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BA RBA RA FREITA G

A TEORIA CRÍTICA:
ONTEM E HOJE
5 .° edição

edit ora brasiliense


C o p y rig h t © b y Barbara Freitag, 1986
N e n h u m a pa rte d esta publica çã o p o d e ser gravada,
arm azen ada em sistem as eletrônicos, fo to copiad a,
repro du zida p o r m eios m ecânicos o u o u tro s q u aisquer
sem au to rização prévia d o editor.

ISB N : 85-11-14060-3
Prim eira edição, 1986
5 ? ed iç ã o , 1 9 9 4

Revisão: Carlos T o m io K u rata e Sand ra C. F em and ez


Capa: A u relia n o M enezes

A v . M a rq u ês d e São Vicente, 1771


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Fone (011) 8 6 1-33 66 - Fax 861-3024

IM P R E S S O N O B R A S IL
índice
Introdução............................................................ 7
O histórico da Escola de F rankfurt....................... 9
O conteúdo programático da teoria crítica .......... 31
A teoria crítica depois de Horkheimer e Adorno . 105
Conclusões............................................................ 149
Bibliografia comentada ....................................... 157
Oconteúdoprogramático
dateoriacrítica
“ A essência d a ciência não se esgota n a economia do
pensam ento e da técnica, ele é desejo de verdade.”
(Horkheimer)

Introdução

Na primeira parte deste trabalho foi dada ênfase


à dimensão histórica da Escola de Frankfurt. Nesta
segunda parte serão focalizadas as idéias e temas cen­
trais que movimentaram o debate entre os teóricos de
Frankfurt e seus críticos. Com isso, torna-se possível
transcender o nível meramente descritivo da primeira
parte, privilegiando-se a discussão de conteúdos e or­
ganizando-se o material em torno de certos eixos temá­
ticos, inicialmente já relacionados (a dialética da ra­
zão, a dupla face da cultura e a questão do Estado).
A escolha desses entre os muitos temas e problemas
debatidos pelos críticos de Frankfurt segue alguns cri­
térios que merecem uma breve explicação.
32 BARBARA FR E IT AG

Em primeiro lugar, é necessário delim itar este es­


tudo, já que seria impossível em um pequeno volume
didático considerar todos os temas refletidos e levan­
tados pelos frankfurtianos. A seleção aqui feita ba­
seou-se, em segundo lugar, no critério da p ersistên cia
e reincidência dos temas durante todo o período de
produção dos teóricos críticos filiados à Escola entre
1920 e 1985. Os três temas acima mencionados —
a dialética da razão iluminista e a crítica à ciência,
a dupla face da cultura e a discussão da indústria cul­
tural, e a questão do Estado e suas formas de legiti­
mação na moderna sociedade de consumo — sempre
estiveram presentes nos trabalhos dos frankfurtianos
permeando, às vezes em conjunto e às vezes de forma
isolada, praticamente todos os trabalhos dos autores.
Houve, como veremos a seguir, um deslocamento do
interesse teórico — inicialmente explicitado por Hor-
kheimer — de problemas diretamente ligados à he­
rança marxista (como as características da sociedade
capitalista baseada na divisão do trabalho, na produ­
ção da mercadoria e da troca no mercado, a organi­
zação do poder e a repressão pelo Estado ou a luta de
classes) para uma reflexão centrada em temas da cul­
tura, em especial a estética (antes de mais nada a m u­
sica), graças às contribuições específicas de Adorno,
depois da retomada das atividades do Instituto em
Frankfurt (depois de 1950).
A organização do material produzido pelos frank­
furtianos em torno de certos eixos temáticos permite
fugir à seqüência cronológica ou à tendência indivi­
dualizada e biográfica, evitando assim repetições des­
necessárias. Possibilita, por isso mesmo, a exploração
mais aprofundada de certos temas.
A organização temática do material levanta, con­
tudo, uma série de problemas que também deveríam
A TEO RIA CRÍTICA: ON TEM E HOJE 33

ser conscientizados pelo leitor a fim de que não se dei­


xe seduzir por simplificações apressadas e homogenei­
zações indevidas.
A distinção desses eixos temáticos tem ainda uma
fu n çã o didática, embora obedeça por vezes a um a ne­
cessidade puramente lógica. A distinção proposta é de
exclusiva responsabilidade da autora, não sendo suge­
rida por nenhum dos representantes da Escola, se bem
que se encontre implícita na obra de todos eles. Como
já foi dito, os três temas se permeiam, entrelaçam e
confundem, tanto na realidade analisada quanto na
obra dos autores. O procedimento analítico sugerido
ajuda a distinguir melhor certas dimensões do real,
representadas pela teoria, permitindo um a compreen­
são mais adequada da sociedade analisada.
Cabe ainda lembrar que autores tão diferenciados
como Adorno, Horkheimer, Benjamin, Marcuse, Ha-
bermas, Schmidt, Tiedemann e outros revelam sensí­
veis diferenças entre si, tanto em sua postura episte-
mológica quanto em suas estratégias políticas, enfati­
zando de forma bastante'diversa os aspectos da reali­
dade analisada. Essas diferenças serão ilustradas por
um lado com a discussão em torno dos conceitos de
razão, cultura, ciência, arte, Estado, etc., e, por ou­
tro, com as diferentes estratégias propostas para pen­
sar e modificar a realidade dada. Desta forma, pro­
cura-se evitar um a falsa homogeneização. O termo Es­
cola de Frankfurt ou a concepção de um a “teoria crí­
tica” sugerem uma unidade temática e um consenso
epistemoíógico teórico e político que raras vezes existiu
entre os representantes da Escola. O que caracteriza a
sua atuação conjunta é a sua capacidade intelectual e
crítica, sua reflexão dialética, sua competência dialó-
gica ou aquilo que Habermas viria a chamar de “dis­
curso” , ou seja, o questionamento radical dos pressu­
34 BARBARA FR EITA G

postos de cada posição e teorização adotada. O fato de


Adorno e Horkheimer terem escrito algumas obras em
co-autoria, como é o caso da Dialética do Esclareci­
m en to, levou muitos intérpretes a identificarem o pen­
samento dos dois, considerando-os “ almas irm ãs” . As
diferenças entre um e outro teórico não podem ser
sempre devidamente consideradas no tratam ento te­
mático que se segue, mas não se deve perder a cons­
ciência de que elas existem, o que se torna evidente
para aqueles que se aventurarem na leitura dos textos
específicos aqui relatados.

A dialética da razão e a crítica à ciência

O fio vermelho que trespassa a obra de todos os


autores é o tema do Ilumiriismo ou Esclarecimento
(A u fkla eru n g ). A Dialética do Esclarecim ento descre­
ve uma dialética da razão que em sua trajetória, ori­
ginalmente concebida como processo emancipatório
que conduziria à autonomia e à autodeterminação, se
transforma em seu contrário: em um crescente pro­
cesso de instrumentalização para a dominação e re­
pressão do homem. Em seu célebre artigo “Was ist
Aufklaerung?” (O que é o esclarecimento?), Kant ti­
nha visto na razão o instrumento de liberação do ho­
mem para que alcançasse através dela sua autonomia
e M u en d ig keit (maioridade). Defendia a necessidade
de os homens assumirem com coragem e competência
o seu próprio destino: reconhecendo que este não era
ditado por forças externas (deuses, mitos, leis da na­
tureza) nem por um karm a interior. Ao contrário, os
homens deveriam fazer uso da razão para tomarem em
mãos sua própria história. Mas essa convicção parti­
lhada por todos os iluministas revelava-se ilusória.
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“O programa do iluminismo consistia no desen-


cantamento do mundo” , inicia Horkheimer seu co­
nhecido ensaio sobre o conceito de iluminismo. ‘‘Eles
queriam dissolver os mitos e fortalecer as impressões
através do saber” (Horkheimer e Adorno, 1947). Mas
o saber produzido pelo Iluminismo não conduzia à
emancipação e sim à técnica e ciência moderna que
mantêm com seu objeto uma relação ditatorial. Se
Kant ainda podia acreditar que a razão hum ana per­
mitiría emancipar os homens dos seus entraves, auxi­
liando-os a dominar e controlar a natureza externa e
interna, temos de reconhecer hoje que essa razão ilu-
minista foi abortada. A razão que hoje se manifesta na
ciência e na técnica é um a razão instrumental, repres­
siva. Enquanto o mito original se transformava em Ilu-
minismo, a natureza se convertia em cega objetivi­
dade. Horkheimer denuncia o caráter alienado da
ciência e técnica positivista, cujo substrato comum é a
razão instrumental. Inicialmente essa razão tinha sido
parte integrante da razão iluminista mas no decorrer
do tempo ela se autonomizou, voltando-se inclusive
contra as suas tendências emancipatórias.
Desta forma, a razão, sujeito abstrato da história
individual e coletiva do homem em Kant e Hegel, con­
verte-se, na leitura de Horkheimer e Adorno, em um a
razão alienada que se desviou do seu objetivo emanci-
patório original, transformando-se em seu contrário: a
razão instrumental, o controle totalitário da natureza
e a dominação incondicional dos homens. A essência
da dialética do esclarecimento consiste em mostrar
como a razão abrangente e humanística, posta a ser­
viço da liberdade e emancipação dos homens, se atro­
fiou, resultando na razão instrumental.
O tema da razão em seu movimento dialético não
abandonou os frankfurtianos durante os cinqüenta
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anos de sua produção; ele reaparece sob várias roupa­


gens nos seus diferentes trabalhos e continua preocu­
pando as novas gerações de críticos.
Nas reflexões que se seguem, serão destacados
três momentos estratégicos desse eixo temático.
Num primeiro momento será descrita a contra­
posição de Horkheimer entre “teoria tradicional” e
“teoria crítica” (1937), isto é, entre pensamento car-
tesiano e pensamento marxista. Segue-se, em um se­
gundo momento, a disputa em tomo do positivismo e
da dialética, travada entre Popper e Adorno (1961), e,
finalmente, em um terceiro momento, o debate sinte­
tizado na obra conjunta de Habermas e Luhmann Teo­
ria da Sociedade ou Tecnologia Social (1972), na qual
são confrontadas a razão sistêmica e a razão comuni­
cativa. As reflexões iniciadas neste último momento
são retomadas na Teoria da Ação Com unicativa (1981,
1984) na qual é proposta um a mudança de paradigma,
que substitui a filosofia da consciência, defendida por
Horkheimer e Adorno, por uma teoria da intersubjeti-
vidade comunicativa.

Prim eiro m o m ento

Em seu artigo “Teoria Tradicional e Teoria Crí­


tica” , de 1937, reeditado posteriormente nos dois volu­
mes intitulados Teoria Crítica (1968), Horkheimer
abre um a discussão que lançará o moderno pensa­
mento sociológico em um profundo dilema, bem mais
marcante que a polêmica surgida no início do século
entre Max Weber e Rocher & Knies em torno dos juí­
zos de valores e da-neutralidade nas ciências sociais.
Segundo Horkheimer não se trata, como no caso de
Weber, de distinguir entre juízos categóricos sobre fa-
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tos e juízos de valor ( S a ch - u n d W erturteilé), isto é, de


uma questão meramente metodológica. Trata-se para
Horkheimer de um a questão em última instância a n to ­
lógica. A ciência e a filosofia moderna não podem con-
tentar-se hoje com um a discussão sobre juízos de fato e
de valor, elas têm que recorrer aos juízos existenciais.
Praticar teoria e filosofia é para Horkheimer algo inse­
parável da idéia de nortear a reflexão com base em
juízos existenciais comprometidos com a liberdade e a
autonomia do homem. Horkheimer tematiza assim,
pela primeira vez, o profundo conflito existente entre a
dialética e o positivismo. Ao contrapor a filosofia de
Descartes (teoria tradicional) ao pensamento de Marx
(teoria crítica) descreve as características essenciais de
cada vertente do pensamento, seus objetivos e sua for­
ma de atuação, denunciando o caráter sistêmico e con­
servador do primeiro, e sublinhando enfaticamente a
dimensão humanística, emancipatória do segundo.
Max Horkheimer abriu com esse primeiro ensaio
um debate que até hoje não se esgotou. Em 1942 pu­
blicou na Z eitsch rift um pós-escrito a esse ensaio. Em
sua obra E clipse da R azão (1947) que na versão alemã
de 1968 leva o título sugestivo de Crítica à R azã o I n s ­
tru m en ta l Horkheimer discute, em vários ensaios, a
problemática da razão. Pouco antes de sua morte, em
1972, Horkheimer faz duas conferências sobre o tema
“Teoria crítica, ontem e hoje” (1970), no qual co-
fronta suas idéias do início de sua atuação como di­
retor do Instituto com o momento em que já se encon­
tra aposentado e fora de Frankfurt. Nessas conferên­
cias, ele se aproxima da teologia e revaloriza a reli­
gião, temática ausente em suas reflexões iniciais. Mas
é certamente na D ialética do Esclarecim ento lançada
no mesmo ano de Eclipse da R a zã o , que as reflexões
em tomo da razão e de sua funcionalidade no mundo
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moderno atingem sua expressão mais angustiada e


contraditória.
Ao confrontar o pensamento de Descartes e Marx,
Horkheimer não está querendo invalidar um em favor
do outro; em seu pós-escrito ao ensaio Teoria T ra di­
cional e Teoria Crítica esclarece que não se propõe a
rejeitar o pensamento de Descartes em favor do de
Marx e sim de englobar o primeiro no segundo. É con­
frontando a estrutura lógica, o objetivo e a finalidade
de uma e outra vertente do pensamento que o relacio­
namento de ambas pode ser evidenciado.
Na interpretação de Horkheimer, a teoria tradi­
cional, que se estende do pensamento filosófico de
Descartes à filosofia e ciência modernas, se preocupa
em formar sentenças que definem conceitos universais.
Para tal procede dedutiva ou indutivamente e defende
o princípio da identidade, condenando a contradição.
As manifestações empíricas da natureza e da socie­
dade devem e podem, segundo essa orientação teórica,
ser subsumidas nas sentenças gerais, encaixando-se no
sistema teórico montado a priori (com auxílio da dedu­
ção) ou a p osterio ri (através da indução). Entre as sen­
tenças gerais e os fatos empíricos existe um a hierar­
quia de famílias e espécies de conceitos, à semelhança
da moderna biologia, estabelecendo-se em todos os
momentos um a relação de subordinação e integração.
Os fatos se tornam casos singulares, exemplos ou con­
cretizações do conceito ou da lei geral. Não há dife­
renças temporais entre as unidades do sistema. O fato
de o homem permanecer idêntico a si mesmo ao trans-
formar-se em outro, é um dado que essa lógica não
consegue captar (Horkheimer, 1947, pp. 172-173).
Em contrapartida, a estrutura lógica da teoria crí­
tica consegue perfeitamente captar a dimensão histó­
rica dos fenômenos, dos indivíduos e das sociedades.
A TEO R IA CRÍTICA: O N TEM E HOJE 39

Também nessa lógica se trabalha inicialmente com


determinações abstratas. Ao tratar do nosso momento
histórico, i. é., da sociedade burguesa contemporânea,
parte de um a concepção da economia baseada na tro­
ca. Os conceitos marxistas de “mercadoria” , “valor” ,
“ dinheiro” , “ acumulação” , etc., podem funcionar
como conceitos gerais aos quais uma realidade con­
creta pode ser assimilada. Más a teoria crítica não se
esgota em relacionar uma realidade dada aos conceitos
preestabelecidos. Ao analisar o efeito regulador dos
processos de troca sobre a organização da economia
burguesa, Marx — na leitura de Horkheimer — se dei­
xaria orientar pelo futuro. A relação entre realidade e
conceitos não é, por isso mesmo, análoga à que existe
entre casos particulares e uma categoria ou espécie, e
não ocorre através de mera indução ou dedução como
é o caso da teoria tradicional. A teoria crítica procura
integrar um dado novo no corpo teórico já elaborado,
relacionando-o sempre com o conhecimento que já se
tem do homem e da natureza naquele momento histó­
rico (Horkheimer, 1947, pp. 173-174). “A teoria crí­
tica começa, pois, com uma idéia relativamente geral
da troca simples de mercadorias, representada por
conceitos relativamente gerais. Pressupondo todo o co­
nhecimento disponível e assimilando todo o material
resultante de pesquisas próprias e alheias, procura
mostrar como a economia de troca nas condições atual­
mente dadas (...) conduz necessariamente ao agrava­
mento das contradições na sociedade, o que em nossa
época histórica atual leva a guerras e revoluções” (ibi-
dem , pp. 174-175).
Como se pode ver, Horkheimer se encontra, nessa
argumentação,, ainda muito próximo de Marx, como
aliás todos os trabalhos do Instituto publicados na
Z eitsch rift nessa época. Essa proximidade vai sendo
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minada no decorrer dos anos subseqüentes, nos quais


Horkheimer perde toda e qualquer esperança em rela­
ção à possibilidade e necessidade de um a revolução
proletária. Em seu ensaio de 1970, A Teoria Crítica ,
O ntem e H oje, Horkheimer faz uma revisão de sua po­
sição original, mostrando três grandes equívocos da
teoria marxista: 1) a tese da proletarização progressiva
da classe operária não se confirmou, não ocorrendo
a revolução proletária como se esperava, em conse-
qüência de um a constante degradação das condições
de vida dessa classe. Horkheimer admite que o capita­
lismo conseguiu produzir um excedente de riquezas
que desativou o conflito de classes, radicalizando a
ideologização das consciências, cooptadas pelo siste­
ma. Também não se comprovou 2) a tese das crises
cíclicas do capitalism o, decorrentes das alternâncias
da produção excessiva e da falta de consumo, por um
lado, e de consumo excessivo que leva à falta de pro­
dutos, por outro, devido à intervenção crescente da
atividade estatal sobre a organização da economia. E,
finalmente, 3) a esperança de Marx de que a justiça
poderia se realizar simultaneamente com a liberdade
revelou-se ilusória. Efetivamente, o capitalismo conse­
guiu criar riquezas que a longo prazo até podem asse­
gurar um grau de justiça maior, reduzindo as desi­
gualdades materiais entre os homens, mas ao preço da
redução sistemática da liberdade. A reprodução am­
pliada acarretou o aumento — para Marx ainda incon­
cebível — da burocratização, da regulamentação e
ideologização da vida, tornando-a administrável em
todos os seus aspectos (Horkheimer, 1970, p. 165). A
maior justiça que conduz a uma homogeneização dos
indivíduos e das consciências é adquirida às custas da
liberdade de cada um. A regulamentação generalizada
da vida, a redução da liberdade, a deturpação das
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consciências e a atrofia da capacidade crítica são cor-


relatos inevitáveis de uma justiça social e material am­
pliada. A homogeneização generalizada é o preço que
se paga para assegurar o bem-estar generalizado.
Os dois eventos históricos que levaram Horkhei­
mer ao ceticismo quanto à validade das teses centrais
da obra de Marx emergem necessariametne da vivên­
cia do nazismo na Alemanha e do socialismo nos paí­
ses do Leste. Para Horkheimer ambos representam re­
gimes totalitários que privilegiaram a razão instru­
mental em detrimento da razão emancipatória, to­
lhendo a liberdade individual em nome do bem geral.
Mas, apesar da renúncia a certas teses centrais do
materialismo histórico, Horkheimer sustenta a neces­
sidade da sobrevivência da teoria crítica. Ela deve vi­
sar, como no início, o futuro de uma humanidade
emancipada. Por isso também continuam válidas as
considerações dos anos 30 em torno da necessidade e
dos fin s do trabalho da razão.
Enquanto para a teoria tradicional a necessidade
do trabalho teórico significa o respeito às regras gerais
da lógica formal, ao princípio da identidade e da não-
contradição, ao procedimento dedutivo ou indutivo, à
restrição do trabalho teórico a um campo claramente
delimitado, a noção de necessidade para a teoria crí­
tica continua presa a um juízo existencial: libertar a
humanidade do jugo da repressão, da ignorância e in­
consciência. Esse juízo preserva, em sua essência, o
ideal iluminista: usar a razão como instrumento de li­
bertação para realizar a autonomia, a autodetermi­
nação do homem.
Como se pode ver, o objeto da teoria tradicional e
o da teoria crítica não podem coincidir. Enquanto para
a primeira o objeto representa um dado externo ao su­
jeito, a teoria crítica sugere uma relação orgânica entre
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sujeito e objeto: o sujeito do conhecimento é um su­


jeito histórico que se encontra inserido em um processo
igualmente histórico que o condiciona e molda. En­
quanto o teórico “crítico” sabe dessa sua condição, o
teórico “ tradicional” , concebendo-se fora da dinâmica
histórica e social, tem uma percepção distorcida de sua
atividade científica e de sua função. Isso explica a po­
sição política distinta de um e outro. Enquanto esse
último se resigna ao imobilismo e ao quietismo, justi­
ficando-o com a ideologia da neutralidade valorativa,
o teórico não tradicional assume sua condição de ana­
lista e crítico da situação, procurando colaborar na in­
tervenção e no redirecionamento do processo histórico
em favor da emancipação dos homens em um a ordem
social justa e igualitária.
Já em seu artigo de 1937 Horkheimer lança as ba­
ses de um a teoria do intelectual orgânico, visto como
alguém que colabora ou na tentativa de cimentar as
relações sociais e de dominação existentes (teóricos
tradicionais) ou na luta pela libertação dos oprimidos
e sacrificados pelo sistema social vigente (teóricos crí­
ticos). Simultaneamente com Gramsci, intelectual
marxista que morre em 1937 vitimado pelo fascismo
italiano, autor de Os Intelectuais e a Organização da
C ultura , Horkheimer desenvolve, independentemente
do filósofo italiano, um a teoria crítica da superestru-
tura e dos seus funcionários, através da contraposição
das duas teorias conflitantes: a tradicional e a crítica.
Gertamente Gramsci e Horkheimer se desconheciam,
mas tinham em comum a mesma experiência política
— a perseguição fascista — e a mesma convicção teó­
rica: o marxismo, que reinterpretam e enriquecem
para torná-lo capaz de abranger e compreender as no­
vas tendências históricas. Por isso ambos partem para
uma reformulação da dinâmica histórica, na qual os
A TEO RIA CRITICA: ONTEM E HOJE 43

intelectuais assumem um papel estratégico: a produ­


ção e concretização de uma nova concepção do mundo,
de um mundo sem repressões de classe, baseado na
liberdade e na autodeterminação. O p a rti p ris de Hor­
kheimer em favor da razão emancipatória (Parteilich -
k e it fu e r V e m u n ft) até o final de sua vida se torna
evidente nas palavras pronunciadas pouco antes de sua
morte: “Nosso princípio básico sempre foi: pessimismo
teórico e otimismo prático” (Horkheimer, 1970, p. 175).

Segundo m o m ento

Em um confronto entre Popper e Adorno organi­


zado pela Sociedade de Sociologia alemã em Tuebin-
gen no ano de 1961, procurou-se promover um debate
sobre os fundamentos epistemológicos do positivismo e
da dialética. Popper preparou o texto-base do debate
{Sobre a Lógica das Ciências Sociais), desenvolvendo
27 teses, as quais seriam contestadas por Adorno em
sua réplica. Posteriormente ao encontro dos sociólo­
gos, o debate continuou, sendo ampliado, por parte
dos positivistas por René Koenig, Hans Elbert, Ernst
Topitsch e outros, e por parte dos teóricos críticos por
Albrecht Wellmer e Juergen Habermas. Assumiram as
funções de mediadores no debate Ralf Dahrendorf,
Fijalkowski, R. Mayntz e outros.
É claro que nem o seminário realizado em Tüe-
bingen, nem os debates que se seguiram poderiam es­
gotar o tema. Este continuou sendo discutido parale­
lamente em outros trabalhos, não diretamente vincu­
lados ao Seminário. Basta lembrar aqui a contribuição
de Marcuse em um dos capítulos de A Ideologia da
Sociedade In d u stria l { 1964), “A vitória do pensamento
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positivo: a filosofia unidimensional” , ou as contribui­


ções dadas por Adorno a partir da Dialética do E scla­
recim ento, até a Dialética Negativa (1965) e a Teoria
Estética (1970).
Em seu texto básico “ Sobre a Lógica das Ciências
Sociais” (1961), posteriormente traduzido pela Tempo
Brasileiro com outros ensaios do autor (1978), Popper
expõe a 27 teses que fundamentaram e ainda funda­
mentam o pensamento sociológico moderno. As teses
centrais giram em torno do objeto e do universo do
conhecimento (1? tese: “conhecemos muito” ; 2? tese:
“nossa ignorância é sóbria e ilimitada”), o método nas
ciências sociais, a objetividade e neutralidade das ciên­
cias, os conceitos de “ teoria” , “crítica” , “verdade” ,
“significado” e “compreensão” , da especificidade das
relações sociais, e muitos outros temas, entre os quais
a relação da sociologia com as ciências naturais, a an­
tropologia e a psicologia.
Originalmente um membro do Círculo de Viena,
Popper defende nesse texto um positivismo bastante
sofisticado. Ao contrário dos seus colegas americanos
(Nagel, Nadei, Hempel e outros) não parte da identi­
dade das ciências naturais e sociais, admitindo um a
diferença entre o objeto das ciências naturais (a natu­
reza) e o das ciências sociais (sociedade e relações hu­
manas). Sua postura “positivista” se manifesta na de­
fesa do método, ou seja, naquilo que Horkheimer cha­
mara de “estrutura lógica da teoria tradicional” . Para
Popper a “cientificidade” e “objetividade” do pensa­
mento teórico estão asseguradas quando são respeita­
dos os princípios básicos da lógica formal cartesiana:
o procedimento indutivo ou dedutivo, o princípio da
identidade, a intersubjetividade e a coerência interna
da teoria, etc. Popper está interessado em um a “teo­
ria” que nada mais é que um sistema de sentenças e
A TEO R IA CRÍTICA: ON TEM E HOJE 45

hipóteses gerais, nas quais se inserem e integram os


casos singulares. Popper enquadra-se, pois, inequivo­
camente no contexto dos teóricos tradicionais, na ter­
minologia de Horkheimer. Privilegia, no entanto, o
procedimento dedutivo, não atribuindo valor especial
ao dado empírico. Distancia-se, assim, dos empiristas
clássicos e modernos. Para ele o dado empírico serviría
meramente ao cientista como possível critério de falsi-
ficabilidade de um a “teoria” ou hipótese, construída a
partir de um “problema” . Surge, como no caso de
Weber, um a nova “teoria” quando buscamos soluções
— através da construção de hipóteses explicativas —
para problemas até então não solucionados. Assegu­
rado o procedimento metodológico descrito e prescrito,
isto é, respeitadas as regras da lógica formal discur­
siva, garante-se a “objetividade” do trabalho cientí­
fico, considerando-se como “fatos” as coisas que ocor­
rem no mundo da natureza e dos homens. Esses fatos
podem, no entanto, ser questionados, criticados e fal­
sificados. A crítica consiste em demonstrar os erros no
percurso dedutivo, na montagem das hipóteses ou nos
dados empíricos que ilustram a teoria ou a desmen­
tem, contradizendo frontalmente uma hipótese. O su­
jeito do conhecimento não se envolve com seu objeto,
respeita o princípio da neutralidade das ciências, cons­
tatando “o que é” e silenciando, enquanto cientista,
face ao que podería ou deveria ser. Os juízos de valor
não fazem parte do arcabouço científico do pesquisa­
dor. Popper admite, contudo, que para as ciências so­
ciais se torna necessário um método adicional ao da
lógica formal, que chama de “lógica situacional” . Esse
método também seria objetivo, como já o reivindicava
Max Weber, pretendendo a “compreensão objetiva”
dos fatos. “A compreensão objetiva consiste em consi­
derar que a ação foi objetivamente apropriada à situa-
46 BARBARA FR EITA G

ção. Em outras palavras, a situação é analisada até


que os elementos que parecem inicialmente ser psico­
lógicos (como desejos, motivos, lembranças e associa­
ções) sejam transformados em elementos da situação.
O homem com determinados desejos, portanto, verte-
se num homem cuja situação pode ser caracterizada
pelo fato de que persegue certos alvos, objetivos; e um
homem com determinadas lembranças ou associações
converte-se num homem cuja situação pode ser carac­
terizada pelo fato de que é equipado, objetivamente,
com outras teorias ou com certas informações” (Pop-
per, 1961, pp. 31-32). Para Popper as explicações da
lógica situacional aqui descritas são ‘‘reconstruções ra­
cionais e teóricas” . A lógica situacional, além de per­
mitir incluir em sua reflexão lembranças, desejos,
etc., considera também o mundo físico, os recursos e
as barreiras que ele nos impõe, bem como o mundo
social, habitado por pessoas relacionadas entre si e que
se organizam em instituições sociais como a igreja, o
exército, a escola, a família, etc. Essas instituições são
igualmente objeto de estudo das ciências sociais, con­
forme os concebe Popper. Esse autor diverge, pois, dos
neopositivistas americanos, quando inclui em Sua re­
flexão sociológica a categoria weberiana da compreen­
são, admitindo que os homens orientam suas ações de
acordo com certos valores, convicções e desejos. Por
isso mesmo, para que se possa compreender e explicar
o comportamento de indivíduos uns em relação aos
outros, torna-se necessário introduzir, além da lógia
formal, a situacional.
Mas tanto Popper quanto Weber, no qual o pri­
meiro se inspirou, são para Adorno “positivistas” pelo
mero fato de atribuírem ao método (isto é, às regras da
lógica formal e situacional) o papel predominante no
processo do conhecimento. Respeitado esse método, o
A TEO R IA CRÍTICA: ON TEM E HOJE 47

investigador está fazendo ciência de forma “ neutra” e


“objetiva” e consegue trazer à tona a verdade. Adorno
contesta o privilégio do método de dar acesso à ver­
dade e à objetividade. Em sua réplica ao autor da
Open So ciety , Adorno não atende ao pedido dos orga­
nizadores do encontro em Tuebingen de elaborar uma
fundamentação teórica e epistemológica da teoria crí­
tica e da dialética (cf. Dahrendorf, 1961, p. 145) e pro­
cura contestar as teses centrais de Popper a partir dos
conceitos de "teoria” , “crítica” , “totalidade” , “socie­
dade” , “verdade” , “ objetividade” que têm em seu
pensamento outra conotação. Referindo-se ao texto de
Horkheimer, Adorno expressa a preocupação funda­
mental da dialética e da teoria crítica que não é mera­
mente formal (como para Popper) mas sim, material,
existencial (como para Horkheimer) (Adorno, 1961, p.
135). Por isso mesmo, a sociologia concebida como
dialética e crítica não pode deixar de guiar-se pela
perspectiva do todo, ainda quando estuda um objeto
particular, vendo esse todo não como sistema estabe­
lecido, mas como produto histórico do passado e como
aspiração de realização no futuro. A sociologia crítica
não se reduz a uma autocrítica interna da disciplina,
ela estende a sua crítica ao próprio objeto de análise:
à sociedade contemporânea e também às hipóteses,
conceitos e teorias desenvolvidos para representá-la,
analisá-la. A crítica passa a ser o elemento que per­
meia todo processo de conhecimento, não somente
pondo em questão uma hipótese explicativa de um
problema específico como quer Popper, mas susci­
tando um a atitude de desconfiança face ao conheci­
mento como tal, cujos objetivos e resultados são per­
manentemente questionados. A crítica, compreendida
como o princípio da negatividade, vem a ser o ele­
mento constituinte do método e da teoria crítica que se
48 BARBARA FR EITA G

fundem com o objetivo político e social a ser alcan­


çado.
Encontram-se nesse debate os fundamentos do
que Adorno no futuro tematizaria de forma mais exaus­
tiva na Dialética N egativa (1970). Ela consistiría no
esforço permanente de evitar as falsas sínteses, de des­
confiar de toda e qualquer proposta definitiva para a
solução de problemas, de rejeição de toda visão sistê­
mica, totalizante da sociedade. A “dialética” como mé­
todo central da produção do conhecimento para uma
teoria crítica da sociedade não possui, segundo Ador­
no, nenhum “cânone” específico, não trabalha segun­
do regras definidas e não produz um saber que permita
a prognose segura e inequívoca da realidade (Adorno,
1961, p. 16). A “ dialética negativa” procura salvar ou
reconstituir aquilo que não obedece à totalidade, ao
sistêmico, aos fatos verificados. Este conceito encerra
em potencial aquelas dimensões da realidade social e
individual que ainda estão em fase de desdobramento,
de revelação. Por isso mesmo, a dialética, elemento
constituinte da teoria crítica, nunca se contenta com o
presente ou o sta tu s quo, mas representa o esforço per­
manente de superar a realidade cotidiana rotinizada.
A dialética negativa é um movimento permanente da
razão na tentativa de resgatar do passado as dimensões
reprimidas, não concretizadas no presente, transferin­
do-as para um futuro pacificado em que as limitações
do presente se anulem. A dialética negativa se confunde
assim com a razão iluminista na conceituação de Kant e
Hegel, ou seja, em sua versão emancipatória. Na leitura
de Adorno (e Horkheimer) a razão iluminista tinha em
seu começo (na viagem de Ulisses em busca de Itaca)
ambas as dimensões: a emancipatória e a instrumental.
A sociedade burguesa, herdeira do Iluminismo, privi­
legiou o desdobramento da razão instrumental em de­
A TEO R IA CRÍTICA: ON TEM E HOJE 49

trimento da razão emancipatória que ficou reprimida


e atrofiada. Ulisses, ao tentar dominar a natureza ex­
terna (o canto e a tentação das sereias), teve de subjugar
sua natureza interna (prendendo-se ao mastro de seu
navio). A astúcia da razão empregada por Ulisses volta-
se contra seu idealizador, transformando sua natureza
interna: a razão instrumental (evocada para dominar a
natureza externa) subjuga a razão emancipatória. O
feitiço se vira contra o feiticeiro. A razão iluminista,
que entrou em cena para subjugar o mito, transforma-
se, por sua vez, em mito.
“Todas as ações sacrificiais humanas, executadas
segundo um plano, logram o deus ao qual são dirigidas:
elas o subordinam ao primado dos fins humanos, dis­
solvem seu poderio, e o logro de que ele é objeto se pro­
longa sem ruptura no logro que os sacerdotes incrédu­
los praticam sobre a comunidade crédula. A astúcia
tem origem no culto. O próprio Ulisses atua ao mesmo
tempo como vítima e sacerdote. Ao calcular seu próprio
sacrifício, ele efetua a negação da potência a que se des­
tina esse sacrifício.” (Adorno e Hokheimer, tradução
brasileira, 1985, p. 58)
Adorno e Horkheimer utilizam a narrativa de Ho­
mero como metáfora para ilustrar a dialética da razão.
Resgatando o seu significado no passado, ela permite
a crítica do presente e a projeção de um mundo melhor
no futuro, onde os erros do passado possam ser redi­
midos.
Por isso mesmo, a dialética, ‘ao contrário da ló­
gica formal, é capaz de incluir em seus conceitos os
elementos da contradição e da transformação, e de
abarcar o não-idêntico em um mesmo conceito: A ra­
zão iluminista; com sua dupla face de razão emanci­
patória e razão instrumental não deixa de ser razão
quando se impõe e concretiza como razão instrumen­
50 BARBARA FR EITA G

tal. Mas por isso mesmo gera, pelas limitações a que


ela própria se condena, sua contradição, sua crítica e
negação, tornando-se necessário o resgate de seu con­
trário, originalmente nela contido: a razão emancipa-
tória. Ê na dialética do iluminismo é na crítica à in­
dústria cultural que Adorno exemplifica da forma mais
concreta a ‘‘dialética do conceito” .
Em Adorno a razão instrumental é identificada
com o positivismo defendido por Popper. Não nega ao
seu opositor a competência intelectual. O que Adorno
procura salientar é que a utilização da razão instru­
mental pelo positivismo moderno gera necessariamente
sua contestação, podendo levar a sua autodestruição.
Isso porque o positivismo não se permite questionar as
bases nas quais se assenta a sua “lógica” , condenando
esse procedimento como “metafísico” . Com essa auto-
restrição o positivismo deixa de refletir a origem histó­
rica do seu pensamento; aceita implicitamente a divi­
são de trabalho imposta pelas relações de produção
capitalista, refugiando-se em suas subáreas do saber.
Enquanto busca um a suposta verdade dos fatos, ale­
gando uma falsa neutralidade e objetividade, proíbe-
se de refletir sobre os pressupostos de sua “ ciência” ,
ignorando assim as relações de troca e os interesses de
lucro e dominação que condicionam e manipulam sua
própria área de saber. A produção científica dessas
subáreas — por sua vez manifestações da divisão de
trabalho reinante na moderna sociedade de troca —
não se percebe como saber interessado que atende a
interesses políticos específicos e que se presta à apro­
priação de poderes econômicos e políticos que desco­
nhece. Assim procedendo, a ciência positivista natura­
liza os processos sociais, atribuindo à dinâmica histó­
rica um funcionamento sistêmico, regido por leis abso­
lutas e imutáveis.
A TEO R IA CRÍTICA: ON TEM E HOJE 51

“A diferença entre a percepção dialética e a posi­


tivista da totalidade se radica no fato de que o conceito
dialético de totalidade procura ser ‘objetivo’ no sentido
de intencionar a compreensão de cada fenômeno social
singular, enquanto as teorias sistêmicas positivistas
procuram meramente sintetizar de forma não contra­
ditória suas afirmações sobre o real, situando-as em
um contínuo lógico, sem reconhecer os conceitos estru­
turais mais elevados como condições dos fatos a eles
subsumidos. Enquanto o positivismo critica esse con­
ceito de totalidade como retrocesso mitológico, pré-
científico, ele próprio mitologiza a ciência em sua luta
permanente contra o mito” (Adorno, 1961, p. 21). As
mesmas divergências que se encontram na conceitua-
ção diferencial do que seria a “totalidade” encontram-
se também em relação aos outros conceitos usados
tanto pelos positivistas quanto pelos teóricos críticos,
ou seja: “teoria” , “prática” , “método” , “crítica” .
Na dialética adorniána, o conceito de teoria, ao
remeter a um futuro melhor, remete automaticamente
à dimensão da prática; esta, no entanto, é totalmente
excluída do raciocínio positivista. A prática positivista
de Popper se reduz à prática do cientista limitada ex­
plicitamente à sua área de especialização. O mesmo
vale para o conceito de “crítica” . Enquanto esta signi­
fica para Popper a falsificação de uma hipótese dada,
através de dados empíricos que demonstram o contrá­
rio ou devido à descoberta de erros lógicos no processo
dedutivo, “crítica” significa para Adorno e os teóricos
da Escola de Frankfurt a aceitação da contradição e o
trabalho permanente da negatividàde, presente em
qualquer processo do conhecimento.
Ao comentar a contribuição dos dois pensadores
ao debate e à fundamentação teórica e epistemológica
das ciências sociais, Dahrendorf constata resignado
52 BARBARA FR EITA G

que a coincidência nos termos usados não permite a


ilusão de que tenha havido qualquer aproximação en­
tre as duas posições defendidas, cujas diferenças na
essência se tornaram mais do que evidentes. Mesmo
que esse debate não tenha atingido o grau de profun­
didade que eventualmente dele se esperasse, deixou
claro que a problemática originalmente levantada por
Horkheimer continuava viva, tendo sido ainda radica­
lizada neste confronto entre Popper e Adorno. Isso
porque Adorno de forma alguma acena — ao contrá­
rio de Horkheimer — com a possibilidade de reconci­
liação entre as duas posições divergentes. Para Hor­
kheimer, como foi mostrado, a teoria crítica foi conce­
bida como uma teoria mais abrangente, englobando a
tradicional. No debate entre Popper e Adorno o con­
fronto é de dois posicionamentos incompatíveis, anco­
rados em fundamentos epistemológicos diferentes.

O terceiro m o m ento

Neste último momento será relatado um debate


travado entre Habermas e Luhmann, reunido no livro
Teoria da Sociedade ou Tecnologia Social (1972). A
leitura atenta desse Volume não deixa dúvidas de que
Habermas, ao defender sua teoria da sociedade, revela
um a afinidade eletiva com a teoria crítica, enquanto
Luhmann, ao defender um a versão sofisticada da teo­
ria sistêmica, se aproxima do moderno pensamento
positivista.
Habermas já havia lançado nesse momento vários
trabalhos de peso no campo da teoria da ciência e do
conhecimento (A Lógica das Ciências Sociais, 1967;
C onhecim ento e In teresse , 1968), tomando claramente
partido em favor de Adorno na disputa em torno do
A TEO R IA CRÍTICA: ON TEM E HO JE 53

positivismo desencadeada com Popper (cí. artigo pu­


blicado na coletânea de E. Topitsch, L o g ik der Sozial-
fo rscn u n g , 1965, sob o título “Teoria analítica da ciên­
cia e dialética: pós-escrito à controvérsia entre Popper
e Adorno”). Nesse artigo, Habermas sintetiza as posi­
ções contrárias entre os positivistas lógicos e teóricos
da ciência de um lado, e dos teóricos críticos dialéticos
do outro. Seus eixos de análise — teoria e experiência,
neutralidade e ciência, teoria e empiria, teoria e histó­
ria, ciência e prática — retomam a discussão iniciada
por Horkheimer e rediscutida permanentemente por
ele e Adorno. Habermas questiona a validade da pro­
posta positivista de postular a objetividade e verdade
do conhecimento apenas em função do método, ou
melhor, do procedimento lógico-formal. Esconde-se
atrás dessa tese um conceito pobre e limitado da razão:
a capacidade de manipular corretamente regras for­
mais.
O conceito positivista de razão não se aplica, pois,
ao campo da moral e da prática que pressuporia uma
concepção mais abrangente de razão, que segundo H a­
bermas pode ser encontrado no conceito de razão co­
municativa ou dialógica.
No debate com Luhmann, Habermas cessa a iden­
tificação plena com as posições de Horkheimer e Ador­
no, e inicia um a discussão original que o distanciará
cada vez mais dos seus mestres e modelos intelectuais.
Não se trata mais de opor o marxismo ao racionalismo
ou a dialética ao positivismo e sim de elaborar uma
“nova” teoria da sociedade como alternativa à teoria
sistêmica, representada por Luhmann.
Originalmente formado em direito e administra­
ção, Luhmann interessou-se, depois de um a perma­
nência nos Estados Unidos, pela sociologia e em espe­
cial pela teoria sistêmica de Parsons, divulgando e
54 BARBARA FR EITA G

aprimorando-a, depois do seu regresso à Alemanha


(Bielefeld). Luhmann procura aplicar os conceitos ci­
bernéticos ao estudo da sociedade. Recorrendo ao mo­
delo da biologia, distingue entre sistem a e m eio. Da
mesma forma que um organismo vivo se afirma e deli­
mita em relação ao seu meio, a sociedade, concebida
como sistema sócio-cultural, precisa igualmente bus­
car sua permanência e demarcação no meio ambiente.
Enquanto, porém, o organismo vivo tem um limite de
permanência no mundo, determinado pelo seu ciclo de
vida (nascimento e morte), os sistemas sociais não
apresentam esse tipo de delimitação, já que indepen­
dem da vida orgânica de um ou outro de seus mem­
bros. Essa mera constatação cria a primeira dificul­
dade para Luhmann em seu projeto de apropriar-se de
um conceituai originalmente desenvolvido na biologia.
Habermas critica Luhmann, mostrando a incompati­
bilidade entre as duas formas sistêmicas, e ressalta a
dificuldade de utilizar de forma produtiva o conceituai
cibernético para sistemas sócio-culturais.
Luhmann, no entanto, não pode ser considerado
um neopositivista, funcionalista ou teórico sistêmico
ingênuo. Ele está perfeitamente ciente das divergên­
cias profundas existentes entre um sistema biológico
(fechado) e um sistema sócio-cultural (aberto). De­
fende a tese de que à medida que abandonamos a di­
mensão biológica e avançamos em direção a sistemas
sócio-culturais, as alternativas de comportamento do
sistema aumentam, impondo-lhe a necessidade de op­
ções. Uma das funções sociais centrais do sistema con­
siste no que Luhmann chamou de “redução de com­
plexidade” . Quando se institucionaliza um tipo de
comportamento sob a forma de papéis sociais especí­
ficos, outros comportamentos e outros papéis, social­
mente concebíveis e possíveis, estão sendo excluídos.
A TEO R IA CRÍTICA : ON TEM E HOJE S5

O sistema oferece, pois, orientações comportamentais


que facilitam a redução da complexidade, exonerando
o ator da obrigação de fazer uma escolha entre as múl­
tiplas alternativas possíveis.
Habermas ressalta dois problemas vinculados a
essa interpretação da realidade: a indistinção entre
realidade e sua representação por um lado e, por ou­
tro, a dificuldade de captar as funções que assegurem
a permanência do sistema quando este não apresenta
redução de complexidade ou quando se desenvolve jus­
tamente em sentido contrário, aumentando a sua com­
plexidade. Se a função central do sistema sócio-cultu­
ral consiste em reduzir complexidade, o ator nele inse­
rido deveria poder reconhecer possíveis alternativas e
portanto ter opções para escolher entre elas. O fato,
porém, de certas formas de conduta e papéis já se en­
contrarem institucionalizados, sugerindo o comporta­
mento A ou B, significa que a realidade sistêmica, de
fato, não permite um a entre muitas opções, mas sim
sempre já se propõe como a forma mais adequada.
Gom a noção de “redução de complexidade” , Luh­
mann tentara introduzir um a dimensão nova na refle­
xão. A complexidade era dada pela multiplicidade de
possíveis interpretações ou representações do mundo,
e sua “redução” ocorrería quando um a das possíveis
alternativas se concretizasse. Habermas afirma que
essa concepção é incompatível com o conceito de sis­
tema. Este não permite conceber a realidade social
como u m a entre muitas alternativas. Justamente a exi­
gência de assegurar a permanência do sistema no
mundo, delimitando-o face ao seu meio, exclui as for­
mas alternativas de interpretação e atuação, já que
elas podem ser ameaçadoras para a sobrevivência do
sistema. Dessa forma a “redução de complexidade”
não é outra coisa senão a proposta socialmente con­
56 BARBARA FREITA G

trolada para comportamentos conformistas. Em lugar


da visão probabilística sugerida pela interpretação de
Luhmann, estamos diante de freqüências sociais, ex­
pressão do condicionamento factual das ações, com
grau muito restrito de liberdade. A indistinção entre a
realidade e sua representação, inerente ao próprio con­
ceito de sistema, tem, portanto, efeito conservador.
Esse dado não é percebido por Luhmann. Em contra­
partida, distingue sociedade de sistema social, acredi­
tando poder desta forma incluir em sua teoria a dinâ­
mica evolutiva dos sistemas. “Sociedade” não significa
para Luhmann um sistema social específico (satisfeitos
certos requisitos adicionais como território, longevi­
dade, reprodução biológica e cultural assegurada, etc.)
como foi o caso de Parsons. Sociedade significa, para
Luhmann, todo o percurso evolutivo da espécie hu­
mana, incluindo ainda sua projeção para o futuro.
Essa distinção torna-se insustentável e contraditória
quando se tem em mente a indistinção entre a reali­
dade sistêmica e suas formas de representação. A ex­
pectativa de Luhmann de captar a dinâmica da histó­
ria (distinguindo entre sistema social e sociedade),
para evitar assim a crítica de conservadorismo, não se
concretiza. Também sua tentativa de substituir o con­
ceito cibernético de inform ação pelo de significado
( S in n ) não é bem-sucedida, já que Habermas demons­
tra, em longa argumentação, a incompatibilidade en­
tre o conceituai sistêmico e toda a lógica que o rege
com a categoria do significado. Isso porque o sistema
não abre nenhuma brecha para que tais significados
vinculados a normas e valores possam ser consensual­
mente estabelecidos ou criticados. A teoria sistêmica
não tem condições de explicar como normas e valores
emergem e passam a regulamentar o sistema. Ao in­
troduzir a categoria de significado Luhmann pressu-
A TEO R IA CRÍTICA: O N TEM E HOJE 57

põe a possibilidade de uma interação dialógica em que


valores e normas possam ser constituídos, questiona­
dos, reformulados e reassegurados. Para admitir que
isso aconteça, Luhmann teria de abrir mão da catego­
ria de sistema. Esse conceito cibernético pressupõe,
não a negociação e constituição de significados da inte­
ração dialógica, mas sim a existência de significados
previamente estabelecidos que precisam, por um lado,
ser internalizados pelos atores para que eles possam
comportar-se de acordo com as orientações sugeridas
e, por outro, institucionalizados em papéis sociais e
instituições para que tenham validade social. Por isso
mesmo, os significados são considerados na teoria sis­
têmica como a prioris do sistema. Sua internalização
ocorre de forma autoritária, monológica. Torna-se
uma condição para fazer parte, estar integrado no sis­
tema.
A divergência entre Luhmann e Habermas se dá,
em última instância, em torno da concepção e do sur­
gimento de significados. Para Habermas esses somente
podem emergir em situações dialógicas, em que ego e
alter atribuem significados às coisas, pessoas e suas
relações, significados que são consensualmente elabo­
rados e reciprocamente respeitados. As relações sociais
são por isso mesmo sempre relações às quais os atores
atribuem algum significado, e pressupõem um grau de
liberdade inadmissível para a concepção sistêmica.
Habermas está convencido de que o conceito de sis­
tema e o de informação são incompatíveis com uma
análise efetiva dos fenômenos sociais.
Para assegurar a dinâmica do sistema e explicar a
evolução de sistemas, Luhmann necessita da categoria
de informação. Mas ao tentar substituí-la pela catego­
ria de significado, buscando respeitar a especificidade
das relações sociais, se perde em um ecletismo concei-
58 BARBARA FR EITA G

tual que o forçaria ou a abandonar o conceito de siste­


ma (e portanto a teoria sistêmica) ou a aceitar o concei­
to de informação (abandonando a aspiração de efetiva­
mente analisar fenômenos sociais significativos).
Ao introduzir o conceito de significado em sua
perspectiva sistêmica, Luhmann procurou aumentar o
grau de liberdade do sistema, sem, no entanto, aban­
donar a concepção sistêmica da realidade. Por isso
mesmo, segundo Habermas, Luhmann se perde em
contradições que bloqueiam sua teorização e detur­
pam sua visão de realidade. A indistinção entre repre­
sentação e realidade, a substituição do conceito de in­
formação pelo de significado, a distinção entre socie­
dade e sistema social e a definição prioritária da fun­
ção sistêmica como “redução de complexidade” cons­
tituem os temas vulneráveis da teorização de Luh­
mann, apesar de serem tentativas louváveis de supe­
ração dos pontos de estrangulamento da teoria sistê­
mica: o seu conservadorismo implícito e a dificuldade
de conceptualizar os processos históricos; seu confor­
mismo explícito, ao postular, como comportamento
social mais adequado, aquele institucionalizado pelo
sistema; seu positivismo disfarçado, ao atribuir ao que
é valor superior ao que deixou de ser, e poderia vir a ser.
Desta forma, a teoria sistêmica de Luhmann não deixa
de ser um a reformulação modernizada da “teoria tra­
dicional” , criticada por Horkheimer, ou do positi­
vismo popperiano, contestado por Adorno. As três ver­
sões da teoria (ou ciência) é comum a concepção ins­
trumental da razão, a naturalização dos fenômenos
sociais, a expulsão do conflito e da contradição do mo­
delo teórico, o que equivale a negar a sua existência na
realidade.
Habermas contrapõe a Luhmann sua primeira
versão da teoria da ação com unicativa, que durante a
A TEO R IA CRITICA: ONTEM E HOJE 59

disputa com esse autor ainda se denomina “ teoria da


competência comunicativa” . Habermas está interes­
sado desde essa época em elaborar um novo conceito
de racionalidade comunicativa, propondo um novo pa­
radigma para a discussão sociológica: a combinação
do conceito de mundo vivido (L ebensw elt ) com a con­
cepção sistêmica, o que fornecería um a conceituação
nova de sociedade e um a teoria evolucionista da mo­
dernidade (cf. Habermas, 1981, vol. I, p. 8).
Habermas inclui em sua teoria da ação comuni­
cativa a elaboração de um novo conceito de razão, que
nada tem em comum com a visão instrumental que a
modernidade lhe conferiu, mas que também trans­
cende a visão kantiana assimilada por Horkheimer e
Adorno, isto é, de um a razão subjetiva, autônoma,
capaz de conhecer o mundo e de dirigir o destino dos
homens e da humanidade. A concepção de um a razão
comunicativa implica um a mudança radical de para­
digma, em que a razão passa a sèr implementada so­
cialmente no processo de interação dialógica dos ato­
res envolvidos em um a mesma situação. A razão co­
municativa se constitui socialmente nas interações es­
pontâneas, mas adquire maior rigor através do que
Habermas chama de discurso. Na ação comunicativa
cada interlocutor suscita uma pretensão de validade
quando se refere a fatos, normas e vivências, e existe
uma expectativa que seu interlocutor possa, se assim o
quiser, contestar essa pretensão de validade de uma
maneira fundada (begründet ), isto é, com argumen­
tos. Ê nisso que consiste a racionalidade para Haber­
mas: não um a faculdade abstrata, inerente ao indiví­
duo isolado, mas um procedim ento argum entativo
pelo qual dois ou mais sujeitos se põem de acordo sobre
questões relacionadas com a verdade, a justiça e a
autenticidade. Tanto no diálogo cotidiano como no dis­
60 BARBARA FR EITA G

curso, todas as verdades anteriormente consideradas


válidas e inabaláveis podem ser questionadas; todas as
normas e valores vigentes têm de ser justificados; todas
as relações sociais são consideradas resultado de uma
negociação na qual se busca o consenso e se respeita a
reciprocidade, fundados no melhor argumento. A ra­
zão comunicativa circunscreve um conceito para o qual
o questionamento e a crítica são elementos constituti­
vos, mas não sob a forma monológica, como ainda
ocorria na D ialética do Esclarecim ento ou na D ialética
N egativa, e sim de forma dialógica, em situações so­
ciais em que a verdade resulta de um diálogo entre
pares, seguindo a lógica do melhor argumento.
A teoria do consenso da verdade se baseia, para
Habermas, na capacidade de distinguir entre essência
e aparência (afirmações verdadeiras); entre ser e ilu­
são (afirmações verazes) e entre ser e dever (afirma­
ções corretas) (Luhmann e Habermas, 1971, p. 135).
Desta forma Habermas ao mesmo tempo preserva
elementos importantes da contribuição de Horkheimer
e Adorno, mas os supera, propondo um a nova teoria
que tem em comum com a teoria crítica a dimensão
crítica da realidade e a rejeição de falsos determinis-
mos. A teoria da ação comunicativa, no entanto, não
adere ao pessimismo implacável de Adorno, revelando
uma convicção profunda da competência lingüística e
cognitiva dos atores, capazes de, no diálogo, na dis­
puta, no questionamento radical, produzirem um a ra­
zão comunicativa que pouco tem em comum com a .
razão kantiana: ela não é subjetiva, não é transcen-
cental, não é inata. No entanto, ela espelha a transpa­
rência das relações sociais e a intersubjetividade pos­
sível a cada um dos atores nelas envolvidos. A razão
comunicativa se encontra no ponto de intersecção de
três mundos: o mundo objetivo das coisas, o mundo
A TEO R IA CRÍTICA: ON TEM E HO JE 61

social das normas e o mundo subjetivo dos afetos. Por


isso mesmo ela é mais abrangente e menos autoritária
que as demais formas de manifestação da razão.
Ao conceituar a sociedade, Habermas procura in­
tegrar duas óticas: a sistêmica e a do mundo vivido. A
ótica sistêmica coincide com a do observador externo.
Foi a ótica adotada por Parsons e Luhmann. Trata-se
daquele aspecto da realidade social em que atua a ra­
zão instrumental e técnica. A esfera sistêmica é, por
sua vez, dividida em dois subsistemas: o econômico,
regido pelo meio dinheiro, e o político, regido pelo
meio poder. A racionalidade técnica decorre da orga­
nização das forças produtivas e visa gerar o máximo de
produtividade para assegurar a sobrevivência material
dos homens que vivem em sociedade. A visão sistêmica
exclui o diálogo, de resto necessário num a sociedade
cuja forma de codificação das relações sociais encon­
trou no dinheiro um a linguagem universal. A validade
dessa linguagem não precisa ser questionada, já que ó
sistema funciona na base de imperativos automáticos
que jamais foram objeto de discussão dos interessados.
Essa regulamentação automática é denominada por
Habermas de “integração sistêmica” . Os complexos
de ação integrados sistemicamente impõem sua lógica
(a razão instrumental) às outras esferas da sociedade,
passando, desta forma, a “colonizá-las” . Essas outras
esferas constituem a outra dimensão da sociedade, à
qual Habermas deu a denominação husserliana de Le-
benswelt (mundovivido). Trata-se aqui da perspectiva’
subjetiva dos atores, inseridos em situações concretas
de vida. Essa visão de dentro da sociedade permite
compreendê-la a partir do cotidiano de seus atores, de
suas vivências e experiências partilhadas. A objetivi­
dade das relações sociais é dada quando há “integra­
ção social” , ou seja, quando um número dado de ato­
62 BARBARA FR EITA G

res teve vivências e experiências comuns que consti­


tuem sua memória e sua história coletiva. Segundo
Habermas, a modernidade se caracteriza por ter cria­
do um a disjunção, um hiato, entre o mundo vivido e
o sistema (E n tko p p elu n g ). A perspectiva sistêmica e a
perspectiva do mundo vivido não estão, por sua vez,
integradas: a integração sistêmica não coincide com a
integração social. Sistema e mundo vivido entram em
choque. O mundo vivido, regido pela razão comuni­
cativa, está ameaçado em sua sobrevivência pela inter­
ferência da razão instrumental. Ocorre um a anexa­
ção do mundo vivido por parte do sistema, desativando
as esferas regidas pela razão comunicativa e impondo-
lhes a razão instrumental, tecnocrática. A interferên­
cia do subsistema estatal na esfera do mundo vivido é a
burocratização, e a do subsistema econômico, a mone-
tarização. Essas duas usurpações são responsáveis
pelas patologias do mundo vivido.
Foi exatamente este processo que levou ao que
Weber chamou de perda de liberdade do homem, cres­
centemente aprisionado numa armação de ferro ( S ta h l-
hartes G ehaeuse ). Foi o que m u ta tis m u ta n d is Lukács
denominou de alienação e Marcuse de unidimensio-
nalização.
Segundo Habermas cabe à razão comunicativa,
preservada em certos “nichos” da sociedade moderna
e institucionalizada em algumas de suas “esferas de
valor” (Weber), isto é, no mundo vivido (como já é o
caso na esfera da pintura, da música, do direito, da
ciência e da moral), resgatar o terreno perdido e reo-
rientar a razão instrumental, reconduzindo-a aos limi­
tes dentro dos quais é imprescindível e pode fornecer
um a contribuição inestimável para assegurar a orga­
nização e sobrevivência das modernas sociedades de
massa.
A TEO R IA CRITICA: ONTEM E HOJE 63

Segundo Habermas, é na esfera social e da cul­


tura (ou no que futuramente chamaria de Lebensw elt,
mundo vivido) que devem ser conjuntamente fixados
os destinos da sociedade, através do questionamento e
da revalidação dos valores e das normas vigentes no
mundo vivido. Somente quando este reconquistar o
terreno perdido pode ocorrer o que na modernidade se
tornou urgente: a “ descolonização” do mundo vivido
pelo sistema, a capacidade de agir comunicativamente
para todos os atores. A razão dialógica, comunicativa,
estaria, desta forma, recolocando em seu devido lugar
a razão instrumental.
Vemos que nesse terceiro momento da discussão
sobre a dialética da razão os frankfurtianos e seus her­
deiros, aqui representados por Habermas, buscam no­
vamente um a reconciliação entre os dois momentos da
razão, algo que somente se tornou possível porque H a­
bermas ousou um a mudança de paradigma, rejeitando
e superando as formulações pessimistas de Adorno e
Horkheimer.
Depois de analisados os conceitos de razão comu­
nicativa e de sociedade em Habermas, resta elucidar o
que este entende por teoria evolutiva da modernidade.
Segundo Habermas, a teoria da ação comunicativa,
especialmente em seu trabalho hermenêutico de recu­
perar através da revisão dos clássicos da sociologia os
momentos de racionalidade comunicativa soterrados,
esquecidos ou não explorados, permite reconstruir os
processos evolutivos das sociedades do passado ao pre­
sente, na medida em que fornece um conceituai que
permite dar conta da complexidade e da contradição
inerente a nossas modernas sociedades. Apesar de''to­
das as perversões e dos retrocessos que a história da
modernidade reve.lou, Habermas aponta para dois mo­
mentos cujos ganhos objetivos precisam ser ressalta­
64 BARBARA FR E IT AG

dos: por um lado, a competência técnica e instrumen­


tal desenvolvida pelos sistemas de reprodução mate­
rial, graças à ciência e à técnica, permitindo em prin­
cípio a plena satisfação das necessidades de todos os
homens e, por outro lado, a crescente “racionaliza­
ção” das esferas de valor, substituindo concepções re­
ligiosas do mundo por sistemas de normas e valores
consensualmente elaborados pelos atores do sistema
em situações dialógicas livres de repressão.
Percebe-se que Habermas acompanha o raciocí­
nio de Marx, ao valorizar a racionalidade e eficácia
do sistema de reprodução material das modernas so­
ciedades de massa, e o de Weber, quando admite a
“racionalização” de certas esferas de valor que es­
capam ao controle autoritário da religião ou do Es­
tado. Hàbernas ainda admite, como Marx, que a re­
produção material de bens, destinada a suprir as ne­
cessidades de todos os homens, ainda não encontrou
formas racionais e justas de distribuir esses bens efeti­
vamente entre todos os membros da sociedade, e con­
cordaria que a “racionalização do mundo” nem sem­
pre trouxe benefícios à humanidade. Mas Habermas
discorda de Marx em sua proposta de alterar revolu-
cionariamente as condições sociais como única saída
possível e não acompanha mais Weber quando esse
afirma que a “racionalização” das concepções religio­
sas do mundo conduziu ao “ desencantamento” e à a -
lienação. Habermas resgata, através de sua teoria da
evolução da modernidade, dois momentos positivos do
processo histórico: a competência do sistema de pro­
dução para atender às necessidades de sobrevivência
da humanidade e o grau de racionalidade comunicati­
va já conquistada pela L ebensw elt . Nem por isso H a­
bermas deixa de perceber as incongruências e injusti­
ças que ainda ocorrem em conseqüência da organiza­
A T E O R IA CRÍTICA: ONTEM E HOJE 65

ção sistêmica baseada nas relações de troca e na acu­


mulação, por um lado, e da falta de racionalidade co­
municativa em amplas esferas do mundo vivido, por
outro. Habermas, contudo, tem uma fé inquebrantá-
vel na capacidade de aprendizado dos sistemas, sócio-
culturais modernos, que ajustam seus mecanismos de
autocontrole e de auto-orientação de acordo com os
graus de complexidade e diferenciação atingidos.
Habermas não adere à leitura do Iluminismo feita
por Horkheimer e Adorno, em que “o feitiço se volta
contra o feiticeiro” , mas percebe-se como leitor atento
de seus trabalhos. Nos debates que trava com seus o-
positores teóricos e ideológicos, não lhe interessa ani­
quilar ou contestar seus argumentos, mas absorvê-los,
no interesse de um a melhor argumentação, mais ve-
raz, mais justa, mais verdadeira. A teoria da ação co­
municativa demonstra um a competência dialógica e-
xemplar: ao debater-se com teóricos de todas as orien­
tações, Habermas parece estar pondo em prática a sua
teoria consensual da verdade. Neste sentido toda teo-
rização de Habermas não é senão discurso, como ele
próprio o definiu.

A dupla face da cultura


e a discussão da indústria cultural

"A cultura, como algo que transcende a autopreser-


vação sistêmica da espécie, contém inevitavelmente
um a dimensão crítica face a todas as instituições e a
tudo que existe.”
(Adorno)

Provavelmente a teoria crítica da Escola de


Frankfurt tornou-se mais conhecida no mundo inteiro
66 BARBARA FR EITA G

pela sua crítica à cultura de massa que pelos seus de­


mais trabalhos em outros campos do saber, como a fi­
losofia, a sociologia, a crítica literária, a teoria do co­
nhecimento, etc.
O conceito de “indústria cultural” , divulgado por
Adorno e Horkheimer em A Dialética do Esclareci­
m ento (1947), já faz parte integrante do conceituai das
ciências sociais e da comunicação, onde tem encontra­
do ampla aplicação.
Como no caso do primeiro eixo temático, o tema
da cultura aflora no início dos trabalhos do grupo, ain­
da na fase de seu funcionamento em F rankfurt,1e a-
companha a reflexão dos seus maiores expoentes, até a
sua morte. Já no primeiro número da Z eitsch rift A-
domo publica um importante artigo sobre a música
(“Sobre a situação social da música” , 1932) no qual
reconhece que a música é um produto específico das
relações de produção capitalista, mas ressalta também
o seu caráter contestatório, enquanto crítica dessas re­
lações. Benjamin, por sua vez, lança no sexto número
da revista (1936) seu artigo polêmico sobre a “O bra de
arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (a pri­
meira versão em francês data de 1935). E de 1937 o
conhecido ensaio de Marcuse sobre o “Caráter afirma­
tivo da cultura” , e de 1941 o ensaio de Horkheimer so­
bre a “ Arte e a cultura de massa” , onde pela primeira
vez é empregado o conceito de “indústria cultural” .
Estes e outros artigos de menor importância an­
tecederam, pois, as reflexões de Adorno e Horkheimer
magistralmente sintetizadas no ensaio “ Indústria cul­
tural, Iluminismo como sedução das massas” (1947),
que integra sua coletânea de ensaios A D ialética do
Esclarecim ento. Segundo revelações feitas á Haber-
mas pela viúva de Adorno, o ensaio sobre a indústria
cultural pode ser atribuído quase que na íntegra a A­
A TEO RIA C RITIC A : ONTEM E HOJE 67

dorno. A obra posterior de Adorno, especialmente a-


quela publicada na Alemanha a partir de sua volta dos
Estados Unidos (N oten zu r Literatur, M in im a M ora-
lia , Negativa D ia lek tik e A esthetische Teorie), pode,
em grande parte, ser vista e interpretada como sendo
um desdobramento das teses esboçadas nesse artigo,
ainda escrito na Califórnia.
Na discussão que aqui se segue será dada maior
ênfase ao ensaio sobre a indústria cultural, no qual são
discutidos os conceitos de cultura popular e de massa,
indústria cultural, obra de arte, etc. A referência à o-
bra posterior de Adorno será feita a título de extrapo­
lação, ressaltando-se sua tendência crescente em dire­
ção a um pessimismo cultural que o conduziría a um
beco sem saída.
Como no tratamento do tema anterior, impõe-se
uma diferenciação entre os diferentes autores que
compõem o núcleo dos pensadores críticos, não se se­
guindo uma ordem cronológica dos trabalhos. O tra­
tamento do tema seguirá, na medida do possível, à ló­
gica de desdobramento intrínseca aos conceitos desen­
volvidos pelos autores, partindo do conceito de cultu­
ra, da obra de arte, sua reprodutibilidade técnica, seu
consumo pelas massas, o seu desvirtuamento (“ a per­
da da aura” , na visão benjaminiana) e a preservação
da música e outras formas de arte (como única mani­
festação de protesto e crítica contra a ordem estabele­
cida, na visão de Adorno).
Comentadores de Adorno (T ex t u n d K r itik , 1967)
são unânimes em afirmar que a partir do momento em
que assumiu a cogestão e finalmente a direção do Ins­
tituto, o autor da Dialética Negativa restringiu o cam­
po semântico e a abrangência da teoria crítica de ou-
trora, abandonando as análises mais concretas das re­
lações de produção e da repressão das classes inerente
68 BARBARA FR E IT A G

à moderna sociedade de massas, objeto original das


investigações do Instituto, para enclausurar-se cada
vez mais no campo da música, onde sua crítica e seu
protesto somente seriam compreendidos pôr um a pe­
quena minoria.
Será interessante seguir essa trajetória do pensa­
mento, em especial, o caminho da crítica da cultura à
teoria estética que se concebe como interpretação do
protesto contido nas manifestações artísticas.

Cultura e indústria cultu ral

Ao tratarem do tema da cultura, Marcuse, Ador­


no e Horkheimer lembram a velha distinção feita e até
hoje difundida na Alemanha entre “cultura” e “civili­
zação” , isto é, entre mundo das idéias e dos sentimen­
tos elevados de um lado, e mundo da reprodução m a­
terial, do outro.
Em seu artigo, “Caráter afirmativo da Cultura”
(1937), Marcuse analisa as condições históricas — a e-
mergência da burguesia na Europa — em que essa se­
paração foi consumada e perpetuada. Enquanto o
mundo do trabalho seguia a lógica da necessidade, im­
pondo sofrimento e abstenção aos homens que nele se
moviam, o mundo cultural permitira postular a liber­
dade, a felicidade, a realização espiritual, se não rea­
lizadas no presente, pelo menos prometidas para o fu­
turo. Ã oposição trabalho-lazer, necessidade-liber-
dade, matéria-espírito, associou-se o par exteriori-
dade-interioridade, central para a filosofia da cultura
do período burguês (século XIX). A ênfase dada à di­
mensão subjetiva, à inferioridade dos sentimentos, aos
valores espirituais, à dignidade da pobreza, etc., cons­
A TEO R IA CRITICA: ONTEM E HOJE 69

tituía uma forma de seduzir os membros da sociedade


para se contentarem com promessas ou expectativas
de felicidade no mundo espiritual, sem reivindicá-las
ou estendê-las também às suas condições materiais de
vida. Essas condições só eram favoráveis para um a pe­
quena minoria, detentora dos meios de produção. A
grande maioria da população estava excluída tanto do
usufruto dos bens materiais e portanto do bem-estar e
do conforto individual quanto do acesso ao consumo
de bens culturais como a pintura, escultura, música e
outras manifestações da cultura.
A separação da sociedade burguesa em dois mun­
dos — o da reprodução material da vida (civilização) e
o mundo espiritual das idéias, da arte, dos sentimen­
tos, etc. (cultura) — permitiu a essa sociedade justifi­
car a exploração e alienação que a grande maioria so­
fria nas linhas de montagem e de produção, na admi­
nistração burocratizada, e no cotidiano miserável.
Em contrapartida, essa mesma sociedade acena
através dos seus bens culturais com um mundo melhor
no qual se concretizariam a felicidade, liberdade, o a-
mor e a humanidade. Esses ideais são tematizados em
obras de arte, na produção cultural, simbolizando a
promessa de felicidade. Marcuse acredita, por isso,
,que a obra de arte, alienada de uma realidade material
de exploração, assume uma função alienante na medi­
da em que faz com que os homens se ajustem e se ade­
quem às formas desumanas de organização da socie­
dade, remetendo para o futuro os seus desejos de feli­
cidade e realização. Ao mesmo tempo que a obra de
arte e a cultura em geral se fechavam ao consumo da
classe trabalhadora, por serem considerados bens de
consumo reservados a uma elite, representavam em
sua própria estrutura um protesto contra a injustiça,
mas esta só poderia ser superada no futuro.
70 BARBARA FR EITA G

No decorrer do tempo, esse modelo foi se tornan­


do — segundo a análise de Marcuse — cada vez mais
frágil e incapaz de contribuir para a manutenção do
sistema de reprodução material, sobretudo na fase de
ascensão da burguesia. Para manter os trabalhadores
e assalariados em geral inseridos no processo produti­
vo, tornavam-se necessárias novas formas de repressão
e exploração, exigindo do Estado e da empresa inter­
venções mais radicais e eficientes.
A separação entre a produção material (civiliza­
ção) e a produção de bens espirituais (cultura) não era
a forma mais adequada para dissimular as estruturas
do novo sistema de produção. A fim de tornar os tra­
balhadores dóceis e submissos, não bastava recorrer à
dicotomia entre civilização e cultura, entre escassez
material externa e riqueza espiritual interna. Tornou-
se imperioso m udar os padrões de organização da pro­
dução cultural que foi sendo gradativamente cooptada
pela esfera da civilização, isto é, sendo absorvida pelo
sistema da produção de bens materiais que reestru­
turou inteiramente as formas de circulação e consumo
da cultura. Inicialmente Marcuse acreditava que a dis­
solução da obra de arte em conseqüência de um a or­
ganização geral da produção material de bens em mol­
des socialistas anunciaria a materialização da felicida­
de no mundo do trabalho, dispensando a longo prazo
a produção artística. Esta somente seria necessária em
um mundo alienado, marcado pela divisão do trabalho
pela propriedade privada e pela dominação. Erradica­
dos esses males, a obra de arte podería eventualmente
perder sua razão de ser. Mas não foi assim que se de­
ram as coisas, e Marcuse se verá forçado a reformular,
mais tarde, a sua concepção de cultura e arte.
Os bens culturais, concretizados em obras literá­
A TEO R IA CRÍTICA: ONTEM E HOJE 71

rias, sistemas filosóficos e obras de arte são derruba­


dos dos seus pedestais, deixam de ser bens de consumo
de luxo, destinados a um a elite burguesa, para se con­
verterem em bens de consumo de massa. Esse processo
de dissolução da obra de arte e da cultura é viabilizado
pela revolução tecnológica-industrial, que permitiu
promover a reprodução em série da obra de arte ou de
sua cópia (imprensa, fotografia, cinema, disco, casse­
te, vídeo, etc.). A obra de arte, na era de sua reprodu-
tibilidade técnica (Benjamin) revoluciona o estatuto da
cultura, dissolve o conceito burguês de arte, transforma
a cultura de elite em cultura de massa. Mas como a ju n ­
ção do processo material de produção com o processo
de produção de bens ideais e culturais não se deu na
perspectiva idealizada por Marcuse, a “democratiza­
ção” dos bens culturais foi uma falsa “ democratiza­
ção” . A dissolução da obra de arte não ocorreu porque
o sistema de produção de mercadorias havia sido su­
primido e sim porque ela foi transformada em merca­
doria (Adorno, Horkheimer), assimilando-a à produ­
ção capitalista de bens. Em conseqüência, a aparente
reconciliação da cultura com a civilização foi um a fal­
sa reconciliação, que traiu o ideal de felicidade, huma­
nidade e justiça contido na esfera da cultura. O produ­
to cultural integrado à lógica do mercado e das rela­
ções de troca deixa de ser “cultura” para tornar-se va­
lor de troca. A falsa reconciliação entre produção ma­
terial e ideal de bens recebe o nome de “indústria cul­
tural” . Horkheimer e Adorno criaram esse termo para
evitar termos mais familiares, mas também mais am­
bíguos, com “cultura de massa” , “cultura popular”
ou sua contrapartida, “cultura de elite” , “alta cultu­
ra” , para caracterizarem melhor o fenômeno que ana­
lisam: cultura produzida para o consumo de massa, a-
tendendo às necessidades de valor de troca (do seu pro-
72 BARBARA FR E IT A G

dutor) e de valor de uso (do seu consumidor). A cultura,


transformada em mercadoria, perde sua característica
de cultura, para ser meramente um valor de troca. Mas
a que necessidades atende esse valor criado para o con­
sumo? Ele permite, como ainda será necessário de­
monstrar, reproduzir ad in fin itu m o sistema, atenden­
do assim às necessidades de acumulação do sistema.
Assim pode-se dizer que a “indústria cultural” é a
forma su i generis pela qual a produção artística e cul­
tural é organizada no contexto das relações capitalistas
de produção, lançada no mercado e por este consu­
mida. Numa sociedade em que todas as relações so­
ciais são mediatizadas pela mercadoria, também a
obra de arte, idéias, valores espirituais se transformam
em mercadoria, relacionando entre si artistas, pensa­
dores, moralistas através do valor de troca do produto.
Este deixa de ter o caráter único, singular, deixa de ser
a expressão da genialidade, do sofrimento, da angús­
tia de um produtor (artista, poeta, escritor) para ser
um bem de consumo coletivo, destinado, desde o iní­
cio, à venda, sendo avaliado segundo sua lucratividade
ou aceitação de mercado e não pelo seu valor estético,
filosófico, literário intrínseco.
A indústria cultural não é, pois, simplesmente
mais um ramo da produção na diversificada produção
capitalista, ela foi concebida e reorganizada para pre­
encher funções sociais específicas, antes preenchidas
pela cultura burguesa, alienada de sua base material.
A nova produção cultural tem a função de ocupar o
espaço do lazer que resta ao operário e ao trabalhador
assalariado depois de um longo dia de trabalho, a fim
de recompor suas forças para voltar a trabalhar nor dia
seguinte, sem lhe dar trégua para pensar sobre a rea­
lidade miserável em que vive. A indústria cultural,
além disso, criá ilusão de que a felicidade não precisa
A TEO R IA CRÍTICA: ON TEM E H O JE 73

ser adiada para o futuro, por já estar concretizada no


presente — basta lem brar o caso da telenovela brasi­
leira. E, finalmente, ela elimina a dimensão crítica
ainda presente na cultura burguesa, fazendo as mas­
sas que consomem o novo produto da indústria cultu­
ral esquecerem sua realidade alienada. Com a dissolu­
ção da obra de arte e da cultura no cotidiano, extin-
guem-se a remessa para o futuro e a promessa de feli­
cidade, inerentes à obra de arte burguesa.
Preenchidas essas funções, a reprodução das rela­
ções sociais como um todo está novamente assegurada,
já que os indivíduos não têm mais oportunidade de se
conscientizarem das relações de exploração em que vi­
vem. Foi-lhes tomado o tempo para pensarem, e foi-
lhes tirada a esperança preservada outrora em obras
culturais de que o presente podería ser melhor. São
sugestionados, ainda, para consumirem incessante­
mente, pois o consumo é apresentado como o caminho
para a realização pessoal. A cultura fornecida pelos
meios de comunicação de massa não permite que as
classes assalariadas assumam posição crítica face a sua
realidade, já que ela mistura os planos da realidade
material com as suias formas de representação e pro­
gressivamente anulam os mecanismos da reflexão e
crítica para acionarem a percepção e os sentidos (visão
e audição). No lugar do amor romântico sonhado pelo
poeta se intercala a telenovela, no lugar do sexo vivido
se vê o filme pornô, em lugar de liberdade autêntica se
vive a liberdade de escolha entre produtos lançados no
mercado.
A industria cultural, que se caracteriza por sua
dimensão anti ou acultural (dissolução da obra de arte,
produção e reprodução de mercadorias ditas “cultu­
rais”), por sua vinculação com a moderna técnica (rá­
dio, tevê, cinema, fotografia, imprensa, etc.) e seu
74 BARBARA FR EITA G

consumo de massas e seu caráter de mercadoria, cons­


titui a fórmula moderna que a sociedade burguesa en­
controu para autoperpetuar-se. Se antigamente a se­
paração entre cultura e civilização preenchia satisfato­
riamente as funções de reprodução e ideologização da
classe operária, as condições modernas da produção
criaram, com auxílio da ciência e da técnica, assimi­
lando, pois, a cultura à civilização, uma nova fórmula
para consolidar e perpetuar a produção capitalista: a
indústria cultural. Essa passa a ser fundamental para
a sobrevivência do sistema.

A obra de arte, a “a u ra ” e a p erd a da aura

Um dos trechos mais difundidos sobre a obra de


arte, seu conceito e suas funções é o ensaio de Ben-
jam in (do qual se conhecem duas versões em alemão e
uma francesa), “A obra de arte na era de sua repro-
dutibilidade técnica” (1935-1936). Nesse ensaio, cuja
primeira variante alemã acaba de ser publicada no
Brasil (Brasiliense, 1985), Benjamin esboça um histó­
rico da obra de arte e do seu relacionamento com o
produtor e o consumidor desde a Idade Média até os
nossos dias. Para melhor estabelecer a relação entre
produtor e consumidor propõe duas novas categorias
de análise: o valor de culto e o valor de exposição de
uma obra (Benjamin, 1935-1936, p. 173).
No culto religioso medieval, o valor de exposição
da obra de arte é praticamente inexistente, sendo en­
fatizado quase que exclusivamente seu valor de culto.
A obra de arte se mantém escondida, inacessível
ao olhar do espectador. Basta pensar nas esculturas
góticas de santos, embutidas nas colunas das cate­
drais, escondidas em nichos, confundindo-se com a
A TEO R IA CRlTICA : ONTEM E HOJE 75

estrutura arquitetônica como um todo. Na medida em


que o mundo se dessacraliza, a obra de arte vai sendo
liberada para o olhar do espectador. Mas o valor de
culto não desaparece. Ele sobrevive nas formas secu­
lares da arte como culto do belo. A idealização extrema
da arte mostra claramente sua origem religiosa, por
mais profanas que sejam suas manifestações. O valor
de exposição aumenta, sem que se perca o elemento
cultural, que continua presente na “ aura” da obra de
arte. O objeto aurático é caracterizado pela unicidade
(E inm a lig keit) e distância (E n tfern u n g ). O espectador
permanece fascinado pela “ aura” . A “aura” é uma
espécie de invólucro que envolve a obra de arte, con­
tendo “elementos espaciais e temporais: a aparição
única de um a coisa distante, por mais perto que ela
esteja” (Benjamin, 1935-1936, p. 170).
Se a passagem do período feudal para o burguês
se caracterizou pela secularização da obra de arte, sem
que se extinguisse a sua aura, a passagem do período
burguês para a sociedade de massa está caracterizada
pela perda da aura. A perda da aura ocorre em con-
seqüência de dois fatores básicos: a tecnificação cres­
cente do mundo e a reprodutibilidade técnica da obra
de arte, que leva a um a massificação do consumo dos
bens artísticos. Ambos os fatores decorrem da moder-
nização da sociedade burguesa do século XIX.
A perda da aura não tem para Benjamin as con­
sequências negativas que Horkheimer, Adorno e o úl­
timo, Marcuse, atribuem à dissolução da obra de arte.
Ê verdade que, também para Benjamin, com a perda
da aura se destrói a unicidade e a singularidade da
obra de arte, mas ao perder seu valor de culto seu valor
de exposição se intensifica.
A obra adquire um a nova qualidade: ela se torna
acessível a todos, seu consumo generalizado se tom a
76 BARBARA FR EITA G

possível, ela adquire por assim dizer um novo valor:


um “valor de consumo” . Ao contrário do que afirmava
Adorno, a reprodução de um quadro da M ona Lisa
como cartaz, de um romance de Balzac em p a p er-b a ck
ou de um a sinfonia de Beethoven em disco não desvir­
tua a obra de arte. Apenas ela abandona os gabinetes e
salões para ser divulgada e apreciada por todos. A re-
produtibilidade técnica não somente assegura o con­
sumo generalizado como transforma o caráter, a natu­
reza intrínseca da obra de arte, modificando ainda a
própria percepção do consumidor. Benjamin vê na foto
e no filme exemplos privilegiados dessa mudança ra­
dical na concepção e percepção da obra de arte desau-
ratizada. Por isso mesmo Benjamin não faz a mesma
leitura que Adorno do processo de massificação e de­
mocratização do consumo. Enquanto para este a re-
produtibilidade técnica significa o “ desvirtuamento”
da obra, sua “ dissolução” na realidade banal, através
da indústria cultural, e portanto a destruição do valor
de negatividade inerente à arte e a despolitização do
seu destinatário, Benjamin pelo contrário associa a
idéia da “ desauratização” a de politização. Termina
seu ensaio sobre a reprodutibilidade técnica da obra
de arte denunciando a “estetização” da política como
a forma fascista de utilizar a dimensão artística, ao
que o comunismo respondia com a “politização” da
arte. A moderna obra de arte, como a fotografia e o
cinema (hoje acrescentaríamos a televisão, o vídeo e o
lazer), ao provocarem mudanças na percepção e nas
atitudes dos consumidores, estariam modificando esses
mesmos consumidores. Por isso mesmo a obra de arte
pode servir como instrumento de politização (Benja­
min estava, na época, fortemente influenciado por
Bertholt Brecht), mas também de instrumento de redu­
ção de tensões que, sem essa “válvula de escape” , pos­
A T E O R IA CRITICA: ON TEM E HOJE 77

sivelmente teriam condições de dinamizar a sociedade.


Benjamin lembra nesse contexto os filmes de Chaplin.
Diante do exposto, fica evidente que os frankfur-
tianos, longe de constituírem um bloco teórico mono­
lítico, defendem posições diferenciadas, por vezes di­
vergentes, mas que em certas dimensões apresentam
convergências e até mesmo sobreposições fundamen­
tais.
Marcuse, Horkheimer e Adorno, bem como Ben­
jamin, são unânimes em atribuir à cultura em geral, e
à obra de arte em especial, uma dupla função, a de
representar e consolidar a ordem existente e ao mesmo
tempo a de criticá-la, denunciá-la como imperfeita e
contraditória. Essa dupla função decorre do caráter
ambíguo da própria cultura de ser ao mesmo tempo a
depositária das experiências passadas de repressão e
das expectativas de melhoria, de aperfeiçoamento: ela
critica o presente e remete ao futuro. A dimensão con­
servadora e emancipatória da cultura e da obra de arte
encontram-se, pois, de mãos dadas.
Benjamin, contudo, diverge dos seus companhei­
ros quanto à avaliação do processo de desauratização
da obra de arte, sua democratização e massificação.
Para Adorno e Horkheimer esse processo implicava a
dissolução da obra de arte e com ela perda da dimen­
são crítica da arte. Isso significa para eles, em outras
palavras, o fim da dialética e o congelamento do pro­
cesso histórico. A obra de arte “ aurática” preservava a
Consciência de que a realidade podería ser melhor,
contendo um a p ro m esse de bo nheur no futuro. Sua
dissolução coincide com a unidimensionalização do
mundo, com o contentamento com o presente. Benja­
min admite a possibilidade da politização das massas
através da obrà de arte desauratizada, no entanto,
com certo ceticismo.
78 BARBARA FREITA G

“Na época de Homero, a humanidade oferecia-se


em espetáculo aos deuses olímpicos; agora, ela se
transforma em espetáculo para si mesma. Sua auto-
alienação atingiu o ponto que lhe permite viver sua
própria destruição como um prazer estético de pri­
meira ordem. Eis a estetização da política, como a pra­
tica o fascismo. O comunisnio responde com a politi-
zação da arte.” (Benjamin, 1935, p. 196).
Marcuse que advogara, como vimos, a dessubli-
mação da arte, defendendo sua superação pela equa-
lização das desigualdades estruturais da base econô­
mica, assume como autor maduro as posições defen­
didas por seus amigos frankfurtianos, Horkheimer e
Adorno. Em um diálogo travado com Habermas em
Starnberg, pouco antes de sua morte, defende a pre­
servação da obra de arte com sua aura como única
forma de impedir sua unidimensionalização, ou seja,
sua cooptação pelo sistema capitalista de produção
(cf. Habermas e Marcuse, 1978, pp. 44 e segs.; ver
também Marcuse, 1965, p. 183).
Ao comentar as posições dos seus antecessores,
Habermas está mais próximo de Benjamin que dos de­
mais. Critica Marcuse, Adorno e Horkheimer por te­
rem adotado um a posição tradicional, limitada e idea­
lista em relação à obra de arte e à cultura: tradicional,
porque continuam vendo na obra de arte somente uma
promessa de felicidade; lim itada, por se basearem em
um conceito burguês de arte, no qual fenômenos artís­
ticos como o jazz, o surrealismo, o filme contempo­
râneo, happenings, etc., não têm lugar, e, finalmente,
idealista, por não admitirem a alteração interna da es­
trutura e função da arte e cultura que acompanha
o desenvolvimento do capitalismo tardio. Justamente
as alterações ocorridas na base material do sistema
de produção permitiríam que a obra de arte e a cul­
A TEO R IA CRÍTICA: ON TEM E-HOJE 79

tura assumissem um novo caráter e outra funciona­


lidade.
Essa possibilidade não é vislumbrada nem na
Dialética do Esclarecim ento nem em A Ideologia da
Sociedade In d u stria l (O ne D im ensional M a n ).

D a teoria crítica à teoria estética

Adorno teve seu período de maior produtividade


depois da volta a Frankfurt em 1950, ocasião em que
assumiu, juntam ente com Horkheimer, a direção do
Instituto.
A D ialética do Esclarecim ento havia afirmado a
autodestruição da razão: a razão que saíra para com­
bater o mito e se transformara, no decorrer do per­
curso, ela própria em mito. Em vez de promover a
emancipação, ela assume o controle técnico da natu­
reza e dos homens. Negava assim sua dimensão crítica
e emancipatória, presentes no início do percurso.
O pessimismo radical de Adorno e Horkheimer
nessa coletânea de ensaios talvez tivesse sido influen­
ciado pelas circunstâncias históricas específicas em
que fora escrito: o holocausto provocado pelo nazismo
na velha Europa, o maccartismo e a experiência ame­
ricana dos anos 40, bem como o surgimento do socia­
lismo stalinista na União Soviética e posteriormente na
Europa do leste, ocupada pelo exército vermelho.
Nos trabalhos subseqüentes de Adorno, entre os
quais se destacam M in im a M oralia (1951), a Dialética
Negativa (1966) e a Teoria Estética (1970), o autor
propõe um a nova versão da teoria crítica. Se nos anos
de fundação do Instituto a reflexão crítica se havia fi­
xado mais nos textos de Marx, não tendo sido, até en­
80 BARBARA FREITAG

tão, abandonado o paradigma da luta de classes como


possível fórmula para a superação do sistema capita­
lista, nos anos 60 evapora-se toda e qualquer espe­
rança de que a classe operária pudesse efetivamente
reverter o processo de consolidação e perpetuação do
sistema vigente. A desativação da história, a naturali­
zação dos processos de produção, o congelamento das
condições de exploração, de alienação e de dominação
seja nas chamadas sociedades socialistas, seja nas so­
ciedades do capitalismo avançado, não deixavam dú­
vidas de que a salvação da humanidade não poderia
ser esperada das massas dos oprimidos. Estes já não se
limitavam mais à classe trabalhadora; abrangiam to­
dos os assalariados e pequenos produtores esmagados
pela lógica totalitária dõs sistemas produtivos do Leste
e do Oeste. Esses grandes batalhões de trabalhadores
não tinham condições de reconhecer o desespero de
sua situação material, contentando-se com as melho­
rias salariais, em detrimento da perda da autonomia e
da consciência de sua exploração e alienação objetiva.
Em conseqüência dessa análise, Horkheimer e
Adorno vão deslocando a ênfase da classe operária
para as camadas oprimidas em geral e dessas para a
esfera superestrutural. Depois da critica da razão e da
ciência, mergulham integralmente no tema da cultura
e indústria cultural, identificadas como a forma da
manipulação das consciências.
O passo decisivo da teoria crítica para a teoria
estética é dado por Adorno. Em seus trabalhos sente-
se claramente o recuo de uma análise mais materia­
lista e sociológica para um a ênfase crescente na esté­
tica, em especial a música, no interior da qual se espe­
lhariam de forma privilegiada as tendências e contra­
dições da época, possibilitando a partir delas um a teo-
rização crítica da realidade (teoria estética).
A TEO R IA CRITICA: ON TEM E HOJE 81

Ao contrário do que se podería crer à primeira


vista, a teoria estética desenvolvida por Adorno não
constitui um a ruptura com a teoria crítica dos frank-
furtianos nem com seus trabalhos anteriores, mas sim
a exploração, até às últimas conseqüências, da dimen­
são crítica no âmbito de uma sociedade totalmente
alienada. A teoria estética é para Adorno a única fôr­
ma consistente de negar e criticar as condições mate­
riais e sociais de vida social. O horror gerado pelo re­
gime nazista, a paralisação imposta pelas sociedades
industriais massificadas, a estupidez da vida humana
inserida em relações de trabalho e dominação que a
transforma em acessório da máquina produtiva e do
aparelho de dominação — tudo isso só pode ser cap­
tado hoje no campo da estética. É aqui, na obra de
arte e em especial na composição musical, que se pre­
serva uma pequena área de verdade, ainda não de todo
destruída pelo inevitável avanço do sistema, que pro­
cura subordinar tudo e todos ao seu ditame implaca­
velmente totalitário. Aqui a crítica ainda é possível, e é
aqui que ela precisa ser feita. Depois que a cultura se
transformou gradativamente em indústria cultural,
depois que a arte perdeu sua aura, dissolvida no con­
sumo de massa, e depois que a filosofia e a ciência se
reduziram ao positivismo, em que sua pobreza so­
mente permite a reflexão afirmativa do existente, res­
tam poucas alternativas à sociedade moderna de asse­
gurar sua auto-reflexão e crítica. Uma delas seria a
estética, e mais especificamente a música, que preser­
va ainda, segundo Adorno, a utopia de um mundo me­
lhor, implicando, assim, um potencial crítico do pas­
sado e do presente. É a teoria estética que consegue
perceber, sistematizar e conscientizar essa mensagem
contida na música e em outras formas artísticas como
a literatura, pintura, escultura, etc. Verdade é que
82 BARBARA FREITA G

tampouco a música escapa ao processo de vulgarização


e banalização circunscrito pelos termos de “perda da
aura” , “ dissolução da obra de arte” ou seu “ avilta­
mento” . A música, como as outras formas de manifes­
tação artística, está igualmente sujeita — na era da
reprodutibilidade técnica da obra de arte — à tra ns­
form ação em mercadoria. Esse fenômeno foi brilhan­
temente analisado por Adorno em seu ensaio sobre a
regressão da capacidade auditiva ( Ueber den Fetisch-
charakter in der M u s ik u n d die Regression des Hoe-
rens, 1938). Especialmente a música chamada “leve”
é nesse sentido a mais vulnerável. Mas sua transforma­
ção em mercadoria somente se tornou possível com a
divulgação e o consumo em massa do rádio, da ele-
trola, do cassete, do disco. Em seu primeiro ensaio
sobre o tema, Adorno havia sido ainda mais radical.
Aqui a função social de toda música é definida como
sendo a de realizar sua forma de mercadoria, isto é,
deixar de ser valor de uso para transformar-se em valor
de troca (cf. Sobre a situação social da m ú sica , 1932,
p. 3). Toda música hoje produzida já prevê o circuito
da mercadoria, postulando-se desde o início como tal.
Adorno admite, no entanto, que certas formas da m ú­
sica erudita de avant garde não são tão acessíveis e
compreensíveis às massas, preservando-se por isso
mesmo da desauratização, sem entrar no circuito da
mercadoria através da indústria cultural. Adorno re­
fere-se explicitamente à música dodecafônica introdu­
zida por Schoenberg e desenvolvida por Berg, seu mes­
tre em Viena, e posteriormente acatada por Hindemith
e outros compositores. Também essa forma musical,
como todas as manifestações culturais autênticas, é
uma codificação das condições reais e materiais de
vida. Ela tem o mesmo poder de representação, inter­
pretação e crítica da realidade que qualquer texto cien­
A TEO R IA CRITICA: ON TEM E HOJE 83

tífico. Mas justamente essas formas de representação


da realidade expressas na música erudita de vanguar­
da se prestam menos à reprodução e ao consumo que
certas formas da música popular como os sucessos da
h itp a r a d e , estando menos sujeitas ao desgaste.
A perplexidade com o real, os horrores do nosso
tempo, o fracionamento da vida cotidiana podem ser
magistralmente expressos nessa forma estética: a mú­
sica erudita de vanguarda. Mas a música meramente
incorpora de forma enigmática e codificada um texto
que precisa ser decifrado, interpretado, revelado. Esse
papel cabe à teoria estética que em sua “leitura” da
representação musical do real decodifica e traz à tona
os elementos críticos e contestadores nela contida, per­
mitindo, assim, uma análise e uma crítica das formas
materiais de organização da sociedade. Nesse sentido,
a teoria estética se revela superior à teoria crítica que
bem ou mal permanecia vinculada a um conceito de
razão cuja integridade já tinha sido questionada na
Dialética do Esclarecim ento e na Dialética N egativa.
Nessas obras Adorno havia expressado sua profunda
desconfiança em relação ao próprio ato do pensa­
mento. “A necessidade no pensamento quer, no en­
tanto, que se pense. Exige sua negação através do pen­
samento, precisa desaparecer no pensamento, se qui­
ser efetivamente satisfazer-se, e nessa negação per­
dura, representando no recanto mais íntimo do pensa­
mento, o que não é igual a ele.” (Adorno, 1966, p.
398)
O fato de que a arte não reificada se fecha a toda
e qualquer conceituação é a garantia de sua preserva­
ção como forma de representar criticamente a reali­
dade alienada..Por isso a teoria estética não pode pro­
ceder como a filosofia e a ciência afirmativas, cujo
único interesse consiste em conceituar os fatos e classi-
84 BARBARA FR EITA G

ficá-los, para assim dominá-los, como o fizeram em


relação à natureza e aos homens. A teoria estética pro­
cura desvendar na obra de arte sua essência, seu ver­
dadeiro caráter de negadora do real estabelecido, sem
submetê-la a sistemas conceituais coerentes ou ao pro­
cesso de produção e reprodução da mercadoria. Pro­
cura, quase que intuitivamente, afinar-se e sincroni-
zar-se com ela para compreender sua mensagem nega­
dora ècontestadora.
A teoria estética assume assim a posição de her­
deira da teoria crítica, propondo-se cqmo única forma
possível de opor-se, teórica e praticamente, ao presen­
te instituído. Somente através da teoria estética seria
possível, nò parecer de Adorno, evitar á unidimensio-
nalização e a dissolução da arte no cotidiano. A teoria
estética consegue deduzir da arte os momentos críticos
e a neg^tjpdade que ela representa, iluminando a obra
de arte e compreendendo-a como representação do real
em suas rtiúltiplas dimensões contraditórias. Reco­
nhece que a arte é o último reduto, a “ reserva ecoló­
gica” da sociedade, em que a mensagem da “promessa
de felicidade” permanece, contendo assim um con­
teúdo utópico que transcende a representação dó real.
Por isso mesmo a teoria estética passa a ser a única e
última forma de resistência possível ao fechamento ge­
ral das estruturas materiais e societárias. Ao desenvol­
ver a teoria estética Adorno está, pois, teorizando so­
bre a arte, mas ao mesmo tempo lutando com a arma
de sua nova teoria contra o sta tus quo alienador.
Habermas acredita que, com as propostas desen­
volvidas a partir da Dialética do Esclarecim ento até a
Tepria E stética, Adorno levou à exaustão a filosofia da
consciência subjetiva. A razão crítica, em sua fideli­
dade ao negativo, precisa negar a sua própria compe­
tência para pensar o mundo. Assim sendo, ela chega a
A TEO R IA CRÍTICA: ON TEM E HO JE 85

um ponto final de sua trajetória, deparando-se com


um beco sem saída. Segundo Habermas o impasse
criado por Adorno não pode ser superado pela própria
dialética negativa, ou pela nova teoria estética. Pre­
cisa haver, no parecer do autor da Teoria da A ção Co­
m unicativa (1981), uma mudança radical de para­
digma. Nesse sentido Habermas inclui Adorno, Hor-
kheimer e Marcuse no malogro teórico de um Weber,
com sua tese do desencantamento e a racionalização
do mundo, ou de um Lukács, com sua diagnose da
alienação geral. A saída, no parecer de Habermas,
deve ser buscada não na salvação da razão subjetiva e
sim numa razão comunicativa, intersubjetiva, apli­
cada em situações dialógicas nas quais os interlocuto­
res buscam através da argumentação fundada o con­
senso possível. A razão e a crítica emergeriam assim
em situações dialógicas livres de repressão, deixando
de ser su b jektzen triert (centradas em um sujeito do co­
nhecimento).

Aquestão doEstadoe adominaçãotecnocrática


A mesma tendência já observada no tratamento
das duas outras linhas temáticas pode ser confirmada
também no caso da questão do Estado e da dominação
tecnocrática: a teoria crítica do In s titu t fu e r Sozial-
fo rsch u n g se encontra bem mais próxima de um a ar­
gumentação marxista antes da Segunda Guerra M un­
dial.
O tema do Estado é desenvolvido pelos frankfur-
tianos em três momentos distintos: no primeiro, a
questão do Estado faz parte de um a discussão mais
ampla que procura conceituar as mudanças estrutu­
rais que ocorrem na base econômica da sociedade ca-
86 BARBARA FR EITA G

pitalsita desde Marx. Em um segundo momento, a


questão do Estado e da dominação se confunde com a
crítica à razão instrumental, especialmente quando
esta procura abandonar o campo meramente teórico,
buscando seu vínculo com a prática (política). E, fi­
nalmente, em um terceiro momento, a questão do Es­
tado é levantada como tema autônomo, buscando-se
refletir os problemas do seu funcionamento e sua legi­
timação nas condições atuais do capitalismo tardio.
Obviamente os três momentos não podem ser cla­
ramente delimitados, mas de forma aproximativa po-
der-se-ia dizer que o primeiro abrange os anos iniciais
de existência e funcionamento do Instituto em Frank­
furt, antes de sua emigração para os Estados Unidos.
Nesse período têm destaque as contribuições dos eco­
nomistas vinculados ao grupo dos frankfurtianos como
Pollock, Wittfogel, Baumann, Meyer, Mandelbaum e
outros. O segundo momento desenvolveu-se sob a forte
influência das observações e experiências que ocorre­
ram durante a emigração para os Estados Unidos e do
convívio com a realidade norte-americana. Néste pe­
ríodo têm destaque os nomes de Horkheimer e Mar-
cuse. E, por último, no terceiro momento, a questão
do Estado encontra sua teorização mais precisa nos
estudos depois de 1950 como se manifestam nos escri­
tos de Habermas, Oehler, Offe e outros.

O prim eiro m om ento:


o intervencionism o estatal na economia

Meyer, Mandelbaum e Pollock abrem, a partir de


1932, o debate na Z eitsch rift em torno da crescente
intervenção do Estado na economia das sociedades ca­
pitalista e socialista. Essa intervenção estava intima­
A TEO R IA CRITICA: ON TEM E HOJE 87

mente associada à questão da manipulação das crises e


do planejamento econômico.
Os membros do Instituto rejeitam as interpreta­
ções da economia burguesa de sua época, que atri­
buíam um caráter meramente “conjuntural” ao fenô­
meno do intervencionismo estatal. Tais interpretações
procuravam salvar — pelo menos ao nível das aparên­
cias — a essência da ideologia econômica liberal, se­
gundo a qual o mercado, regulado pelo mecanismo da
livre concorrência, dispensava em condições normais
as intervenções do Estado. Ao mesmo tempo os teóri­
cos de Frankfurt observam com certo ceticismo o de­
senvolvimento da economia socialista a partir da revo­
lução de 1917 na União Soviética, a qual vinha sendo
abalada por catástrofes sucessivas (más colheitas, de­
semprego, fome e morte de milhares de russos, etc.).
Pollock, Meyer, Mandelbaum e outros defendiam a
tese de que nenhuma economia moderna — fosse ela
capitalista ou socialista — dispensaria a presença re­
guladora do Estado. Essa tendência, segundo eles, so­
mente poderia agravar-se no futuro devido ao crescente
imbricamento das economias nacionais no mercado
mundial. Por isso o Estado nacional não mais poderia
assumir, como fizera até a Primeira Guerra Mundial,
a postura de mero observador da dinâmica econômica.
Cabia agora ao Estado uma crescente participação na
gestão da economia nacional e na manutenção do equi­
líbrio internacional. A livre concorrência não poderia
mais servir como princípio regulador da economia na­
cional, pois ela era válida numa fase em que as crises
se limitavam à falência de um ou outro empresário,
sem risco para a sobrevivência do modo de produção
capitalista, mas não numa*fase em que se trata de as­
segurar o sistema como tàl, organizado em enormes
cartéis que rapidamente transcendem os limites geo­
88 BARBARA FR EITA G

gráficos da nação, pondo em jogo o sistema econômico


mundial. O capitalismo moderno im punha ao Estado
a necessidade de intervir sistematicamente no processo
econômico a fim de salvaguardar a economia nacional
e com isso a sobrevivência da nação, contribuindo ain­
da para a manutenção do sistema econômico mundial.
O novo estatuto do Estado como Estado empresarial
destrói a concepção do Estado liberal, mas não destrói
as relações de produção nas quais se assentam ambas
as formas estatais: a economia capitalista. Enquanto
permanece intacta a realidade de produção de bens
baseada na propriedade privada, na força de trabalho
livre e na apropriação privada da mais-valia, refor­
çando a estrutura de classes existentes, torna-se neces­
sário “modernizar” o aparelho estatal, tanto no que se
refere ao seu desempenho econômico (intervenção nas
leis da oferta e da procura, organização da infra-estru­
tura como estradas, sistema de comunicação, etc.)
quanto ao seu desempenho político (formulação de po­
líticas sociais que desativam o conflito de classes).
O Estado capitalista moderno interfere direta­
mente na economia, manipula as crises, protegendo os
produtos nacionais, controlando a importação e a ex­
portação, incentivando e dinamizando a economia
através de investimentos infra-estruturais, saneando
empresas, etc. Mas ele também interfere no mercado
da força de trabalho, a fim de combater o desemprego,
reforçando as políticas sociais de saúde, educação, sa-
lário-desemprego, procurando controlar a mão-de-
obra excedente (exército de reserva). O Estado capita­
lista moderno, especialmente em sua versão norte-
americana, transforma-se no W elfare S ta te, o Estado
do Bem-Estar que desativa a luta de classes, minimi­
zando os conflitos entre operários e industriais em
nome do bem-estar de todos.
A TEO R IA CRÍTICA: ONTEM E HOJE 89

O intervencionismo estatal atua, pois, em dois


planos, o e c onôm ico, manipulando as crises cíclicas da
economiaTe limitando os riscos para os empresários in­
dividuais ou cartéis, e o p o lític o , amortecendo o con­
flito entre as classes de proprietários dos meios de pro­
dução e as classes operárias, e procurando cooptar
essa última em nome do “progresso econômico” e o
“bem-estar social” .
O grande instrumento do Estado capitalista mo­
derno passa a ser o planejamento econômico-social,
que permite a alocação adequada dos recursos para a
obtenção de certos fins, permitindo maior transpa­
rência e conseqüentemente maior previsibilidade dos
processos econômicos. Desta forma o Estado capita­
lista moderno assume feições monopolísticas, aproxi-
mando-se cada vez mais da forma estatal adotada pela
União Soviética (socialismo de Estado).
Enquanto um a organização estatal defende os in­
teresses de um a minoria (o capital privado em mãos
dos donos de cartéis e multinacionais), o outro o faz
em nome das massas, mas em proveito de um a nova
classe emergente, a dos funcionários e líderes do par­
tido (cf. Pollock, 1932, “A situação atual do capita­
lismo e as perspectivas de uma nova ordem planifi-
cada”).
Segundo Marcuse, esse intervencionismo ainda
aumenta devido às mudanças técnicas que ocorrem na
base do sistema produtivo: 1) a mecanização e auto­
mação do trabalho; 2) a tendência da equiparação
crescente entre trabalhadores de fábricas e funcioná­
rios (setor terciário); 3 ) a mudança no caráter do tra­
balho e dos instrumentos produtivos, que estariam en­
fraquecendo a classe trabalhadora, tornando-a vulne­
rável à cooptação e manipulação pelo Estado (M ar­
cuse, 1964).
90 BARBARA FR EITA G

Nessa primeira fase de análise, os frankfurtianos


atribuem — pelo menos até o momento por eles ana­
lisado — maior eficácia às sociedades capitalistas no
que concerne o abastecimento de suas populações
(atendimento das primeiras necessidades) bem como
geração de riqueza. Em suas análises, os economistas
vinculados ao Instituto deixam totalmente de lado a
questão dos desníveis Norte-Sul gerados pelo capita­
lismo.

O segundo m om ento:
razão in stru m en ta l e dom inação tecnocrática

Em conferência apresentada no 15? Encontro de


Sociólogos em Heidelberg, Marcuse apresenta um tex­
to — “ Industrialização e capitalismo na obra de We-
ber” (1962) — no qual analisa as relações entre razão
instrumental e dominação capitalista.
Marcuse vê em Weber o pioneiro que pela pri­
meira vez teria aplicado o conceito de racionalidade
instrumental (Zw eck-M ittel-R atio nalitaet) à análise do
moderno Estado capitalista. Dessa forma, foi dado
o passo decisivo da razão teórica para a razão prática
(Marcuse, 1964a, p. 110).
O que Weber faz é postular como racional toda a
ação que se baseia no cálculo, na adequação de meios
a fins, procurando obter com um mínimo de dispên-
dios um máximo de efeitos desejados, evitando-se ou
minimizando-se todos os efeitos colaterais indesejados.
Essa concepção de racionalidade e de ação social
estaria hoje permeando as modernas sociedades oci­
dentais, assegurando um a organização racional da
vida cotidiana. A racionalidade instrumental encon­
A TEO R IA CRITICA: ON TEM E HOJE 91

tra-se, pois, na visão de Weber, institucionalizada na


vida cotidiana, traduzindo-se, no plano econômico, na
ação calculada dos agentes econômicos (empresários)
e na atuação competente da administração estatal (bu­
rocratas).
“A razão abstrata” , argumenta Marcuse, “ trans­
forma-se assim concretamente em dominação calcu­
lada e calculável — dominação exercida sobre os ho­
mens e sobre a natureza” (Marcuse, 1964a, p. 111).
Ou, como afirma em outra passagem, Weber consegue
sem ruptura ou mediação fazer a passagem da razão
grega clássica à razão instrumental. Aprofundando-se
a leitura em Weber fica patente que essa razão instru­
mental nada mais é que a própria razão capitalista,
isto é, a racionalidade do lucro e da expropriação da
mais-valia.
Marcuse ressalta a dimensão ideológica do pensa­
mento weberiano: ao mesmo tempo que o autor de
Econom ia e Sociedade defende a neutralidade da ciên­
cia e portanto a “razão neutra” , “meramente técni­
ca” , ele estaria fazendo de fato a apologia da razão
capitalista.
Cabe, no entanto, a Weber o inegável mérito de
ter mostrado que a razão econômica não se confinou à
área da produção e circulação de mercadorias. Weber
mostrou que a calculabilidade e previsibilidade, as ca­
racterísticas essenciais da racionalidade instrumental
na economia, permearam também a esfera política,
impondo-se aqui como a “razão do Estado” (tecnobu-
rocracia).
Enquanto para o empresário essa racionalidade é
necessária para assegurar o lucro e evitar os riscos, ela
se torna indispensável para o político que precisa ter
certeza de que suas ordens serão efetivamente cumpri­
das, apoiando-se por isso mesmo no aparelho burocrá­
92 BARBARA FR EITA G

tico e nos mecanismos de controle (polícia e exército)


caso uma ordem seja ostensivamente desobedecida.
Outra contribuição inestimável de Weber foi dada
no diagnóstico do seu tempo. Ao analisar os processos
históricos em sua sociologia das religiões, apontou
para a dialética inerente ao processo de modernização
ou racionalização das concepções religiosas do mundo,
que se transformam em práticas econômicas cotidia­
nas, alienadas dos valores religiosos que outrora inspi­
ravam a conduta. A racionalidade instrumental no
plano da economia, inicialmente considerada a ex­
pressão da liberdade do homem de competir no mer­
cado, transforma-se em sua camisa-de-força, a arm a­
ção de ferro que o aprisiona (Stahlhartes Gehàuse),
revelando-se assim a irracionalidade do sistema como
um todo. D a mesma forma, a dominação racional, ba­
seada na lei e no controle burocrático dos súditos,
conduz ao imobilismo e à perda de liberdade do cida­
dão. Essa dupla “racionalização” do mundo somente
seria superável — na visão weberiana — com o surgi­
mento de homens extraordinários, líderes (irracionais)
que, na figura do empresário que ousa correr riscos,
desafia a suposta racionalidade da economia para ma­
ximizar seus lucros; ou na figura do líder carismático
que negligencia a ordem racional institucionalizada na
burocracia, impondo aos seus seguidores a sua von­
tade.
Ao tentar salvar o processo de racionalização da
irracionalidade, à qual inevitavelmente parece tender,
Weber introduz outra irracionalidade para combater a
primeira. No caso da economia, a ganância e o inte­
resse de lucro enfrentam a transparência e a calculabi-
lidade do sistema econômico transformado em arm a­
ção de ferro; no caso do político carismático, seus po­
deres sobrenaturais são ativados para enfrentar a cres­
A TEO R IA CRÍTICA: ONTEM E HOJE 93

cente burocratização. Weber procura expulsar o diabo


com Belzebu: para ele duas forças irracionais são ca­
pazes de equilibrar-se e controlar-se, permitindo um
máximo de racionalidade na irracionalidade.
Na leitura que Marcuse faz de Weber, a raciona­
lidade capitalista revela assim seu verdadeiro rosto:
seria racional em sua aparência, quando aplicada à
ação de um indivíduo isolado, como o empresário ou o
político profissional, mas é irracional em seu conjunto,
exigindo forças sobrenaturais ou irracionais, para re­
belar-se contra essa irracionalidade estrutural.
A crítica que Marcuse faz a Weber é a de ter ab-
solutizado o conceito de razão instrumental, identifi­
cando-a com a racionalidade capitalista. Dessa forma
o conceito de razão instrumental ficou muito estreito,
escamoteando as outras dimensões (da racionalidade
material ou substancial) que podem levar a outros va­
lores que o da calculabilidade e previsibilidade na ob­
tenção de efeitos (lucro e dominação). Critica ainda
Weber por fundir num único conceito a razão da polis
e a racionalidade do lucro.
Em sua obra A Ideologia da Sociedade In d u stria l
(1964b), publicada no mesmo ano em que apresentou
o ensaio citado, Marcuse defende a tese de que a mo­
derna ciência e técnica, além de serem forças produti­
vas (conforme o denunciaram Marx em O Capital)
funcionam como “ideologia” para legitimar o sistema.
A ciência unidimensionalizada é utilizada para domi­
nar a natureza e com isso acelerar a produção através
da dinamização das forças produtivas. Mas a mesma
ciência também é utilizada para dominar os homens,
já que eles se subordinam cada vez mais ao processo
produtivo acelerado pela ciência e tecnologia. Em
nome da produtividade outros aspectos da reflexão
científica e existencial estariam sendo recalcados ou
94 BARBARA FREITA G

permaneceríam atrofiados, como a crítica do sta tus


quo e a emancipação dos homens do reino da necessi­
dade. Originalmente concebida e acionada para eman­
cipar os homens, a moderna ciência está hoje a serviço
do capital, contribuindo para a manutenção das rela­
ções de classe. A ciência e a técnica na mão dos pode­
rosos (que controlam o Estado) controlam a vida dos
homens, subjuga-os ao interesse do capital, escravi­
zando-os às máquinas. A produção de bens segue uma
lógica técnica, e não à lógica das necessidades reais
dos homens. Produz-se com eficácia o que dá lucro e
não aquilo que os homens necessitam e gostariam de
ter ou usar. A ciência e a técnica como forças produ­
tivas estão hoje a serviço do valor de troca, isto é, da
produção de mercadorias. A sua dimensão emancipa-
dora, crítica, negadora foi sufocada, abafada ou des­
viada. Isso porque a moderna economia capitalista
conseguiu suprir necessidades básicas, atendendo, as­
sim, a algumas das reivindicações dos homens.
Na medida em que a ciência e a técnica promo­
vem o “progresso” , desejado e aplaudido por todos,
elas mesmas se tornam a base legitimadora do sistema
capitalista, desativando o conflito de classes e silen­
ciando as reivindicações por um sistema político e eco­
nômico menos alienado. Dessa forma, a ciência e a
técnica se transformaram em uma ideologia, a ideolo­
gia tecnocrática, segundo a qual questões políticas não
podem mais ser resolvidas politicamente, à base de
negociações e lutas, e sim, tecnicamente, de acordo
com o princípio instrumental de meios ajustados a
fins. Apesar de se pretenderem neutras, a ciência e a
tecnologia, seguindo a boa tradição weberiana, se
transformam elas próprias em dominação econômica e
política no interesse da acumulação do capital. Saber,
poder e economia constituem uma única força cuja fi­
A TEO R IA CRÍTICA: ONTEM E HO JE . 95

losofia é a acumulação e cuja prática é a repressão de


tudo que se oponha a ela. Por isso mesmo Marcuse diz
que “talvez o próprio conceito de ciência e tecnologia
sejam ideologia” (Marcuse, 1964a, p. 127).
Essa tese, ainda formulada de forma um tanto
cautelosa, é retomada por Habermas. Em T ech nik u n d
W issenschaft ais Ideologie (1968), sua posição já se
traduz claramente no título: o vacilante “talvez” de
Marcuse é cortado, afirmando-se agora enfaticamente
que a ciência e a técnica efetivamente se transforma­
ram em ideologia (Habermas, 1968, p. 48). No ensaio
que deu o nome ao livro, Habermas explicita a posição
dè Marcuse. A simbiose entre ciência e técnica com a
dominação econômica e política no capitalismo mo­
derno mostra quão profundamente ambas estão com­
prometidas com o interesse das classes dominantes.
Daí resulta que não basta simplesmente m udar a teo­
ria e a filosofia política para mudar o mundo. A supe­
ração da moderna sociedade capitalista implica a
transformação radical da ciência e da tecnologia que
nele atuam, impondo-se a necessidade de reformular
essencialmente o seu conceito.
Em seu ensaio, Habermas faz efetivamente a sín­
tese dos dois momentos até aqui expostos. Considera
que o crescente intervencionismo estatal, por um lado,
e a transformação da ciência e da técnica em forças
produtivas e ideologia, por outro, alteram as fo rm a s
de legitim ação do p o d e r. A ciência e a tecnologia, pro­
motoras do progresso e do bem-estar de todos, passam
a ser a base de legitim ação indispensável do moderno
Estado capitalista.
Os conflitos de classe, as lutas políticas para mo­
dificar a ordem social e política são silenciados em
nome do bom funcionamento da economia que pro­
move — através do Estado — o bem-estar de todos. Na
96 BARBARA FR EITA G

medida em que a economia prospera e produz, asse­


gura o emprego e um relativo bem-estar material, ela
não somente se autolegitima, como legitima também o
sistema político que lhe assegura estabilidade e conti­
nuidade, disfarçando o mal-estar real gerado pelas
condições de unidimensionalização e confundindo as
consciências, incapazes de avaliar o processo. Na me­
dida em que a ciência e a técnica — manifestações
concretas da razão instrumental — estiverem obtendo
“êxitos” na economia, elas legitimam a usurpação do
poder pelas elites. Estas são aceitas pelos dominados,
em nome da competência com que o processo econô­
mico está sendo gerido, dispensando-se assim qual­
quer necessidade de justificação.
Também o Estado, o grande articulador dessa
“tram a” , fica livre da obrigação de justificar-se, en­
quanto o crescimento econômico estiver garantido. A
dimensão política da vida individual e societária se
atrofia numa questão técnica. As decisões do grupo
político que controla o Estado são vistas como racio­
nais, técnicas, não podendo ser questionadas nem exi­
gindo qualquer justificação.
Essa substituição do político pelo tecnocrático
será mais tarde denunciada por Habermas como sendo
a “colonização” da Lebensw elt pelo sistema econô­
mico. Com isso chegamos ao terceiro momento.

Terceiro m om ento:
do Estado liberal ao E sta do pós-m oderno

Enquanto no primeiro momento se enfatizou o


crescente intervencionismo do Estado na base econô­
mica da organização da sociedade, mostrando-se aqui
A T E O R IA CRITICA: ON TEM E HOJE 97

as mudanças estruturais nela ocorridas, a discussão do


segundo momento restringiu-se a desvendar e explici­
tar a íntima relação existente entre a razão instrumen­
tal (científica e técnica) e a racionalidade econômica
do capitalismo moderno e a dominação burocrática. A
conclusão desse momento se resumiría na fórmula de
Foucault: o saber confere poder, e o poder dá acesso
ao saber. Todo saber é, como o poder, essencialmente
repressivo.
Neste terceiro momento se buscará conceituar o
Estado moderno e sua função no capitalismo tardio, a
partir a visão de Habermas e Offe, mostrando-se como
o Estado se torna o articulador imprescindível para
regulamentar a economia moderna, usando para tal
fim de todos os recursos possíveis e emaranhando-se,
por isso mesmo, em contradições inevitáveis que se
tornam cada vez mais difíceis de serem superadas sem
alterar profundamente a estrutura global do sistema
produtivo.
Como no caso da razão comunicativa, Habermas
encontra-se também nessa discussão no limite da teo­
ria crítica, contribuindo com uma reflexão original
para sua superação.
Para compreender melhor a contribuição de Ha­
bermas ao pensamento crítico dos teóricos de Frank­
furt vale a pena recapitular alguns dados biográfi­
cos, acompanhados de algumas informações biblio­
gráficas.
Como é sabido, Habermas associou-se aos teóri­
cos de Frankfurt somente depois da volta desses à Ale­
manha do pós-guerra. No final da década de 50 parti­
cipou da formulação teórica do estudo S tu d e n t u n d
Politik (1961) comò assistente de pesquisa. De 1964 a
1971 foi professor da Universidade de Frankfurt, en-
98 BARBARA FR E IT A G

frentando, ao lado de Adorno e Horkheimer, o pro­


testo estudantil que culminou no maio de 68. A partir
de 1971 passou a dirigir o Instituto Max-Planck para
as Ciências Sociais em Starnberg, perto de Munique,
mantendo-se afastado durante mais de um a década da
vida acadêmica. Somente em 1983 voltou a lecionar
em Frankfurt, onde ficou associado ao Departamento
de Filosofia dessa universidade. Mesmo durante seus
anos de afastamento do Instituto Habermas permane­
ceu ligado a ele, agora sob a direção de Ludwig von
Friedeburg, beneficiando-se dos debates e dos estudos
ali realizados.
Se em Studerít u n d P olitik Habermas já dá início
aos seus estudos sobre as mudanças estruturais do Es­
tado, partindo do Estado liberal, esses estudos serão
ainda mais aprofundados em sua tese de livre-docên-
cia de 1962, S truktu rw a nd el der O effen tlichkeit {As
M udanças Estruturais do Espaço Público). Mostra
nesses trabalhos que o Estado liberal apresenta um
relativo isolamento em relação aos problemas e assun­
tos econômicos e às instituições privadas e políticas
que estruturavam o “espaço público” {O effentlick-
k e it ), isto é, a assim chamada sociedade civil. Com o
advento do Estado capitalista esse espaço se reduz gra­
dativamente, havendo uma intervenção crescente do
Estado nos assuntos econômicos e políticos.
Em T echnik u n d W issenschaft ais “Id eo lo g ie ”
(1968) Habermas entra — como vimos — na discussão
desencadeada por Marcuse em torno da instituciona­
lização da razão instrumental também na organização
do Estado burocrático. Reforçando a crítica de M ar­
cuse a Weber, discute as mudanças estruturais ocorri­
das n a base do sistema capitalista (crescente interven­
cionismo na economia e no espaço público, uso da
ciência e da técnica como força produtiva, formação
A T E O R IA CRÍTICA : ON TEM E H O JE 99

de cartéis, administração das crises) e defende a tese


de que a ciência e a técnica transformaram-se, no auge
do capitalismo ocidental, em verdadeiras formas de le­
gitimação do Estado e da economia (assumem pois a
forma de “ideologia”), substituindo as formas anterio­
res de legitimação baseadas no mecanismo de auto-
reguíação do mercado segundo a lei da oferta e da pro­
cura.
Mas será especialmente em Problem as de L eg iti­
mação do C apitalism o Tardio (1973) que Habermas,
apoiando-se em estudos feitos por Offe, Eder e outros,
desenvolve a sua nova teoria da crise. Busca e encontra
as formas de legitimação do Estado capitalista nas
atuais condições do capitalismo avançado ( S p a e tk a -
pitalism us).
Habermas entende por “crises” perturbações
mais duradouras da integração sistêmica (Habermas,
1973, p. 11). Essas crises decorrem, a seu ver, de pro­
blemas não resolvidos do controle sistêmico.
No tópico sobre a conceituação da razão já des­
crevemos a distinção de Habermas entre integração
social e integração sistêmica. A primeira seria a forma
de integração típica da Lebensw elt, a segunda a do
sistema. Desta forma a organização da economia (re­
produção material dos membros que compõem o sis­
tema) e das instituições políticas (formas de domina­
ção) são asseguradas pela integração sistêmica. Quan­
do essa organização entra em crise, ameaçam a preser­
vação ou sobrevivência do sistema social, como um
todo. A segunda forma de integração, a social, en­
trando em “crise” , ameaça dissociar o quadro institu­
cional e a L ebensw elt (que no livro acima mencionado
ainda tem o nome de sistema sócio-cultural) do sis­
tema político e econômico (E n tko p p elu n g ).
100 BARBARA FREITA G

Em verdade Habermas distingue quatro formas


de “crise” : a crise econômica, a crise de racionalidade,
a crise de legitimação e a crise de motivação.
A crise econômica é a mais diretamente respon­
sável pela incapacidade do sistema de produção de
atender a todas as necessidades de sobrevivência dos
membros da sociedade.
A crise de racionalidade e a crise de legitimação
se referem ao Estado moderno e o afetam diretamente.
A crise de racionalidade se dá quando o Estado capi­
talista se vê forçado á ajustar racionalmente meios a
fins em função de valores e problemas muitas vezes
não conciliáveis, procurando otimizar os ganhos em
todos os casos. Isso ocorre freqüentemente na tenta­
tiva do Estado de conciliar os interesses da política in­
terna com os da política externa.
A crise de legitimação decorre do fato de o Estado
ter de justificar-se para sua clientela (eleitorado),
quando desenvolve iniciativas contraditórias (diga­
mos: apóia e incentiva a automação das empresas e
proíbe greves). As crises do Estado capitalista moder­
no decorrem da crescente dificuldade que o Estado en­
contra para explicar e defender medidas que imple­
mentou para os seus eleitores e sua clientela em geral.
O insucesso do Estado nessa tentativa reflete-se nas
crises de motivação. Elas se caracterizam pela circuns­
tância de que ós indivíduos membros de um a socie­
dade já não se sentem mais motivados a seguir as ins­
truções e ordens advindas do sistema econômico e polí­
tico. Essa crise, que anuncia problemas de integração
social, pode ter suas raízes na incapacidade de o Es­
tado e o sistema econômico substituírem com propos­
tas plausíveis e racionalizadas as antigas concepções
de mundo, decorrentes dos sistemas religiosos. A crise
de motivação provoca uma busca de alternativas, de
A TEO R IA CRÍTICA: ON TEM E HOJE 101

organização da vida cotidiana “fora” dos sistemas até


agora institucionalizados. Este é o caso dos grupos al­
ternativos (“verdes” , “coloridos” , “pacifistas” , “eco­
logistas” , etc.) que cada vez mais se convencem da
impraticabilidade e da irracionalidade do sistema vi­
gente cuja trajetória lhes parece conduzir inevitavel­
mente à autodestruição da humanidade. Por isso não
merecem confiança e adesão, havendo um “ desinvesti-
mento” emocional dos atores em relação à política e
economia, o que provoca um risco de dissociação da
L ebensw elt do mundo sistêmico (da política e da eco­
nomia).
O Estado moderno vê-se, portanto, diante da di­
fícil tarefa de preservar o funcionamento da economia,
de superar suas crises de racionalidade e de justificar-
se e legitimar-se diante de grupos contestadores cada
vez mais numerosos e diversificados. Ocorreu, como
Offe deixaria claro no título do seu livro, uma. mu­
dança estrutural do próprio Estado, que assume hoje
características bastante distintas daquelas do início do
capitalismo concorrencial.
No período de criação do Estado liberal a base de
sustentação era dada pelo princípio da livre concorrên­
cia. O mercado legitimava o sistema econômico e dis­
pensava o Estado de qualquer tomada de partido (Es­
tado guarda-noturno). No auge do capitalismo, o in­
tervencionismo estatal aumenta gradativamente, regu­
lando a economia e crescentemente as formas de orga­
nização da vida cotidiana, despolitizando a esfera pú­
blica e cooptando mediante subvenções financeiras as
organizações políticas da sociedade civil (partidos, sin­
dicatos, associações de base, etc.). Em sua forma mais
evoluída o Estado intervencionista passa a ser o Estado
do Bem-Estar que para superar as crises econômicas
faz concessões junto ao operariado, desenvolvendo po­
102 BARBARA FR EITA G

líticas sociais cada vez mais abrangentes e mais sofis­


ticadas para todas as classes assalariadas.
Enquanto no Brasil — no ano zero do cruzado
(1986) — o seguro-desemprego é uma novidade e uma
grande concessão política e econômica da Nova Repú­
blica, o seguro-desemprego na Alemanha, a maior par­
te da Europa e os Estados Unidos fazem parte de um
rol de políticas sociais praticadas pelas democracias
ocidentais desde a Primeira Guerra Mundial. Depois
da Segunda Guerra Mundial as políticas sociais dos
Estados capitalistas contemporâneos já se estendem a
amplos setores da sociedade civil, invadindo persisten­
temente novas áreas da atividade social. A atuação do
Estado nas áreas de educação, saúde, habitação, trans­
porte, já faz parte das políticas sociais “ tradicionais” .
Depois da Segunda Grande Guerra tornou-se corri­
queiro os Estados intervirem de forma sutil na organi­
zação partidária sindical, nos próprios movimentos de
protesto, nas organizações estudantis, procurando
abrandar conflitos e superar as contradições. Em M u ­
danças E strutura is do Estado Capitalista (1972, 1984)
Claus Offe defende a tese de que as políticas sociais do
Estado não têm outra função senão controlar o fluxo e
refluxo da força de trabalho no mercado, a fim de
atender plenamente às necessidades conjunturais e es­
truturais do capital privado. Nessa ótica, todas as ini­
ciativas estatais visam beneficiar a acumulação am­
pliada, de interesse exclusivo do capital privado. Mas
para tal precisam recorrer a recursos cada vez mais
volumosos dos cofres públicos, o que por sua vez pres­
supõe sua capacidade indiscutível de gerir os negócios
de tal forma que o progresso e crescimento econômico
tenham êxito permanente.
Apoiado em Offe e seguindo o seu raciocínio, Ha-
bermas aprofunda sua teoria da crise. O Estado capi­
A TEO R IA CRÍTICA: ONTEM E HOJE 103

talista enfrenta dificuldades crescentes. Enquanto Es-


tado-nação, procura maximizar ou otimizar os lucros
defendendo um a posição econômica favorável no mer­
cado internacional. Digladia-se com períodos de reces­
são, concorrência no mercado, oligopólios, falta de
matéria-prima, elevação dos preços do petróleo, etc.,
e procura permanentemerite atender às exigências do
sistema produtivo, seja como consumidor, seja como
produtor de mercadorias (crise de racionalidade).
Como Estado do Bem-Estar, ele alcança os limi­
tes de sua capacidade assistencialista e os problemas
de legitimação quando não consegue mais atender às
crescentes reivindicações emergentes, ou quando suas
políticas sociais não convencem mais a clientela da ne­
cessidade de se lançar no mercado de trabalho para ali
ser consumida como força de trabalho pelo grande
capital (crise de legitimação).
Acuado entre as duas crises, o Estado capitalista
contemporâneo está sujeito a modificações profundas,
de caráter estrutural. Na fuga para frente esse Estado
encontraria no socialismo uma forma de solucionar a
crise. Na fuga para trás, o Estado se reencontraria no
fascismo totalitário.
Enquanto Offe está inclinado a privilegiar a pri­
meira alternativa, Habermas busca um terceiro cami­
nho, qual seja, reinscrever o Estado na dimensão de
L ebensw elt. Isto significa inseri-lo novamente naquele
quadro institucional em que a política deixa de ser
uma simples técnica de silenciamento, um a forma de
manifestação da racionalidade instrumental, que des-
politizara os assuntos de Estado, voltando a ser a
po lis, ou seja, aquele locus da vida societária em que
as grandes decisões são tomadas como um todo, à base
do discurso teórico e prático. O Estado voltaria a ser,
como na Grécia antiga, um espaço da Lebensw elt com
104 BARBARA FR EITA G

a integração social assegurada e não um subsistema


cooptado ao sistema econômico, regido pelo princípio
da acumulação ampliada. No livro aqui citado, Haber-
mas não ousa um a resposta sobre qual o caminho a ser
trilhado pela sociedade capitalista. M as parece certo
de que as crises atuais de racionalidade e legitimação
tendem a um a solução, implicando assim, a médio ou
longo prazo, um a reestruturação do Estado e da socie­
dade sobre outras bases.
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