a seres, aos quais não competia; deste modo, por pavor Pela primeira vez, consciente e expressamente, Vico reconhece
a uma divindade assim imaginada, começaram a sujeitar-se a uma a analogia dos povos historicamente primitivos com aqueles que ainda
determinada ordem.>>(84) Num outro ponto, Vico reforça este ponto viviam contemporaneamente, bem como a identidade de mentalidade
de vista do seguinte modo: «Tudo isto concorda com as palavras de dos primitivos e das crianças, portanto a correspondência da onto-
Lactanz ... quando diz, a propósito dos primórdios do serviço divino, genese e filogenese humanas. Neste contexto fez descobertas impor-
que os primeiros homens, simples e rudes, inventaram os deuses «oh tantíssimas, entre as quais, que crianças e primitivos são incapazes
terror em prasentis potentiae». Foi o medo que engendrou os de <<formar conceitos genéricos racionais e em vez disso>> como ele
deuses; mas . . . não o medo dos homens uns dos outros, mas o se exprime, «possuem» conceitos genéricos fantasiados ou ideias ge-
medo de si próprios.»(85) Os homens «começaram ... a deixar-se rais (Universalien), modelos ou retratos ideais, aos quais tudo re-
levar pela sua curiosidade natural, filha da ignorância e mãe da portam»,(ªª) Esta teoria, segundo a qual os primeiros graus da inte-
ciência, que engloba o espírito humano e assim dá à luz a adora- lectualidade careceriam em grande medida de um modo de admi-
ção ... >>(86) nistração categorial, sendo caracterizados por um pensamento pré-
· Compare-se a doutrina de Vico da origem histórica da mito- -lógico, vai completamente ao encontro dos resultados da moderna
logia com a simples denúncia de fraude sacerdotal, com a qual a investigação, sobretudo se pensarmos nos trabalhos de Uvy-BrÜhl.
<<Aufklarung» na mesma época ou alguns séculos mais tarde se con- Uma outra grande realização, ainda no âmbito da religiosidade
formou a propósito da religião e é então que os seus esforços surgem mitológica é a teoria de Vico, cujo princípio geral ele define na fra-
à luz apropriada. Seguiu o significado civilizacional da religião até se: «As velhas sagas deverão ter contido verdades políticas e deverão
ao seu. mais ínfimo detalhe, pelo que pregou que as religiões pos- também ter representado a história dos primeiros povos. »(89) Com
suem entre outras, também as funções de compensar as grandes isto se exprime a convicção de que as interpretações mitológicas não
são livres criações do espírito, mas reflexos da realidade social mesmo
massas da renúncia ao instinto, que lhes é exigida na vida em socie-
se de um modo desfigurado. Se não se aplicar este ponto de vista
dade. Para Vico a mitologia era uma necessária pré-forma primitiva
apenas - como Vico o fez-· à metafísica e à arte, mas a todas as
de conhecimento, da qual se originou a nossa ciência, estando igual-
formas ideológicas da consciência, formula-se uma doutrina da filo-
mente subordinada a uma posição social, à semelhança do tipo de sofia da história de gigantesca amplitude. As ideias espirituais, ca-
espiritualidade da nossa moderna civilização. «Onde os povos por racterísticas de um período, surgem do processo de vida social, no
guerras se asselvejaram de tal modo que as leis dos homens já nada qual a natureza e o homem se encontram em acção recíproca. O seu
valem entre eles, o único meio capaz de os reprimir é a religião.»( 81 ) conteúdo, tanto nas mais obscuras ideias como no mais claro conhe-
Vico defende, em oposição à «Aufklãrung», que as falsas religiões cimento - é a realidade, o ser; é apenas preciso conhecer a reali-
dade que lhe serve de base, que se reflecte. até no mais obscuro dos
cultos.
( 84 ) lbid. p. 88.
( 85 ) lbid. p. 158.
(86) Ibid. p. 156. ( 88 ) Ibid. p. 95.
( 87 ) Ibid. p. 88. ( 89) Ibid. p. 93.

lOO 101
A interpretação que Vico faz da saga de Kadmos oferece um Vico encontra repetidamente nos mitos esta dependência dos
bom exemplo do seu método. Dos gigantes que se fixaram nos plebeus em relação aos patrícios, dos criados, «famuli» dos senho-
melhores e mais férteis locais, surgiram os senhores da comunidade. res, que ele compara e identifica com as situações medievais de es-
Fundaram família, abriram asilos, dos quais os mais desprivilegiados cravatura e feudo. Os filhos libertam-se da subordinação familiar
se tinham de servir por razões materiais. A primeira lei agrária es- sob o poder monárquico dos pais, para, por sua vez, poderem tor-
tabilizou então as relações de riqueza, isto é, reforçou a posição dos nar-se pais. A criadagem, contudo, vive sem esperanças, na depen-
senhores na sua supremacia. Nas palavras de Vico «surgiram assim dência. Da pressão exercida sobre os escravos surgem decontenta-
as comunidades, formadas por dois grupos de homens: os nobres, mentos e por fim revoluções. Para Vico, a oposição das classes é
que ordenavam e os plebeus, que obedeciam; desta relação se ori- assim o facto social de base, a chave para a mitologia grega. As
gina a matéria da ciência política, que nada mais é que a ciência diversas formas de miséria da escravatura encontram na dor de
do comando e obediência no estado.»(ºº) Os gigantes como senhores Tantalo, Ixion e Sysiphos a sua forma simbólica.(92 ) Nestes mitos
- pensa-se nos gregos e romanos arcaicos, que depois se enaltecem residem igualmente os motivos da humilhação.
a eles próprios como Deuses - denomina-os Vico, heróis. Vico não encarou apenas a mitologia como reflexo das con-
Kadmos mata a grande serpente (quer dizer desbrava a velha dições sociais, como também a metafísica é para ele objecto de rela-
floresta virgem), semeia os seus dentes (uma bela metáfora para o cionação com a realidade histórica. O conceito genérico inteligível
lavrar com a madeira dura encurvada, antes de se conhecer o uso de Sócrates e as ideias de Platão originam-se, segundo ele, na obser-
do ferro); atira uma grande pedra (a terra dura, que os servos dos vação da legislação pelos cidadãos atenienses, que se uniram numa
senhores pretendiam lavrar para si próprios); dos sulcos emergem mesma ideia de vantagens justamente distribuídas, comuns a to-
homens armados (por causa das lutas heróicas pela primeira lei dos.»(ºª) E por ocasião da discussão do novo conceito de justiça de
agrári~, os heróis erguem-se sobre a sua terra para demonstrar que Aristóteles, explica Vico textualmente «que tais princípios da meta-
são os seus próprios senhores; unem-se nas armas contra os plebeus física, da lógica e da moral se originaram na praça do merca do de
e não lutam uns contra os outros, mas contra os servos dos senhores Atenas.»( 94 ).
sublevados: os sulcos são as classes em que se unem e com as quais Esta abordagem da mitologia e da metafísica, que se debruça
formam e reforçam as primeiras comunidades com base nas armas); principalmente sobre o «dissimulado», os contextos, significa um
e Kadmos transforma-se numa serpente, Draco, fonte do poder se- poderoso progresso face às meras afirmações de Hobbes, de que as
nhorial dos senados aristocráticos, pois entre os gregos é Draco que teorias erradas seriam deliberadamente inventadas para enganar os
escreve as leis a sangue. O mito de Kadmos contém portanto di- homens. Para Vico são essencialmente formas aparentes e desfigu-
versos séculos de história poética e é um exemplo significativo da radas da realidade num estádio de desenvolvimento histórico muito
imperícia que assistia à expressão da infância do mundo; que é aliás baixo. Tão pouco o estado surgiu de livre vontade e conscientemente
uma das fontes principais das dificuldades de explicação dos mitos.( 91) da razão dos homens - como os defensores do direito •natural acre-
ditavam - como igualmente a linguagem, a arte, a religião, a meta•
Ibid. p. 264.
( 9 º)
91 (º 2 ) Ibid. p. 106, 245 e outras.
( Ibid. p. 283 ss. Vico interpreta sem hesitar mitos gregos de situa-
)
ções romanas clássicas. A razão para tal terá de aqui ficar por clarificar, já (º 3 ) Ibid. p. 396.
que abordamos sobretudo o seu princípio. ( 94 ) Ibid. p. 397.

102 103
física não possuem uma origem racional. A função da ciência é a convicção filosófica de que, apesar do retorno de velhas formas,
muito mais aproveitar estes produtos culturais como aparências apesar de a humanidade se afundar ao fim de cada ciclo numa
superficiais da história e compreender as relações naturais, instin- barbárie, a função eterna seria o domínio finito de uma justa orga-
tivas e sociais, das quais surgiram e que nelas se reflectem. nização da vida. Esta ideia é especialmente fundamentada na iden-
As interpretações da mitologia de Vico são exemplos modelares tidade da legalidade histórica com a providência divina.
da tentativa de compreensão de conteúdos «espirituais» das condições «Vemos nas palavras juventude, ascensão, maturidade, deca-
sociais determinantes. Vico está muito afastado de querer com- dência . . . designações objectivas finitas de condições orgânicas»
preender o processo da criação artística e religiosa como reformu- diz-se logo na introdução de Decadência do Ocidente, procura-se o
lação consciente ou mesmo propositada de uma dada realidade an- «típico nos diferentes destinos destes grandiosos indivíduos (quer-se
teriormente não ideológica. Os produtos estéticos, nos quais o so-
com isto dizer as culturas), o necessário na abundância indómita
ciólogo posteriormente à sociedade da época em questão, se vê
do caso e assistir-se-á finalmente ao desenrolar da imagem da
reflectido, surgem - do ponto de vista do seu autor como v1sao
história do mundo, que apenas nos é própria, a nós, os homens
primitiva. Entre o valor de expressão social das actividade criativas
do ocidente. »(96) Vico-provavelmente seguindo Maquiavel-utilizou
e a intenção individual que está na sua base, não existe qualquer
harmonia pré-estabelecida. As obras ganham a transparência apenas aquela imagem, com base na qual as de hoje devem «finalmente»
no decurso da história. revelar o ponto de vista da história do mundo, tal como se apresenta,
«O espírito humano está por natureza preparado para se com- sem qualquer sombra de dever, não contendo, de qualquer modo,
prazer com a uniformidade. >>(95) Decerto que vai uma grande dis- qualquer carga metafísica. A nossa ciência, continua ele, consegue
tância do esforço de Vico por uma explicação histórica uniformi- «representar a sua eterna história ideal, na qual decorrem no tempo,
zadora àquelas sínteses construtivas em que se pretende possuir o as histórias de todos os povos com a sua ascensão, progresso, abalo,
princípio de não só compreender o passado, mas de também poder decadência e fim. »(97 ) Uma vez que para ele a civilização não surge
deitar contas ao futuro. Para esses sistemas filosófico-históricos, do espírito mas por intermédio de circunstâncias materiais e
a história é como que o corpo de um sentido uniforme, que se pode que a sua relação recíproca com o homem primitivo é condicionada
pensar e construir até ao fim, lógica e inequivocamente. Desta es- desde o início e durante o· seu desenvolvimento, está convencido
trutura é também própria a grandiosa sistematização de Hegel, de que sempre que se forma uma sociedade, é necessário adoptar,
bem como o simples esquema de Spengler, em cada um dos smpre e em qualquer lugar, o mesmo curso; seria portanto possível
há uma cultura dominante, se vive um período de juventude, ma- determinar, de facto, as linhas gerais de uma «história ideal», se-
turidade e velhice, para depois ser destruída pela próxima. Também gundo as quais o destino de toda a civilização se teria de guiar.
Vico nos oferece a satisfação de uma visão universal da história, «Pois sempre» diz ele <<que observamos um progresso dos homens
também nela podemos agradar-nos da «uniformidade». Aquilo que de selvagens e animalescos tempos primitivos, atraves da religião,
no esquema spengleriano não deve ser interpretado como mero
sonho filosófico-histórico, encontra-se igualmente e de modo muito
semelhante em Vico. Contudo, ao contrário de Spengler, alimenta ( 96) Oswald Spengler, Der Untergang des Abendlandes (Decadência do
Ocidente), tomo 1, Munich 1920, p. 36.
(95) Ibid. p. 94. (97) Vico, Ibid. p. 138 ss.

104 105
para uma civilização, assistimos a um começo, um continuar e um parte dos príncipes medievais é uma repetição da auto-divinização
término numa sequência que aqui é analisada.»( 98 ) dos heróis dos mitos gregos, baseada portanto num retorno de re-
Nos primeiros tempos dominavam portanto os gigantes; a sua lações sociais semelhantes. Vico revela exemplos modelo de uma
forma de conhecimento é a fantasia, a sua expressão a poesia fan- sociologia comparativa que - à excepção do único Voltaire nesta
tástica. Na segunda época Vico denomina heróica surgem as área excedem em muito os séculos XVII e XVIII. Significativo é
classes e com elas os estados. Os heróis, isto é, os patrícios, unem-se, também o saber de Vico, quando não utiliza o esquema da sua histó-
contra os plebeus, em posições armadas para protecção da ordem ria ideal especulativamente no sentido de um a priori, semelhante
da propriedade, lutando contra aqueles que nada possuem de seu. a um destino imposto pelo além, mas explica, por exemplo, a nova
Dos chefes patrícios dessas guerras sociais emergem os reis. São barbárie como causa empírica da migração dos povos. Sempre que,
portanto aqueles que «se colocam à cabeça contra as revoltas dos através de acontecimentos do mesmo tipo, a humanidade é de novo
criados, 'famuli' ,( 99 ) e «os primeiros estados estão exclusivamente atirada para as suas origens - seja através de fenómenos naturais,
voltados para a conservação do poder dos nobres.»(100) As etapas da invasão de hordas incivilizadas ou da auto-dilaceração anárquica
seguintes da sua história «ideal», à «época dos homens», dedicou de povos civilizados - todo o desenvolvimento terá de recomeçar e
Vico uma análise menos profunda. As abordagens das épocas poética decorrer do mesmo modo, de acordo com as regras sociais que Vico
e heróica constituem de longe a maior parte da Scienza Nuova. julgou ter apresentado em Scienza Nuova. Explica a propósito da
A primeira monarquia sucedia a república aristocrática, depois a sua ciência que «as coisas, tal como ela as apresenta, tiveram de
democrática, a seguir o Império e por fim a decadência. «O ca- acontecer, têm de acontecer e terão de acontecer ... nem que em
rácter dos povos é, de início, rude, depois rigoroso, mais tarde indul- toda a eternidade surgissem novos mundos, o que sem dúvida é
gente, depois delicado e frágil e, por fim, imoral.»( 101) falso. »(102)
Vi.co defende portanto - como Maquiavel - que em cada um A teoria da repetição de Vico revela-se uma mera fé no retorno
destes ciclos há um regresso à barbárie e o começo de um novo das coisas humanas. Mas temos que dar-lhe razão pelo menos no
ciclo. A prova concreta desta convicção do retorno reside para Vico que respeita ao facto de a possibilidade de recaída na barbárie
no fenómeno da Idade Média. A Idade Média é uma nova época nunca se encontrar totalmente excluída. Podem acontecer catástro-
heróica, a segunda barbárie. Existem poucos capítulos mais pro- fes exteriores, mas também outras, provocadas pelos próprios homens.
fundos na Scienza N uova que aqueles em que Vico compara a Idade A migração dos povos é realmente um acontecimento do passado;
Média na sua obscura crueza e limitação com aquelas épocas primi- contudo, sob a superfície enganosa do presente albergam-se no seio
tivas, de que a mitologia clássica nos dá testemunho. Este catoli- dos estados de cultura, tensões que poderão conduzir a tremendos
cismo não recua perante a afirmação de que o título «Sua Santi- reveses. Decerto que paira sempre sobre os acontecimentos humanos
ficada Majestade Real» e a aceitação de dignidades religiosas por o «fatum>>, apenas na medida em que a sociedade· é incapaz de
regulamentar conscientemente as suas oportunidades no seu próprio
interesse. Quando a filosofia da história continua a alimentar a
( 98 ) Ibid. p. 164.
( 99 ) lbid. p. 106.
(lºº) Ibid. p. 247.
( 191 ) lbid. p. 101. (102) Ibid. p. 138.

106 107

11
ideia de um sentido nebuloso, mas independente e aparentemente
arbitrário da história, que se tenta reproduzir em esquemas, cons-
truções lógicas e sistemas, é de se lhe contrapor que existe tanto
sentido e razão à face do mundo, quanto os homens nele realizarem.
Se o que interessa é encontrar regras na história, cujo conhecimento
pode servir de meio a uma tal realização, então Vico, este antigo
filósofo da história, <<intérprete do sentido», foi com certeza um
espírito revolucionário.
tNDICE

por Alfred Schmidt 7

PREFACIO 13

MAQUIAVEL

DIREITO NATURAL E IDEOLOGIA 41

UTOPIA 75

VICO MITOLOGIA 91

108
Este livro acabou de se imprimir
em 1984
para a
EDITORIAL PRESENÇA, LDA.
na
Empresa Gráfica Feirense, L.da
Vila da Feira
Depósito Legal n. 0 1217

Você também pode gostar