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RESENDE, Beatriz. “Diamantes na lixeira”. In: Papéis Avulsos. Rio de Janeiro: CIEC, no.

32,
1991, pp. 1-12.

DIAMANTES NA LIXEIRA
Notas sobre o diário como escrita literária

“ (mars 1942) Tous les jours, je me disais : c’est inutile d’écrire un journal
maintenant. J’ai vécu plusieurs existences. Je n’ai pas écrit. Pourquoi commencer
n’importe où ? Je me trompe. Il faut écrire n’importe où.” Jean Cocteau. Journal
(1942-1945)

Em 20 de janeiro de 1919, depois de reler o que escrevera em seus cadernos durante o


ano anterior, Virginia Woolf registra mais uma das diversas observações que faz sobre o próprio
diário. Desta vez uma das mais importantes que se pode encontrar sobre o diário como escrita
literária e toda a relação que estabelece entre autor, escritura e um possível futuro leitor.
Reconhecendo a escrita “a galope” com que o relato do ano de 18 fora redigido, não pode deixar
de observar: “se eu parasse para refletir, nunca haveria de o escrever; e a vantagem deste método
é que vai amontoando ao acaso várias coisas dispersas que eu teria excluído se hesitasse, mas
que são diamantes na lixeira.”1

Retomando ainda como metafórica introdução e ameaçadora imagem da lata de lixo para
onde podem escorregar diamantes literários, Ana Cristina César, que por toda a sua obra poética
joga com a ideia e a forma do diário, anota no dia 16 de outubro de 1983, sintetizando muito do
que de contraditório, provocante e doloroso existe num diário:

Lembra que o diário era alimento cotidiano? Que importa a má fama depois que estamos
mortos? Importa tanto que abri a lata de lixo: quero outro testemunho Diário não tem graça, mas
esquente, pega-se de novo a caneta abandonada, e o interlocutor é fundamental. Escrevo para
você sim. Da cama do hospital. A lesma quando passa deixa um rastro prateado. Leiam se forem
capazes.”2

É. Leiamos se formos capazes. Porque há na leitura dos diários uma dificuldade, um


misto de pudor e incapacidade de absorver com o recomendado distanciamento a confissão
1
WOOLF, Virginia. Diário. Lisboa: Bertrand, 1987, vol. 1, p.137 (grifo meu).
2
CÉSAR, Ana Cristina. Inéditos e dispersos. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.198.
expressa que só é mesmo superado pelo inevitável prazer que este “voyerismo” provoca. Mas se
a leitura pode ser fascinantemente penosa, a escritura do diário revela, de modo geral, o conflito
do autor diante do “impublicável”. E é a sua dificuldade de rotulação como gênero literário que
faz com que o diário faça parte desta espécie de expressões, frequentemente consideradas
menores, à margem da produção “oficial” de alguns autores, espécie a que Antônio Cândido
classifica como “literatura íntima” e que prefiro, com pequena diferença semântica, chamar de
“literatura de intimidade”.

As notas que aqui coligimos tiveram seu início no estudo de duas obras de um autor
brasileiro (note-se que apesar de existirem expressivas exceções, os diários não são frequentes
entre nós): o carioca Lima Barreto. A primeira obra, o Diário íntimo, revelou-se, de saída, uma
coletânea de textos de múltiplos tipos, a que, ainda uma vez, Antônio Cândido, dá uma posição
de destaque dentro do conjunto de sua obra.3 O diário abrigava não apenas confissões
(geralmente breves e controladas, com raros extravasamentos, nunca indiscretos), mas também
crônicas, sobretudo sobre a cidade-amante, a cidade-erótica e, ainda, esboços de obras
desenvolvidas ou não posteriormente. A característica de diário íntimo como relato privado até
mesmo de coisas públicas, ficava não só evidente como era mesmo enfatizada. Este desejo de
privatização, o temor ao publicismo aparece sob a forma de desejo de discrição.

Aqui bem claro declaro que, se a morte me surpreender, não permitindo que as inutilize, peço a
quem se servir delas que se sirva com o máximo de discrição, porque mesmo no túmulo eu
poderia ter vergonha.4

É evidente que este gesto de Medeia a destruir suas crias o autor nunca cometeu, gesto
impossível também a outros autores, mesmo aqueles que, como Kafka ou o Benjamin de Diário
de Moscou, expressam o desejo de que seus escritos fossem destruídos e os confiaram a sábios e
traidores amigos como Max Brod e Gershon Scholem.

O segundo texto de nosso autor foi o Diário do Hospício, transcrito por Francisco de
Assis Barbosa que não apenas publicou como, várias vezes, decifrou as anotações feitas a lápis
nas costas de tiras de papel pardo já usado. Este diário, ao ser escrito, tinha a finalidade inicial de

3
CÂNDIDO, Antônio. “Os olhos, a barca, o espelho”. In: A educação pela noite. São Paulo: Ática, 1987.
4
BARRETO, A. H. de Lima. Diário íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 77.
servir como notas que se transformariam, posteriormente, numa espécie de romance
autobiográfico onde se discutissem temas como o sequestro a que o doente mental é submetido, a
anomia, as humilhações, a dolorosa exclusão que lhe é imposta. Seria o não terminado Cemitério
dos vivos. A escrita, no entanto, tem aí outro móvel mais imediato: assegurar pelo uso do
discurso a própria sanidade, estabelecendo, assim, uma diferença entre o escritor e os demais
companheiros daquela “casa de loucos”.

Esta impossibilidade do texto ser transformado em um outro (a redação do romance é


interrompida no trecho em que o autor narra a cena que, durante sua permanência mais forte
impacto lhe causara) que se apresentasse como um romance nos moldes tradicionais do início do
século, revela peculiaridades do texto original, fragmentado. Como se já houvesse uma forma
própria adequada à história contada, a que qualquer tentativa de complementar ou encadear
artificialmente, a posteriori, fosse fatal. Além disso, evidencia-se, de saída, a diferença entre
diário e autobiografia. Cabe lembrar que Virginia Woolf, por diversas vezes, durante a escrita de
seus diários, menciona a vontade de um dia escrever sua autobiografia, que seria algo diferente
do registro que ia fazendo. A autobiografia seria deliberadamente voltada para um público leitor
ao invés de ser um registro privado aberto unicamente ao restrito círculo doméstico que
eventualmente tinha acesso à leitura dos Diários. Em determinado trecho chega a datar o projeto:
Aos 60 anos iria escrevê-la. Aos 59 a escritora interrompe sua vida.

Lima Barreto também torna evidente a diferença que faria da autobiografia uma espécie
de diário passado a limpo e submetido a censuras:

Se essas notas forem algum dia lidas, o que eu não espero, há de ser difícil explicar esse
sentimento doloroso que eu tenho da minha casa, do desacordo profundo entre mim e ela; é de tal
forma nuançoso a razão de ser disso, que para ser bem compreendido exigiria uma autobiografia
que nunca farei.5

A ensaísta americana Nancy Walker em “Wider than the sky: public presence and private
self in Dickinson, James, and Woolf”, observando que quando o escritor é uma mulher as formas
claramente autobiográficas proporcionam um mergulho nas tensões entre o privado e o público,
o “eu” e o “outro”, que têm sido especialmente problemáticas para as mulheres, afirma que a
5
IDEM, ibidem, p. 77.
autobiografia é “o que eu lembro”, enquanto o diário tem a ver com “o que eu sou agora, neste
instante”.6

Se a diferença em relação à autobiografia se evidencia, surgem similitudes com outra


manifestação da literatura intimista: a correspondência. Não exatamente cartas em geral, mas as
pertencentes a um tipo específico de correspondência, aquela que é redigida com quase a mesma
regularidade da “lei de Blanchot”: o diário é sempre regido pelo calendário, única exigência a
que o diarista não se pode furtar. É o caso famoso das cartas que Van Gogh escreve a seu irmão
Theo. Nelas fica bem claro que o destinatário importa pouco. Na escrita quase diária que
independe das respostas, o interlocutor é apenas uma espécie de garantia de não estar falando
sozinho, como um louco. É também o caso de grande parte da correspondência de Antonin
Artaud, especialmente as cartas de Rodez.

Ao evocarmos exemplos de diário como vários dos citados, surge evidente uma relação
entre a escrita de diários e a vivência de uma situação de exclusão. No exílio voluntário como o
de Van Gogh – a que se segue a reclusão forçada -, nas internações impostas, o texto auto
destinado surge como uma espécie de mediador entre o espaço do confinamento e o espaço
público impossível ou indesejado. É ainda Nancy Walker quem aponta a mediação exercida pela
palavra da confidência entre autoras que vivem uma situação de recolhimento do mundo como
Emily Dickinson e Alice James, apontando a importância que exercem as cartas e diários para
autoras mulheres, por serem formas que não assumem diretamente a exposição a “olhos
estranhos”:

Quando o escritor é uma mulher, tais formas abertamente autobiográficas revelam as tensões
entre público e privado, entre “eu” e o “outro” que têm sido especialmente problemáticas para
mulheres.7

O poeta Torquato Neto, que durante internação em sanatório do Piauí mantém um diário,
fala da mesma necessidade de garantir a “sanidade” pela sua afirmação através do discurso em

6
BENSTOCK, Shari (ed.) The Private Self. EUA: The University of North Carolina Press, 1988, p.273.
7
Idem, ibidem, p. 273.
um de seus textos mais conhecidos: “É preciso fechar para balanço e reabrir. É preciso não dar de
comer aos urubus. Nem esperanças aos urubus.”8

A questão da reclusão, voluntária ou não, como espécie de terreno fértil à produção


desses textos que trazem o universo público para o privado e que terminarão, inversamente, por
dar publicidade ao universo mais privado do escritor, pode ser retomada com a leitura de Ópio –
diário de uma desintoxicação, de Jean Cocteau. Nesse diário sem datas fixas, mas escrito com
regularidade evidente durante cerca de três meses – como o Diário do Hospício de Lima Barreto
– Cocteau afirma disposição semelhante à do autor brasileiro:

É preciso deixar um vestígio desta viagem que a memória esquece; é preciso, mesmo
quando impossível, escrever, desenhar, sem atender aos convites romanescos da dor; não me
aproveitar do sofrimento como de uma música; amarrar a caneta no pé, e necessário. 9

E, mais adiante, nomeando intenção frequente na escritura do diário: “Aproveitemos a


insônia para tentar o impossível: descrever a carência.”10

Quando mencionamos a questão do destinatário passamos pela questão mais polêmica que cerca
o estudo dos diários. Jean Rousset em seu estimulante artigo “Le journal intime, texte sans
destinataire?” classifica os diferentes tipos de diário segundo o grau de abertura ou fechamento
em relação a possíveis destinatários. Assim, os graus de destinação da escritura do diário variam
desde a auto destinação – o texto escrito para ser lido pelo próprio escritor mais tarde ou uma
pseudo destinação em diários que seriam pretensamente escritos para algum posterior leitor a
quem o autor não tem, na verdade, nenhuma intenção de mostrar (filhos, descendentes) ou onde
uma forma de interpelação ao próprio diário torna a escritura mais fácil, construindo-se um
destinatário imaginário ou retórico, como em O ofício de viver, de Cesare Pavese. Diários
abertos seriam diários conjugais, escritos a quatro mãos, ou aqueles cuja leitura é franqueada a
um número restrito de leitores que partilham da intimidade do escritor (Anais Nin, Virginia
Woolf). E, finalmente, existiriam aqueles diários de grau de abertura bem menor. Dentro desta
classificação há uma diferença bastante grande. Ela comporta os diários cuja publicação póstuma

8
TORQUATO, Neto. Os últimos dias de Paupéria. São Paulo: Max Limonard, 1982. (Sem número de página –
registro de 28/10).
9
COCTEAU, Jean. Ópio – diário de uma desintoxicação. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.21.
10
Idem, ibidem, p. 63.
teria sido autorizada em vida, durante sua escritura, e os diários escritos para imediata
publicação. É o conhecido caso dos diários de Gide.

Na verdade, tais diários de total abertura, com publicação concomitante, não nos
interessam. Trata-se, a nosso ver, de uma forma híbrida, entre a ensaística, a ficção e as
memórias. Os de publicação autorizada, de modo geral também não inspiram grande interesse.
Ficamos, pois, com os diários realmente íntimos e os franqueados a um pequeno e igualmente
íntimo público.

A auto destinação do texto ou seu caráter de total intimidade não significam, no entanto,
uma garantia de absoluta franqueza, por contraditório que isto possa parecer. Raros são os
diários onde o autor se permite desvendar a própria intimidade. Peter Gay chama mesmo atenção
para o fato ao destacar a excepcionalidade do diário de Mabel Todd que lhe serve como fonte
principal de pesquisa; o “querido diário, velho amigo” que recebeu indiscretas confidências
fornecendo material ao estudo do comportamento do livro A experiência burguesa.

Virginia Woolf manifesta sua preocupação com a difícil sinceridade, a tentação ao


controle ao escrever em 20 de abril de 1919: “O principal requisito, penso, relendo meus velhos
volumes, é não exercer a função de censor.”

Hoje não nos parece haver dúvidas quanto à importância desses escritos periféricos para
o estudo da obra de um autor, nem tão pouco quanto ao seu valor. Nestes diários a que o próprio
autor atribui certa clandestinidade, porém, há uma dúvida que os torna ainda mais interessantes.
A dúvida – que nos diários destinados à publicação inexiste – é o lixo varrido, a poeira
doméstica, para retomar a imagem de Virginia Woolf, a que se misturam os “diamantes” que nem
sempre brilham de imediato, mas que, uma vez encontrados recompõem o prazer do texto em
mais alto grau.

Essa “dúvida insondável” sobre o valor mesmo do diário, do que ele registra, da escritura
que o constrói, é o que Roland Barthes classifica como “herança do diário”.11 Em “Deliberação”,
artigo escrito em 1979, Barthes fala de suas próprias dúvidas sobre a validade ou não de manter
um diário, desenvolvendo reflexão a partir de trechos do diário que por anos manteve, inclusive
11
BARTHES, Roland. O rumor da língua. Lisboa: Ed. 70, 1984.
o de 22 de julho de 1977, tornado célebre por conter a afirmativa: “De repente, tornou-se-me
indiferente não ser moderno”. No ensaio, Barthes declara com veemência o que vem sendo nosso
pressuposto inicial, o de que a única justificativa de um diário íntimo como obra a ser publicada
é a literária.

É aí que questiona a existência de qualquer sinceridade possível no diário, considerando


que, após a psicanálise, a crítica sartreana e quejandos, que tornaram vã a confissão, “a
sinceridade não passa de um imaginário de segundo grau.” De tudo isto, Roland Barthes pretende
tirar uma deliberação: “deliberação pessoal destinada a permitir uma decisão prática: deverei
manter um diário tendo em vista publicá-lo?” E termina o ensaio dizendo “só posso salvar o
diário com a condição de o trabalhar até a morte, até o fundo da extrema fadiga, como um texto
mais ou menos impossível: trabalho ao termo do qual é bem possível que o diário assim mantido
já não se assemelhe em nada a um diário”.

Em janeiro de 1987, as edições Seuil publicam a obra póstuma de Barthes, Incidents,


editado por François Whal. O livro divide-se em três partes: a primeira refere-se ao lugar de
origem do autor, o campo de Bayonne, no sudoeste da França. A segunda – texto admirável! – é
uma espécie de diário sem a “lei de Blanchot”, notas escritas durante viagem ao Marrocos, onde
ao aspecto fragmentário peculiar aos diários junta-se o alegórico. Com o intermezzo de um texto
sobre o Palace, a terceira parte traz um diário redigido entre 24 de agosto e 17 de setembro de
1979: “Soirées de Paris”. Este conjunto evoca no leitor todo o potencial do “voyerismo” que um
diário é capaz de despertar, especialmente quando o relato de um diário é a referência ao sexual
ou ao amoroso, mesmo porque ao longo de todo o volume Barthes se revela, ele também, um
“voyeur”.

Eduardo Prado Coelho, em ensaio de A noite do mundo considera o texto “obviamente


doloroso e desprotegido (é sobretudo o desprotegido que me agrada).”12 Para Prado Coelho o
corpus são “restos, evidentemente, estilhaços, fragmentos”.

O que parece especial em relação ao registro dessas apenas 16 soirées é o fato de mostrar
que a importância de um diário como escrita literária, como “motivo poético”, nada tem a ver
com sua extensão, com o volume de informações que transmita. Afirma-se assim o diário como
12
COELHO, Eduardo Prado. A noite do mundo. p.221.
uma forma de manifestação lírica e como texto que evoca uma leitura toda especial – uma leitura
“impura” – pois não temos que ler tudo, assim como o narrador não tem que contar tudo.
Também em relação com o conjunto da obra o aspecto fragmentário do diário importa. Um breve
registro ou a revelação contida em uma parte do diário podem ser decisivos para a compreensão
da obra de um autor não só por conter uma decifração, como também por propor uma elaboração
teórica.

F. W., editor de Incidents, faz questão de relacionar o livro póstumo ao ensaio citado,
“Deliberação”, e considera que “Soirées de Paris”, pela forma como o manuscrito estava
intitulado, paginado, com algumas indicações como a razão da interrupção de 22 de setembro,
indicariam que o texto se destinava à publicação, estando logo em seguida ao envio à Tel Quel do
ensaio.

Guy Scarpetta, falando da escrita íntima, chama atenção para o jogo-de-máscaras que se
revela no diário:

Lisant um journal intime, on n’accède pas à um Profondeur, une Vérité, um Secret, on


entre au contraire dans tout um jeu de masques, de simulacres, de semblant, sensible dès qu’on
passe au-delà du “pacte autobiographique”13

Quando associamos a declaração de impossibilidade de manter um diário para publicação


à escrita simultânea de “Soirées de Paris”, Barthes escritor de diário aparece como tricheur,
dissimulador, prestidigitador. Farsante autor de diário, obra a quem ele mesmo negara qualquer
qualidade de “sinceridade”. Mas a verdade é que Roland Barthes morre pouco depois, em
fevereiro de 1980. Lembremos que escreve: “só posso salvar o diário com a condição de
trabalhar até a morte.”

Kafka, em seu diário – o maior desafio que se coloca a quem se interessa pelo gênero –
deixou bem claro que jamais prometera dizer tudo.

13
SCARPETTA, Guy. L’impureté. Paris: Grasset, 1985, p. 290l

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