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MODERNA

HISTÓRIA DA FILOSOFIA
Universidade Católica de Pernambuco

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Universidade Católica de Pernambuco
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
MODERNA

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Prof. Dr. Diogo Villas Bôas Aguiar

Educação a Distância
Universidade Católica de Pernambuco
EaD
UNICAP
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO - UNICAP

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PALAVRA
PROFES
SOR
Olá! Vamos começar o último módulo da nossa disciplina de História da
Filosofia Moderna? Até aqui vimos a formação do pensamento moderno,
passando pelo renascimento, a revolução científica e o embate entre
racionalistas e empiristas. No último módulo vimos a síntese kantiana,
que é o primeiro passo para compreendermos a filosofia alemã dos
séculos XVIII e XIX.

Nesse módulo vamos ver as consequências da recepção da filosofia


kantiana e a formação do idealismo alemão com as figuras de Fichte,
Schelling e Hegel. Vamos conhecer um pouco mais sobre a
Fenomenologia do espírito e a Ciência da lógica, obras fundamentais
para introduzirmos o sistema hegeliano. Além disso, vamos ver como isso
vai desembocar no chamado materialismo, cujo expoente é ninguém
menos do que Marx. Assim, vamos concluir vendo, um pouco, em que
consistiu sua crítica às formas de alienação.

Bons estudos!

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OBJE
TIVOS
UNIDADE 4 - O idealismo Alemão e o Materialismo
Histórico

• Compreender o que foi o idealismo alemão e o materialismo histórico


• Saber analisar e interpretar conceitos filosóficos de Hegel e Marx
• Identificar estratégias e temas para o ensino de filosofia moderna

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O idealismo Alemão

A reviravolta causada pela recepção da filosofia kantiana que vimos no


módulo anterior pode ser comparada, como o próprio Kant o fez, ao
impacto que a revolução copernicana teve nas ciências. No entanto, se a
expectativa seria de que toda filosofia subsequente avançaria nas bases
do que foi definido como “filosofia crítica” – nada mais que uma espécie
de kantismo –, a realidade foi bastante diferente.

Se pararmos para analisar a cena filosófica alemã do final do século XVIII e


início do XIX, o que podemos perceber de imediato que ela é bastante
complexa. “Difusa” e “fragmentada” são adjetivos que também podemos
usar para descrevê-la. Havia uma tentativa de vários filósofos, ou escolas,
geralmente associadas a universidades ou a periódicos filosóficos que
protagonizavam grandes debates e controvérsias. A filosofia crítica de
cunho kantiano era apenas mais uma dentre essas várias.

Veja alguns exemplos, para nos ajudar a compor e visualizar um pouco mais
concretamente esse cenário: em Berlim víamos uma composição mais
urbana de círculos intelectuais fortemente ligados a uma vertente inglesa e
francesa do iluminismo cujo expoente era a figura de Moses Mendelssohn.

Uma vertente mais acadêmica era a que estava atrelada à herança filosófica

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de Leibniz e Wolff, que dominavam os departamentos de filosofia, claramente
racionalista. Ainda havia os que possuíam um impulso em rejeitar um
tratamento filosófico sistemático com pretensões de cientificidade, ou seja,
filosofia para eles não poderia ser feita como uma ciência sistemática. A esta
visão estava associado o nome de Friedrich Jacobi.

Já deu para perceber como o cenário era variado, não é? E não chegamos
nem perto de esgotar. Havia outras figuras com considerável influência:
Herder, Schulze, Planner etc. Não vamos nos deter nos detalhes, mas
podemos dizer que a filosofia kantiana ainda representava uma novidade
que começava a circular – curiosamente, não a partir dos textos do
próprio Kant, mas com as Cartas sobre a filosofia kantiana de K. L.
Reinhold, série publicada no Allgemeine Literatur-Zeitung. 11
Assim se formava uma primeira geração de leitores kantianos, ocupando-
se mais fortemente dos problemas morais do que dos epistêmicos e
levantando questões sobre a relação entre as três Críticas (lembra quais
são? A da razão pura, da razão prática e do juízo). No fundo, o problema
que eles começam a colocar, e que se torna clássico nos estudos
kantianos, é aquele sobre a unidade sistemática da filosofia crítica.

Ele é uma consequência direta da compatibilização entre a visão


determinística da filosofia teórica apresentada na primeira Crítica, a da
razão pura, e a liberdade apresentada em termos da possibilidade de
autodeterminação na segunda Crítica, a da razão prática. Essa é
exatamente a passagem que vimos no módulo anterior em que Kant
resgata a possibilidade da metafísica, rejeitada pela razão pura, na
filosofia prática.

Importante que você note, ainda, uma outra questão importante.


Derivado desse problema que acabamos de explicitar, há ainda um outro.
Trata-se daquele sobre a unidade da subjetividade, ou dos sujeitos, dos
Eu’s. Seria o Eu transcendental e a espontaneidade da subjetividade pura
o mesmo Eu da ação prática livre e autolegisladora, isto é, autônoma?
Percebe? Foi criada toda uma problemática em torno da articulação
crítica entre o teórico e o prático.

Esse foi um período de profunda crise. Mas, ao mesmo tempo, como crises
geralmente parecem proporcionar, de muita efervescência filosófica. Assim,
o contexto estava dado para o surgimento do que ficou conhecido como o
idealismo alemão. Algo feito em torno da filosofia kantiana, sem dúvida, mas
não necessariamente como repetição do filósofo de Königsberg. Pelo
contrário, a defesa do kantismo se deu como uma tentativa de superação
das próprias dificuldades e das questões que ele havia deixado em aberto.

Surge, então, o que geralmente se denomina de idealismo alemão. Uma


cidade em especial foi o principal palco do surgimento e desenvolvimento
desse período: Jena, centro alemão de educação e pesquisa, sobretudo da
filosofia crítica. Ela foi o ponto focal do romantismo e concentrou vários
intelectuais. Nomes como os de Goethe (que inclusive dirigiu a
Universidade de Jena), Hölderlin, Schiller, Novalis, Schlegel e von
Humboldt são apenas alguns que podemos chamar atenção.
História da Filosofia Moderna

LEGENDA
12 1) Schlegel;
2) Tieck;
3) Goethe;
4) Frommann;
5) Schelling;
6) Schiller;
7) Moreau;
8) Hölderlin;
9) Ritter;
10) Steffens;
11) J. G. Fichte;
12) Hegel;
13) Schuetz;
14) Hufeland.
(Mapa da cidade de Jena, 1858, com marcações das residências de filósofos e figuras notáveis. Fonte: AMERIKS, K.
The Cambridge companion to German idealism. Cambridge, Cambridge University Press, 2017, p. xiv)
Mas vamos ficar com apenas dois, os de Fichte e
Schelling, antes de chegarmos a Hegel. Afinal,
esses três, são os grandes expoentes do idealismo
alemão. Comecemos com Fichte (1762 – 1814), cujo
contato com a Crítica da razão prática de Kant foi
responsável por mudar radicalmente seu modo de
pensar. Sua filosofia, em última instância, foi uma
tentativa, sempre retomada, de explicitar uma
filosofia que fosse capaz de reconciliar a liberdade
humana e a necessidade natural, encaixando-se
perfeitamente no contexto que acabamos de
descrever. Aliás, é importante frisar que o posto
ocupado por Reinhold na Universidade de Jena, o
autor das Cartas sobre filosofia kantiana de que
falamos há pouco, foi oferecido a Fichte logo que
ficou vago.

Foi justamente nesse período que ele se dedicou à elaboração de seu


próprio sistema filosófico. A ideia era um projeto de idealismo
transcendental baseado em um único princípio. O produto desse
revisionismo do idealismo transcendental kantiano empreendido por
Fichte foi sua Wissenschaftslehre, ou Doutrina da Ciência, que ele
mesmo descrevia como um sistema da liberdade humana.

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A estratégia argumentativa empregada para lidar com o problema da
compatibilização entre um agente livre moralmente responsável e o
mundo causal da necessidade natural é clara. Tratou-se de tomar um
ponto de partida simples que deveria ser tomado como pressuposto: a
espontaneidade e a liberdade do Eu. Só assim, mediante o
estabelecimento do postulado da realidade da liberdade humana é que
sua filosofia e o kantismo, tal como ele o interpreta, são possíveis.

A partir desse pressuposto, Fichte procede dedutivamente. O que isso


significa? É uma maneira semelhante ao modo como vimos os
racionalistas procederem. Lembra? Desde uma
perspectiva transcendental, ele tenta derivar desse
13
pressuposto a necessidade e a limitação objetiva
como condição de possibilidade da própria
liberdade.

Outro nome de peso digno de atenção é o de


Schelling (1775 – 1854). Permaneceu em Jena entre
os anos de 1798 a 1803. Caso você tenha
oportunidade, vale a pena tentar aprofundar seus
estudos. Ao lado de Fichte, ele é um dos grandes
nomes do idealismo alemão e constitui um ponto
importante para entender o contexto em que
Hegel produziu sua obra. Ele é conhecido por um
ser um filósofo que passou por vários momentos
de readaptação e redefinição da sua orientação
filosófica. Foi um entusiasta e defensor do idealismo transcendental,
sobretudo pela leitura do projeto filosófico de Fichte.

Nesse sentido, podemos dizer que ele se insere no contexto dos filósofos
que tentaram lidar com o problema kantiano da compatibilização entre a
razão teórica e a razão prática, ou seja, entre determinismo e liberdade.

No entanto, um interesse renovado pelo espinosismo e uma insatisfação


com o tratamento dado por Fichte ao problema da natureza, conduziu o
projeto de Schelling a uma tentativa peculiar dentro das ambições da
ideia de um idealismo transcendental, demarcando sua originalidade.

Veja, estamos lidando com Espinosa. Você já estudou um pouco, lá no


segundo módulo, quando vimos os racionalistas. De forma muito resumida,
Schelling tentou fazer uma espécie de adequação da natura naturans de
Espinosa sem desrespeitar o espírito crítico kantiano. Afinal, você sabe, de
nada adiantaria reincorporar Espinosa, já que seu espírito racionalista, ou
dogmático, era justamente o que Kant buscou superar. Trata-se, assim, de
fazer uma espécie de modelização dessa noção para que ela não extrapole
os limites estabelecidos pelo idealismo transcendental.

É assim que é dada a base de estruturação de uma filosofia da natureza,


ou Naturphilosophie, de Schelling. Ele tentou dar conta da gênese de um
sujeito que transcendesse sua condição determinada naturalmente e
tornasse possível a conexão entre natureza e liberdade. Ao fazer isso a
partir da noção de natura naturans, o argumento desenvolvido por
História da Filosofia Moderna

Schelling é bastante perspicaz: se a essência da natureza está no fato de


que ela produz uma subjetividade que a permite uma autocompreensão,
um Eu transcendental puro, livre, então a própria natureza pode ser
construída como uma espécie de subjetividade, como um Eu absoluto.

Essas discussões conduzidas por Fichte e Schelling estão no centro do


debate que abre o caminho para a compreensão do pensamento hegeliano.
É dele que vamos nos ocupar com maior detalhe a partir de agora.

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Esquema da origem do idealismo alemão a partir do problema kantiano
da articulação entre o teórico e o prático.
Fonte: próprio autor.

Hegel

Há uma anedota que diz que quem adoece de


hegelismo, nunca mais fica curado. Mesmo que isso
soe, em um primeiro momento, como algo que
parece ser indesejável, afinal ninguém quer ser
tomado por uma determinada doença, seja ela física
ou espiritual, ela significa também que a experiência
de pensamento hegeliana é tão potente que o seu
leitor nunca mais será o mesmo. De fato, o modo
hegeliano de filosofar é marcante. O que não significa
que seja menos difícil de penetrar e compreender
seus textos. A primeira leitura pode sempre parecer
que se está lidando com uma tarefa um tanto
impossível.

Mas a pesquisa e a reflexão logo o levam a um


caminho filosófico que o transforma. O leitor é
capturado pelo vigor e a capacidade sistemática de Hegel. Não por acaso,

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o interesse contemporâneo por sua obra é bem-vindo.

Agora, como podemos situar a filosofia de Hegel na modernidade? De


modo muito simples, ela é o ponto mais elevado do desenvolvimento do
chamado Idealismo Absoluto. Idealismo absoluto? Isso mesmo. Esse é o
modo como as tentativas de superar os vários dualismos implicados na
filosofia kantiana, inicialmente com Fichte e Schelling, ficou conhecido.
Nesse sentido, a filosofia de Hegel é a expressão mais elaborada desse
movimento.

Geralmente, o idealismo absoluto é definido por oposição ao idealismo


subjetivo de Kant. Há uma passagem clássica de Hegel em que ele
estabelece claramente essa oposição. Vamos ver o que ele diz no
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parágrafo 41 do primeiro volume da Enciclopédia?

[...] a objetividade kantiana, por sua vez, é também apenas subjetiva,


enquanto os pensamentos segundo Kant – embora sejam
determinações universais e necessárias – são, contudo, somente nossos
pensamentos, e diferentes do que a coisa é em si, por um abismo
intransponível. Ao contrário, a verdadeira objetividade do pensar é a
objetividade em que os pensamentos não são nossos pensamentos
simplesmente, mas ao mesmo tempo são o Em-si das coisas e do
objetivo em geral. (HEGEL, G. W. Ciência da lógica, §41.)

Para Hegel, o idealismo transcendental kantiano é subjetivo. O que isso


significa? Que o modo como Kant procede em sua crítica estabelece que,
em última instância, o que há de mais seguro no nosso modo de
conhecer as coisas reflete nada mais do que a nossa própria natureza
subjetiva.

Isso é um pouco a consequência da famosa revolução copernicana


empreendida por Kant na filosofia: os objetos do conhecimento objetivo
não aparecem por si mesmos, mas são trazidos à luz pelo sujeito, ou, o que
seria o mesmo, pelo Eu transcendental. Percebe? É nesse ponto que Hegel
aperta o calo de Kant. Isso fica nítido na passagem que acabamos de ler,
quando Hegel afirma que a objetividade kantiana é apenas subjetiva.

Não vamos entrar aqui na discussão sobre o mérito dessa crítica


hegeliana. Isso pode ser feito em outro momento. Pelo bem da nossa
exposição, vamos seguir vendo o modo como Hegel constrói seu
argumento. Para ele, esse subjetivismo é a fonte de praticamente todos
os dualismos que estão na base do pensamento kantiano. Eles
remontam, fundamentalmente, à distinção entre sensibilidade e
intelecto, ou entre intuições e conceitos.

Como você já deve ter imaginado, é claro que Hegel estabelece como
ponto de partida da sua filosofia uma contraposição em relação ao
dualismo kantiano, tal como ele o interpreta. Nesse sentido, o idealismo
absoluto hegeliano defende que o pensamento reflete a natureza da
própria realidade, não da subjetividade.

Essa é a forma que o idealismo adquire na filosofia hegeliana. Se um


objeto aparece de uma determina maneira para nós, isso não é
História da Filosofia Moderna

condicionado por uma estrutura que pertence apenas ao sujeito. Pelo


contrário, o modo como ele aparece é reflexo da natureza essencial do
próprio objeto. O erro de Kant, na perspectiva hegeliana, teria sido o de
não perceber que as formas do pensamento também precisam ser a
natureza do ser real.

Essa é, em última instância, a pretensão que ele assume com a palavra


“espírito” ou geist, uma espécie de “mente universal” que representa a
totalidade. Trata-se de um panteísmo como o levantado por Espinosa.

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Há duas portas de entrada no sistema hegeliano. A primeira delas é a
Fenomenologia do espírito. A segunda, a Ciência da lógica. Vamos ver na
sequência uma introdução a esses dois textos.

Há um artigo do professor Marco Aurélio Werle nos


Cardernos de Filosofia Alemã da USP sobre Hegel e o
período de Jena. Se você quiser aprofundar seus
estudos, vale a leitura.
https://www.revistas.usp.br/filosofiaalema/article/
view/64856/67472
Você também pode conferir o livro do professor Denis
Rosenfield sobre Hegel lá na nossa biblioteca virtual.
A Fenomenologia do espírito

A primeira grande obra de Hegel foi publicada em 1807. Trata-


se do famoso texto da Fenomenologia do espírito. É importante
notar que quando Hegel chega na universidade em Jena, ele
trabalha com Schelling no sentido de explicar e divulgar a sua
filosofia como uma alternativa que iria além do que era
proposto por Fichte. Quando Schelling deixa Jena, em 1803,
Hegel inicia uma produção própria de diversos artigos e
trabalhos que o conduzem à publicação da Fenomenologia.
Esse livro realizou, filosoficamente, um insight de Hölderlin
segundo o qual haveria uma identidade entre pensamento e o
ser. Ou seja, a Fenomenologia trata de uma teoria da
subjetividade que parte da ideia de que ser e pensar são uma e
a mesma coisa.

Em um sentido bastante específico, a Fenomenologia de Hegel é um


estudo do que pretende descrever a experiência da consciência natural
em busca da ciência, e deve ser encarada como uma espécie de
propedêutica filosófica que introduziria o leitor em um ponto de vista de
um pensamento puramente conceitual, a partir do qual a própria filosofia
poderia ser realizada: o saber absoluto.

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É por isso que se você observar bem, com o devido tempo e a devida
paciência, você vai perceber que a estrutura desse texto pode ser comparada
a de um Bildungsroman, ou romance de formação. Tratava-se de um tipo de
romance em que se descrevia o processo formativo de um personagem,
geralmente do período de adolescência até uma idade mais madura,
mostrando seu desenvolvimento físico, estético, moral, psicológico, social e
político – um ícone desse tipo de romance é Os anos de aprendizado de
Wilheim Meister de Goethe. O “protagonista”, por assim dizer, cujo percurso
formativo interessa Hegel na Fenomenologia é a própria consciência. Sobre
esse ponto, veja o que o próprio Hegel diz na Introdução da Fenomenologia:

já que esta exposição tem por objeto exclusivamente o saber fenomenal,


não se mostra ainda como ciência livre, movendo-se em sua forma
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peculiar. É possível, porém tomá-la, desse ponto de vista, como o
caminho da consciência natural que abre passagem rumo ao saber
verdadeiro. Ou como o caminho da alma, que percorre a série de suas
figuras como estações que lhe são preestabelecidas por sua natureza,
para que se possa purificar rumo ao espírito, e através dessa experiência
completa de si mesma alcançar o conhecimento do que ela é em si
mesma. (HEGEL, G. W. Fenomenologia do espírito, §77)

Para que você tenha uma noção mais ampla do livro, podemos dizer que
o percurso da consciência é feito a partir de basicamente três figuras
fundamentais que definem a experiência para atingir o conhecimento de
si mesmo. A primeira delas é a da certeza sensível. Trata-se de um saber
que a consciência toma como verdadeiro e considera apenas um “isto” ou
um “aquilo” imediatos.
A segunda figura é a da percepção. Aqui a consciência não visa
unicamente um “isto” vazio, mas também o qualifica, na medida em que
é capaz de perceber certas características dos objetos, seja para afirmá-
las, seja para negá-las. Por fim, há a figura do entendimento. Trata-se da
reflexão por excelência, quando a consciência conhece a si mesma no
objeto refletido. Essa é a etapa fundamental para a consciência de si e
para a formação do Saber Absoluto.

Percebe? Essa progressão no percurso da consciência desemboca no


famoso Saber Absoluto que é, de forma muito simplificada, a
suprassunção dos outros dois. Aliás, esse é outro conceito chave para
compreender a filosofia hegeliana. “Suprassunção” é como traduzimos
em português o termo alemão “Aufhebung”. Ele descreve o movimento
fundamental da dialética de Hegel por poder comportar significações
contraditórias em uma única palavra.

Dizer que as figuras da certeza sensível e da percepção são suprassumidas


no Saber Absoluto é o mesmo que dizer que elas foram negadas,
conservadas e elevadas, em uma espécie de síntese conciliatória.

Há uma série introdutória ao pensamento


hegeliano produzida pelo Espaço Cult com o
professor Vladimir Safatle. Tire um tempo para
História da Filosofia Moderna

acompanhar. A fala do professor é bastante


elucidativa e resgata alguns elementos que vimos
da filosofia kantiana, como as noções de crítica e de
transcendental, o giro copernicano e o problema
da objetividade. Note, em especial, o modo como
ele explicita a diferença em como Kant e Hegel
compreendem o pensamento crítico.
https://youtu.be/ej6vPJr7unM.

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A Lógica

Se a Fenomenologia do Espírito teve uma


excelente recepção entre seus leitores, e
continua até hoje a despertar o interesse, as
coisas foram um pouco diferentes com a
publicação da Ciência da Lógica. Sobretudo no
século XX, a recepção dessa obra não foi
marcada por nenhum tipo de entusiasmo. Talvez
isso se deva a uma visão consolidada por
Bertrand Russell segundo a qual o texto de
Hegel estava sustentado por uma abordagem
aristotélica que já era considerada superada
desde o fim do século XIX (você deve pensar
aqui no impacto que teve a obra de Frege para a lógica ao propor uma
alternativa à dicotomia entre sujeito e predicado da lógica aristotélica: a
oposição matemática entre função e argumento). Curiosamente, é
justamente nessa obra que Hegel dizia encontrar-se o núcleo de sua filosofia,
a base para todo o resto. A Ciência da Lógica havia sido publicada em dois
volumes, com três partes, entre 1812 e 1816. O primeiro volume é a chamada
lógica objetiva e contém uma “lógica do ser” e uma “lógica essência”. Já o
segundo, com uma lógica subjetiva, contém a “lógica do conceito”.

Esquema da estrutura da Ciência da Lógica.


Fonte: próprio autor.

Essa estrutura triádica da Ciência da Lógica lembra claramente a mesma


estrutura da Fenomenologia do espírito. Em cada um dos três livros –

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sobre as doutrinas do ser, da essência e do conceito – há três sessões,
cada uma contendo três capítulos. Você deve atribuir isso ao modo
caracteristicamente dialético da dinâmica da suprassunção com a qual
Hegel sempre trabalha.

De forma bastante esquemática, podemos dizer que a argumentação


nesse texto se dá da seguinte forma. Há sempre uma busca pela
determinação mais básica e universal. Assim, o pensamento põe uma
categoria sobre a qual se reflete. Por exemplo, a categoria ser. Como se é
de esperar, uma contradição é gerada sobre essa categoria, fazendo com
que ela perca sustentação.

Por isso, daí surge a necessidade de progredir na busca por outra


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categoria que, retrospectivamente, atribua sentido a essa contradição.
Essa nova categoria, por sua vez, também gerará uma nova contradição
que, novamente, demandará um conceito que reconcilie ambos e
incorpore-os como momentos distintos dele mesmo. Vamos com calma
que as coisas podem ficar bastante complicadas por aqui. Respira fundo
que os próximos parágrafos vão exigir concentração.

A lógica, para Hegel, é a ciência do pensar puro. Consequentemente, o


seu objeto são as formas necessárias e as determinações do pensar,
discutidas em sua conexão genética. Na primeira parte, a doutrina do ser,
o ser puro é tomado como ponto de partida de toda lógica, já que é um
conceito absolutamente indeterminado, vazio e abstrato. Essa
indeterminação conduz Hegel a identificar ser e nada. Eles são idênticos
na falta de conteúdo.
No entanto, a força contraditória entre ser e nada, como era de se esperar
no procedimento dialético de Hegel, não são nada mais do que dois
momentos abstratos que conduzem a uma síntese. A unidade sintética
entre ser e nada é justamente o devir do nascer e do perecer, cujo
resultado é o ser determinado, ou ser existente. Para Hegel, essa primeira
determinação de ser é a categoria de qualidade. Sua característica é,
sobretudo, o limite, distinguindo-o de todas as outras coisas.

Obviamente, o limite supõe um outro de si mesmo, aquilo que fica de fora


das suas fronteiras e que o nega. Justamente dessa negação consigo
mesmo deduz-se a determinação daquilo que é unidade. Uno é aquilo
que exclui toda a diferença daquilo que está fora do próprio limite. Há
muitas unidades, que se excluem mutuamente. Assim, abre-se o caminho
para uma outra determinação de ser que é a quantidade.

A lógica da quantidade, por sua vez, se articula em duas grandezas: a


contínua e a discreta. A quantidade contínua é a aquela do divisível e do
múltiplo, enquanto a discreta é a do número. Esta última, a discreta, é
fundamental para o cálculo.

Já a determinação da mensurabilidade é a medida. É ela que qualifica a


quantidade e sintetiza qualidade e quantidade. Assim se constitui, por
assim dizer, de forma muitíssimo resumida a última parte do primeiro
livro da Ciência da lógica. É bastante complexo, não é? Tire um tempo
para reler e deixar essas ideias amadurecerem. Aproveite para discutir
com seus colegas e professor.
História da Filosofia Moderna

Ainda restam as doutrinas da essência e do conceito. Fica o desafio de


você mesmo pesquisar e conhecer a argumentação de Hegel nessas
outras partes da Lógica.

Filosofia do Direito

Para já irmos finalizando essa parte sobre Hegel, não


poderíamos deixar de fazer algumas indicações sobre a sua
última grande obra publicada, a Filosofia do direito. Ela é
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importante porque compreende o mundo ético, social e
político. Isso mesmo, para Hegel, o direito é o âmbito da
liberdade, da existência da vontade livre. Mas, atenção, não
confunda com o sentido exclusivamente jurídico do direito.
Pelo contrário, ele abarca todas as determinações da
liberdade. Tudo o que é um direito, também é um dever; da
mesma forma, tudo o que é um dever, também é um
direito. Percebe? Hegel opera uma redução do moral ao
jurídico – e do jurídico ao moral – a partir da unidade da
vontade livre.

Como você já deve estar suspeitando, a divisão do direito


obedece à mesma dinâmica dialética que acompanhamos
na Fenomenologia e na Ciência da lógica. Assim, são três
momentos: o direito absoluto, que nada mais é do que a vontade
imediata ou individual; a moralidade, que é uma reflexão da vontade
sobre si mesma; e a eticidade, quando a vontade se volta para o mundo
da família, da sociedade e do Estado.

O Materialismo

Vamos ver um pouco da ideia do materialismo agora? Uma filosofia


materialista é aquela que sustenta uma tese que põe a matéria como
princípio de toda a realidade. Assim, ela considera a vida e a consciência
como sendo derivadas da própria matéria. Você já deve imaginar a que
outra perspectiva filosófica o materialismo se opõe. Isso mesmo, é ao
idealismo e, sobretudo, ao espiritualismo, que consideram a matéria como
uma realidade essencialmente distinta da do espírito.

A partir dessa definição, você não estaria equivocado em concluir que


essa tese materialista foi sustentada diversas vezes, podendo ser
encontrada em filósofos desde a antiguidade, com o atomismo de
Leucipo e Demócrito, e mantendo-se como uma constante na história da
filosofia.

Na modernidade, por exemplo, lá na filosofia do Renascimento, a teoria


corpuscular da matéria de Descartes é uma espécie de materialismo, mas

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aplicado apenas ao mundo como princípio sistemático da filosofia
natural. Algo semelhante se dá na Inglaterra, como vimos, com o
materialismo mecânico sistemático de Hobbes que buscava dar conta da
explicação científica do mundo.

Já por volta do século XVIII, na França, ele se afirma enquanto


materialismo cultural em Diderot, D’Alembert e Voltaire. No entanto, a
Alemanha do século XIX se manteve afastada dessa perspectiva. Você
deve imaginar o motivo. A filosofia kantiana e o idealismo se mantiveram
como uma influência filosófica decisiva que não era compatível com a
tese materialista.

Só por volta de 1840 é que encontramos uma certa crise do


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hegelianismo. Essa época é marcada por uma irrupção das
ciências e, com elas, uma visão que anda de mãos dadas
com a ciência: o positivismo materialista. Ele exerceu o
papel de uma expressão empirista que se difunde em
vários âmbitos da cultura alemã. Assim se forma um grupo
de autores que tomaram a perspectiva materialista como o
verdadeiro sistema filosófico. Uma figura central dessa
época é Feuerbach (1804 – 1872). Você já deve ter ouvido
falar da sua crítica ao cristianismo. Seu livro A essência do
cristianismo influenciou vários filósofos, desde Freud,
Engels e Marx, a Nietzsche e Darwin. É aí que encontramos
sua ideia fundamental segundo a qual Deus é
simplesmente a projeção exterior do desejo de perfeição
do homem, explicitando uma teoria da alienação que se
tornaria essencial para Marx. Além disso, foi ele quem estabeleceu a
famosa inversão materialista do sistema hegeliano, empreendendo uma
substituição da visão teológica do idealismo por uma antropologia. Desse
modo, o homem se torna o centro do filosofar. O locus da verdade se
desloca para a antropologia.

Se o idealismo alemão se origina, como vimos, em grande medida do


problema da unidade da crítica kantiana, o período seguinte, que pode
ser chamado de materialismo dialético, ou materialismo científico, terá
sua base formativa em torno de três eixos principais: por um lado, o
próprio materialismo na expressão de Feuerbach e das ciências naturais;
por outro, o socialismo francês; e, por fim, a própria dialética de Hegel.

É da confluência desses fatores que nasce, no século XIX, o que


conhecemos por marxismo, um sistema materialista e socialista que teve
um profundo impacto no mundo moderno. Na verdade, a influência das
ideias marxistas deixou um legado não só intelectual como também
político, em uma interação poucas vezes vista entre esses dois âmbitos.

Marx

Karl Marx (1818 – 1883) nasceu na cidade histórica


de Tréveris, uma das mais antiga da Alemanha.
Sua família era de tradição judaica, pertencente a
classe média. Seu pai, advogado, era
descendente de uma longa série de rabinos, com
História da Filosofia Moderna

uma profunda raiz na tradição religiosa rabínica.


Sua mãe também era proveniente de uma
família hebraica oriunda da Holanda. No entanto,
eram de uma geração de judeus cosmopolitas e
racionalistas. Não possuíam uma crença religiosa
muito profunda, o que levou seu pai a converter-
se ao protestantismo para não perder sua
carreira como jurista, já que haviam restrições a
judeus no serviço público. A primeira
universidade que Marx frequentou, após a
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conclusão dos estudos em Tréveris, foi a Bonn,
para estudar Direito, aos 17 anos.

Conta-se, no entanto, que o único ano que


passou por lá não foi um tempo de muitos
estudos, mas de boemia. Assim, mudou-se para
Berlim, centro intelectual alemão, para dar
continuidade aos seus estudos.

Continuou seu curso de Direito, mas sua principal preocupação era com
questões de filosofia e história. Assim, entra em cena, como você já devia
esperar, a filosofia de Hegel. O filósofo já havia falecido há seis anos
quando Marx ingressou na Universidade de Berlim, mas sua influência era
dominante nas universidades.
Foi nesse período que Marx iniciou um estudo dedicado ao idealismo. Leu
Hegel do início ao fim, como relatou em carta a seu pai. Sua formação
hegeliana, além das aulas que frequentou na universidade, se
desenvolveu sobretudo no Doktorklub do subúrbio berlinense, onde se
reuniam os chamados “hegelianos de esquerda”. Você já tinha ouvido
falar nesse grupo? Tratava-se de opositores aos hegelianos que ocupavam
as cátedras da universidade e cargos de prestígio do governo. No fundo,
havia uma disputa pela interpretação da filosofia de Hegel.

Isso mesmo, após a morte de Hegel houve uma clara disputa sobre como
interpretar o seu sistema, o que deu origem ao embate entre um grupo
de esquerda e outro de direita. Um dos líderes da esquerda era o
professor Bruno Bauer. Pesquise um pouco mais sobre ele quando puder,
vai te ajudar a compreender um pouco mais do cenário filosófico no qual
Marx estava inserido.

Percebe a caracterização do caminho que descrevemos até aqui? Esse


contexto foi fundamental para a formação intelectual do jovem Marx, que
frequentou o círculo de Bauer e assimilou diversos aspectos filosóficos
defendidos por ele e seus seguidores. Por mais que estivesse tomado pela
filosofia hegeliana e o seu idealismo, já esboçava uma tendência ao
materialismo.

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Sem sombra de dúvidas, o pensamento de Marx pode ser caracterizado
de forma geral como sendo essencialmente crítico. É o espírito crítico que
une sua produção e sua metodologia filosófica de investigação. Essa
origem remonta certamente a Bruno Bauer e os hegelianos de esquerda
que se denominavam filósofos críticos por excelência, exercendo um forte
movimento contra a interpretação teológica do idealismo de Hegel.

Isso significava, em última instância, uma investida contra a religião e a


crença em Deus e contra a política do Estado Prussiano, tudo isso feito
em nome da liberdade e da autoconsciência. Mas você sabe que a crítica
de Marx não é algo que fica restrito apenas ao âmbito teórico. Ela
também é prática.

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Sua vida foi uma luta revolucionária contínua, atuando, inclusive, como
redator em periódicos com forte impacto em questões sociais e
econômicas: Gazeta Renana, Anais Franco-alemão, a Nova Gazeta Renana.
Foi exercendo essa função que conheceu Engels, cuja parceria seria
fundamental.

Durante esse período de forte troca com grupos comunistas de várias


cidades alemãs, na década de 1840, onde o contexto revolucionário era
intenso, ele fundou a Sociedade Operária Alemã, em função da qual
pronunciou conferências entre trabalhadores e articulou revolucionários
franceses, ingleses e alemães.

Em março de 1845 publicou as famosas Teses sobre Feuerbach. Esse


escrito, apesar de breve, constitui o lugar onde podemos ver formulada a
sua doutrina da praxis. Ela é feita em contraposição ao materialismo de
Feuerbach, que era considerado como sendo excessivamente abstrato.

Para Marx, a relação do homem frente ao mundo não é a da passividade


da reflexão, mas a atividade transformadora da realidade, ou praxis, que
deve ser entendia como uma prática revolucionária. Isso se expressa de
forma lapidar na última tese, a décima primeira, segundo a qual: “os
filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a
questão, porém, é transformá-lo”.

Tendo traçado esse panorama e esclarecida, em certa medida, as raízes


de Marx, podemos dizer que a sua tarefa crítica se exerceu em torno de
um tema central: a alienação. Guarde bem esse conceito, ele é de uma
importância fundamental para compreender o filósofo. O conceito de
alienação é profundamente devedor da filosofia de Hegel. Você sabe o
que ele significa dentro do contexto do sistema hegeliano?
História da Filosofia Moderna

No processo da dialética fenomenológica da consciência de Hegel, o tema


da alienação aparece no contexto da sua teoria do reconhecimento,
quando a consciência deixa de ser consciência de objetos e passa a ser
consciência-de-si. É na dialética do senhor e do escravo que a alienação
surge como o momento da diferença que se produz quando o sujeito se
projeta para fora de si, tornando-se externo a si mesmo.

Em um campo social, tal como a dialética do reconhecimento de Hegel


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descreve, quando a consciência se submete a uma outra consciência-de-
si, ela deixa de afirmar seu próprio desejo, submetendo-se a uma servidão
e, portanto, alienando-se e ligando-se a uma determinação que não sua
própria, mas de outrem. Uma consciência que é serva de outra, é aquela
que trabalha para uma outra, e que realiza o desejo de uma outra, não o
seu próprio.

Não vamos entrar aqui nos detalhes dessa relação que podemos
estabelecer entre Hegel e Marx. Você pode explorar isso nos seus estudos
com a leitura de outros textos. Por aqui, basta indicar para você essa
origem hegeliana da noção de alienação que Marx faz uso.

Pois bem, visto isso, podemos dizer que é através da crítica das alienações
que Marx denuncia o mal-estar do homem moderno. A solução para essa
situação, claro, está na recuperação desse homem em seu ser verdadeiro.
Você sabe quais são as situações alienantes das quais Marx trata? Elas são
basicamente quatro: a religiosa, a política, a filosófica e a social.

A primeira de todas as alienações é a religiosa. Nela, profundamente


devedora da descrição de Feuerbach, Marx considera que o homem se
projeta para fora de si e se perde na ilusão de um mundo transcendente.
Não poderíamos constatar uma posição mais materialista, não é?

Ao lado da alienação religiosa, há a alienação política, que constitui a


crítica de Marx ao Estado e à política. A problematização em torno da
questão judaica e o problema do Estado cristão é uma das primeiras
formas dessa crítica da alienação política. Marx defendia que a religião
oficial impedia a emancipação judaica, de modo que a crítica da religião e
a luta pela emancipação política andariam lado a lado, formando uma
crítica do Estado.

Um Estado cristão é portador de uma contradição que produz uma


alienação do homem dentro de sua própria estrutura: o Estado, que
deveria ser o âmbito do universal, é, na verdade, o âmbito do homem
privado que projeta sua verdadeira universalidade na religião. Um Estado
que professe o cristianismo nada mais é do que a negação cristã do
Estado, ou seja, um Estado cristão nada mais é do que a negação da

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própria noção de Estado. Aqui temos claramente a formulação de uma
perspectiva secular, laica, de Estado.

Já a alienação filosófica passa necessariamente pela crítica do idealismo


alemão e pela defesa da filosofia como praxis. Marx via a filosofia, em
particular o idealismo alemão, como uma justificação intelectual da
situação política vigente, refratária aos ideais revolucionários que já
haviam conquistado espaço em outros países.

Nesse sentido, ela está diretamente ligada à alienação religiosa, pois nada
mais seria do que a expressão racional, portanto filosófica, da própria
religião. Isso não deve ser confundido com nenhuma espécie de anti-
hegelianismo. Marx sempre reconheceu o mérito filosófico de Hegel e sua
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filosofia depende diretamente da dialética hegeliana.

Porém, não assume a dialética tal qual ela atua no autor da


Fenomenologia do espírito. Assume-a a partir da inversão realizada por
Feuerbach, a qual já nos referimos mais acima. A dialética do conceito se
torna o reflexo consciente do movimento dialético do mundo real, ou seja,
a natureza passa a ser o fundamento da realidade, não a ideia.

Ainda que o materialismo de Feuerbach seja importante na crítica ao


idealismo, ele não é suficiente. Aqui entra a viragem fundamental de Marx
que constitui a marca da sua filosofia. Certo de que o materialismo
reconhecia que o mundo era uma realidade concreta e sensível, mas só o
concebia na forma de objeto ou de contemplação. Era preciso romper
com a abstração teórica e conceber o real como atividade, como praxis.
Por fim, a alienação social é algo que aparece na análise da estrutura do
Estado. Ora, a sociedade civil é radicalmente dividida, e não havia
nenhuma suposição de uma unidade conciliatória que o Estado poderia
conferir que pudesse eliminar essa divisão ou resolver as contradições que
se expressam nos indivíduos de um grupo social.

Seu esforço será o de demonstrar que o antagonismo entre as classes


sociais é acentuado pelo próprio Estado, uma vez que há um monopólio
do seu poder efetivado por uma classe determinada. Essa classe, por sua
vez, será sempre dominante em relação às outras, que continuarão sendo
dominadas.

A tradição marxista teve uma influência importante no Brasil.


Conta-se que a primeira referência a Marx por aqui consta de uma
publicação de um jornal republicano de Recife. De um ponto de
vista partidário, é interessante ver um pouco da formação do PC do
B, de 1922. Busque investigar um pouco sobre como se deu a
recepção de Marx por aqui, tanto do ponto de vista intelectual e
sua presença na universidade, quanto político, na atuação de
partidos de esquerda.

RESUMINDO
História da Filosofia Moderna

Começamos nosso último módulo descrevendo um pouco da cena


filosófica alemã do final do século XVIII e início do XIX. Vimos que a
filosofia kantiana começava a formar sua primeira geração de leitores. O
problema da compatibilização entre a visão determinística da Crítica da
razão pura e a liberdade da autodeterminação da Crítica da razão prática
foi o que impulsionou boa parte das reflexões. Forma-se, então, a base do
que ficou conhecido como idealismo alemão, cujos principais expoentes
foram Fichte, Schelling e Hegel.

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Dedicamos um pouco mais da nossa atenção a Hegel. Vimos como ele
busca superar o dualismo gerado pela filosofia kantiana com o idealismo
absoluto e uma discussão em torno do conceito de objetividade. Assim,
passamos pelas duas portas de entrada do sistema hegeliano: a
Fenomenologia do espírito e a Ciência da lógica.

Por fim, chegamos ao materialismo. Ele surge no contexto da disputa


entre hegelianos de direita e de esquerda. O materialismo de Feuerbach e
sua crítica ao cristianismo, deslocando o locus da verdade para uma
antropologia, o socialismo francês e a própria dialética hegeliana foram
partes fundamentais para a formação do pensamento de Marx, que
começa a despontar por volta da década de 1840. Assim, finalizamos
vendo como o tema da alienação nos âmbitos religioso, político, filosófico
e social é um articulador do seu pensamento crítico.
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Referências

AMERIKS, K. The Cambridge companion to German idealism. Cambridge, Cambridge


University Press, 2017.

HEGEL, G. W. Ciência da lógica. Petrópolis, Vozes, 2016

___. Fenomenologia do espírito. Petrópolis, Vozes, 2002.

MARX, K. Teses sobre Feuerbach. Lisboa, Editorial Avante, 1982.

ROSENFIELD, D. Hegel. Rio de Janeiro, Zahar, 2002.

WERLE, M. A. O acolhimento hegeliano do pensamento antinômico na época de Jena.


Cadernos de filosofia alemã, n.19, p. 107-125.
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