Você está na página 1de 16

“Afora isso, ia indo. Nem chorando, nem sorrindo.


Refletindo sobre narrativas de vida de refugiados

Sergio da Silva Barcellos

A fotografia do corpo do menino sírio, Alan Kurdi, numa praia da


Turquia parecia sintetizar simbolicamente o drama dos refugiados
(como não teremos imagem, você quer deixar a referencia para que
acessem?). E assim foi, por um curto tempo. Até surgir outra
fotografia. Um outro menino, Omran D., de cinco anos, sobrevive a
um bombardeio a um prédio residencial em Allepo. É resgatado dos
escombros e espera, em choque, ser atendido pelos paramédicos.
Seu olhar assustado e seu rosto coberto de poeira e sangue por si só
já seriam suficientes para causar consternação. No entanto, o
desamparo do menino se impunha como tema da foto. Jornais e
agências de notícias de todo o mundo se apressaram em considerar a
fotografia de Omran D. como um novo símbolo da guerra na Síria (DA
DEUTSCHE WELLE, 2016). Essas e outras imagens me trouxeram à
mente as reflexões de Susan Sontag, em Diante da dor dos outros,
acerca dos usos e dos significados das imagens, sobre a natureza da
guerra, sobre os limites da compaixão e sobre as obrigações da
consciência. Talvez a profusão de imagens trágicas e pungentes de
hoje supere em proporção aquelas sobre as quais Sontag reflete.
Entretanto, consternação e ação prática ainda permanecem, muitas
vezes, trilhando caminhos estanques. Segundo Sontag

A consciência do sofrimento que se acumula em um elenco


seleto de guerras travadas em terras distantes é algo
construído. Sobretudo na forma como as câmeras
registram, o sofrimento explode, é compartilhado por muita
gente e depois desaparece de vista. Ao contrário de um
relato escrito – que, conforme sua complexidade de
pensamento, de referências e de vocabulário, é oferecido a
um número maior ou menor de leitores -, uma foto só tem
uma língua e se destina potencialmente a todos. (SONTAG,
2003, p.21)

Infelizmente, outras fotografias e vídeos do sofrimento dos


refugiados têm viralizado na internet. Talvez o imediatismo e a
abrangência oferecidos pelos novos suportes digitais venham a
produzir um efeito mais prático, de ações humanitárias mais amplas
e inclusivas, que afetarão para o bem as vidas deslocadas. Se, por
um lado, por falarem um só idioma e destinarem-se potencialmente a
todos, as fotos de hoje alcançam muitos, por outro lado, como
Sontag conclui, podem, logo em seguida, cair no esquecimento ou
serem substituídas por outras, para simbolizar outras guerras, outras
epidemias, outros massacres. Quais narrativas ficarão sobre essa e
outras guerras e suas consequências? Existiria realmente um
interesse em ouvir relatos em primeira mão sobre a experiência da
guerra, sobre a urgência em partir, sobre a jornada e a ausência de
um destino que se assemelhe minimamente à noção de pátria
acolhedora, de pertencimento? Os relatos que existem, normalmente
mediados, servem a quais propósitos? Neles, pode se vislumbrar a
autonomia do sujeito que narra sua história? Qual a forma escolhida
para esse narrar? Essas e outras interrogações têm predominado nas
discussões acerca das narrativas de vida em geral e, em particular,
sobre a narrativa de vida de refugiados. O caminho escolhido para
esse meu exercício de reflexão sobre as escritas pessoais originadas a
partir da desterritorialização e dos deslocamentos é balizado por dois
aspectos. O primeiro diz respeito à forma assumida por essas
histórias de vidas em processo de deslocamento. O segundo, E, (falta
algo?) em como a difusão e utilização dessas narrativas, pela mídia e
pelas entidades de apoio aos direitos humanos, podem gerar um
impacto capaz de fazer irromperem soluções para a crise.

Narrativas pessoais dos deslocamentos voluntários


Em um artigo para o The New York Times, o escritor vietnamita
radicado nos Estados Unidos, Viet Thanh Nguyen contesta um
equívoco cometido por seus leitores e críticos ao afirmarem ser ele
um imigrante. Nguyen rebate argumentando com o que considera
traço distintivo entre refugiados e imigrantes:

A situação dos imigrantes é mais tranquilizadora do que a


dos refugiados, porque há um ponto final em suas histórias.
Não importa como cheguem, se de forma legal ou não, seus
anseios de uma nova vida podem ser absorvidos pelo sonho
americano ou pela narrativa europeia da civilização.
Refugiados, por outro lado, são os zumbis do mundo, os
mortos-vivos que se levantam de estados decadentes e
andam ou nadam em direção a fronteiras em intermináveis
influxos. Estima-se que haja hoje sessenta milhões de
apátridas, uma em cada cento e vinte e duas pessoas vivas
hoje. Se formassem um país, ele seria o vigésimo quarto
maior país, maior do que a África do Sul, Espanha, Iraque
ou Canadá. (NGUYEN, 2016, p.A19 (é assim mesmo com o
A?)

A distinção é relevante não apenas sob o ponto de vista da


inserção do indivíduo deslocado na cultura e sociedade de destino,
mas também em relação à narrativa de cunho pessoal que pode
surgir daí. Nguyen declara ser “um refugiado que, como tantos
outros, nunca deix[ou] de sê-lo, em algum canto da [minha]
consciência” (idem). Se de um lado a narrativa do refugiado vai
representar sempre o movimento compulsório da partida, oriundo da
urgência da sobrevivência, de fuga da morte; a narrativa da
imigração vai explorar um desejo autônomo de deslocamento, com
parâmetros sempre bem claros – ainda que o local de origem
também represente algum grau de perigo ou de ameaça à
integridade física, civil ou moral do indivíduo. Há, ainda, uma outra
categoria de narrativa pessoal de deslocamento ou
desterritorialização – essa mais familiar entre nós: a narrativa do
exílio e/ou do retorno dele. Dentre as três categorias, a narrativa do
exílio, no sentido de desterro, talvez seja a que contenha em si um
certo grau ambíguo de heroísmo aliado, em alguns casos, ao
embaraço, seja na aceitação da culpa ou no reconhecimento do
fracasso. Temos nossos próprios e abundantes exemplos na produção
de narrativas do exílio, que dominou o mercado editorial da década
de 1980.
Alguns exemplos de narrativa pessoal de imigração comprovam
um movimento voluntário e consciente, em direção a um destino
promissor. Um primeiro exemplo são os diários de mulheres, na
jornada em direção à conquista do Oeste norte-americano, em
meados do século dezenove. O trabalho da pesquisadora Lillian
Schlissel, Women’s diaries of the Westward Journey (Diários de
mulheres durante a jornada rumo ao Oeste), apresenta uma
compilação de cerca de cem diários mantidos durante a transferência
de famílias da costa leste para a conquista da costa oeste,
especialmente nos estados da Califórnia e Oregon. Esses diários
compilados representam um conjunto de narrativas pessoais cuja
unidade está na família. Com poucas exceções, as mulheres que
mantiveram esses diários eram casadas. Algumas já iniciavam a
jornada com filhos ou grávidas. Outras, apesar da pouca privacidade,
engravidavam durante a viagem. O papel dessas mulheres ia além do
que se considerava convencional na época. Sempre que necessário, e
às vezes a contragosto, assumiam tarefas e responsabilidades
masculinas, em uma dupla jornada de trabalho. Embora casos de
gravidez e partos fossem comuns, sobre eles pouco foi dito nos
diários. O tabu que envolvia o corpo, suas funções e suas
necessidades impediam-nas de detalhar sequer os problemas ou
dificuldades de uma gravidez sob tais condições. Em uma entrada
curta, simplesmente registravam a chegada de uma nova criança,
quase que como uma função contábil de registrar mais um elemento
na família. Crianças, em geral, não figuram tampouco como
personagens principais dessas jornadas. Há registros de mortes em
decorrência de quedas das carruagens ou doenças, de natimortos e,
claro, relatos de morte de pais em que os órfãos figuram como objeto
de consternação. No entanto, no âmbito mais geral, as crianças
representavam a menor das preocupações que constam das
narrativas.
Segundo Schlissel,

Entre 1840 e 1870, cerca de duzentos e cinquenta mil


americanos cruzaram o território continental dos Estados
Unidos, cerca de quatro mil quilômetros numa das maiores
migrações dos tempos modernos. Eles viajaram em direção
ao Oeste, para reivindicar terras nos territórios de Oregon e
Califórnia e também para explorar a mineração de ouro e
prata. (...) Esse movimento em direção ao Oeste significou
um imenso deslocamento de jovens famílias. (SCHLISSEL,
1982, p.10)

Um número expressivo de diários e narrativas dessa travessia foi


publicado ou catalogado em arquivos públicos ou coleções
particulares, cerca de oitocentos relatos. Em sua maioria, são relatos
circunscritos ao âmbito familiar, similares aos nossos livros de
família, transmitidos de geração a geração. Alguns desses relatos
foram publicados em edições de jornais locais ou enviados para
familiares na cidade de origem como forma de preparação para suas
futuras jornadas. Além dos registros de eventos relacionados aos
membros da família, incorporam também informações sobre rotas,
pontos para abastecimento de água e provisões para as pessoas e
animais de carga. São esparsas ou quase inexistentes as expressões
de emoções ou de subjetividade. Em resumo, essas narrativas
representam quase que uma jornada mítica para os homens e o seu
contrário, para as mulheres. A perspectiva masculina, por exemplo,
acentua a ferocidade e beligerância dos nativos, enquanto que, para
as mulheres, os nativos são muitas vezes retratados como indivíduos
generosos e prestativos.
Outro movimento migratório voluntário a produzir relatos
pessoais em trânsito surgiu da longa trajetória de migração partindo
da Reino Unido em direção a Austrália para povoação do território e
exploração econômica. Em No Privacy for Writing – shipboard diaries
1852-1879 (Sem privacidade para escrever – Diários de bordo 1852-
1879), Andrew Hassam compila oito diários escritos durante essa
longa viagem. O título evoca as condições sob as quais os narradores
se encontravam e a contradição entre a falta de privacidade para a
realização de uma escrita pessoal, comumente considerada íntima ou
privada. Apesar disso, tais narrativas possuíam outras funções, para
além daquelas atribuídas a uma escrita íntima. Uma delas era a de
registrar a viagem e o destino alcançado e, uma vez estabelecidos no
novo país, enviar os relatos para os familiares e amigos no país de
origem. Servia também como manual de viagem, contendo
orientações e dados importantes para serem seguidos para
conhecidos ou familiares que pretendiam realizar a mesma travessia.
Os oito diários apresentados no livro representam uma outra
perspectiva, a da classe trabalhadora, em oposição aos inúmeros
diários de cidadãos da classe média britânica. Empregando uma
linguagem menos literária do que o comum, os diários da imigração
aproximam-se, nesse caso, de uma oralidade distante dos diários da
classe média. Os sotaques e regionalismos abundam nos relatos,
imprimindo-lhes uma singularidade.

Narrando a experiência do refugiado – vozes cooptadas

O título dessa reflexão, a citação de uma canção de Caetano


Veloso (vai fazer a referência musical? Álbum, data?), “No dia em que
eu vim-me embora”, em que o compositor tematiza a partida do
ambiente familiar em direção à despersonalização do indivíduo na
vida da cidade grande, contém um verso emblemático, por distração,
omitido do título: “Afora isso, ia indo / Atravessando, seguindo /
Nem chorando, nem sorrindo / Sozinho pra capital.” Atravessar e
seguir têm sido dois verbos presentes nas narrativas de refugiados.
Remetendo ao que o escritor Nguyen disse sobre o refugiado jamais
deixar de ser refugiado, os dois verbos permanecem nas narrativas
pois a travessia jamais se conclui para o refugiado. Ele continua
seguindo a jornada após a forma abrupta com que foi forçado a
partir. As notícias que nos chegam diariamente sobre naufrágios de
balsas e barcos, na travessia do Mediterrâneo, dos acampamentos de
refugiados em Calais, do muro a se erguer para evitar a travessia
desses refugiados pelo Eurotúnel e sua entrada no Reino Unido, essas
e muitas outras imagens têm gerado não somente consternação, mas
inserido a questão dos refugiados em diferentes arenas de discussão.
Em nosso caso específico, a reflexão se dá a partir da forma como
essas narrativas pessoais de refugiados acontecem e qual a utilização
que delas se faz, em prol da causa em si.
Em Human Rights and Narrated Lives: The Ethics of Recognition
(Direitos Humanos e Narrativas de Vida: Ética do Reconhecimento),
Kay Schaffer e Sidonie Smith argumentam que a década de 1990 foi
considerada como (sugestão de suprimir) a década dos direitos
humanos, assim como pode também ser considerada a década das
narrativas de vida, ou, “a era das memórias” (SCHAFFER E SMITH,
2004, p.1). Explicam que

Vítimas de abusos em todo o mundo têm feito depoimentos


sobre suas experiências em uma enxurrada de narrativas
orais ou escritas. As pessoas se encontram e contam
histórias, ou leem histórias de culturas diferentes, eles
começam a verbalizar, reconhecer e testemunhar uma
diversidade de valores, experiências e modos de imaginar
um mundo socialmente mais justo e atento às injustiças,
iniquidades e sofrimento humano. De fato, nos últimos vinte
anos, as narrativas de vida se tornaram um dos mais fortes
meios para veicular reivindicações dos direitos humanos.
(idem)
O problema que emerge dessa quantidade significativa de
narrativas de vida e reivindicações de direitos humanos se apresenta
na forma como o sujeito se despersonaliza dentro da economia
narrativa escolhida. A causa passa a ser mais importante do que a
autonomia do sujeito narrado ou narrador de sua própria história de
vida. Antologias de histórias de abusos e violências cumprem sua
função de informar ou educar um leitorado mais amplo acerca de
violações de direitos humanos assim como engendrar uma
consciência mais atuante na luta contra essas violações. As narrativas
são, comumente, organizadas em torno de um tema e obedecem a
uma estrutura padronizada. Para Schaffer e Smith, “a justaposição de
múltiplas narrativas age como um verniz de anonimidade (mesmo
quando os nomes são mencionados) e uniformidade sobre as
testemunhas” (loc. cit., p.47). Essas narrativas, mediadas e
enquadradas pela pesquisa acadêmica ou pelo discurso ativista, se
submetem ao contexto mais relevante ou expressivo do local cultural
de edição ou difusão, e não do lugar cultural onde as experiências de
vida se deram. Certamente, essa submissão ou enquadramento são
responsáveis pelo efeito de compaixão ou engajamento de um
leitorado mais amplo, ainda que, para isso, custe a redução das
diferenças em nome da uniformidade. Alguns exemplos se seguem:
Em 2012, o Alto Comissariado da ONU para Refugiados
organizou uma mostra contendo imagens, informações e estatísticas
colhidas durante os cinco anos anteriores, em pontos diversos do
mundo, sobre a situação dos deslocamentos forçados: “A situação
dos refugiados do mundo – 2012, Em busca de solidariedade” 1, a
partir do livro de mesmo título, publicado em 2012, pela Oxford
University Press. Nessa mostra, há testemunhos de refugiados,
pessoas deslocadas internamente e pessoas sem cidadania. Embora
uma vez mais as fotografias tenham sido o veículo mais eloquente da
situação de indivíduos do Congo, do Equador, da Libéria, de Uganda,

1
http://unexhibitsny.org/in-search-of-solidarity
Tanzânia, Paquistão e Líbia, a mostra oferece também sete vídeos
com depoimentos de refugiados ou cidadãos deslocados. Suas
imagens e suas (sugestão suprimir) vozes relatando suas
experiências operam, aparentemente, como um fator de síntese e de
personalização das estatísticas apresentadas para ilustrar a proporção
do problema. A humanização dos dados e estatísticas de que dispõe o
órgão se faz necessária principalmente para atrair atenção e
solidariedade ao problema. No entanto, as narrativas de vida acabam
por ser submetidas a um processo de uniformização, de formatação
aos objetivos pretendidos. Nesse caso, o que está em risco é a
autonomia do sujeito que narra sua história e se narra no processo
de construção de sua autoimagem através da narrativa pessoal. Os
depoimentos, normalmente utilizando metodologias da História Oral,
obedecem a um balizamento pautado nos aspectos considerados a
prioristicamente como relevantes para a campanha – seja ela uma
exposição, livro ou arquivo digital permanente. Entre agosto e
setembro de 2016, em outra exposição sobre a crise dos refugiados,
na sede das Nações Unidas, mais estatísticas e imagens pungentes
atualizaram o conhecimento que o mundo vem adquirindo sobre a
crise.
Além dos previsíveis subprodutos provenientes das exposições e
campanhas sobre refugiados, outra exploração do tema vem se
registrando também no mercado editorial. No início de setembro de
2016, a jornalista Charlotte McDonald-Gibson publicou Cast Away:
True Stories of Survival from Europe’s Refugee Crisis (Párias:
Histórias reais de sobrevivência da crise de refugiados na Europa). O
livro é apresentado como uma das primeiras obras de narrativa de
não ficção sobre o desenrolar da crise de refugiados e da guerra civil
na Síria. Cast Away descreve as histórias dolorosas e as decisões
impossíveis que migrantes precisam tomar enquanto seguem em
direção ao que acreditam ser uma vida melhor. Segundo os editores,
a veterana jornalista oferece um vívido e próximo olhar sobre as
pressões e esperanças que levam os indivíduos a arriscarem a própria
vida. Na introdução, a jornalista expõe o cerne da questão ao
mensurar o impacto das imagens e das estatísticas sobre refugiados
mortos durante as travessias no âmbito político da comunidade
europeia. Segundo ela,

Embora políticos tenham se mostrado capazes de lamentar


os mortos sem nomes, eles têm demonstrado menos
compaixão em relação aos vivos sem nomes buscando
refúgio em solo europeu. É por demais fácil para governos e
para o público virar as costas para os refugiados, pensar
neles como um pouco menos humanos, e deixa-los a mercê
de seus próprios destinos. Mas eles têm nomes e histórias
para contar, e eles merecem ser ouvidos. (MCDONALD-
GIBSON, 2016, p.229)

O livro cobre os últimos cinco anos de pesquisa da jornalista


tanto em órgãos governamentais quanto em organizações de ajuda
humanitária. As fontes primárias e mais importantes, contudo, são as
diversas entrevistas que realizou ao longo dos anos com refugiados.
Fatos são corroborados, sempre que possível, por fotografias e vídeos
fornecidos pelos entrevistados. Além disso, a jornalista afirma ter
consultado os extensivos relatórios de organizações para os direitos
humanos e também matérias jornalísticas. A narrativa, em terceira
pessoa, inclui citações literais ou indiretas dos entrevistados. Os
nomes reais são utilizados, embora, em alguns casos, para efeito de
resguardar a segurança de parentes ainda em seus países de origem,
alguns entrevistados optaram por um pseudônimo. São histórias que
começam em 2011, quando o exército de Muamar Kaddafi inicia uma
faxina étnica, expulsando imigrantes nigerianos, e termina com a
reação de refugiados na Europa, com os atentados sangrentos de
Paris, em dezembro de 2015 – mais especificamente, com o temor de
que o cerco aos refugiados se aperte mais e seus desejos de uma
nova vida se tornem inviáveis.
Cartografia de vidas – The Mapping Journey Project

O projeto de Bouchra Kalili, artista e diretora de cinema


marroquina, radicada na França, chamado The Mapping Journey
Project2, se constitui de oito vídeos curtos, em que um narrador
descreve seus deslocamentos. Em vez de um rosto, como nos
formatos anteriores, Kalili optou por uma câmera fixa sobre um mapa
da Europa, África e Oriente Médio. Sobre o mapa, a mão do narrador
traça o seu percurso em busca de asilo e de oportunidade de vida. As
cores de um mapa geopolítico em constante transformação vão sendo
maculadas pela tinta da caneta preta, na maior parte das vezes em
um vai e vem que representa uma jornada destituída de um destino
preciso. Em muitos casos, o percurso da fuga da morte e da
violência. Suas vozes narrando a jornada podem ser ouvidas em
fones de ouvido disponíveis no local da exibição. Alguns narradores
utilizam seu idioma de origem, outros, o idioma da colonização.
Apesar de o objetivo da exibição ser a composição de retratos, ou
portrait, dos refugiados, como acontece com frequência em
documentários, o resultado da subversão de Kalili é imediato: um
retrato sem face, como os narradores, que não têm cidadania,
invisíveis para grande parte das sociedades do mundo. As mãos
traçam rotas e itinerários muitas vezes ilegais, através do Mar
Mediterrâneo e dos países e continentes em seu entorno, guiando o
espectador através do seu conhecimento formal da geografia política,
tanto colonial como pós-colonial. Há movimentos e interrupções, que
podem representar possibilidades de refúgio ou interferência das
redes de vigilância, policiamento e repressão ao movimento dos
refugiados.
Embora a projeção dos mapas e das mãos traçando jornadas
seja, em si, um elemento metafórico, o discurso dos narradores é
sempre o mais direto possível. Quando dizem “mar”, “travessia”,

2
Exibido no Museu de Arte Moderna, MoMA, em Nova York.
“ondas”, “fronteiras”, querem dizer exatamente isso. O repertório de
verbos também é eloquente. Movimentos, transferências,
interrupções culminam com um desejo ou uma esperança. Nomes de
cidades representam, por outro lado, mais do que indicações locais.
Figuram como possibilidades de parada e estabelecimento. No retrato
sem retrato que Kalili oferece dos narradores refugiados ou
imigrantes, o corpo está presente não somente na mão que traça as
linhas reais, assim como as vozes que relatam as jornadas, mas na
implicação do movimento dos corpos em seu trajeto de fuga. Pela
conjunção das vozes e a visualização dos mapas, os corpos carregam
suas dores, desejos, medos, ambições. A artista explica que seu
projeto é

(...) uma tentativa de reativação da tradição da poesia civil,


como redefinida por Pier Paolo Pasolini: o direito exercido
por um indivíduo de se dirigir ao corpo social, a partir de
uma perspectiva singular, para articular uma voz coletiva.
(KALILI apud AYAD, M.; YLDIZ, M.A., 2014).

Ao contrário do que se poderia imaginar, a ocultação do rosto no


retrato do narrador, além de inaugurar uma forma narrativa que
confronta as narrativas hegemônicas de deslocamento, obedece
também a um imperativo na condição do refugiado ou pária:
visibilidade seria um risco, pois os mecanismos de vigilância atuariam
na repressão mais direta. O que se observa, contudo, é que essas
vozes e mãos sobre mapas orquestram um discurso de denúncia e de
captação de ações solidárias. Diferentes, certamente, das narrativas
hegemônicas apresentadas anteriormente, mas igualmente potentes
e, talvez, mais eficientes.

Vidas móveis: O telefone celular e os movimentos migratórios


de refugiados
De acordo com os sociólogos Anthony Elliot e John Urry, no livro
Mobile Lives, publicado em 2010,

(...) diante da disponibilidade da telefonia móvel, da


internet, da viagem barata de carro e avião, não é nenhuma
surpresa que mais pessoas fiquem fascinadas com as novas
maneiras de explorar suas vidas privadas e relações íntimas
à distância.” (ELLIOT & URRY, 2010, p.85).

Seguindo a mesma seara, Gillian Whitlock, em Soft Weapons:


Autobiography in Transit, confirma que “as novas tecnologias
alteraram o tecido da expressão autobiográfica” (WHITLOCK, 2010,
p.69). No entanto, questiona em que medida essas novas tecnologias
que modificam a relação entre o trabalho autobiográfico e a narrativa
dele decorrente podem, também, “facilitar tanto a justiça social
quanto a reflexão acerca da soberania, comunidade e subjetividade
entre culturas” (idem, p.137). O conceito explorado no livro, o da
autobiografia como “arma macia” ou “flexível”, corrobora a
vulnerabilidade das narrativas pessoais serem cooptadas pela
propaganda ou por movimentos políticos.
De fato, os novos aparatos tecnológicos não somente tornaram
viáveis as produções audiovisuais autobiográficas, como propiciaram
o surgimento de novos canais de produção e difusão de um
jornalismo alternativo, com o compromisso de oferecer o ponto de
vista ignorado pelos grandes grupos de comunicação hegemônicos. O
caso mais emblemático é, naturalmente, a Mídia Ninja, cujas
transmissões ao vivo de vídeos, captados muitas vezes pelos próprios
participantes dos protestos de 2013, contestavam as versões oficiais
de ordem ou de ação pacífica da força policial. Nessas produções,
percebia-se também uma forma de narrativa pessoal em ação, que
muito enriquecia as mensagens e o valor da narrativa ali criada. Essa
semente parece germinar em face de projetos como o do londrino
Imran Azam, fundador do site This is Reel (www.thisisreel.co), em
que oferece consultoria e treinamento para a produção de vídeos em
rede social. Azam ministrou uma oficina de criação de vídeo em
celular para um grupo de refugiados sírios, em agosto de 2016, na
Holanda. A necessidade de dar voz ao refugiado, fora da visibilidade
padronizada da mídia convencional, levou Azam a investir nesse
projeto. A constatação de que os telefones celulares se prestavam a
muitas outras funções – para além das óbvias – tem sido reveladora.
No ano passado, durante um evento do partido republicano, Donald
Trump expressou sua surpresa diante do fato de que refugiados em
trânsito têm telefones celulares. Trump não foi o único. Diversos
artigos foram publicados em jornais e revistas explicando a
importância do celular durante as jornadas e travessias dos
refugiados.
Os aparelhos funcionam como instrumentos de localização e
orientação, por meio de aplicativos de GPS e mapas. Aplicativos como
o Facebook e Whatsapp são extremamente úteis para manter a
comunicação com familiares e amigos tanto no local de origem como
em futuros países de destino. A obtenção de informações práticas
sobre postos de inspeção, sobre risco de prisões e sobre
possibilidades de estabelecimento e trabalho são parte do que os
grupos formados nessas redes sociais podem proporcionar. Dessa
forma, o celular é realmente um instrumento essencial nessa
travessia. Tanto que o Alto Comissariado da ONU para Refugiados
(UNHCR) já distribuiu cerca de 33 mil chips de celular para refugiados
sírios, além de 85 mil lanternas por energia solar que funcionam
como carregadores para celular. Já não se trata mais de um item
supérfluo. Para alguns, telefones celulares funcionam como um
arquivo com conexões ainda mais profundas. Shadad Alhassan, 39,
conta que "perdeu tudo" quando sua casa foi bombardeada, em
Damasco, onde ele trabalhava como eletricista em um prédio em
construção. "Minha esposa morreu no bombardeio", diz. "Agora não
tenho nada além de meus dois filhos." Seu celular guarda fotografias,
sua única conexão com a vida que um dia teve. (BRUNWASSER,
2015, p.A1).
Infelizmente, a crise se encontra longe do fim. Uma grande onda
de narrativas pessoais de refugiados, seja mediada, seja produzida e
vocalizada pelos próprios, ainda surgirá para alimentar voracidades
do mercado editorial e jornalístico. Mas certamente, muitas dessas
narrativas servirão para registrar a perspectiva do sujeito deslocado,
para auxiliar na compreensão do sentimento de não pertencimento e
ampliar a visibilidade dos deslocamentos forçados em seus aspectos
transnacionais e transculturais.
Referências

AYAD, M., AND M.A. YLDIZ. "Profile: Bouchra Kalili." Canvas


Magazine. Spring, 2014.
BRUNWASSER, Matthew. ""A 21st Century Migrant's Essential's:
Food, Shelter, Smartphone"." The New York Times, 26 Agosto 2015.
DA DEUTSCHE WELLE. G1 Mundo. 18 Agosto 2016. Acessado em 14
Setembro 2016. Disponível em
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/08/imagem-de-menino-
ferido-vira-novo-simbolo-da-guerra-na-siria.html.
ELLIOT, A., J. URRY. Mobile Lives. Londres: Routledge. 2010.
HASSAM, Andrew. No Privacy for Writing - Shipboard diaries, 1852-
1879. Melbourne: Melbourne University Press, 1995.
MCDONALD-GIBSON, Charlotte. Cast Away: True Stories of Survival
from Europe's Refugge Crisis. Kindle Edition. New York: The New
Press, 2016.
NGUYEN, Viet Thanh. "The Hidden Scars All Refugees Carry." The
New York Times, 3 Setembro 2016.
SCHAFFER, Kay; SMITH, S. Human Rights and Narrated Lives: The
Ethics of Recognition. New York: Palgrave Macmillan, 2004.
SCHLISSEL, Lillian. Women's Diaries of the Westward Journey. New
York: Schoken Books, 1982.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003.
WHITLOCK, Gillian. Soft Weapons: Autobiography in Transit. Chicago:
University of Chicago Press, 2010.

Você também pode gostar