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Eu não sabia que virar pelo avesso era uma experiência mortal.

" Em textos
Escolhidos , o Letras e Livros revisita a obra da carioca Ana Cristina
César, uma das mais originais e cultuadas poetas de sua geração. Veja
ensaios, poemas e biobibliografia. ( Leia completo)
Ìndice
Pág. 01 – Ensaio : Nas entrelinhas de Ana Cristina, por Annita Costa
Malufe
Pág. 02 – Poemas
Pág. 03 - As cartas-poemas de Ana C, por Wilson Bueno
Pág. 04 – Biografia/ Bibliografia
Ensaio 1)
Nas Entrelinhas de Ana Cristina
Annita Costa Malufe(*)
Há pouco mais de vinte anos, precisamente em 29 de outubro de 1983, a
poeta carioca Ana Cristina Cesar decidiu colocar um último ponto final:
cessava uma produção que ainda assistia a seu início. Não se trata de saber
se a morte de Ana Cristina, aos 31 anos de idade, ajudou a eternizar sua
poesia e a fazer de A Teus Pés, único livro seu publicado em vida, um
sucesso de crítica e público. Mas talvez seja um pretexto para se lembrar de
uma das poucas poesias sobreviventes daquela que foi a chamada "poesia
marginal" ou "poesia de mimeógrafo" dos anos 70. Tanto que, até hoje,
Ana C. – como costumava assinar – é referência obrigatória quando se trata
de poesia brasileira contemporânea.
Buscar em um poema a intimidade daquele que o escreveu: esta espécie de
armadilha pode facilmente abocanhar quem lê os textos de Ana Cristina
Cesar. Temas da intimidade, conversa ao pé-de-ouvido, poemas em forma
de carta, de diário, tom de confissão entre amigas. Foi a própria Ana C.
quem cultivou a curiosidade do leitor com esta escrita que parece esconder
segredos íntimos de mulher. Nada inocente: ela dizia mesmo brincar
propositadamente com o desejo de identificação romântica, tentação em
que tantos costumam cair.
Para fugir desta arapuca, a receita de Ana C. é "ser iniciado em literatura".
O que, para ela, consiste antes em "sacar" de fato o que é poesia, do que em
colecionar títulos de autores consagrados na lista pessoal dos "já lidos":
"Você pode ter lido um ou dois [poetas] e já sacar o que é poesia: que a
poesia é um tipo de loucura qualquer. É uma linguagem que te pira um
pouco, que meio te tira do eixo",(1) diz-nos Ana C. em um depoimento
editado em Escritos no Rio e reeditado em Crítica e Tradução.
Para quem conhece seus poemas, os ensaios críticos são uma boa
oportunidade para entender melhor como ler aqueles textos que muita
gente, à primeira vista, acaba tendo como estranhos, quase herméticos, não-
senso etc. E a crítica especializada não está fora disto. Há tanto quem
acredite que os textos de Ana C. não passam de fluxo natural do
inconsciente – à maneira surrealista – quanto quem a leia como uma poeta
simbolista, procurando significados ocultos, estrategicamente codificados
por trás das palavras.
O fato é que, provavelmente as melhores pistas para lermos sua poesia já
tenham sido dadas pela própria poeta. Ana C. pensou sua poesia, pensou
literatura, fez crítica, estudou tradução e, como podemos notar no conjunto
de seus escritos, isso tudo participava, e muito, da sua criação literária.
Como negligenciar isto? T. S. Eliot acreditava que "a maior cota do labor
de um autor ao executar a sua obra é um trabalho crítico": (2) ao criar, o
poeta coloca em ação sua habilidade crítica, avalia seus procedimentos,
estabelece parâmetros, faz comparações, aciona seu conhecimento
histórico, literário. Este exercício crítico era consciente para Ana C., que
obteve o grau de Master of Arts na Inglaterra em um curso sobre tradução
literária, na Universidade de Essex, onde viu a oportunidade de "enfim
estudar teoria", como podemos ler em uma de suas cartas publicadas em
Correspondência Incompleta.
Muitos dos ensaios que encontramos em Crítica e Tradução fazem parte do
período de estadia na Inglaterra – textos que a princípio formaram o livro
Escritos na Inglaterra – nos quais vemos o tempo todo a preocupação mais
ampla com a literatura guiar a questão da tradução. Em seu mestrado,
também publicado aqui, Ana C. traduziu um conto de Katherine Mansfield,
"Bliss", para o português e compôs uma dissertação a partir das notas de
rodapé da tradução. Podemos ler ainda alguns poemas traduzidos por ela,
de poetas que pareciam estar entre seus preferidos, como Emily Dickinson,
Marianne Moore, Sylvia Plath.
Mas talvez estejam nos Escritos no Rio os artigos que mostram mais
diretamente a visão de literatura de que Ana C. estava imbuída. Nestes
textos, que saíram em jornais e suplementos literários versando sobre os
mais diferentes temas, além do depoimento de Ana C. a um curso sobre
literatura feminina e uma monografia para disciplina da UFRJ, podemos
colher algumas pistas de sua concepção de poesia. Aqui lembramos,
novamente com Eliot, que "aquilo que ele [o poeta] escreve a respeito de
poesia deve ser avaliado em relação com a poesia que ele escreve".
(3) Caminho de mão dupla, afinal: a poesia de Ana C. também não deveria
ser avaliada tendo em vista aquilo que ela refletiu sobre poesia?

a biblioteca

O pensamento de Ana Cristina sobre a literatura parece inserir-se em um


contexto filosófico bastante contemporâneo. Sobretudo naquele que
atualmente poderíamos associar, depois de Nietzsche, ao filósofo francês
Gilles Deleuze que, com sua filosofia da diferença, teria proposto uma
inversão do platonismo: como deixarmos de pensar o mundo em termos de
modelo e cópia, como concebermos que, afinal, não há original algum e de
que estamos sempre em pleno devir? Por trás de tudo o que podemos ler
nos ensaios de Ana C., mas também em suas cartas, encontramos um
preceito básico: o texto literário é sempre, enfaticamente, construção, e
construção de realidade. Ou seja, ele não é representação de uma realidade
outra – seja ela do exterior, do mundo, das coisas, ou mesmo do interior
daquele que o escreveu – mas constitui em si uma realidade. Não há
modelo e cópia, não há representação de um ideal, mas apresentação de um
real inédito.
Ao falar de Guimarães Rosa, por exemplo, ela enfatiza que seu interesse
literário não está na transposição de uma realidade para o papel, como um
espelho, mas sim, na sua interferência neste reflexo: o que importa é tomar
o mundo como matéria-prima para, a partir daí, criar, construir algo
artisticamente. Assim, a literatura consiste na construção de um universo
próprio, auto-suficiente. E este mundo criado pelo texto literário não quer
ser espelho do mundo em que vivemos, ser seu reflexo ou relato.
É daí que Ana C. enfatiza a impossibilidade de se chegar à verdade de um
texto, tocando em um tema caro à filosofia desde Nietzsche: a inexistência
de uma verdade absoluta, ou a constatação da parcialidade de toda e
qualquer verdade. Ana C. salienta que, afinal, nunca se chega à verdade de
um autor, ou à verdade de o que quer que seja, uma vez que não existe essa
tal verdade universal, como um segredo oculto a ser descortinado. Segundo
ela, ainda se houvesse "A Verdade", do autor, do mundo, das coisas, não
seria função do texto escondê-la ou revelá-la. Em suas palavras: "Ao
produzir literatura, eu não faço rasgos de verdade, eu tenho uma opção pela
construção, ou melhor, não consigo transmitir para você uma verdade
acerca de minha subjetividade. É uma impossibilidade até".(4)
Essa questão é tematizada mais de uma vez nos textos críticos de Ana C.
que, conforme podemos observar em sua biblioteca particular, que se
encontra em seu arquivo pessoal sob responsabilidade do Instituto Moreira
Salles do Rio de Janeiro desde 1999, era leitora de autores contemporâneos
que compartilham de uma concepção da arte enquanto não-representação.
Além de diversos livros de Octavio Paz, alguns de Jorge Luis Borges,
podemos encontrar – lidas e com anotações da poeta – obras de Michel
Foucault, Gilles Deleuze, Roland Barthes, Antonin Artaud, Jacques
Derrida. É claro que, estes, em meio a diversos outros autores também
bastante conhecidos por sua geração, como Maiakovski, Mallarmé, T. S.
Eliot, Ezra Pound, Augusto e Haroldo de Campos, Mário e Oswald de
Andrade e alguns estruturalistas. No entanto, em relação aos estruturalistas,
não podemos deixar de lado a passagem de uma carta sua a uma amiga:
"Arrumei a estante, reclassifiquei os livros (...) Nessa, descobri que tenho
uma quantidade enorme de livros inúteis (quase todos os estruturalistas,
que formam uma boa prateleira, poderiam ser dispensados; os de lingüística
também)".(5)

intimidade construída

A nova poesia de meados dos anos 1970, a poesia marginal de que, de certa
forma, fez parte, teria nascido dentro desta concepção, do texto literário
como construção e não representação, ao seu ver. Uma poesia mais
próxima da alegoria do que do símbolo, literatura que "sabe que não está
simbolizando alguma inefável verdade sobre o mundo, que não está
abarcando um símbolo inexprimível".(6) Ana C. afirma que, nesta poesia,
não há "saudosismo", não há mais a preocupação com uma distância
irrecuperável entre linguagem e real. Desde Walt Whitman esta teria
deixado de ser uma questão para a poesia contemporânea: "Poeticamente a
questão da representação como distanciamento é abolida na euforia
revolucionária da poética de Whitman", poética que "rompe a metafísica
que impõe e chora a distância entre o mundo e a linguagem",(7) argumenta
ela em outro artigo.
É como se não houvesse mais lamento por esta distância, ou desejo de
reunificação, reunião através da poesia, como um "retorno ao útero" tal
qual quereriam os poetas metafísicos. Pelo contrário: essa distância é
incorporada ao poema, ao seu tom, ao seu tema, e é tomada com alegria,
despojamento. Desse modo, o poema deixa de buscar a fidelidade com o
vivido, não almeja imitar o mundo, trazê-lo para a linguagem, e assim: "O
poeta pode representar, fingir descaradamente; não tem mais um
compromisso com uma Verdade, não se propõe a simbolizar um inefável e
preexistente sentir ou existir".(8) O texto assume-se enquanto produtor de
realidade, criador – de povos, culturas, vidas – e não apenas criatura: "o
poema é uma produção, um modo de produzir significação mediante o
fingimento poético, e não uma nobre tradução do indizível".(9)
Com este pano de fundo, podemos tranqüilamente afirmar que, para Ana
C., literatura não é relato de memória, seja ela vista ou sentida, não é diário
de bordo. Tomemos emprestada uma frase de Gilles Deleuze: "Escrever
não é contar suas lembranças, suas viagens, seus amores e lutos, seus
sonhos e fantasmas".(10) Para ele a fabulação criadora não se nutre de
recordações e ausências, mas antes, de um excesso que nos faz justamente
ultrapassar as situações vividas, ir além dos fatos. É o que nos diz Ana C.:
embora seja possível partirmos de uma emoção, um sentimento ou mesmo
um fato ocorrido, essa vivência só é apropriada pelo escritor enquanto uma
espécie de material bruto, inicial, sobre o qual será necessário trabalhar,
empregando o que ela chama de "olhar estetizante".
Assim, nessa operação obrigatória para se produzir o texto literário, ela
acredita que não há como o poeta ser fiel ao sentimento inicial, ainda se
assim o desejasse. Aquele que pretende representar sentimentos, emoções,
ambientes e acontecimentos externos terá de fazer uma escolha: se almejar
ser fiel terá de abdicar à literatura, para fazer literatura terá de renunciar à
fidelidade aos fatos. Não há saída: "Se você conseguir contar a tua história
pessoal e virar literatura, não é mais a tua história pessoal, já mudou",
(11) diz ela. Ou seja, as obsessões pessoais do autor participam sim da
criação na arte, mas somente enquanto matéria-prima a ser transformada –
juntamente com outras coisas como livros que o autor leu, coisas que ele
viu, ouviu, viveu.
É desse modo que, ficcionando correspondências e diários, Ana C. "brinca
diretamente com o que chama de ‘obscurantismo biografílico’", como
remarca Flora Süssekind no ensaio sobre a poeta Até Segunda Ordem Não
me Risque Nada. Ana C. deixa claro que os diários – que compõem
praticamente inteiro seu livro Luvas de Pelica e parte do seu Cenas de Abril
– não são seus, mas sim diários inventados, que forjam uma intimidade:
"Se você vai ler esse diário fingido, você não encontra intimidade aí.
Escapa". E continua: "(...) a intimidade... não é comunicável literariamente.
A subjetividade, o íntimo, o que a gente chama de subjetivo não se coloca
na literatura".(12)

o autor dança

No entanto, não seria suficiente explicarmos a estratégia composicional de


Ana C. através da idéia dos heterônimos, o fingimento de que fala
Fernando Pessoa. Aí ainda poderíamos supor a existência de uma
"verdadeira" intimidade para além das personas criadas pelo poeta. Seria
mais efetivo refletirmos que, ao dizer: "Em todo texto, o autor morre, o
autor dança, e isso é que dá literatura",(13) Ana C. aproxima-se de uma
concepção de literatura que nos remete a toda uma corrente de pensadores
contemporâneos para quem a literatura não é o lugar da afirmação, mas
sim, da desconstrução do sujeito. Com a idéia da morte do autor, Ana C.
conversa com correntes que poderíamos chamar de "mais radicais" da
crítica literária, onde podemos destacar Barthes, mas principalmente
Derrida, que também foi um dos autores lidos por ela.
Para Foucault, um dos autores que interessaram bastante a Ana C., aqui
está uma das revoluções trazidas por Nietzsche: trata-se, enfim, da
possibilidade de se pensar o ser da linguagem, este que "só aparece para si
mesmo com o desaparecimento do sujeito".(14) A partir daí, é como se
fosse inaugurada a idéia de se encarar a linguagem como um ser
independente, uma construção que exclui o sujeito, que coloca em xeque a
evidência do eu. Na literatura, esta seria a novidade incorporada por
Mallarmé. Segundo Foucault, a partir de sua poética, temos a fundação de
"um dos princípios éticos da escrita contemporânea", esta indiferença em
relação ao autor produzindo uma escrita que se basta em si mesma.
Igualmente para Barthes, a escrita de Mallarmé inaugura o esforço em
suprimir o autor em proveito da escrita. Quem fala é a linguagem, e não
este alguém anterior a ela; é a linguagem que fala por si só, e não importa
de onde ela vem, mas sim, para onde ela vai.
Destacamos que não se trata de confidência quando Ana C. escreve seus
diários ou monta suas cartas fictícias, ou seus poemas-carta, mas sim de
construção, elaboração estética. Mas, para além disto, vale remarcar que,
nesta operação de interferência no mundo, não se trata de um sujeito que se
afirma através da linguagem, mas antes de um sujeito que se desfaz para
fazer surgir a linguagem. Ou ainda, de um sujeito que, já de antemão, sabe
da impossibilidade de sua captação, ou captura, pela linguagem. Devemos
convocar aqui Maurice Blanchot, para quem o escritor não pode afirmar-se
na linguagem, mesmo que assim o acredite ou deseje. Na escrita, ele é
arrastado para fora de si e aí encerrado. A literatura só nasce desta renúncia
do sujeito, devendo ser uma verdadeira quebra do vínculo que une a
palavra ao eu. Temos assim, a poesia como um discurso impessoal,
descolado da subjetividade do autor: "A fala poética deixa de ser fala de
uma pessoa: nela, ninguém fala e o que fala não é ninguém, mas parece que
somente a fala ‘se fala’".(15)

o não-dito

Com este pano de fundo, algumas coisas podem mudar na leitura dos
poemas de Ana Cristina. Acreditamos que estas idéias são fundamentais ao
nos depararmos com os textos fragmentários e disparatados de A Teus Pés,
seu último livro, e único publicado por editora – reunindo os três anteriores
de edição independente: Luvas de Pelica, Correspondência Completa e
Cenas de Abril. Deslocar a leitura para uma concepção do texto como não-
representação é importante ao lermos poemas que imitam cartas (como é o
caso do Correspondência Completa) ou diários (em Luvas de Pelica e
Cenas de Abril). Mas se torna ainda mais premente quando nos
defrontamos com a desmontagem desses gêneros operada em A Teus Pés.
Ali, além de utilizar formas que nos remetem a essas escritas "íntimas",
Ana C. ousa mais, fragmenta mais, como se fizesse uma verdadeira
colagem cifrada de frases vindas de diversos lugares.
O que temos no fim são textos aparentemente desconexos, cheios de saltos,
de versos que parecem não se encaixar. E muita coisa ainda com cara de
diário, de correspondência. Resultado: a impressão de que há segredos
escondidos nas entrelinhas, símbolos a serem decifrados, silêncios que
suspendem o entendimento e aguçam a curiosidade: o que ela está
querendo dizer? Entretanto, parece não ser bem essa a pergunta a ser feita.
Segundo Ana C., não se trata de fazer uma literatura de entrelinhas. Esses
vazios, saltos, silêncios, espaços em branco seriam o que ela define como o
"não-dito" do texto literário, algo que difere bastante do que usualmente se
entende por "entrelinha". Acompanhemos Ana C.:
"A entrelinha quer dizer: tem aqui escrito uma coisa, tem aqui escrito outra,
e o autor está insinuando uma terceira. Não tem insinuação nenhuma, não.
(...) Eu acho que, no meu texto e acho que em poesia, em geral, não existe
entrelinha. (...) Existe a linha mesmo, o verso mesmo. O que é uma
entrelinha? Você está buscando o quê? O que não está ali?".(16)
Não. Não busquemos o que está oculto no papel, no sentido de um
significado fixo, escondido entre as linhas, codificado. O poeta não busca
colocar símbolos no papel, como sinais nas placas de trânsito: uma coisa
substituindo outra, uma coisa remetendo a outra especificamente
determinada. Na poesia, tal qual a concebe Ana C., não há simbologia
alguma, os elementos utilizados nos textos não estão ocupando "lugar de"
ou representando algo. Questionada por alguém da platéia, no debate
editado em Crítica e Tradução, a respeito do que ela quis dizer com a
palavra "pato" em um de seus poemas, Ana Cristina enfatiza: "Pato, por
acaso, é um significante que puxa muitos outros (...) Quanto mais puxar
melhor (...) Não vou dizer nunca para você o que, para mim, o símbolo do
pato significa...".(17)
Tal é a natureza do que nos diz Ana C.: não busquem "o que eu quis dizer",
o que escondi por trás das palavras. Não há uma tradução para, por
exemplo, a palavra "contramão" no poema/prosa "Mocidade
independente": "(...) Voei para cima: é agora, coração, no carro em fogo
pelos ares, sem uma graça atravessando o estado de São Paulo, de
madrugada, por você, e furiosa: é agora, nesta contramão".(18) O que
seriam interpretações que procurariam um significado para o termo, como
por exemplo aludi-lo ao movimento subversivo, ou crer que ela insinuou
que a mocidade anda na contramão, etc. As interpretações psicológicas, que
procuram no texto ocultamentos da intimidade do autor, iriam em direção
semelhante a esta.
No lugar disso, o ato de leitura consistiria basicamente no que ela chama de
"puxar o significante", ou seja, ir fazendo associações as mais diversas e
inesperadas a cada vez: "Ler é meio puxar fios, e não decifrar".(19) As
palavras devem ser encaradas como significantes nômades, que migram a
cada leitura, ou seja, significantes com significados múltiplos, móveis,
abertos. Para ela a linguagem poética não pretendia "dizer algo", fazer
literatura não é comunicar, não consiste em passar uma informação,
transmitir palavras de ordem. "Tem um lado grilante da poesia. Ela não
comunica",(20) não do modo que nossa fala ou que o jornal comunicam.
Eis um ponto central para Ana C.: a poesia revela mas não comunica.
Assim, no lugar de uma literatura de entrelinhas, Ana C. acredita no não-
dito da literatura, um não-dito pertencente à própria materialidade textual.
Enquanto a entrelinha remete a uma insinuação escondida, um "querer
dizer sem dizer", trazendo embutida uma concepção da poesia como
veículo de comunicação (de significados, sentimentos, segredos), o não-
dito é aquele que pertence ao próprio texto, e não remete a algum objeto
externo originário. Por isso, trata-se de um não-dito enquanto questão
literária, que não se confunde com intenções pessoais do autor, nem
segredos de sua intimidade, nem tampouco com a clausura da simbologia.
Seria antes um não-dito da liberdade: justamente esses espaços em branco,
esses silêncios em torno das palavras, que as dotam de infinitos "fios",
aqueles que cada leitor irá puxar a cada vez. As brechas que arejam o verso
e abrem-no à possibilidade das imprevistas associações. E afinal, completa
Ana C.: "Toda literatura tem esse lado de: ‘ainda há uma palavra não
falada’ (...) sempre haverá alguma coisa que escapa".(21)
Agradecimentos ao Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, em especial
à Elisabeth Pessoa e sua equipe de pesquisadoras que possibilitaram o
acesso ao arquivo pessoal da Ana Cristina.

Notas

(*) Annita Costa Malufe é doutoranda no IEL-Unicamp.


(1) Cesar, Crítica e Tradução, p.267.
(2) Eliot, Ensaios de Doutrina Crítica, p.43.
(3) Idem, p.74.
(4) Cesar, op. cit., p.273.
(5) Carta a Ana Candida Perez, de 18/09/76. Hollanda e Freitas Filho, Ana
Cristina Cesar, Correspondência Incompleta, p.226.
(6) Cesar, op. cit., p.163.
(7) Idem, p.252.
(8) Idem, p.164.
(9) Idem, ibidem.
(10) Deleuze, Critique et Clinique, p.12.
(11) Cesar, op. cit., p.262.
(12) Idem, p.259.
(13) Idem, p.266.
(14) Foucault, "O Pensamento do Exterior", Ditos e Escritos III, p.222.
(15) Blanchot, O Espaço Literário, p.35.
(16) Cesar, op. cit., p.262.
(17) Idem, p.263.
(18) Cesar, A Teus Pés, p.44.
(19) Cesar, Crítica e Tradução, p.264.
(20) Idem, p.270.
(21) Idem, p.260.
Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. "A morte do autor". In: O Rumor da Língua. Trad.


António Gonçalves. Lisboa: Edições 70, 1987 (título original em francês
Le Bruissement de la Langue, 1984).
BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de
Janeiro: Rocco, 1987. (título original em francês L’Espace Littéraire,
1955).
CESAR, Ana Cristina. Crítica e Tradução. São Paulo: Editora Ática, 1999.
_________________. A Teus Pés. São Paulo: Editora Ática, 1999.
DELEUZE, Gilles. Critique et Clinique. Paris: Les Éditions de Minuit,
1993.
ELIOT, T. S. Ensaios de Doutrina Crítica. Trad. Fernando de Mello
Moser. Lisboa: Guimarães Editores, 1997 (seleção de ensaios realizada
para a presente edição).
FOUCAULT, Michel. "O pensamento do exterior" e "O que é um autor".
In: Ditos e Escritos III – Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema.
Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001 (título original em francês Dits et Écrits, 1994).
HOLLANDA, Heloisa B. e FREITAS FILHO, Armando (orgs.). Ana
Cristina Cesar, Correspondência Incompleta. Rio de Janeiro: Aeroplano,
1999.
SÜSSEKIND, Flora. Até Segunda Ordem Não me Risque Nada. Rio de
Janeiro: 7Letras, 1995.
Sobre a autora : Annita Costa Malufe nasceu em São Paulo em 1975, onde
mora. É jornalista, formada pela PUC-SP, onde conclui o mestrado em
2003, no Programa de Comunicação e Semiótica, sobre a poesia de Ana
Cristina Cesar. Autora de Fundos para dias de chuva (Ed.7Letras, Coleção
Guizos, 2004), atualmente faz doutorado na Unicamp, no depto. de teoria e
história literária, sobre poesia brasileira contemporânea.
( Artigo originalmente publicado
em http://www.criticaecompanhia.com/index.htm)

 
Poemas
0)
olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas
1) 19 de abril
Era noite e uma luva de angústia me afagava o 
pescoço. Composições escolares rodopiavam, 
todas as que eu lera e escrevera e ainda uma 
multidão herdada de mamãe. Era noite e uma 
luva de angústia... Era inverno e a mulher 
sozinha... Escureciam as esquinas e o vento 
uivando... Saí com júbilo escolar nas pernas, 
frases bem compostas de pornografia pura, 
meninas de saiote que zumbiam nas escadas 
íngremes. Galguei a ladeira com caretas, 
antecipando o frio e os sons eróticos povoando 
a sala esfumaçada.
2) Protuberância
Este sorriso que muitos chamam de boca
É antes um chafariz, uma coisa louca
Sou amativa antes de tudo
Embora o mundo me condene
Devo falar em nariz(as pontas rimam por dentro)
Se nos determos amanhã
Pelo menos não haverá necessidades frugais nos espreitando
Quem me emprestar seu peito ma madrugada
E me consolar, talvez tal vez me ensine um assobio
Não sei se me querem, escondo-me sem impasses
E repitamos a amadora sou
Armadora decerto atrás das portas
Não abro para ninguém, e se a pena é lépida, nada me detém
É sem dúvida inútil o chuvisco de meus olhos
O círculo se abre em circunferências concêntricas que se
Fecham sobre si mesmas
No ano 2001 terei (2001-1952=) 49 anos e serei uma rainha
Rainha de quem, quê, não importa
E se eu morrer antes disso
Não verei a lua mais de perto
Talvez me irrite pisar no impisável
E a morte deve ser muito mais gostosa
Recheada com marchemélou
Uma lâmpada queimada me contempla
Eu dentro do templo chuto o tempo
Um palavra me delineia
VORAZ
E em breve a sombra se dilui,
Se perde o anjo.
3) Fagulha
Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.

Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando

Eu queria até mesmo


saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.

Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.

Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio

Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.
4) Estou Atrás
do despojamento mais inteiro
da simplicidade mais erma
da palavra mais recém-nascida
do inteiro mais despojado
do ermo mais simples
do nascimento a mais da palavra.
5) Dias Não Menos Dias
Chora-se com a facilidade das nascentes
Nasce-se sem querer, de um jato, como uma dádiva
(às primeiras virações vi corações se entrefugindo todos
ninguém soubera antes o que havia de ser não bater
as pálpebras em monocorde

e a tarde
pendurada ro raminho de um
fogáceo arborescente
deixava-se ir
muda feita uma coisa ultima.
6) Deus na Antecâmera
Mereço(merecemos, meretrizes)
Perdão(perdoai-nos, patres conscripti)
Socorro (correi, valei-nos, santos perdidos)

Eu quero me livrar desta poesia infecta


beijar mãos sem elos sem tinturas
consciências soltas pelos ventos
desatando o culto das antecedências
sem medo de dedos de dados de dúvidas
em prontidão sangüinária

(sangue e amor se aconchegando


horas atrás de hora)

Eu quero pensar ao apalpar


eu quero dizer ao conviver
eu quero parir ao repartir

Filho
Pai

E
Fogo
DE-LI-BE-RA-MEN-TE
abertos ao tudo inteiro
maiores que o todo nosso
em nós(com a gente) se dando

HOMEM: ACORDA!
7) Psicografia
Também eu saio á revelia
E procuro uma síntese nas demoras
Cato obsessões com fria têmpera e digo
Do coração: não soube e digo
Da palavra: não digo(não posso ainda acreditar
Na vida) e demito o verso como quem acena
E vivo como quem despede a raiva de Ter visto.
8) Sonho Rápido de Abril
As ambulâncias se calaram
as crianças suspenderam a voracidade batuta
dois versos deliraram por detrás dos túneis
moleza nos joelhos
mão de ferro nos peitinhos
tristeza suarenta, locomotiva, fútil
patinho feio
soldadinho de chumbo
manto de jacó, escada de jacó
sete anos de pastor
estrela demente desfilando na janela
de repente as ambulâncias estancaram o choro
voraz dos bebês.
9) Fisionomia
Não é mentira
é outra
a dor que doi
em mim
é um projeto
de passeio
em círculo
um malogro
do objeto
em foco
a intensidade
de luz
de tarde
no jardim
é outra
outra a dor que dói
10) Um Beijo
Que tivesse um blue
Isto é
Imitasse feliz
A delicadeza, a sua
Assim como um tropeço
Que mergulha surdamente
No reino expresso
Do prazer
Espio sem um ai
As evoluções do teu confronto
À minha sombra
Desde a escolha
Debruçada no menu;
Um peixe grelhado
Um namorado
Uma água sem gás
De decolagem:
Leitor ensurdecido
Talvez embebecido
"ao sucesso"
diria meu censor
"à escuta"
diria meu amor
sempre em blue
mas era um blue feliz.
11)
Acreditei que se amasse de novo
esqueceria outros
pelo menos três ou quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos
(em Contagem regressiva - Inéditos e Dispersos)
12) Tu Queres Sono: Despede-te dos Ruídos

Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e


dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e
também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)
que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, o os ventos altos
que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.
13. Noite Carioca
Diálogo de surdos, não: amistoso no frio. 
Atravanco na contramão. Suspiros no  
contrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta 
do mundo: essa que não tem nenhum segredo.
14. Encontro de Assombrar na Catedral
Frente a frente, derramando enfim todas as 
palavras, dizemos, com os olhos, do silêncio que 
não é mudez. 
E não toma medo desta alta compadecida 
passional, desta crueldade intensa que te 
toma as duas mãos.
15. Este Livro
Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do 
coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two 
total., tilintar de verdade que você seduz, 
charmeur volante, pela pista, a toda. Enfie a 
carapuça. 
E cante. 
Puro açúcar branco e blue.
16.
é muito claro 
amor 
bateu 
para ficar 
nesta varanda descoberta 
a anoitecer sobre a cidade 
em construção 
sobre a pequena constrição 
no teu peito 
angústia de felicidade 
luzes de automóveis 
riscando o tempo  
canteiros de obras 
em repouso 
recuo súbito da trama
17.
Quando entre nós só havia 
uma carta certa 
a correspondência 
completa 
o trem os trilhos 
a janela aberta 
uma certa paisagem 
sem pedras ou 
sobressaltos 
meu salto alto 
em equilíbrio 
o copo d’água  
a espera do café
18. Aventura na Casa Atarracada
Movido contraditoriamente 
por desejo e ironia 
não disse mas soltou, 
numa noite fria, 
aparentemente desalmado; 
- Te pego lá na esquina, 
na palpitação da jugular, 
com soro de verdade e meia, 
bem na veia, e cimento armado 
para o primeiro a andar.
Ao que ela teria contestado, não, 
desconversado, na beira do andaime 
ainda a descoberto: - Eu também, 
preciso de alguém que só me ame. 
Pura preguiça, não se movia nem um passo. 
Bem se sabe que ali ela não presta. 
E ficaram assim, por mais de hora,  
a tomar chá, quase na borda, 
olhos nos olhos, e quase testa a testa.
19. O Homem Público N. 1 (Antologia)
Tarde aprendi 
bom mesmo  
é dar a alma como lavada. 
Não há razão  
para conservar 
este fiapo de noite velha. 
Que significa isso? 
Há uma fita  
que vai sendo cortada 
deixando uma sombra  
no papel. 
Discursos detonam. 
Não sou eu que estou ali 
de roupa escura 
sorrindo ou fingindo 
ouvir. 
No entanto 
também escrevi coisas assim, 
para pessoas que nem sei mais 
quem são, 
de uma doçura 
venenosa 
de tão funda.
20. Nada, Esta Espuma
Por afrontamento do desejo 
insisto na maldade de escrever 
mas não sei se a deusa sobe à superfície 
ou apenas me castiga com seus uivos. 
Da amurada deste barco  
quero tanto os seios da sereia.

21. SONETO

Pergunto aqui se sou louca 


Quem quer saberá dizer 
Pergunto mais, se sou sã 
E ainda mais, se sou eu 

Que uso o viés pra amar 


E finjo fingir que finjo 
Adorar o fingimento 
Fingindo que sou fingida 

Pergunto aqui meus senhores 


quem é a loura donzela 
que se chama Ana Cristina 
E que se diz ser alguém 
É um fenômeno mor 
Ou é um lapso sutil?

olho muito tempo o corpo de um poema


até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas
22. FLORES DO MAIS 

devagar escreva 
uma primeira letra 
escreva 
na imediações construídas 
pelos furacões; 
devagar meça 
a primeira pássara 
bisonha que 
riscar 
o pano de boca 
aberto 
sobre os vendavais; 
devagar imponha 
o pulso 
que melhor 
souber sangrar 
sobre a faca 
das marés; 
devagar imprima 
o primeiro 
olhar 
sobre o galope molhado 
dos animais; devagar 
peça mais 
e mais e 
mais

23. 

Tenho uma folha branca


e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma cama branca


e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma vida branca


e limpa à minha espera:
24. Travelling
Tarde da noite recoloco a casa toda em seu lugar.
Guardo os papéis todos que sobraram.
Confirmo para mim a solidez dos cadeados.
Nunca mais te disse uma palavra.
Do alto da serra de Petrópolis,
com um chapéu de ponta e um regador,
Elizabeth reconfirma, "Perder é mais fácil que se pensa".
Rasgo os papéis todos que sobraram.
"Os seus olhos pecam, mas seu corpo
não", dizia o tradutor preciso, simultâneo,
e suas mãos é que tremiam. "É perigoso",
ria a Carolina perita no papel kodak.
A câmera em rasante viajava.
A voz em off nas montanhas, inextinguível
fogo domado da paixão, a voz
do espelho dos meus olhos,
negando-se a todas as viagens,
e a voz rascante da velocidade,
de todas as três bebi um pouco
sem notar
como quem procura um fio.
Nunca mais te disse
uma palavra, repito, preciso alto,
tarde da noite,
enquanto desalinho
28
sem luxo
sede
agulhadas
os pareceres que ouvi num dia interminável:
sem parecer mais com a luz ofuscante desse
mesmo dia interminável
25. CARTILHA DA CURA
As mulheres e as crianças são as primeiras que
desistem de afundar navios.
26. Sem título
Sem você bem que sou lago, montanha.
Penso num homem chamado Herberto.
Me deito a fumar debaixo da janela.
Respiro com vertigem. Rolo no chão.
E sem bravata, coração, aumento o preço.
27. Toda Mulher
a coisa que mais o preocupava
naquele momento
era estudo de mulher
toda mulher
dos quinze aos dezoito
Não sou mais mulher.
Ela quer o sujeito
Coleciona histórias de amor.
28. Anônimo
Sou linda; quando no cinema você roça
o ombro em mim aquece, escorre, já não sei mais
quem desejo, que me assa viva, comendo
coalhada ou atenta ao buço deles, que ternura
inspira aquele gordo aqui, aquele outro ali, no
cinema é escuro e a tela não importa, só o lado,
o quente lateral, o mínimo pavio. A portadora deste
sabe onde me encontro até de olhos fechados;
falo pouco; encontre; esquina de Concentração com
Difusão,
lado esquerdo de quem vem, jornal na mão, discreta.
29. 18.8.80

I am going to pass around in a minute some lovely, glossy-blue 


picture postcards. 
Num minuto vou passar para vocês vários cartões postais belos e bri- 
lhantes. 
Esta é a mala de couro que contém a famosa coleção. 
Reparem nas minhas mãos, vazias. 
Meus bolsos também estão vazios. 
Meu chapéu também está vazio. Vejam. Minhas mangas. 
Viro de costas, dou uma volta inteira. 
Como todos podem ver, não há nenhum truque, nenhum alçapão 
escondido, nem jogos de luz enganadores. 
A mala repousa nesta cadeira aqui. 
Abro a mala com esta chave mestra em cerimônias 
do tipo, se me permitem a brincadeira. 
A primeira coisa que encontramos na mala, por cima de tudo, 
é — adivinhem — um par de luvas. 
Ei-las. 
Pelica. 
Coisa fina. 
Visto as luvas — mão esquerda... mão direita... corte... perfeito. 
Isso me lembra... 
Um jovem artista perdido na elegante Berlim da Belle 
Époque, sozinho, em vão procurando por 
prazer. Passa um grupo ruidoso 
de patinadores, e uma mulher de branco deixa cair 
a sua luva, uma luva com seis botões, branca, longa, perfumada. 
O jovem corre, apanha 
a luva, mas reluta se deve aceitar ou não o desafio. 
Afinal decide ignorá-lo, guarda a luva no bolso e volta caminhando para o
seu hotel por ruas 
mal iluminadas. 
Mas assim me desvio do meu propósito desta noite.
30.
descuido não (concentração) 
lembrar da caretice que você não gosta. 
reaproveitar o casaquinho de banton. 
quando você mal pensa que é novidade, não é. 
Existe uma medida entre o descuido e a 
premeditação — trata-se do cuidado (floating 
attention). Daí escapam maps of England birds, pessoas seguindo numa
certa direção, 
bichos que vão virando gente, discretamente eróticos, desejando 
mancha transparente e diluída de aquarela cor de rosa, 
see? 
Medida exata entre o acaso e a estrutura.

 
As cartas-poemas de Ana C
Em "Correspondência Incompleta", a poeta Ana Cristina César extrai o
sublime do prosaico e fala sobre a perplexidade de estar viva
Wilson Bueno

A editora Aeroplano, que nos deu, entre outros títulos, o excelente "Esses
Poetas", antologia com o melhor da poesia brasileira recente, volta à carga
agora com "Correspondência Incompleta" (organização de Armando
Freitas Filho e Heloísa Buarque de Hollanda, 313 páginas, 1999), reunindo
cartas escritas pela poeta Ana Cristina César, ícone carioca dos anos
setentas e que, tendo se suicidado em 1983, converteu-se num dos maiores
mitos literários tupiniquins. Motivos para tanto não faltaram: além da
beleza física e da morte precoce aos 31 anos, Ana C. alcançou produzir, em
meio ao geral desleixo dos poetas de sua geração, uma poesia
originalíssima, com acento todo pessoal e intransferível, diferindo de seus
pares no que havia de rigor baixo a aparente incúria de seu estro. Não creio
tenha feito escola e nem granjeado seguidores, a exemplo de Paulo
Leminski, outro poeta mítico e cuja influência é visível em nove dentre dez
candidatos ao estrelato poético cá na República das Bruzundangas, para
usar a expressão com que definia o País outro suicida em potencial o
escritor Lima Barreto.
São 93 cartas, compreendendo um período que vai de 1976 a 1980,
endereçadas a quatro das mais íntimas amigas da poeta: Clara Alvim,
Heloísa Buarque de Hollanda, Cecília Londres e Ana Cândida Perez.
Anotações do cotidiano, o diário de uma vida voltada em exclusivo para a
literatura, ainda que de um modo quase displicente, ao contrário do que
espelha de novo a inevitável comparação a epistolagem de Leminski a
Régis Bonviccino ("Envie Meu Dicionário", Editora 34, 1999), onde a vida
da escrita é uma usina de tormentosa ebulição.
Em "Ana C.", não. Junto com o gosto e o gozo da escrita, ou antes deles,
vem a paixão por tudo o que, miúdo, preside o cotidiano de uma moça
brasileira no Rio de Janeiro dos anos setentas, ou esforçando-se para
cumprir uma bolsa de estudos em Essex, na velha "England". Lá como aqui
o que há é a perplexidade de estar viva, ainda uma vez viva, indiferente se
entre delícias ou fragorosas quedas no abismo. E aí, cada carta é um poema
de Ana Cristina César, tocados todos de um "sentimento", forte o bastante
para fazer brotar, no canto do olho, mesmo do leitor mais distraído, uma
furtiva lágrima, sobretudo face ao encanto, este poroso encanto capaz, só
ele, de dar notícia do ido e do vivido; do aziago da vida sim; mas, tanta vez,
também do seu mel.
Retalhos nostálgicos, notícias de ontem, o que estas cartas falam ninguém
poderia falar com mais propriedade senão ela própria, Ana C., a cavalo de
seu mito e de sua "mitologia" pessoal, na vivência minuciosa dos "anos
loucos" onde oscilávamos entre comprar ou não um revólver para os
momentos de pânico. Errar de cálculo, este tempo, se mostrou sempre fatal.
Ana C., por um descuido, se enganou de pulso e de impulso e se atirou do
oitavo andar do edifício feito o tropeço lúdico dentro de um sonho, ou de
um pesadelo, do qual invariavelmente acordamos. Acontece que Ana C.
não acordou mais. Para se tornar, daí em diante, o mito incurável de uma
lenda sem-fim.
Este vosso resenheiro necessário esclarecer , tão zeloso em se manter rente
aos livros que resenha, e portanto ciente de seus limites, aqui espraia-se um
pouco, desdobra-se e até se perde posto que estas cartas, lidas tarde da noite
no arrabalde, retrazem nas asas do tempo, entre outras coisas, o diário-de-
bordo dos anos setentas baixo as noites cachorras da mais recente ditadura
brasileira. Éramos os protagonistas de um entreato jocoso e arrepiante as
mesmas ruas e bares e esquinas palmilhadas por Ana C. freqüentemente
cruzavam-se com as do país deste vosso escriba, e sendo este
"Correspondência Incompleta" o diário íntimo daqueles dias, impossível
uma "imparcialidade", desde já sem calor, frente a estes "versos" a sangue
quente.
Refiro isto porque intuo que também o leitor destas cartas-balas, poemas-
através, dificilmente permanecerá alheio às suas linhas tocadas da
imprevisível majestade dos dias; pedem, uma a cada vez, as cartas de Ana
C., mais que a simples leitura de seus signos, um empenho, um
engajamento, um vigoroso pronunciamento "a favor", tanto do que diz o
diapasão do grito quanto do que expressam as intermitentes delícias do dia-
a-dia umas vezes ávido; outras, meliante cantor. Cumplicidade, esta a
palavra-projétil, este o tiro no escuro destas cartas escandalosas de tão
íntimas e envenenadas do que a morte põe de ovos sucintos a cada página.
Para quem conhece "Correspondência Completa", o delicioso livro
falsamente epistolar, de 1979 (edição de autor), com uma única "missiva",
assinada por uma paradigmática "Júlia" , as cartas de agora dirigidas a
quatro ex-professoras, todas mais velhas que ela, amigas a quem amava de
aflito e invasivo amor e, principalmente, mulheres, com o compromisso
visível aquele tempo de fazer desta condição, mais que gênero, ofício e
arte, as cartas de agora neste sentido não surpreendem. Mas isto não quer
dizer que deixem de acrescentar ao "poemário" de Ana C., alguns "novos"
e inquietantes momentos da mais alta voltagem. Assim, a esmo: "Danço
samba nesse baile absurdo, e me visto de mim quando preciso e quando
não preciso. (...) Acho enfim que é provisório ser da condição dos avessos."
(cartão postal a Heloísa Buarque de Hollanda, s/data, onde assina
molecamente "Júlio"...). "Se essa transa de escrever pintar mesmo, acho
que eu arrisco dizer que vou passando da poesia para a ficção. Desejos de
gente, cachorro passando, copos, bumerangues." (carta a Cecília Londres,
7/7/1977). "Será que vou dançar na vida? Meu olho vivo tá tapado. O lado
de fora bate pouco." (a Heloísa Buarque de Hollanda, 7/5/1980).
Personagem de si mesma como, de modo nítido, assinala uma das
destinatárias destas garrafas-ao-mar, Ana Cândida Perez, no oportuno
espaço reservado ao final do livro para os respectivos comentários sobre a
correspondência Ana Cristina César parece, desde sempre, engendrar à flor
da vida o final colapso. Há, do começo ao fim desta "biografia" epistolar,
uma exasperação, uma linha de fundo quase extenuante a cada dia vencido
sob cansaço e melancolia, mesmo que perpassado pela minudência dos
fortuitos desfrutes e das miúdas delícias. Não importa, a sua é uma beleza
trágica. Lunar e saturnina, Ana C. nasceu com a vocação do mito e a ele e à
sua construção se entregou com volúpia.
Mas nas 93 cartas de "Correspondência Incompleta", (magnífico o projeto
gráfico de Cecília Leal) o que temos, ainda que com o mito entranhado na
garganta, é o melhor de Ana C., aquilo que em última instância a valida a
sua música; a capacidade, que é de poucos na história de nossas pobres
letras, de arrancar do prosaico o mais sublime. A sua poesia foi esta mesma
que as cartas de agora só fazem repor ao primeiro plano a capacidade de
extrair da superfície maleável das coisas e de sua gratuidade muita vez
enganosa, significâncias supremas, transcendências, ouros mágicos, a lata
perplexa face ao próprio brilho, como uma "peça" de Andy Warhol ou o
exasperante meio-dia num quadro de Edward Hopper.
Sobre o autor : Wilson Bueno ( wilsonbueno@uol.com.br ) é escritor, autor
de "Mar Paraguayo" (Iluminuras), "Cristal" (Siciliano) e do recém-lançado
"Jardim Zoológico" (Iluminuras, 1999), entre outros. Escreve às quartas-
feiras no Anexo
( Artigo originalmente publicado
em http://www1.an.com.br/1999/dez/07/0ane.htm)

 
Biografia
Poetisa fluminense (2/6/1952-29/10/1983). Ana Cristina Cruz César nasce
no Rio de Janeiro, filha de pai sociólogo e mãe professora. Publica seus
primeiros poemas aos 7 anos, no Suplemento Literário do jornal Tribuna da
Imprensa.
Forma-se em letras em 1975, pela PUC-RJ, e conclui o mestrado em
comunicação pela UFRJ em 1979, ano em que lança Cenas de Abril e
Correspondência Completa. No ano seguinte, vai para a Inglaterra estudar
tradução literária em Essex e publica Luvas de Pelica e Literatura Não É
Documento, tese de mestrado sobre literatura no cinema.
A Teus Pés, seu último livro publicado em vida, sai em 1982 pela editora
Brasiliense. Escreve resenhas literárias e ensaios nos jornais Opinião, O
Beijo, Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo e nas revistas Veja e IstoÉ.
Também trabalha como tradutora de poetas estrangeiros, entre eles Silvia
Plath. De acordo com o escritor Armando Freitas Filho, seu amigo desde o
início dos anos 70, antes de se suicidar, aos 31 anos, a escritora apresenta
forte crise de depressão, resultado de surtos melancólicos que começam
depois de sua volta da Inglaterra. Armando é responsável pela publicação
de sua obra póstuma, os livros Inéditos e Dispersos, prosa e poesia (1985);
Escritos na Inglaterra, ensaios e textos sobre tradução e literatura (1988); e
Escritos no Rio, artigos, textos acadêmicos e depoimentos (1993).
Bibliografia
HOLLANDA, Heloisa Buarque de (sel, intr).  26 poetas hoje.  Rio de
Janeiro: Labor do Brasil, 1976. (Bolso)
CESAR, Ana Cristina. Cenas de abril. Rio de Janeiro: Edição da autora,
1979 
________________. Correspondência completa. Rio de Janeiro: Edição da
autora, 1979 
________________. Luvas de pelica. Rio de Janeiro: Edição da autora,
1980 
________________. Literatura não é documento. Rio de Janeiro: MEC /
Funarte, 1980
________________. Caderno de desenhos. São Paulo: Livraria Duas
Cidades, 1980
________________. A teus pés. São Paulo: Brasiliense, 1982
________________. A teus pés. São Paulo: Ática / IMS, 1998 
________________. Inéditos e dispersos. São Paulo: Ática / IMS, 1999 
________________. Crítica e tradução. São Paulo: Ática / IMS, 1999 
________________. Organização de Armando Freitas Filho e Heloisa

erdi / Tantos que ouvi, de graça, / pelo telefone”. Os versos que abrem
“Samba canção”, uma das entregas poéticas daquela que é talvez a obra
mais conhecida de Ana C., A teus pés, são capazes de nos levar a pensar:
quantos e que tantos poemas a poeta carioca não teria perdido, ouvindo-os
de graça, ao telefone, se daqui não tivesse partido há 30 anos, em 29 de
outubro de 1983. A linguagem de Ana C., programadora, mixeuse de afetos
numa pickup de palavras, buscava e encontrava sua força no lapidar desse
registro recolhido: a conversa ao telefone, a confissão, a carta, a anotação,
o rabisco, feito os lunch poems de Frank O’Hara – e desses fragmentos
costurava todo um universo de planos polifônicos de discurso e de
intervenção. Poesia que articula e efetiva um real possível na linguagem.
Foi em meio à geração do mimeógrafo que Ana C. despontou. Geração
fruto de um novo senso de mobilização que assomava sobre o país, da
figura do poeta guerrilheiro de Terra em transe, aquele cuja poética se
cruzava com a política, se fazia ato e ação. Um novo perfil de mobilização
se imprimia na produção independente daqueles jovens autores cuja
experiência coletiva nos finais dos anos 1970 consolidava um legado
cultural, comportamental e social do maio de 68. Ana se distinguia
valendo-se de um repertório intelectual arguto e de um senso estético ímpar
(sua opção “pelo olhar estetizante”). E assim, em meio aos poetas
marginais da “Geração 77”, como batizou Elio Gaspari, ela atravessou
outros níveis de discurso, fez seu percurso para além das agendas
ideológicas, num texto marcado pela declaração do corpo, legado moderno
de Walt Whitman – “recito WW para você. Amor, isto não é um livro, sou
eu que você segura e sou eu que te seguro” –, em que o poema se faz
próprio corpo do poeta, fragmentando fronteiras comportamentais,
políticas, íntimas e confessionais e fazendo da poesia sintoma de uma
época. Políticas do desejo advindas da guinada de 1968. Fôssemos ecoar
Deleuze, de quem Ana C. era leitora, diríamos que o que interessava a ela –
a instigava? – era a esfera molecular: os microacontecimentos, o discurso
menor.
Retalhos cotidianos
Silviano Santiago deu um título sintomático a seu ensaio de 1985 sobre a
poeta: “Singular e anônimo”. Posto que o estado intrínseco da linguagem
poética é a constante travessia em direção ao outro, em Ana C., esse
“outro”, o leitor, não é um coletivo, e sim um destinatário que, embora
sempre singular, “não é pessoal porque necessariamente anônimo”. Leitor
este que não tem nome próprio, mas a quem é endereçado, por exemplo, o
livro/poema Correspondência completa: o assinalado “My dear”. Uma carta
que traz crivada em si uma “grande história passional, guardada a sete
chaves”, mas que sangra em cumplicidade e comunhão com o leitor –
conosco –, cuja alteridade está ali para ser atravessada num ato de
(re)conhecimento.
A trilha que seguiu Ana C. na afectuação da poesia moderna é aquela do
corpo que se faz na tecedura do texto, a de Whitman, que articula a vida e a
contemporaneidade ditas “pequenas”, fragmentárias/fragmentadas, retalhos
cotidianos, na tentativa de traçar a biografia de uma voz. É essa a voz da
entrega de A teus pés, do processo encantatório de Luvas de pelica,
sedutora travessia para uma dimensão alheia na linguagem, e mesmo do
estilhaçamento dos sentidos numa construção ou montagem
cinematográfica (remontando a Eisenstein e, também, Godard). No plano
de Ana C., o corpo, como para Rimbaud, é primário – ao contrário duma
linguagem cerceada, que reifica, o corpo guarda seu significado em reserva
e é, antes de tudo, sentido e experimentado através das sensações físicas e
movimentos abraçados pelo ato poético.
Numa de suas dobras com a poesia moderna francesa, Ana C. tomou o
“Cisne” de Baudelaire pelas asas e fez a travessia do verso alexandrino
para o poema em prosa na “Carta de Paris”, um de seus Inéditos &
dispersos. Escrita sintonizada “no meu Charles, com seus gestos loucos e
nos profissionais do não retorno” – estes que aparecem, num imaginário de
exílio, justapostos ao “Baudelaire querido” de “21 de fevereiro”, Charles
anjo-mito urbano, recuperado no confronto com um momento decisivo na
vida cultural, quando tudo devém espetáculo e desponta então a
performance.
Nesta mesma carta, Ana C. cruzou o ponto limítrofe em que o poeta se
situa entre uma estética da tradição do moderno e o novo, o esboçar (o
recolher, recueillement) de uma nova poética presentificada, de força
reconstrutiva e rearranjadora de planos: “A velha Paris já terminou. As
cidades mudam mas meu coração está perdido, e é apenas em delírio que
vejo”. Visão em êxtase um presente tomado por “campos de batalha,
museus abandonados, barricadas, avenida ocupada por bandeiras, muros
com a palavra, palavras de ordem desgarradas” – sempre pontuado pela
palavra – veículo de esboço daquele campo de estratégia cultural da vida
urbana nas décadas de 1970, 1980 e adiante, já visado como memória.
Cartografia do desejo
Muito mais do que uma reescrita de Baudelaire ou do moderno, Ana C.
realizou um trabalho de trâmite entre níveis diversos de discursividade, de
contaminação de falas, que irrompem em sua própria voz. Assim como os
Journaux Intimes do poeta francês não se tratam de um diário íntimo “real”
ou “verdadeiro”, sua escrita constituiu-se a partir de fragmentos do
cotidiano e da esfera íntima, dispostos como um universo próprio, um novo
terreno de linguagem, cujo mapeamento é um shuffling, um embaralhar de
história e subjetividade sob o prisma contingente e feminino da escrita
confessional.
O que marca a atividade poética de Ana C., em conversa com o
contemporâneo, é a poesia em seu conceito mais legitimado de construção
do real, como universo autônomo de manipulação, recriação e
(re)descoberta, reeducação de si – exercício de cartografia do desejo. Seu
legado é uma escrita nova e insurgente, escrita de rupturas e
transformações, transmutações até. A subjetividade, o individual e a libido
como cosmos, de modo a cruzar o outro, efêmero e passional, em abraços
de fato, com direção infinita.
Outro de seus poemas, “Protuberância”, diz: “No ano 2001 terei (2001-
1952=) 49 anos e / serei uma rainha / Rainha de quem, quê, não importa / E
se eu morrer antes disso / Não verei a lua mais de perto / Talvez me irrite
pisar no impisável / E a morte deve ser muito mais gostosa / Recheada com
marchemélou [...] Uma palavra me delineia / VORAZ / E em breve a
sombra se dilui, / Se perde o anjo”. Trinta anos depois da partida, e doze
depois do cálculo versado, é muito improvável que sua mixagem de versos
nos elucide sobre o pisar no impisável. “Não estou conseguindo explicar
minha ternura, minha ternura, entende?”. Porém, talvez na busca do anjo
que se perde, possamos recitar WW por ela: jovens poetas, sou eu quem
lhes alcança através dos tempos.
Paulo Ricardo Alves
é tradutor e mestre em Letras pela USP, onde defendeu
a dissertação “Micropolítica do feminino e estética de
confrontamento em Patti Smith e Ana Cristina Cesar”
A poética que desafina
“Lá vai a morte afinando
o coro que desafina…
Se desse tempo eu falava
do salto de Ana Cristina”
Trecho do poema “Surdina”, de Cacaso
Muitos não tinham dúvida: ela era “a escritora brasileira mais importante
surgida nos últimos anos”, como declarou a crítica Heloísa Buarque de
Holanda, há 30 anos, quando a poeta Ana Cristina Cesar morreu. Outra
colega, a escritora Márcia de Almeida, disse: “a violência com que a
geração que tem agora 30 anos foi forjada confundiu-a, e ela achou que não
era mais forte que a última crise”. Essas declarações foram retiradas de um
nota publicada em jornal, no dia seguinte à morte da poeta, em 29 de
outubro de 1983. Naquele momento, sua primeira reunião em uma grande
editora, A teus pés, chegava à sua segunda edição. O livro tinha sido
publicado pela coleção Cantadas Literárias, da Brasiliense, onde também
saiu Caprichos & Relaxos, de Leminski.
De lá para cá, a obra de Ana Cristina, que circulou inicialmente em edições
independentes, passou a ser revisitada; de sua “pasta rosa”, com poemas
inéditos manuscritos e datilografados, saiu o volume Inéditos & dispersos;
e a própria “pasta rosa” foi publicada, mais recentemente, numa luxuosa
edição do Instituto Moreira Salles. E muitas teses universitárias surgiram,
analisando seus poemas, que desafinavam o coro dos contentes. Ela nunca
deixou de circular – depois da Brasiliense, seus livros saíram pela Ática.
Mas já estavam esgotados há algum tempo. Não era difícil encontrá-los,
porém, faltava um volume reunindo toda a sua poesia. Esse volume já está
prometido para a primeira quinzena de novembro, pela Companhia das
Letras.
Embalada pelo sucesso de Leminski, cuja Toda poesia chegou a entrar na
lista dos mais vendidos, a editora organizou um time de especialistas para
preparar o volume. O jovem poeta carioca Mariano Marovatto fez uma
pesquisa a procura de outros inéditos no Instituto Moreira Salles, onde
estão os arquivos dela. A editora Sofia Mariutti e o poeta Armando Freitas
Filho – que desde a morte de Ana vem sendo um fiel divulgador de sua
obra – selecionaram “textos dos bastidores da criação da autora, que
mereciam figurar no livro”, como diz Sofia.
Como aparato crítico, diz a editora, Armando escreveu uma apresentação, e
a professora da USP e crítica literária Viviana Bosi, que também trabalhou
na edição da “pasta rosa”, preparou um ensaio inédito. “No apêndice,
procuramos reunir os ensaios mais significativos sobre sua obra e outros
textos ótimos, alguns mais afetivos e outros menos”, conta Sofia. Entre os
afetivos, estão textos de Heloísa Buarque de Holanda e Silviano Santiago.
Neste volume, que se chamará Poética, estarão os livros que Ana publicou
em vida, ou seja, Cenas de abril (1979), Correspondência completa (1979),
Luvas de pelica (1980) e A teus pés (1982), além de Inéditos & dispersos
(1985), que havia sido organizado por Armando. De Antigos e soltos:
poemas e prosas da pasta rosa, coube a Armando fazer uma criteriosa
seleção. “Seria impossível incluir tudo”, diz Sofia.
A edição também chega ao mercado em plena revisão da poesia marginal
dos anos 1970, com a exposição “Poesia marginal, palavra e livro”, com
curadoria de Eucanaã Ferraz, no Instituto Moreira Salles, do Rio de
Janeiro. São 60 publicações independentes, como as das coleções Frenesi,
Nuvem cigana, Vida de artista e Capricho, além de revistas literárias da
época. Esse material também estampa o belo catálogo da exposição, com
ensaios e outros documentos da época.

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