Você está na página 1de 189

Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
Apresentação

Anticonto
O pregador
A lha de Drácula
A aparição
Por que escrevo?
O bordel
Tarzan e o império perdido
Vejo
Um conto quase mínimo
Le bateau ivre
A moça de óculos
Em preto e branco
Eterno
Escrito num guardanapo
Noites
Das memórias de uma trave de futebol em 1955
A dama de branco

Carta marcada

Sobre o autor
Créditos
Apresentação

“Às vezes, penso que a dama de branco é a própria morte. Sei que isso é
um modo de prendê-la e logo me penitencio e sei que em outro momento
pensarei outra coisa. A morte não passa de uma obsessão minha.” Essas
palavras estão na narrativa que dá título a este livro — a última que Sérgio
Sant’Anna publicou em vida, dez dias antes de morrer.
Nos últimos anos, com problemas de saúde e sentindo a idade chegar,
Sérgio não escondia uma certa obsessão pela morte. Contudo, a pandemia
deu contornos mais agudos e concretos a essa obsessão e acirrou ainda mais
sua urgência criativa. Em abril de 2020, ele escreveu em seu per l numa
rede social: “Não quero assustar ninguém, mas acho a peste que nos assola
simplesmente aterrorizante. Não encontro outro modo de reagir senão
escrevendo”. No mês seguinte, a peste que nos assola interrompeu a vida e
a obra de um escritor obcecado pelo seu ofício e que, depois de meio
século de carreira, continuava em pleno domínio de seus poderes
criadores.
Numa fase da vida em que muitos artistas se aposentam ou se tornam
pastiches de si mesmos, Sérgio Sant’Anna continuava produzindo com
regularidade e qualidade assombrosas — nada menos que cinco títulos em
menos de dez anos, o último dos quais O anjo noturno, publicado em
2017. Em seus livros mais recentes, evitava chamar o que escrevia de
“contos”, preferindo o termo “narrativas”, que segundo ele permitia “mais
liberdade de temas, abordagens, tamanhos. Textos de cinquenta páginas ou
de página e meia”.
Este livro reúne todas as narrativas publicadas por Sérgio Sant’Anna
depois de O anjo noturno — onze textos que apareceram em jornais,
revistas e sites entre outubro de 2018 e maio de 2020. É importante dizer
que todas as narrativas que ele publicou na imprensa (e mais tarde na
internet) desde meados da década de 1970 foram depois incluídas em seus
livros, praticamente sem mudanças em relação à versão original. Assim,
tudo indica que esses onze textos seriam incorporados por Sérgio ao seu
próximo livro.
Mas se é verdade que todas as narrativas publicadas na imprensa
acabavam incluídas em seus livros, também é verdade que neles havia
sempre muito material inédito; com este livro, não foi diferente. Depois da
morte de Sérgio, foram encontrados em seu computador diversos arquivos
com textos inéditos. Alguns deles estavam visivelmente incompletos,
contendo apenas rascunhos e anotações; outros estavam claramente
concluídos (por exemplo, a expressão “ nal” constava no título do
arquivo). Outros, ainda, pareciam a meio caminho entre um esboço e um
trabalho terminado. Ao organizar este livro, decidi incluir os textos com
marcas de nalização e também os que me pareceram ter unidade e
qualidade su cientes para atender aos rigorosos padrões do autor. Assim,
foram acrescentadas mais seis narrativas inéditas, num total de dezessete
textos que formam a primeira parte deste livro.
A segunda parte deste livro é a novela inacabada “Carta marcada”, que
merece um comentário especial. Sérgio Sant’Anna trabalhou
extensamente nessa narrativa: em outubro de 2019, ele me disse que estava
escrevendo “uma novelinha”; em abril de 2020, poucas semanas antes de
morrer, disse que tinha terminado a novela, “ainda sujeita a revisões”, e
contou que já tinha até vendido os direitos de adaptação para o cinema. A
versão mais recente encontrada em seu computador mostra que, de fato,
Sérgio ainda pretendia fazer algumas revisões, como provam diversas
anotações e comentários em negrito inseridos ao longo do arquivo. Além
disso, há algumas inconsistências no texto, em particular uma nítida
clivagem entre o terço inicial e os dois terços nais da novela. A narrativa
começa na Belo Horizonte do nal da década de 1960 e faz referência a
questões próprias daquela época, como a ditadura militar; mais adiante, a
história passa abruptamente para o Rio de Janeiro dos dias de hoje, com
elementos contemporâneos como celulares, aplicativos etc. Os
personagens são os mesmos, mas não há qualquer sinal de que tenham
envelhecido, nem indicação alguma de passagem do tempo. Esse cavalo de
pau narrativo sem maiores explicações provavelmente não surpreenderia o
leitor se aparecesse numa novela de César Aira (escritor argentino que o
autor admirava e que traduziu dois de seus livros para o espanhol), mas é
algo um tanto inusitado em se tratando da obra de Sérgio Sant’Anna. É
muito provável que, numa revisão nal, ele removesse essas
inconsistências. De qualquer forma, está claro que Sérgio tinha muito
apreço pela novela e considerava que todos os seus elementos básicos já
estavam presentes. Assim, diante da escolha entre não publicar o texto
inacabado ou publicá-lo mesmo com suas eventuais imperfeições, optou-se
pela segunda alternativa, no entendimento de que tais imperfeições são
bem menores que os seus méritos.
Como é fácil notar, há muitos temas e ideias recorrentes neste livro: a
insigni cância do homem diante do universo, a devoção pela arte e pelos
grandes artistas conceituais como Marcel Duchamp e Erik Satie, a paixão
pelo futebol, as jornadas pelo imenso continente da memória, o sexo
naquilo que ele tem de mais cru e de mais sublime, a angústia diante da
morte. São temas e ideias que atravessam toda a obra de Sérgio e, nesse
sentido, este livro pode ser entendido como uma espécie de suma ou
síntese nal daquilo que o fascinava e o impelia a escrever. Em outras
palavras, o que o leitor encontrará aqui é uma gura central e
incontornável da literatura brasileira revisitando suas principais
obsessões — e, infelizmente para nós, pela última vez.
Em uma das últimas postagens em seu per l numa rede social, Sérgio
sentenciava: “O Brasil é um lme de terror”. Nesse lme, os mortos na
pandemia do coronavírus contam-se em centenas de milhares, e entre eles
um dos maiores escritores brasileiros — que, numa das narrativas deste
livro, escreveu: “uma esperança insensata me faz querer crer que depois da
morte prosseguirei nesse sonho, embora saiba que o sentimento do amor só
pode ser tão intenso e urgente porque temos a certeza de morrer um dia”.

Gustavo Pacheco
fevereiro de 2021
Anticonto

Após publicar cerca de vinte livros, sobretudo de contos, que o zeram


ser considerado, no gênero, um dos maiores escritores do país, ele sentiu
que, se criasse mais uma história curta que fosse, estaria se repetindo ou,
pior ainda, escrevendo algum texto sem relevância. Então resolveu parar,
mas, tão habituado que estava a escrever, sentiu-se vazio e tentado todos os
dias a retornar ao ofício.
Não escrever também exigia aplicação e disciplina diárias, o que ele
conseguia a duras penas. Pensava que talvez não valesse mais a pena viver,
porque sua vida não tinha mais nenhum sentido, mas suicidar-se estava
fora de cogitações, não só por medo mas porque atingiria pessoas queridas.
E ele também era vaidoso e temia que a morte autoin igida pudesse ser
tomada como a con ssão do fracasso literário e existencial, apesar de tantos
artistas bem-sucedidos terem se matado muitas vezes no auge do sucesso.
E, lá no íntimo, ele também guardava uma religiosidade de infância que o
fazia temer as penas eternas do inferno destinadas aos suicidas.
Às vezes ansiava pela morte, natural e sem dor, mas havia a questão do
nada, o nada que poderia lhe parecer doce, mas isso só fazia sentido para os
vivos. Na verdade, não se consegue verdadeiramente imaginar o nada.
Mas ele lia cada vez mais, e esta não deixava de ser uma realização, pelo
menos ele queria crer, pois uma obra só se realizava plenamente na leitura.
E só lia os ótimos autores, pois a má literatura lhe parecia uma
abominação. Tudo estaria muito bem, não houvesse a torturá-lo a inveja
dos grandes escritores.
O verdadeiro consolo estava no conhecimento que ele procurava,
também nos livros, de astronomia. A noção de que havia trilhões de astros,
com seu calor imenso e o som de explosões, para nenhum ser sentir, como
também os enormes espaços a bilhões de anos-luz que lhe davam uma
noção de que não apenas ele, mas o próprio planeta que habitava, eram
ín mos. E isso sim era um pensamento que o extasiava, admitindo a
existência de Deus, mesmo que isso não signi casse, necessariamente, a
sua ressurreição.
Havia também teorias de um eterno retorno e ele temia repetir sua
infelicidade; mas, por outro lado, vivera muitos amores e prazeres e ah,
como seria bom repeti-los, só que com o conhecimento que adquiria agora,
já um homem solitário e envelhecendo, que devia ter prestado mais
atenção em cada um desses momentos que poderiam ter sido vividos com
uma atenção plena. Mas isso ele conseguiria escrevendo sobre essas
mulheres de sua vida, e a literatura, então, teria valido muito a pena.
O pregador

Eu estou ali sentado no meu banco habitual. Fica bem em frente ao


cinema Odeon. No letreiro, em letras grandes e vermelhas, está anunciado
um lme chamado Perdida.* Quando o sinal fecha para os carros, há um
pouco de silêncio e dá para ouvir, ao longe, a música que vem do clube
Bola Preta. Sambas e boleros dançantes, ouvem-se mais os instrumentos de
sopro. É muito bonito.
Em geral não presto nenhuma atenção nesses pregadores de rua, uns
evangélicos chatíssimos ou uns loucos. Mas nessa noite prestei. Talvez
porque, assim de madrugada, começando a cair uma chuva ninha, até os
pivetes foram se abrigar sob as marquises e sou o único ouvinte. E porque
ele cravou os olhos bem xos nos meus e disse: “Não venho lhes trazer
nenhuma certeza, mas a dúvida”.
E se achei importante grafar o que ele disse, foi porque suas palavras me
pareceram importantes, mexeram comigo. Mas nem posso garantir que sou
inteiramente el às palavras dele, porque não decorei e talvez esteja
acrescentando alguma coisa por minha conta.
Ele veio, pôs seu pé direito em cima do banco em frente ao meu e
começou a falar. Ele deve ter uns sessenta anos, usa um terno cinza roto e
puído, uma gravata azul velha e sapatos pretos, desses de amarrar, também
muito gastos, mas impecavelmente engraxados.
Ele disse que a palavra pode vir quando menos se espera. E essas
palavras saem de sua boca sem nenhuma intenção. Isso não quer dizer que
a palavra seja a palavra de Deus e que no in nito das coisas alguma força
mais poderosa há de existir. Mas, se existir, isso não garante que vamos ter
outra vida. Mas tudo é possível, até que Deus ainda esteja se formando
muito aos poucos, da soma paulatina de tudo, inclusive de nós.
Mas, também, poderá não haver nada, pelo menos pensante. Terrível
isso? Não, pelo contrário. Já tentaram imaginar que isso poderá nos trazer
uma espécie de paz absoluta, de júbilo? Alguns saem à rua para trazer a
palavra de Deus. Outros, como eu, trazem a palavra da dúvida de nenhum
Deus, do vazio absoluto no in nito do universo.
De todo modo, nesse in nito terá havido um tempo em que zemos
parte dele e convém não desperdiçar a oportunidade, que talvez seja a
última, com coisas vãs. Fico procurando as palavras certas para exprimir
isso.
Então, se não houver nada, será como se nunca houvéssemos existido?
Ou tudo se repetirá outras vezes? Se assim for, não devemos desperdiçar
nenhum momento, pois vamos repeti-lo. Isso não quer dizer que devemos
sair por aí em busca de prazeres. Prazeres demais levam ao fastio. Não, é
viver cada momento como se fosse o último, valendo por ele mesmo.
O senhor que está aí me escutando, já está com as horas nais batendo
em seu coração. Somos bilhões agora no planeta, mas quantos trilhões já
não terão passado por aqui antes de nós? Não é para car triste com esse
nada, delícia das delícias, como a escuridão na parte vazia do universo.
Pense bem nisso e verá o júbilo tomando conta da sua alma. O vazio
absoluto e silencioso entre as estrelas. Ou soprará algum vento e se ouvirão
trovões, explosões? Como será o som que ninguém ouve? Pense também
no som do mar batendo furiosamente nas pedras em algum oceano
distante, para nenhum ouvido humano. Mas por que não viver isso agora?
Repare, então, que tudo será diferente, uma espécie de eternidade, o som
que ninguém escuta. Consegue imaginar um peixe vivendo até morrer de
morte natural?
Então, a única coisa que lhe é pedida é que leve essa palavra a vossos
irmãos. Se conseguir se lembrar, escreva. Depois faça delas um folheto e
tire dez cópias dele e peça a cada um que o receber que faça mais dez
cópias e as distribua e que cada um deles tire mais dez cópias e assim por
diante. Assim se perpetuará a palavra do Senhor entre os homens. E, se não
houver Senhor, a palavra pura ou o silêncio profundo, como na escuridão
entre os astros, sem nenhum som.
Nesse momento a chuva aumenta de intensidade. As poucas pessoas na
rua procuram se proteger. Os mendigos já estão dormindo sob as
marquises. Mas ele, é como se não fosse com ele, a chuva escorrendo do
seu corpo e do seu terno. Ali, impassível, pregando a palavra. A palavra de
nenhum Deus. A palavra da solidão absoluta do homem. Quando eu saio
para voltar ao meu minúsculo apartamento ali na rua Álvaro Alvim, ele
continua lá falando, palavras que não consigo mais distinguir. Palavras para
ninguém.

* Perdida é um lme brasileiro que de fato existe, muito bom, realizado há muitas décadas por
Carlos Alberto Prates Correia.
A lha de Drácula

O assassinato da senhora Mariana Silveira Barroso, de trinta e três anos,


por seu marido, o engenheiro Flávio Motta Barroso, trinta e cinco anos,
que se suicidou em seguida, em Vitória, Espírito Santo, na noite de 16 de
outubro de 1988, foi noticiado em todo o país. Pois, além de se tratar de
um casal da mais alta sociedade capixaba, as circunstâncias que
envolveram a tragédia foram chocantes e extremamente peculiares. Depois
de matar Mariana com um tiro, enquanto ela dormia na cama do casal, o
empresário levou o corpo da mulher, embrulhado num saco de plástico,
dentro do porta-malas de seu carro, até as obras da construção de um
shopping center, a cargo de sua rma, a Construtora Motta Barroso.
Devido à sua condição de responsável pelo empreendimento, Flávio não
teve di culdades de entrar com o veículo na área cercada para a
construção. Era por volta de uma hora da manhã.
Enquanto os seguranças permaneciam em seus postos, a mando de
Flávio, este dirigiu o carro até um local próximo de um bate-estacas, onde,
retirando o corpo embrulhado de Mariana, atirou-o numa vala de cerca de
dois metros de profundidade, que ele mesmo mandara abrir, três dias antes,
sem dar explicações. A seguir, acionou o mecanismo da máquina
potentíssima que, provida de uma estaca de grande diâmetro, já num
primeiro golpe certamente reduziu o corpo de Mariana a uma pasta
informe.
Antes que os seguranças da obra pudessem chegar até lá, para veri car o
que ocorria — e um deles viu aquele estranho embrulho ser atirado na
vala —, Flávio já retornara ao carro e, no banco traseiro deste, disparou um
tiro no coração, que não pôde ser ouvido, não apenas em razão do ruído da
máquina, mas também porque foi usada uma pistola Magnum calibre 38,
equipada com silenciador. Após desligarem o bate-estacas e antes de
chamarem a polícia, os empregados constataram que o engenheiro já
estava morto. Mas foi só ao amanhecer que se pôde avistar, com um
mínimo de nitidez, no fundo da vala, misturado com lama e plástico, um
pouco daquela massa disforme, esmigalhada, que mal se podia crer
pertencera a um corpo humano.
Na impossibilidade de realizar uma verdadeira necrópsia no corpo de
Mariana, policiais e peritos tiveram de se basear em outros fatos e indícios,
aliás bastante evidentes, para determinar que ela já chegara morta ao local
da sua completa aniquilação. Primeiramente, a quantidade de sangue
encontrada na cama do casal era tanta, com maior concentração onde
devia estar apoiado o tórax da vítima, de bruços, conforme indicavam as
marcas do corpo no lençol, que estava claro que Mariana fora morta ali
mesmo, provavelmente com um tiro no coração e enquanto dormia, pois
não havia sinais de luta no aposento.
Quanto aos tiros, embora a bala que penetrara no corpo de Mariana só
pudesse ser recuperada como uma chapinha metálica, a descoberta de
duas cápsulas de agradas, uma delas no chão do quarto do casal e a outra
no banco traseiro do carro, não deixava dúvidas de que provieram da arma
encontrada junto ao corpo do empresário, em cujo tambor faltavam
justamente dois projéteis. Em razão do silenciador, fora natural que
nenhum empregado da mansão dos Barroso ouvisse um disparo naquela
noite.
Já o segurança da porta de entrada da casa, de nome Oséas, viu, de seu
posto, quando Flávio abriu a porta da garagem, arrastando com esforço um
saco de plástico cinza-escuro com um volume em seu interior. Deixando a
guarita para perguntar, a meio caminho da garagem, se o patrão
necessitava de ajuda, Oséas recebeu ordens, até ríspidas, segundo ele, para
voltar a seu posto, de onde acionou o mecanismo da porta de entrada da
mansão para o empresário sair com seu carro. Perguntado se não imaginara
que dentro do saco de plástico pudesse haver um corpo, Oséas disse que
chegou a pensar nisso, mas que considerou tal ideia absurda, pois era o
próprio patrão quem conduzia aquele volume.
En m, indícios e provas era o que não faltava naquele caso em que o
assassino, já decidido a se suicidar, não se preocupou nem um pouco em
ocultá-los.

Ao me deparar com aquele título de matéria sobre uma pequena coluna


de primeira página num jornal do Rio — Empresário mata esposa em
Vitória, estraçalha seu corpo com um bate-estacas e depois se suicida —, fui
acometido de forte comoção e pelo pressentimento fulminante de que a
mulher assassinada, apesar de ter, naturalmente, outro nome, seria
Angélica.
Ao abrir, com as mãos trêmulas, a página interna do jornal em que a
tragédia era noticiada, sob o título Assassinato e suicídio chocam sociedade
de Vitória, eu como que procurava uma con rmação de meu
pressentimento, que não demorei a ter. Se o nome Mariana Silveira
Barroso, já revelado na primeira página do jornal, nada tinha a ver com
Marlucce A. Vasc., por outro lado este último nome devia ser tão falso
quanto Angélica, servindo para a titularidade de uma conta secreta
destinada a receber os pagamentos — eu esperava que da parte de
pouquíssimos eleitos — das atividades noturnas e clandestinas de Mariana
enquanto Angélica, que eram uma só pessoa, como pude comprovar pelas
fotos. Não que houvesse algo de ostensivamente vampiresco nelas, até pelo
contrário. Na foto escolhida para mostrá-la individualmente — havia
também uma fotogra a de Flávio e outra da cerimônia de casamento —,
Mariana encarnava ela mesma, em primeiro plano, elegantíssima, num
acontecimento social, com seus cabelos presos num coque e o rosto
levemente bronzeado de sol e maquiado sem exageros, mas vivamente!
Um detalhe importante: Mariana não sorria, o que não impedia que
alguém como eu, que procurasse as duas pontinhas dos caninos, as visse,
quase encobertas pelos lábios. Mas não era de se supor que tivesse
vergonha daqueles dentes, pois, na sua condição social, seria facílimo
recorrer a uma correção ortodôntica. E na foto do casamento, celebrado
havia dez anos, Mariana, atravessando a nave central da igreja, de braço
dado com Flávio, sorria abertamente como qualquer noiva, e lá estavam os
seus caninos, sem que, no entanto, passassem uma impressão vampiresca, o
que me levava à conclusão de que Mariana, ou Angélica, só assumia essa
representação quando o desejava, realçando os caninos e outras
características suas, num hábil transformismo, de que eu já tivera uma
prova em Brasília. E que prova.
Quanto a Flávio Motta Barroso, pouco quero falar dele e apenas para
dizer que, na fotogra a do casamento, era um homem jovem, moreno,
atlético e até bonito, mas de uma beleza, eu diria, convencional. O tal tipo
com queixo quadrado. Já na outra foto, datada de 1993, quando fora
escolhido o empresário capixaba do ano, engordara uns dez quilos na
prosperidade e posava à sua mesa de trabalho, sob outra fotogra a sua, na
parede, que o retratava com um capacete na cabeça, em inspeção a uma
obra. Havia nele uma evidente satisfação consigo mesmo e co pensando
se Mariana, com seu comportamento, não reagia a uma odiosa vida
burguesa, sob as asas de um empresário de sucesso. Importante também
frisar que a matéria informava que o casal não tinha lhos, o que,
certamente, contribuíra para um comportamento mais livre de Mariana.
Mas oh, emoção, ao perceber naqueles olhos negros e profundos,
naquele semblante irônico e introspectivo, a minha Angélica. Saber que eu
a tivera nos braços, a possuíra e por ela fora possuído, causava-me,
misturado com outros sentimentos que se atropelavam, um grande
orgulho. E eu tinha uma esperança retrospectiva de que Angélica
conseguira penetrar no que de melhor havia em mim, atrás desta venda
negra, e ao qual procuro fazer jus neste conto, talvez meu último e único
importante conto.
É claro que devorei o noticiário sobre a tragédia de Vitória, tanto nos
jornais cariocas quanto nos do Espírito Santo, que eu conseguia encontrar
em algumas bancas do Rio, sendo que a imprensa capixaba, como era
natural, deteve-se muito mais naqueles acontecimentos. Mas não estou
aqui para transcrever o noticiário de jornais e devo fazer, simplesmente,
uma síntese deles, para informar que o tom geral era de perplexidade
diante daquele homicídio seguido de suicídio, que se abatera sobre um
casal aparentemente feliz e afortunado, da melhor sociedade. Mas, na
ausência de motivos concretos e comprovados que se pudessem
acrescentar, alguns jornais deitaram insinuações, nas entrelinhas, de que
Mariana pudesse ter um amante e que o marido descobrira essa ligação e
matara a mulher com requintes de ódio. Mas que amante era esse cujo
nome ninguém declinava? E uma amiga de Mariana, ouvida pela
imprensa, chegou a dizer que escutara dela que pensava em abandonar o
marido, mas sem con denciar que tinha um outro por quem deixá-lo.
Mas ninguém, mesmo entre os pro ssionais da imprensa mais
inescrupulosa, chegou a levantar a hipótese absurda de que uma senhora
como Mariana pudesse vender o seu corpo, ainda que por um requinte
erótico, o que, certamente, ela jamais zera em Vitória, onde era
conhecida demais para satisfazer seus caprichos anonimamente. Na
verdade, ela devia ter se dado a esses caprichos muito poucas vezes, e
sempre em viagens, o que me enchia de contentamento por ser eu um dos
poucos eleitos, como ela mesma deixara transparecer. E se sou eu,
também, a revelar o seu segredo, é porque o meu conto vivo assim o exige
e, de qualquer modo, já o tinha feito em Brasília, apenas sem revelar a
verdadeira identidade de Angélica.
Um pormenor interessante, pois desvenda um mistério que por si só já
justi ca esta escrita, é que nenhum jornalista ou pessoa ouvida se colocou
maiores indagações sobre o porquê do uso de um bate-estacas, tomando-se
este, então, apenas como um equipamento familiar e acessível a Flávio,
cuja utilização, para estraçalhar a mulher, teria vindo naturalmente à sua
mente ensandecida pelo ódio. Ora, a partir dos caninos de Mariana, que,
em várias fotos, apareciam com nitidez — apesar de não se mostrarem
ostensivos e, vá lá, vampirescos, como ocorrera em Brasília —, não seria
inconcebível para alguém mais imaginativo conjeturar que aquele
tratamento brutal poderia ter sido dado ao corpo da vítima por se tratar de
uma mulher vista por um louco como uma vampiresa, que, segundo o
mito, só poderia ser morta, verdadeiramente, com uma estaca cravada no
coração. Claro que uma estaca da dimensão da utilizada ultrapassava em
muito os limites do razoável, pois, junto com o coração, ia o resto todo,
mas o espírito da coisa, penso, fora preservado.
Parecia, assim, que só eu — e talvez um ou outro eleito? — estava de
posse das informações que permitiam deduzir que Flávio descobrira alguns
fatos relacionados com as atividades clandestinas vampirescas da mulher e,
abaladíssimo pelas loucas traições de que se considerou vítima — e quem
sabe teria descoberto também as contraprestações pecuniárias por meio da
conta de Marlucce A. Vasc.? —, reagira enlouquecidamente, matando-a
como, supostamente, se matam os vampiros.
Fiquei pensando, ainda, se não seria Flávio um requintado connaisseur,
que fora atraído, apaixonadamente, quando conhecera Mariana, pelos
dotes físicos da mulher, desde sua pele alvíssima, seus cabelos negros, até
seus caninos singularmente adoráveis? Neste caso, o que ele não teria
suportado era dividi-la com os outros. E co também pensando que rituais
noturnos não cumprira, pelo menos no princípio de sua relação, o casal?
Por mais cruel que possa parecer, toda aquela história encheu-me de
júbilo.
O fato de Angélica — sim, vou usar este nome — ter morrido
piedosamente enquanto dormia, conforme todos os indícios, e ter seu
corpo aniquilado de forma tão cabal antes de sofrer qualquer processo de
decadência, deixava-me livre para gozar a memória de nosso encontro,
permitindo-me acalentar o pensamento de que ela estaria para sempre
comigo no auge de sua beleza tão peculiar, que não mais poderia ser
desfrutada por ninguém.
E diante daqueles acontecimentos tão espantosos, era natural que me
retornasse à cabeça a ideia do eterno retorno, segundo a qual Angélica e eu
voltaríamos a nos encontrar, depois de um gigantesco, incalculável
intervalo. Na verdade, somente agora, depois desses novos acontecimentos,
repercutiam em mim para valer minhas próprias palavras, pronunciadas
quase ao acaso no Bar do Terraço, para eu admitir que o nosso encontro
em Brasília já poderia ter acontecido em outros tempos in nitamente
longínquos, e que assim poderia suceder novamente. E se esse encontro foi
tão passageiro, tenho-o presente em mim como uma paixão entre um vivo
e uma morta. Mas um dia estarei também eu perdido no indiferenciado,
quando não haverá contagem do tempo e um trilhão de anos se esvairão
em fumaça, de modo que logo teremos de novo uma vida em que, num
determinado momento, estaremos de novo nos braços um do outro, uma
vampiresa e um homem com uma venda negra no olho direito.
Enquanto isso não se der, e por via das dúvidas, guardo Angélica em
minhas palavras e a faço minha neste conto em que o nosso encontro
permanece vivo, e através do qual se saberá toda a verdade sobre o crime
de Vitória. Sim, guardo Angélica nestas palavras, ciente de que sua
representação era sua realidade maior e, se ela não chegou a me amar,
concedeu-me o privilégio de amá-la com fervor, sentimento que sua morte
só fez forti car.
Aos que me considerarem um louco, responderei que sim, sou louco,
mas como Nietzsche quando, já abandonado por sua razão, abraçou aos
prantos um cavalo chicoteado nas ruas de Turim. Mas chego à conclusão
de que também aí havia uma mensagem losó ca, a de que a razão era
insu ciente para explicar o humano. Então, como Nietzsche, abraço o
irracional para estar unido para todo o sempre a Angélica, a lha de
Drácula.
A aparição

Ele jamais poderia garantir se aquilo aconteceu verdadeiramente ou se


foi fruto da sua imaginação afetada pelos remédios. Mas era certo que foi a
ligada na sala ou no quarto da mulher em frente que o levou a ligar o
seu aparelho e apertar um botão ao acaso no seletor de canais. E
imediatamente apareceu na tela um ser de uma beleza invulgar. Seus
cabelos eram curtos e seu rosto de traços harmônicos não permitia que ele
distinguisse se era do sexo masculino ou feminino. Do mesmo modo, seus
trajes — uma calça jeans, camisa branca e um blazer verde — tanto
cariam elegantes, sem ostentação, num homem quanto numa mulher. O
fundo era um breu total, e a iluminação atingia apenas a criatura,
realçando-a. Uma bela música, executada bem baixo, apenas ao piano,
tanto lembrava Erik Satie como Claude Debussy. Mas também podia não
ser de nenhum dos dois.
Uma coisa que o impressionou desde logo era que o ser, com seus olhos
claros, xava diretamente os olhos dele. E ele teve certeza de que a gura,
ou aparição, falava especialmente para ele. Sua língua soava como russo,
mas não era russo. E o mais estranho é que ele entendia tudo. E a criatura
lhe disse:
Quem está acordado a esta hora é, evidentemente, um ser solitário, pois
percebo que ninguém está com você. É com você que estou falando, mas
certamente haverá alguns poucos outros, pouquíssimos, vivendo este
momento-limite da noite. Vocês são os escolhidos, ou escolheram, entrar em
contato comigo, uma espécie de encarnação de um puro espírito. E seria
inútil tentar gravar-me, pois eu não apareceria. Embora minha existência
seja discutível, não o são minha imagem e palavras.
Há uma boa possibilidade, embora não necessariamente, de que você
esteja desesperado, ou talvez conformado, com a solidão e o sofrimento físico
e psíquico que o obrigam a tomar cada vez mais medicamentos. Mas não
morra ainda. Tenho certeza de que você já se conscientizou que a Terra é um
minúsculo planeta no cosmos in nito. E você é um ponto ainda mais ín mo
que um micróbio nesse planeta. E, no entanto, é capaz de re etir em seu
minúsculo ser todo esse cosmos e estar informado de que sua mente pode
estar pensando nos trilhões de astros nesse cosmos, mas, ao mesmo tempo, é
capaz de manter esse contato comigo. Então o universo só existe com a sua
presença para re eti-lo, o que o torna uma espécie de Deus, só que mortal, e
que desaparecerá sem deixar vestígios.
Mas tenho certeza de que você às vezes se indaga se não haverá mesmo um
Deus maior, que seja o senhor de tudo. Isso, nem eu sou capaz de responder.
Quem sou eu? De mim, só sei que sou uma presença que se manifesta num
écran. Há um plano qualquer, e não vou mentir dizendo que sei que plano é
esse. Mas algo é certo, se você — ou vocês — foi criado, deve cumprir esse
desígnio, nem que seja para se autodestruir. Vivendo este momento, e mais
outro e mais outro até que diga basta — e tenho certeza de que às vezes você
está na iminência disso — ou até que uma causa natural o aniquile. Então,
você crê — ou mesmo não — que será o nada absoluto, a eternidade sem a
sua presença, mas por mais que nos esforcemos não conseguiremos entender
esse nada sem a nossa presença. Mas há de reconhecer que mesmo não
sobrevindo as penas ou as alegrias eternas, o universo continua, mesmo que
também ele se extinga, mas se é o puro nada não pode existir. Ou pode? Pois
não será também o nada um grandioso existir? Mas a madrugada daqui a
pouco termina e a Terra terá dado mais uma volta em torno do sol e sabe-se
lá o que será então. Então vamos direto ao ponto.
Por mais mísera e diminuta que seja a sua poeira cósmica, tanto ela existe
que você me vê aqui nesta tela. E há de reconhecer também que, por mais
breve que seja este momento, ele terá feito parte do cosmos. E o mais natural
é que ele prossiga até o ponto, o estágio, para o qual foi designado. E por que
não deixar o rio correr e você chegar ao ponto, ou aos pontos, a que tem de
chegar, nem por isso desprezando o acaso? Você é parte da eternidade,
mesmo que não o queira.
Nesse momento, um início de claridade começou a se fazer lá fora e a
gura, se assim se deve chamá-la, começou a perder os seus contornos,
assim como sua voz começou a ratear numa algaravia. A gura não saiu de
cena ou foi cortada, como se poderia esperar de alguém na . Ao
contrário, ela foi se tornando cada vez mais indistinta, até desaparecer de
todo com a claridade. O homem levantou-se e foi para o seu quarto e tudo
aquilo que acontecera com ele pareceu real e irreal como um sonho, cada
vez mais difícil de lembrar. Não sabia o que seria dele no dia seguinte, mas
deitou-se e pôs-se a dormir imediatamente.
Por que escrevo?

Eu já tinha lido muitas vezes sobre a concisão do bilhete de suicida. Mas


o de Margarida, minha mulher, foi mais do que exemplar. Ao despertar
naquela manhã percebi que Margarida nem mesmo se mexia na cama ao
lado da minha, pois havia tempo que dormíamos separados, numa boa.
Certa manhã um caminhão veio trazer uma cama de solteiro para o nosso
apartamento e Margarida mandou que a deixassem no quarto que lhe
servia de escritório. A partir daquela noite, passou a dormir lá e nem
discutimos o assunto, seu gesto já era eloquente o su ciente para
entendermos que, já que não transávamos havia muito tempo nem
trocávamos de roupa um na frente do outro, por respeito aos nossos corpos,
era natural que dormíssemos em quartos separados. Isso permitia que cada
um preservasse a sua privacidade e se isolasse quando bem entendesse, o
que vinha mais da parte dela do que da minha.
Isso não quer dizer que nos afastamos. Pelo contrário, nos aproximamos
mais, pois não havia mais nenhuma crítica ao envelhecimento um do
outro. E passamos a ver mais vídeos juntos (não fazíamos a grosseria de
car mexendo nos celulares na frente um do outro), a comentar os livros
que cada um estava lendo, mas não a contar nossos sonhos um ao outro,
sabendo que isso era chato, não importava o quanto fosse interessante o
sonho para o próprio sonhador. Mas nos permitimos conversar sobre os
sonhos em geral, concordando que eles eram uma parte importante da
existência humana, quem sabe uma prova de que havia outros mundos
além do nosso, de que continuaríamos a existir em outro plano. Isso foi
Margarida quem disse, pois eu era completamente cético, ateu, quanto a
uma sobrevivência após a morte, mas deixava as coisas no ar, para não
decepcioná-la.
Uma coisa que gostávamos de fazer era contemplar o mundo à janela.
Eu havia comprado um telescópio e falávamos, maravilhados, nos trilhões
de astros, em distâncias prodigiosas, bilhões e bilhões de anos-luz, tudo isso
signi cando para Margarida que, embora ela não tivesse nenhuma certeza,
poderíamos viver vidas incontáveis. E ela chegou a dizer que poderíamos
encontrar pessoas que havíamos conhecido neste mísero planeta,
principalmente aquelas de quem gostáramos. E aquelas de quem não
gostáramos?, eu a provoquei e ela deu uma risada. Aliás, Margarida ria
muito, o que me fazia bem, eu um melancólico incorrigível. Essa você me
pegou, ela disse.
Por todos esses pensamentos, foi uma imensa surpresa para mim
encontrá-la morta, ao lado daquele bilhete: “Desculpe o mau jeito”. Não
perdera seu senso de humor, mesmo num bilhete de suicida, conciso como
costuma ser esse gênero de bilhete, segundo dizem os entendidos. Por mais
que eu quebrasse a cabeça, não consegui atinar com um motivo para o seu
gesto extremo. Estaria ela pensando que passaria desta para melhor, com
uma morte tranquila e sem dor? Pois, segundo me disse o seu médico, a
quem procurei, não seria contrário à ética revelar-me que Margarida sofria
de uma esclerose lateral amiotró ca que a levaria a uma paralisia
progressiva, até não conseguir mexer um só músculo do seu corpo. Mas ela
me magoara e me deixara só e raivoso. Nunca foi tão claro que eu a amava
e agora a odiava por não me levar em consideração quando tomou aquele
monte de comprimidos.
Foi isso que me trouxe àquela sessão espírita. A médium me fez um
monte de perguntas, contei-lhe em detalhes quem era Margarida e como
era o nosso relacionamento e a sua doença. Paguei caro a sua consulta e
ela me pôs em contato com Margarida, que simplesmente falou pela boca
daquela mulher. E o que ela disse foi lacônico (ou não foi) como seu
último bilhete. “Em alguns casos a morte é um upgrade.” Depois perguntei
à médium se ela (aliás, Margarida) achava que eu devia segui-la na morte.
E a resposta foi a seguinte: “Cada um deve seguir o seu caminho próprio”.
Perguntei também se eu a encontraria em outro mundo e ela foi enfática:
“Encontrará, sim, mas cada um deve seguir o seu caminho próprio, até que
tudo esteja esgotado”.
Agora, aos oitenta anos, sinto-me só e não muito lúcido, pois falo
sozinho, às vezes me vejo fazendo as coisas com ela. Quando vejo vídeos,
escolho os que Margarida gostava. Já me vi segurando a sua mão e, quando
voltei a mim, chorava como uma criança.
A minha solidão está me deixando louco, falo sozinho, mas na verdade
me dirigindo a Margarida. Então, respondendo à sua pergunta, escrevo
para me pôr em contato com ela, é a ela que me dirijo, é minha única
leitora, e agora os milhares de pessoas que me lerão nos jornais. Sei que,
pro ssionalmente, sou apenas um mero contista como os outros tantos que
existem no país. Que nas retrospectivas futuras, quando zerem um
balanço, me citarão como um dos representantes do conto desse princípio
do século 21. Mas algo me diz que este conto aqui será lido por muitas
pessoas, alunos de letras, participantes de o cinas e, principalmente, jovens
românticos de ambos os sexos.
Antes que me torne um Werther deste nosso tempo, devo dizer que já
pensei em suicídio muitas vezes. Mas é Margarida dentro de mim que me
diz que devo seguir o curso do rio e que em algum ponto longínquo no
espaço me reunirei a ela, e é fundamental que eu não perca a paciência.
Levando em conta os males e o envelhecimento dos corpos, seremos
apenas almas fundidas uma na outra e assim estarei com Margarida. Aliás,
serei Margarida, e não posso imaginar amor mais completo do que esse
pairando num espaço que ainda não me foi totalmente revelado, e
Margarida me diz que não devo ser prolixo, que devo parar com essa ânsia
de escrever sobre a essência do mundo. De todo modo, devo dizer que é
por isso que escrevo. (Obs.: Margarida não existe. Nem eu.)
O bordel

Tenho um sonho recorrente, embora ele às vezes demore alguns meses


para se manifestar de novo, que é uma visita minha a um bordel bastante
especial. O estabelecimento se situa numa casa numa cidade do tamanho
da Belo Horizonte de algumas décadas atrás, quando ainda não era muito
populosa. Pois a rua onde se localiza é uma rua aprazível, num clima de
primavera ou princípio de outono ao anoitecer. E sinto-me bem, desde
logo, nesse vazio urbano que só é possível nos sonhos. Ao me aproximar da
casa, uma confortável e ampla construção, já me sinto feliz e cheio de
expectativas. Sei que ali vou encontrar mulheres atraentes, mas acabarei
por me ligar apenas a uma delas.
Ao contrário dos bordéis da realidade, nesse é possível se relacionar não
apenas carnalmente, mas afetiva e até quase espiritualmente com uma das
moças. Elas se encontram numa sala não muito iluminada e não aliciam os
fregueses. Aliás, o único freguês, além de mim, é um homem magro, de
terno bem cortado e com uma expressão de amável e um tanto irônica
cordialidade. Pensando agora em todas as imagens, me vejo dentro de um
lme de Buñuel.
As mulheres estão um pouco afastadas uma da outra, não conversam
entre si e antes me tam em silêncio, mas um silêncio cheio de promessas.
As moças, menos uma, têm o rosto com traços que não guardei. Uma delas
lê um livro, sentada, de pernas cruzadas, numa poltrona, deixando
entrever, como se estivesse distraída, um bom pedaço de uma coxa. Não sei
por que me vem à cabeça que o livro é Paroles, de Jacques Prévert, que li
um dia em Paris, aos dezenove anos, viajando sozinho e me sentindo um
beatnik, perambulando pelas ruas e me sentando em bancos de praças e
parques, depois de ter gasto quase todo o meu dinheiro num clube de jazz
e com prostitutas de Pigalle, bairro onde cava o hotel em que eu me
hospedava.
Mas voltando ao último desses sonhos recorrentes, que sonhei dias atrás,
pois nos sonhos subsequentes poderá haver pequenas diferenças, mas
preservando o clima e o espírito do ambiente dentro da casa, vejo um
quadro na parede — ou posso estar inventando isso, como algumas outras
coisas — meio gurativo, meio cubista, que retrata uma mulher de uns
trinta anos contemplando o Cristo cruci cado, no meio da turba cruel e
ignara. Ela usa um vestido da época e, embora não haja título na tela,
penso em Maria Madalena.
O que me leva a escolher entre as mulheres é apenas uma troca de
olhares cheios de signi cações, com aquela em particular. É claro que a
amo desde sempre e é sempre a mesma, embora possa mostrar rostos
diversos em cada um dos sonhos. Neste último é uma morena clara, com
cabelos lisos, traços harmônicos, mas não comuns, e se veste com uma
elegante simplicidade, um vestido de um tecido macio e com nas listras
verticais. Com a agilidade dos sonhos, logo estamos num quarto, com as
paredes bem pintadas de branco e muito asseio. Na cama há uma colcha
também branca e logo estou sentado nela. Não perguntamos os nomes um
do outro, mas sei que ela é ela e eu sou eu, claro.
Sem trocarmos palavras, porque não são necessárias para o nosso
entendimento profundo, ela se despe vagarosamente, mostrando aos
poucos seu corpo, nem de longe perfeito, mas magnético para mim. Pois
sei que ela também me ama e está disposta a satisfazer-me, não apenas
sexualmente, mas afetiva e até espiritualmente, repito. Por m, ca só com
uma calcinha azul-clara sem nenhum daqueles adornos extravagantes que
algumas mulheres vulgares ostentam. É uma calcinha lisa e os seios da
jovem são pequenos e ela os esconde em parte, com uma das mãos, como
se fosse uma dama recatada.
Não chegamos a manter uma relação, pois acordo antes que isso possa
acontecer. Porém desperto cheio de amor e não me queixo de não irmos
até o m. Ainda estou sob a in uência do sonho e sinto-me feliz. Mas
depois tenho que me levantar para as vicissitudes do dia.
Esse sonho me deixa um sentimento de realização, apesar de que anseio
sempre por uma nova noite com ela. Mas não posso prever quando voltará
ao meu ser adormecido. Infelizmente, não basta concentrar-me nessa
mulher para que se manifeste quando eu quero ter esse sonho. Ela surgirá,
me parece, quando quiser, como se tivesse vontade própria, ou quando
minha mente, livre do real, me levar novamente à sua presença. Mas co
na expectativa de que possa surgir outras vezes, até o m dos meus dias, e
cheio de uma supersticiosa esperança ou quase de uma religiosidade que
nenhuma religião poderá oferecer, e às vezes penso, insensatamente, se
esse sonho não será uma antecipação de mistérios que me aguardam depois
da última e aparentemente de nitiva noite.
Descon o que essa mulher é a mesma que me apareceu noutro sonho,
muitos anos antes, quando eu morava no subúrbio de Venda Nova, em ,
com uma mulher de quem gostava muito, assim como ela de mim.
Ficamos tão isolados naquele subúrbio que em breve nossa relação iria se
deteriorar. Mas éramos felizes quando tive aquele sonho em que, sentados
um ao lado do outro no sofá de uma sala, estou com uma psicanalista tão
meiga e atraente que co apaixonado por ela. Sei que ao menos seguramos
as mãos um do outro, e com ela também não tive uma relação, porém
acordei com uma intensa e agradável perturbação. E meu inconsciente me
mostrava que a delidade, como alguém já disse, é uma renúncia, para
homens e mulheres.
Obviamente não contei o meu sonho para minha companheira, pois isso
a deixaria furiosa e agressiva e talvez se vingasse de mim, entregando-se a
outro homem, o que me deixaria também furioso e deprimido. Nessa
época eu fazia análise com um psicanalista que me pedia que levasse para
ele meus sonhos, fantasias, além de aquarelas e protocolos, que eram textos
escritos livremente sem nenhuma censura. Era um homem afável, que
falava pouco, e tenho saudades dos nossos encontros e até hoje guardo
recordações de coisas que ele, que já está morto, me disse. Fui obrigado a
me defrontar com a possibilidade de que a mulher do sonho representava,
entre outras coisas, o analista, mas já poderia ser também a mulher do
sonho recorrente, que só comecei a ter tempos depois.
Tenho ainda outra forte recordação que me acompanha há décadas, de
quando eu tinha vinte e nove anos e me apaixonei por uma moça de
dezoito, que também se apaixonou por mim. Ela era virgem e eu não
queria ter a responsabilidade de tirar sua virgindade. Era linda e cávamos
abraçados, nus, por longas horas e falávamos muitas vezes sobre morarmos
juntos em alguma garagem, mas depois, cheio de culpa, contei o caso para
minha mulher. E esta me disse que também tivera um caso, o que me
deixou louco de ciúmes. Meus con itos, então, se tornaram ainda maiores
e deixamos de nos encontrar, eu e a mocinha, que acabou se tornando
companheira de um jovem músico. Quando ela já estava com ele e não
era mais virgem, chegamos a ter relações esparsas e gostei muito. Aí surgiu
a mulher de Venda Nova e deixei o casamento para morar com ela. Mas
em minhas recordações a mais querida é a garota de dezoito anos.
Atualmente é casada com um americano, mora nos Estados Unidos e já
passa dos sessenta e alguns anos. Chegamos a trocar alguns longos e-mails
muito afetivos e, curiosamente, embora tivéssemos também trocado fotos,
foi como se o tempo não houvesse passado e aí, tendo ela contado sobre
esses e-mails para o marido, a correspondência eletrônica cessou. Disse o
marido que nossas mensagens eram uma Caixa de Pandora que de repente
se abria e paramos com os e-mails. Curiosamente, minha recordação mais
forte e querida entre as mulheres, agora que estou só, é a dela. Tenho
certeza de que, se houvéssemos cado juntos, isso acabaria por
comprometer nosso amor, inclusive porque ela ainda tinha muito por
viver, o que se tornou uma realidade. Éramos, os dois, pessoas de
temperamento difícil, mas como nos amamos! E de alguma forma camos
parados no tempo, o que chega a ser real, pois no disco Clube da Esquina,
em vinil, de Milton Nascimento, com muitas fotogra as na capa, de
amigos e parceiros do artista, há uma foto minha e outra da garota, muito
bela, um ao lado do outro, na última carreira de retratos, no lado esquerdo
dessa capa. O extraordinário e para sempre jovem disco de Milton
certamente sobreviverá a nós dois e estaremos xados no tempo, como
imagens de um sonho vívido, beirando o eterno. E quando ouço alguma
das canções do Clube, a imagem da mocinha vem com toda a força ao
meu pensamento e é bem mais nítida que a de um sonho.
Milton era um negro bonito, um imenso compositor e cantor, que
exercia grande fascínio sobre nós, que estávamos próximos dele. E isso
agora me leva a outra memória, quando eu ainda era muito jovem e
solteiro, de uma negra com quem eu trepava e que trabalhava num bordel
muito frequentado. Ela me tratava muito bem, até com afeto e muita
sensualidade, como se não fosse uma prostituta. E isso me levava a querê-la
sempre entre as colegas.
Depois, já morando no Rio e divorciado havia tempo, namorei uma
jovem atriz negra muito atraente. E o tesão de um pelo outro era fortíssimo
e tivemos belas trepadas. Ela dizia que se ligava em mim por causa do
desejo sexual. Penso que o fato de eu ser branco e ela uma negra tinha um
papel forte na atração recíproca. Depois a relação terminou, nem sei mais
como e por quê.
Agora, aos setenta e seis anos, estou mais ou menos só, embora me
encontre regularmente com uma amiga bonita e interessante, quase como
uma namorada. Mas o bordel dos meus sonhos recorrentes continua a me
trazer grande emoção e alegria, fazendo parte de uma maravilhosa e
imprecisa irrealidade, porém mais forte que o próprio real. E uma
esperança insensata me faz querer crer que depois da morte prosseguirei
nesse sonho, embora saiba que o sentimento do amor só pode ser tão
intenso e urgente porque temos a certeza de morrer um dia.
Tarzan e o império perdido

Alguns alunos chamavam o colégio de prisão, mas íamos para casa nos
ns de semana, menos os que haviam tido algum problema disciplinar e só
saíam no domingo. Como castigo, tinham de decorar textos absolutamente
inúteis, às vezes em latim. E havia também os que moravam fora do Rio e
só iam embora nas férias.
O meu sonho era jogar no primeiro time dos médios, turma para a qual
eu fora designado, por causa dos meus quase quatorze anos. Mas eu não
tinha talento e categoria para jogar no primeiro time, então só disputava os
campeonatos internos. Nesses eu até que me saía bem, de zagueiro central,
porque era bom nas bolas pelo alto e tinha físico para enfrentar os
centroavantes adversários.
Mas para o primeiro time não dava, porque era composto só de craques.
No meio de cento e vinte alunos não era difícil achar uns vinte garotos
muito bons de bola. Além disso, o primeiro e o segundo time treinavam
entre si uma vez por semana, criando um entrosamento perfeito para a
seleção jogar contra equipes visitantes de outros colégios ou de turmas de
bairros. E jogando sempre em casa, porque eram internos, os jogadores
tinham um conhecimento perfeito do campo de terra, cheio de montinhos
e buracos, e não perdiam quase nunca.
Nas horas de recreio, o campo era liberado para todos fazerem o que
quisessem. Também se jogava sinuca, pingue-pongue, vôlei. Ou
simplesmente se podia car conversando em pequenos grupos de quatro
ou cinco, que se formavam de acordo com as a nidades entre colegas.
No meu grupo, de quatro, mentíamos sobre já ter tido mulheres, putas
obviamente. E havia o sonho irrealizável de sermos um dia alunos de um
colégio interno misto. E as namoradas que lá teríamos não serviam como
inspiração para nossas punhetas. Dormiríamos juntos, sim, mas cheios de
carinho e respeito. E os nossos afetos reais eram mais dirigidos aos amigos
íntimos. De vez em quando um de nós tinha um cigarro e fumávamos de
noite no pátio, com as mãos em concha, para não deixar visível a brasa.
Pensávamos muito em seguir carreiras militares, na Marinha ou na
Aeronáutica. E o nosso amigo Eduardo Augusto tinha um prestígio por
tabela por ter um irmão mais velho já voando na Escola da Aeronáutica, o
que ele também pretendia fazer.
Muito tempo mais tarde, dei com uma notícia de jornal sobre a morte e
a queda dele (identi quei-o pelo sobrenome) num avião da Força Aérea, o
que chegou a me emocionar.
Morando todos no Rio, era meio inexplicável que estudássemos num
colégio interno, o que, no caso de alguns, podia ser causado por uma
separação dos pais, mas não se falava nisso. Mas, quanto a mim, o que
meus pais queriam era que eu e meu irmão tivéssemos uma educação
religiosa e eu procurava não me revoltar muito com isso, até porque a
nossa amizade com os colegas era forte e também a nossa cumplicidade
nas transgressões disciplinares. Tentando me lembrar agora de nossos
encontros no recreio noturno depois do jantar, quando nos sentávamos
num muro meio alto nos limites do pátio, o que vem à cabeça é uma
mistura de saudade, poesia e melancolia.
Nas quartas-feiras havia sessões de cinema num auditório grande para
todos os alunos. Os irmãos costumavam escolher lmes de aventura, guerra
e faroestes. Cenas de sexo nem pensar, e dava para detectar quando a
película havia sido cortada. Mas uma vez deixaram escapar por um
segundo, num faroeste, uma cena em que um rapaz e uma moça novinhos,
amigos na pré-adolescência, tiram, inocentemente, as roupas num segundo
e mergulham de costas num riacho. Aquela cena nunca mais me saiu da
cabeça e creio que da dos outros também.
O irmão Francisco, regente dos médios, que também chamávamos de
seu Chico, era muito boa-praça e tentava fazer com que nos sentíssemos
bem no colégio. Todos gostávamos dele, que podia até nos ajudar em
momentos de crise pessoal. Depois daquele último recreio, o da noite,
íamos para uma grande sala de estudos até as oito e meia, quando subíamos
para o dormitório, para dormir às nove. Acordávamos às seis e meia e íamos
direto para a missa diária, chatíssima, antes do café da manhã. Os que
estavam em estado de graça, depois de ter se confessado na véspera,
podiam até comungar. Cheguei a fazer isso algumas vezes, pois era
convencido nas aulas de religião que existiam o céu e o inferno e podia-se
merecer um ou outro. Pensava em santos e demônios, e pela minha
cabeça, em momentos beirando uma certa loucura, agora vejo, chegou a
passar a ideia de tornar-me irmão marista. Éramos encorajados a ler a
História Sagrada, suas histórias me pareciam excitantes e havia até certo
erotismo velado em todos aqueles episódios de união entre homens e
mulheres.
Mas nada podia ser comparado ao tesouro que me caiu nas mãos,
emprestado por um colega: Tarzan e o império perdido, de Edgar Rice
Burroughs. Tarzan encontrara esse império desgarrado do império romano
e composto de dois reinos em duas cidades, Castrum Mare e Castra
Sanguinarius. Ler livros fora do currículo escolar era totalmente proibido
no colégio, e meu coração batia forte com a leitura emocionante, por suas
aventuras para nós secretas, em plena sala de estudos. Havia uma tática
para quem estava disposto a arriscar. Era pôr livros e cadernos uns em cima
dos outros numa pequena pilha, de modo que o livro proibido não casse à
vista, atrás de uma pequena pilha com outros livros e cadernos. Foi o que
z aquela noite, mas estava tão absorto na leitura que não vi o irmão
Francisco aproximar-se pelas minhas costas e arrebatar-me o volume,
justamente no momento em que lia, com o coração batendo forte, aquele
pedaço do livro em que Tarzan, escravizado pelo imperador Sublatus, de
Castra Sanguinarius, território desgarrado havia séculos do império
romano numa montanha da África, era obrigado a lutar como gladiador no
coliseu do reino. Tive vontade de chorar e até hoje ainda penso que Edgar
Rice Burroughs foi um dos melhores autores que li em minha vida, mas
não tenho coragem de relê-lo, com receio de desiludir-me.
Apesar do con sco do livro e da raiva que senti naquele momento, não
deixei de gostar do irmão Francisco. Às vezes ele interrompia um desses
estudos da noite e, entre outras coisas, falava de religião. Mas o seu Deus
não parecia ter nada a ver com o Deus e o Cristo dos outros irmãos. E não
me lembro de ele ter mencionado o inferno, apenas falava da bondade do
Senhor, sempre disposto a perdoar os nossos pecados, concedendo a todos
os arrependidos o paraíso.
E num dia daqueles, sem que nenhum sinal houvéssemos obtido da
vida, morreu um aluno da turma dos maiores, chamado Humberto, de
uma doença ao que parecia respiratória. Nunca tinha visto um defunto na
vida e quei impressionado com sua palidez e feiura. Fizemos la para vê-
lo na enfermaria e confesso que quei muito abatido com aquela visão.
Não houve aulas, o que acabou sendo pior, pois, atrás de piadas e
comentários mórbidos dos alunos no pátio, escondia-se em nós a
incompreensão e o medo. De todo modo, os irmãos acharam por bem não
cancelar os períodos de estudos e, naquela noite, o irmão Francisco falou
para nós, como seria de esperar, numa prédica que valorizava a fé e a
esperança. Disse que não estávamos aptos a compreender os desígnios de
Deus, que devíamos rezar por nosso colega que, possivelmente, já gozava
de uma bem-aventurança eterna.
Mas, nas prédicas costumeiras, irmão Francisco falava mais numa
felicidade terrena. E dizia que rezava para que todos nós fôssemos felizes
na vida. Quantos de nós teremos assim conseguido? Indiretamente, irmão
Francisco dava a entender que essa felicidade teria a ver com casamento e
lhos. E eu cava imaginando quem poderia ser a minha esposa, a quem
eu amaria muito e que me amaria.
Eu não era dos mais estudiosos, mas durante um dos quatro anos em que
fora interno decidi ser o primeiro da classe, estudando com uma força de
vontade férrea. Primeiro não consegui, como se não fosse talhado para isso.
Mas cava sempre entre os cinco, dez primeiros de minha classe. Porém,
isso não era o su ciente para satisfazer-me e logo me cansei daquele papel
e me aproximei das chamadas más companhias, que me pareciam muito
mais sedutoras do que a dos s que obtinham os prêmios e as distinções
nos estudos. Passei a falar muitos palavrões, e de sexo, como meus novos
amigos e, decididamente, parei com a religião, e a comunhão me pareceu
um sacramento ridículo. Passei a ser um dos últimos colocados de minha
classe e sentia um secreto orgulho disso. Irmão Francisco me olhava com
aquilo que me parecia a ironia de quem compreendia tudo. E não se opôs
a que no ano seguinte eu fosse transferido para a turma dos maiores, na
qual era permitido até fumar.
Mas, antes que isso acontecesse, o que eu queria mesmo era ser bom de
bola e do primeiro time dos médios, antes de ser transferido de turma e
logo depois sair do colégio. Admirávamos tanto aqueles garotos que
sentíamos até orgulho quando um deles se dignava a ser nosso amigo. O
time era tão bom que o goleiro era titular do infantojuvenil do Botafogo,
sendo dispensado dos treinos da semana. E, jogando num domingo um
amistoso contra o time do América, em Campos Sales, goleamos por cinco
a zero. Mas nunca fui craque, muito menos para aspirar à glória suprema
de jogar no time do meu Fluminense.
De todo modo, meu futebol foi melhorando à medida que me tornava
mais velho. Passando o tempo, muitos do primeiro time foram transferidos,
por idade, para a turma dos maiores. E cheguei a ser escalado, por duas
vezes, para treinar, deslocado para a lateral direita, no segundo time contra
os titulares. Estes, incluindo alguns novatos, eram muito melhores do que
nós, e eu tinha di culdade em marcar seu ponta-esquerda; me escondia
um pouco do jogo, mas não cheguei a comprometer.
Nos dias de jogos, o irmão Francisco escrevia no quadro-negro os
números dos alunos que deviam atuar pelo primeiro time. O titular da zaga
central, Bruno, estava com hepatite e sem ir ao colégio. Seu substituto
tinha o apelido de Pé de Ferro e não se saiu bem em dois jogos. Mesmo
assim foi uma grande surpresa ver o meu número, 104, no quadro-negro,
escalado para jogar, na minha verdadeira posição, num jogo contra o
Radar, time prestigiado do Leblon. Poucas vezes na vida senti tanto
orgulho, ao me entregarem a camisa três do time dos médios para entrar
em campo.
O jogo estava sendo muito mais difícil do que o costumeiro, porque a
turma do Radar era boa de fato. Mas abrimos a contagem numa arrancada
do Tito pela ponta-direita. O goleiro adversário saiu do gol e o Tito rolou
no outro canto e marcou. Depois dos abraços e coisa e tal, eles vieram para
cima e empataram, numa jogada de pé em pé, terminando com uma
cabeçada do centroavante no ângulo. Não se poderia dizer que tive alguma
culpa no lance, mas sempre ca uma sensação ruim quando a jogada foi
pelo nosso setor. Cheguei a subir com o centroavante, mas ele era muito
mais alto que eu.
Jogando em casa, um verdadeiro alçapão nosso, o empate, mesmo
contra o Radar, era uma derrota. Mas se podia esperar que o nosso ótimo
ataque resolvesse a parada e continuei jogando o meu jogo na defesa,
cumprindo o meu papel.
Veio um centro sobre a nossa defesa, antecipei-me aos atacantes
adversários e cortei a bola com o peito. E o normal seria que eu rebatesse a
bola para o campo deles, como era do meu feitio, aliás, o meu papel. Mas
vi um espaço vazio ainda no nosso campo e não sei o que me deu. Avancei
com a bola e, em vez de entregá-la ao nosso meia-armador para que ele
organizasse a jogada, passei do meio de campo, em direção à intermediária
deles. Cheguei a pensar em chutar em gol dali mesmo, mas o Álvaro, livre
na ponta esquerda, começou a gritar. Passa a bola, passa a bola, porra. E
quem era eu para desobedecer? E passei para ele, mas sem voltar para o
nosso campo.
O Álvaro era um craque. Deu um corte humilhante no lateral direito
deles, chegou rápido à linha de fundo e fez que ia chutar dali mesmo. Mas
não chutou, até porque o goleiro deles fechou o ângulo. O Álvaro então
olhou para a área, me viu entrando livre na pequena área, sem goleiro à
minha frente. E estendeu para mim na medida, com o gol escancarado à
minha frente. Era até mais fácil marcar aquele gol do que perdê-lo. E
concluí com o meu pé direito, o meu pé bom.
Jamais saberei por que a bola subiu tanto e perdeu-se por cima da trave.
Coisas de bola, só posso dizer. Logo depois o jogo acabou. O empate
contra um time como o Radar não era desonroso e não me cruci caram.
Mas tenho mais do que nunca uma certeza. Se aquela bola tivesse entrado,
minha vida — e nem falo de futebol — teria sido outra.
Vejo

Vejo. A mocinha de dezessete anos, com os seios de fora, rodopiando no


palco, ao som de uma música hollywoodiana, na peça que escrevi. E me
sinto exaltado, como se houvesse materializado uma fantasia. Vejo, e
nunca mais esquecerei, um presépio animado expressionista criado num
palco em Iowa City pelo jovem Robert Wilson. Vejo, na capela do colégio
interno, a imagem da Virgem Maria. E peço a ela que me faça feliz na
vida. Vejo minha noiva, toda de branco, entrando na igreja, ao som de
Bach, enquanto a espero no altar. Vejo: outra noiva vestida de branco, mas
horrível, com cara de bruxa, com um gavião pousado em seu ombro,
enquanto a espera, no altar, um anão. Ouço, no quarto do hotel, em
Caxambu, a bruxa perguntar ao anão se ele a ama. Ele diz: muito. Para
sempre?, ela pergunta. Sim, para sempre. Vejo: o anão no quarto de um
bordel, traindo a noiva com uma puta linda. Vejo: minha amante inerte no
caixão e sussurro: como poderemos nunca mais nos abraçar? E penso:
como pode a vida ser tão cruel e fugidia? Vejo: a garota que chora,
escondendo a cabeça no travesseiro. Meu fantasma que chega até ela, afaga
seus cabelos e diz: não chore, você vai arranjar outro namorado muito mais
bacana. Ou quem sabe uma menina? Vejo: Erik Satie, ao piano, com seu
terno surrado, compondo a sua Gymnopédie no 1, em seu quarto
totalmente bagunçado. Vejo: Marcel Duchamp pintando o seu Nu
descendo uma escada. Vejo: no horizonte, a caravela se afastando desta
terra amaldiçoada. Vejo: o demônio sentado numa poltrona de teatro
aplaudindo a peça sacrílega do Zé Celso. Vejo: nalmente Deus, abstrato e
indescritível, no éter. Vejo: meus melhores amigos mortos gozando a vida
eterna. Penso: que a vida eterna só poderia ser de almas. Pois como refazer
os corpos, em que idade? Vejo: William Shakespeare escrevendo com uma
caneta-tinteiro o Macbeth. Vejo: na cabine de uma loja, duas moças se
trocando. Vejo: uma das moças vestindo um maiô inteiriço, sensual e
preto, que a deixa linda, atiçando o desejo do escritor. Vejo: o escritor
acessando o site pornográ co no computador. Vejo: na , o lhote de
elefante sendo devorado pelos leões. Sinto: que a vida, toda ela, é um
devorar sem m. Sinto: um desejo de morrer, mas não posso eu mesmo me
matar. Tenho de deixar as coisas seguirem o seu rumo, para ver aonde vão
dar. Leio: no livro Cosmos, de Carl Sagan, a grandeza in nita e
inconcebível do Universo. Penso: que quem sabe retornaremos a alguma
espécie de vida. Vejo: eu mesmo no caixão e estou com muito frio. Penso:
onde foi parar a vida que me habitava havia pouco? Vejo: o mendigo
dormindo na rua sem possuir absolutamente nada. E, no entanto, vive.
Vejo: o casal dormindo abraçadinho. Vejo: que no sonho de cada um
surgem outros amantes. Sinto: que não se devem interpretar os sonhos,
apenas vivê-los. Penso: que os sonhos vão muito além dos lmes no
cinema. Vejo: a personagem que escapou do livro do escritor e foi ao teatro.
Vejo: o escritor que, inconformado com o seu fracasso, dá um tiro na
cabeça com um revólver que comprou depois que o governo fascista
liberou as armas. Vejo: no céu dos suicidas, Torquato Neto passeando num
lindo parque, de mãos dadas e felizes, com Sylvia Plath. Vejo: no dia
seguinte, que uma linda or se abriu durante a noite em meu quintal, sem
ninguém a testemunhá-lo. Se houvesse essa testemunha, a or se recusaria
a abrir. Vejo: uma reunião do Ministério da Justiça fascista votando pela
proibição do meu prosopoema. O secretário-geral da Justiça diz que o
poema pode ter um código subversivo. Vejo: o noticiário de evangélica
elogiando o governo fascista. Vejo: numa reunião numa entidade dos
empresários, um deles toma a palavra e elogia o governo fascista. Diz que
agora sim, o Brasil vai pra frente. Vejo: sobre um caixote na avenida, o
político do partido alternativo dizendo que só a poesia salva. Vejo: na ,
um documentário sobre um país africano onde toda uma tribo foi
dizimada com requintes de crueldade. Leio: num texto surrealista, que só
as bocetas tatuadas em forma de ores gozarão delícias herméticas. Vejo: a
bola chegando ao fundo da rede com aquele barulhinho característico.
Vejo: torcedores se matando com barras de ferro. Vejo: no escuro da sala, a
passando para ninguém. No lme, em preto e branco, uma mulher
linda, amarrando seu cinto diante de um homem, signi caria, para os
eventuais espectadores, que eles acabaram de fazer amor. Vejo: uma
mulher real, deitada no sofá da sala, dormindo diante da ligada como se
estivesse ela mesma em outro lme. Vejo: no fundo do oceano, o peixe
mínimo prestes a ser engolido. Depois, é como se não tivesse havido peixe
nenhum. Vejo: o pássaro colorido que sobreviveu por um triz aos
predadores abrigado no ninho, e agora cruza o céu cantando. Vejo: o
homem que escuta esse pássaro, totalmente esquecido das atribulações do
mundo. Vejo: o escritor, de costas, mergulhado no seu trabalho. Por que
estará sempre triste o escritor quando escreve?
Um conto quase mínimo

O importante neste conto quase mínimo é que ele traga momentos


muito breves de felicidade, para quem o lê e para quem o escreve. Pode ser
assim. Um homem que, por circunstâncias de uma viagem de carro, deve
passar a noite com sua cunhada numa pousada à beira da estrada, no
interior de Minas. Ambos estão fatigados de uma longa viagem, de
Goiânia, onde residem os pais dela — e ele estava lá justamente buscando
um carro —, até o Rio, onde eles dois moram.
Vêm se revezando na direção e agora é ele quem dirige. Estacionam o
carro no pátio da pousada e, como são pessoas modernas, nem precisam
dizer que dormirão no mesmo quarto, pois é tão natural isso, que esses
quase parentes dividam um aposento. Como ela é mulher do seu irmão,
seria impensável que os dois transassem, mas, para evitar qualquer mal-
entendido, pediram duas camas de solteiro, embora estejam as duas camas
lado a lado. E avisaram aos respectivos companheiros lá no Rio, pelos
celulares, que haviam decidido passar a noite na estrada, pois estão
cansados.
Quem vai primeiro no banheiro é ele, toma uma chuveirada rápida,
com água morna, depois veste uma bermuda limpa, que trouxe numa
sacola, uma camiseta sem mangas e vai deitar-se na cama que lhe cabe.
Ela, ainda vestida, cruzou com ele em direção ao banheiro, tocou-lhe o
braço com um dedo por um momento in nitesimal, à guisa de um
cumprimento brincalhão.
O banho dela é mais demorado, pois lava a cabeça, livrando-se da poeira
da estrada, depois usa o secador. Por uma pequena fresta da porta, ele a vê
passando para lá e para cá, mas não dá para distinguir claramente nenhum
detalhe de seu corpo. No entanto pensa nela graciosa, como sempre
pensou.
Pela mente do quarteto inteiro, os dois irmãos e as duas moças, já se
passaram fantasias em que se trocam os parceiros. Apenas fantasias, pois
não são modernos a esse ponto e também temiam o que poderia acontecer
a partir daí. Nenhum dos dois foi el na vida aos respectivos companheiros,
mas envolvendo outras pessoas que não irmãos ou cunhados, pois caso
contrário a coisa poderia ser grave, talvez de nitiva, cheia de culpa.
Mas ambos estão sentindo um prazer quase inocente com a intimidade
que ora desfrutam. Porém, ele não quer embaraçá-la, e cerra quase
totalmente os olhos quando ela sai do banheiro enrolada numa toalha. No
quarto quase escuro, pois há apenas uma luz baça que cou acesa no
banheiro, ela certi ca-se de que os olhos dele estão fechados, como quem
já dorme. E pega em sua maleta de viagem uma camiseta e uma calcinha,
e só então tira a toalha do corpo. Depois vai ao banheiro e apaga a luz.
Agora está tudo imerso num breu tão negro que ela tem medo de
tropeçar numa cadeira ou nas camas. Então vai à janela do quarto, visível
apenas por frestas, e puxa a correia da cortina, deixando a janela um pouco
aberta, para que não sintam calor à noite (ah, deve ser isso). Há algumas
luzes no jardim da pousada, su cientes para iluminar um pouco o quarto e
para que se projetem no corpo muito branco da mulher — através das
frestas e da abertura na cortina —, num leve balançar-se, folhas e galhos
das árvores do jardim, enquanto se ouvem os ruídos de muitos insetos.
Com o coração a bater forte, o homem, com seus olhos entreabertos, vê
a mulher nua, as folhas e os galhos se mexendo no corpo dela, numa
espécie de caleidoscópio de sombras. É uma visão magní ca e o homem
acaba por abrir inteiros os olhos.
Intuindo que está sendo espiada, ela olha diretamente para a cama, ele
não mais disfarçando que a observa, mas depois ela nge que continua a
olhar pela janela, de per l. E sorri, como se fosse para ninguém em
especial. E, em vez de vestir-se imediatamente, pois traz a camiseta e a
calcinha nas mãos, ela se dá um pequeno tempo, para que ele a veja bem,
inclusive de frente e de costas. Depois, com gestos muito sedutores e agora
meio séria, começa a vestir-se vagarosamente, com uma sensualidade ainda
maior do que se estivesse se despindo.
Ambos sabem que nada deverá acontecer entre eles e ela agora termina
de se vestir e vai deitar-se na cama, cobrindo-se com um lençol. Não se dão
nem boa-noite, pois, para todos os efeitos, já deviam estar dormindo. E de
fato ela adormece logo, mas ele não. Conserva a imagem dela na mente e
está muito excitado, mas seria detestável se se satis zesse sozinho.
Preferível continuar a pensar nela nua, cheia de folhas e galhos re etidos
em seu corpo tão belo e magro: que ele sente como não menos que
maravilhoso.
Na manhã seguinte, eles se vestem cada um a seu tempo, ele no
banheiro, ela no quarto, tomam café juntos e seguem viagem. Jamais
tocarão no que aconteceu naquela noite, claro, mas para a vida inteira
compartilharão aquele segredo: que ela se deixou ver e ele a viu, por um
breve tempo, que foi dos mais signi cativos na vida deles dois.
Quanto aos seus verdadeiros companheiros, terão sentido a
descon ança, quase a certeza, de que algo se passou entre eles naquela
noite, mas sem saber o que ou como, exatamente. E, enquanto pensavam
em probabilidades, logo após eles dois terem chegado, sentiram um
enorme desejo de foder. E, após o almoço, entregaram-se loucamente a
seus parceiros xos.
O tempo passa e chegou o Natal. Houve uma festa de família e se deram
presentes. Ela deu um livro para ele que, ao abri-lo, viu que era uma
coletânea de poemas selecionados de John Keats, no original. E, com uma
voz inocente, ela lhe disse, com um sorriso angelical: “Você deve conhecer
aquele famoso verso de Keats, não? A thing of beauty is a joy forever”.
Le bateau ivre
Cenas para conto ou encenação teatral

Uma espelunca numa rua secundária de Copacabana. Servem bebidas e


pratos feitos, mas só tem um freguês nesse momento, um homem de uns
sessenta anos, usando roupas modestas e bebendo conhaque sentado a uma
mesa com tampo de fórmica. Há um outro homem ao balcão. Aparenta uns
quarenta anos. Num aparelho de televisão, se noticia uma enchente no
centro, bairros e morros da cidade etc. O locutor fala em estado de
calamidade pública. Carros encobertos ou arrastados pela chuva. Contados
até agora vinte mortos e há mais uns vinte desaparecidos. Barulho de um
forte temporal lá fora.
(Observação: A espelunca não precisa ser necessariamente realista. Pode
ser estilizada da forma escolhida pelo diretor. Como um hiper-realismo
brasileiro, digamos. Ou apenas com o cenário e os adereços necessários.)
: Vinte mortos até agora e ainda há muitos
desaparecidos. Você ouviu? Uma mulher foi tragada para dentro de um
ralo.
: Que barra, hein.
: Estou com medo de alagar aqui dentro.
Nesse momento entra na espelunca uma jovem mulher completamente
encharcada. Por suas roupas, vê-se que é uma mulher de classe média,
bonita. Traz um guarda-chuva em péssimo estado, praticamente sobrando só
umas duas tiras de duas abas laterais e o cabo.
(para o homem do balcão): Posso me abrigar aqui?
: Pode, claro, quer beber alguma coisa?
(olhando para o homem à mesa): O que o senhor está
bebendo?
: Conhaque.
(para o homem do balcão, sentando-se a uma das três mesas
existentes e segurando o guarda-chuva agora fechado): Um conhaque para
mim também, senhor.
: De que marca?
: Qualquer uma. (Apontando para o homem à mesa.) A que ele está
bebendo. Qual é?
: Conhaque Napoleão, senhorita. Ou será senhora?
: Isso pouco importa. (Ela ri.) Mas que marca para um
conhaque: Napoleão. Pelo menos é bom?
: Para mim serve. (Ela ri de novo, mas parece um pouco
nervosa.) Um Napoleão para mim também.
O homem do balcão chega até a mesa e os serve, primeiro ela, depois o
homem. O balconista deixa a garrafa sobre a mesa dele. O homem bebe a
sua dose de um só gole e ela bebe a sua mais devagar. Após um intervalo de
silêncio, o homem do balcão fala para os outros dois:
: Mas que temporal, hein.
: Eu gosto de chuva. A temperatura ca mais amena e a cidade
mais civilizada, mais cinzenta.
: Mas está morrendo gente, senhorita.
: Podem pensar que eu sou insensível, mas essas tragédias me
dão é raiva. As autoridades não fazem nada para melhorar o escoamento,
todo ano é assim, e o dinheiro para as obras é todo roubado. Deviam fuzilar
os ladrões do dinheiro público. (Para o balconista.) Não tem jeito de pôr
um pouco de música?
O balconista desliga a TV no controle remoto e aperta o botão de um CD
player. Começa-se a ouvir música. Talvez um bolero bonito. O homem se
serve de conhaque e o bebe de novo de um só gole. A jovem só agora terminou
a sua dose.
(para o balconista): Também quero mais uma dose.
: É melhor ir devagar, senhorita. (Ele vai levando a garrafa
para a mesa dela e a serve.) Conhaque é uma bebida forte.
(apenas bebericando): Sim, devagar. E tenho que ir embora mesmo.
: Vai sair com esse tempo? Uma mulher foi tragada por
um bueiro.
: Se eu não chegar, ele vai car furioso.
: Seu marido?
: É, pode-se dizer assim.
Ela abre de novo o guarda-chuva em frangalhos e dá uma risada. Vê-se
que indiscutivelmente tem senso de humor.
(levantando-se): Só que, com a ventania, vou parecer uma
bruxa sobrevoando Copacabana com a sua vassoura.
Todos riem. O balconista desliga o toca-discos e torna a ligar a televisão,
cuja tela não precisa estar acesa para os espectadores.
: Vejam, as pessoas estão navegando em pranchas de surfe,
há carros submersos e até barcos com guarda-vidas, ou sem eles, na
enchente.
Mulher fecha o guarda-chuva, deixa-o numa cadeira e vai sentar-se à mesa
do homem, levando seu cálice de conhaque.
: Já sei, moro aqui perto e vou pedir carona num barco. (Ela ri,
mostrando-se um pouquinho embriagada.)
: Le bateau ivre!
(olhando espantada para ele): Ah, o barco bêbado!
: Estaria na medida para você. Você fala francês?
O balconista acompanha a conversa com interesse.
: Quase nada. E você?
: Talvez um pouquinho melhor do que você.
: Você trabalha em quê?
: Sou vendedor ambulante na praia. Mas num dia como hoje…
: Vende o quê?
: Um pouco de tudo. Camisetas, ltros solares, chapéus, boias
para crianças e até livros usados.
: Livros na praia?
: Sempre pode aparecer algum banhista solitário que queira ler
na praia. Às vezes até estrangeiros. O livro de Rimbaud, com o barco
bêbado, em francês e traduzido, comprei num sebo.
: E vai vender na praia?
: Esse não, guardei para mim. Está em frangalhos.
: Mas não o que está dentro, não é verdade?
: Isso mesmo. Não o que está dentro. Quer dar uma olhada
depois, enquanto a chuva não passa? Mais um pouco de conhaque?
: Não quero car bêbada. Há alguém em casa que me mataria.
Vou dar um telefonema.
Ela tira um celular da bolsa e começa a falar baixo, mas depois sua voz se
altera e percebe-se que está discutindo com alguém.
: Posso passar a noite em casa de uma amiga. (Ela hesita.)
Sandra. Ou você prefere que eu me afogue?
Ela se cala, ouve mais um pouco e depois bate o celular com força na
mesa.
: Pronto. Ele me xingou e disse que quer mais é que eu morra.
Agora é que vou ter de passar a noite na rua mesmo. Será que posso me
encostar aqui, numa cadeira e uma mesa?
: Pode, senhorita. E eu posso estender um
colchonete no chão. Só não posso garantir é que a água não chegará até
aqui. Está com cara de que vai transbordar. Já aconteceu outras vezes.
: Olha, senhorita, você pode car com o meu quarto.
Eu co aqui no (ironicamente) salão.
: Você mora aqui?
: Não, no subúrbio. Mas tenho um quarto aqui, onde guardo as
minhas mercadorias. Fica mais fácil de levar para a praia. E às vezes passo
a noite nele.
(apontando para o balconista): Ele disse que pode ser que
alague tudo aqui.
: Você também pode car lá em cima no meu quarto, na minha
cama, e eu durmo no sofá. Pode con ar em mim…
Ela o olha de cima a baixo, como a medir sua periculosidade. Depois,
como se o considerasse inofensivo, diz:
: Vou aceitar, senhor, senhor…
: Tobias. E o seu nome, qual é?
: Juliana. Agradeço muito a sua gentileza, mas vou aceitar com
uma condição.
Ele a olha interrogativamente.
: Que eu durma no sofá e o senhor na sua cama.
: Tudo bem. Se a senhorita prefere assim.

Juliana e Tobias já estão no quarto deste último. Bugigangas para todos os


lados. Ela levou o guarda-chuva e pousou-o numa cadeira. Agora está
sentada no sofá, segurando um cata-vento. Ele pede licença para ir ao
banheiro. Quando volta, está vestido com uma bermuda e uma camiseta
para passar a noite. É a vez de ela entrar no banheiro. Ao sair, continua com
a sua roupa encharcada. Numa prateleira, ele pega outra camiseta e um
livro de poemas de Rimbaud, todo desconjuntado. Ele estende a camiseta
para ela.
: É melhor você dormir com isto. Com a diferença de nossos
tamanhos, vai cobri-la inteira.
(pegando a camiseta e notando o livro nas mãos dele): Ah,
Rimbaud, hein?
(pegando uma página do livro): Antes da gente dormir, posso ler
um trecho do barco bêbado para você. Tem tudo a ver com o tempo desta
noite. Você prefere que eu leia em francês ou português?
(rindo): En portugais, s’il vous plaît.
: Ah, legal. Vou ler uma tradução perfeita do Augusto de
Campos. Antes, você pode se trocar lá no banheiro.
: Não precisa, é só você virar de costas. Você pode ler enquanto
eu me troco.
Ela se vira de costas e, lentamente, começa a tirar a roupa, próxima dele.
Mas não veste a camiseta. Pega o guarda-chuva em frangalhos e o abre. Ele
lê, sendo que a direção pode cortar alguma coisa, se car monótono, mas
penso que a última estrofe deve permanecer, porque tem tudo a ver com a
situação. Progressivamente, ela irá cando nua, equilibrando-se com o
guarda-chuva.
: O barco bêbado

Quando eu atravessava os Rios impassíveis,


Senti-me libertar dos meus rebocadores.
Cruéis peles-vermelhas com uivos terríveis
Os espetaram nus em postes multicores.

Eu era indiferente à carga que trazia,


Gente, trigo amengo ou algodão inglês.
Morta a tripulação e nda a algaravia,
Os Rios para mim se abriram de uma vez.

Imerso no furor do marulho oceânico,


No inverno, eu, surdo como um cérebro infantil,
Deslizava, enquanto as Penínsulas em pânico
Viam turbilhonar marés de verde e anil.

O vento abençoou minhas manhãs marítimas.


Mais leve que uma rolha eu dancei nos lençóis
Das ondas a rolar atrás de suas vítimas,
Dez noites, sem pensar nos olhos dos faróis!
Mais doces que as manhãs parecem aos pequenos,
A água verde in ltrou-se no meu casco ao léu
E das manchas azulejantes dos venenos
E vinhos me lavou, livre de leme e arpéu.

Então eu mergulhei nas águas do Poema


Do Mar, sarcófago de estrelas, latescente,
Devorando os azuis, onde às vezes — dilema
Lívido — um afogado afunda lentamente;

(interrompendo a leitura): Posso lhe dizer uma coisa, senhorita?


(ainda de costas para Tobias): Por favor.
: Nunca senti tanta intimidade com uma mulher.
Ela se vira. Está nua, segurando o guarda-chuva aberto em frangalhos. Os
dois se abraçam.
A moça de óculos

“A noite no Rio está cando meio lúgubre, você não acha?”, ele disse
para ela. “As pessoas estão com medo de car na rua até mais tarde.”
Como a con rmar suas palavras, ouviam-se tiros mais ao longe, lá para
os lados de São Conrado.
“Se você quiser, a gente pode tomar alguma coisa no meu apartamento.
Estou achando você meio tenso”, ela disse.
“E você não ca nem um pouco, com essa insegurança toda na cidade?”
“Bem, é esse o lme e pre ro não pensar nessas coisas. E pelo menos há
mais silêncio nos bares. A gente às vezes pode até ouvir o barulho das
ondas, repara só, quando o sinal ca fechado para os carros. E quando não
estão passando os caminhões do exército”, ela riu.
Estavam na varanda de um bar-restaurante na avenida Atlântica, bem
vazio para uma noite de sexta-feira. E eram só vinte e três horas.
“De todo modo”, ela disse, “acho mesmo que vai ser mais agradável lá
em casa. Vamos comemorar o nosso reencontro.” Ela tocou de leve o pé no
pé dele sob a mesa, como acontecera na festa. Muito de leve, mas deu para
perceber que era intencional. Como se quisesse deixá-lo mais à vontade e
transmitir-lhe segurança.
“Não se assuste se ouvir tiros bem mais próximos do que esses de agora.
Os fundos do meu prédio dão para o morro do Chapéu Mangueira. Mas
meu apartamento é de frente para a rua Gustavo Sampaio”, ela sorria. “E
em Laranjeiras, está mais tranquilo?”
“Até que está, e o exército nem vai lá. Escutam-se tiros, sim, mas vêm de
trás de um paredão no morro Dona Marta. Nesse último mês explodiram
três bancos nas redondezas do meu prédio. Acordei com as fortes
explosões, mas logo voltei a dormir”, foi a vez de ele rir, mais descontraído,
querendo entrar no espírito dela. Achou bom quando o garçom trouxe a
conta que ele pedira e pagou sozinho, pois ela só bebera água mineral,
enquanto ele tomara uma dose generosa de uísque. E só comeram
amendoins, quatro sacos que compraram de um garoto mirrado que devia
ter uns treze anos e entrara no bar calçando sandálias havaianas velhas.
Não comentaram, mas ambos sabiam que os amendoins eram só para
ajudar o garoto. E foi ela quem pagou.

Eles tinham resolvido sair da festa porque o som estava muito alto, para
as pessoas dançarem. Eles já haviam cumprido suas obrigações com o
an trião e só queriam conversar. Fora ela quem sugerira que fossem para
um bar na praia.
A princípio ele não a reconhecera na festa, num clube na Urca. Ele
havia se sentado sozinho numa mesa de quatro lugares, a mais afastada
possível da orquestra. Ela estivera dançando com o an trião e, quando
pararam, se aproximou toda sorridente da mesa dele. Ele não era cabotino
para achar que as mulheres davam em cima dele. Mas não era raro que
uma mulher se interessasse por ele e havia quem dissesse que era um
homem bonito. Ela então disse, sorrindo ainda mais: “Não está me
reconhecendo?”.
“Acho que estou”, ele disse, encabulado. “Mas, para ser sincero, não me
lembro de onde.”
“Da Escola de Comunicação, Marcelo.”
“Luísa”, ele exclamou e levantou-se para beijá-la, depois puxou uma
cadeira para ela sentar-se: “Mas você mudou muito.”
“Envelheci, você quis dizer”, ela disse, num tom meio irônico.
“Não, pelo contrário. Você parece mais jovem e bonita, se me permite
dizer. Lembro que de repente você sumiu da escola.”
“Tranquei a matrícula no terceiro semestre e nunca mais reabri.
Descobri logo que não queria ser jornalista.”

Ele se recordava dela na escola sempre de jeans, camiseta, tênis. Agora


usava um vestido de uma elegante simplicidade, com a saia na altura dos
joelhos. Quando caminhou para a mesa, pisando meio desajeitada, deu
para perceber que calçava sapatos verdes de saltos meio altos. Já ele usava
um blazer meio amarfanhado, camisa listrada e uma calça de linho.
“E os seus óculos? Você sempre usava óculos de lentes grossas, de
menina estudiosa e caladona”, ele brincou.
“O Henrique sempre preferiu que eu usasse lentes de contato.”
“Vocês namoram?”
“Não, ele é meu ex-marido”, foi a vez de ela exclamar, sempre rindo. “E
sempre gostou que eu me arrumasse. E agora, no seu aniversário… Depois
da separação continuamos muito amigos. E você o conhece do jornal,
presumo.”
“Sim, lá do O Dia. Só que ele é o diretor de redação, como você deve
saber, e eu o editor de economia. E ele fez questão de que todos os editores
comparecessem a seu aniversário de cinquenta anos. E vou ser sincero: não
gosto de festas, mas não dava para faltar. Ele tem poder de vida e morte
sobre os empregos no jornal. Não gosta de demitir, mas com a crise…”
“O Henrique é um sujeito muito legal. Quando descobrimos ao mesmo
tempo que éramos mais amigos do que qualquer outra coisa, nos separamos
numa boa. E ele deixou que eu casse com o apartamento e os móveis que
eu quisesse. Ter conhecido ele para mim foi inestimável, ele foi o
responsável pela recuperação de minha autoestima. Nada de psicanálise,
essas coisas.”
“Você está fazendo o quê?”
“Sou curadora de exposições no Centro de Arte do Rio.”
“Você gosta?”
“Trabalho muito, mas até que gosto. Mas também lá não há nenhuma
estabilidade. De repente o Centro pode até fechar.”

Eles continuaram a conversar por uns quarenta minutos. Ficaram


sabendo um do outro que os dois eram divorciados. Que ele tinha dois
lhos pequenos, homens, um de sete, outro de cinco anos. Que ela morava
no Leme e ele em Laranjeiras. Ambos tinham trinta anos. Ela foi um
pouco reticente quanto à sua vida particular, mas deu a entender que
apreciava muito a liberdade. Ele falou que ele nem tanto, fora sua mulher
que quisera separar-se, por causa de outra pessoa. Ela percebeu que ele era
tímido e nem um pouco presunçoso e gostou disso. Parecia um homem
um tanto desamparado. Ela não gostava de homens agressivos, insinuantes.
Foi então que seus pés se tocaram levemente sob a mesa. Fora casual, mas
não tiraram os pés, nem quando o celular dela tocou duas vezes, ela
veri cou na tela quem era e desligou o aparelho.
Depois ela atendeu a um chamado, de uma mulher, pois disse assim:
“Eu estou bem aqui, querida, e vou car mais. Você sabe que o Henrique
gosta… Não (ela riu), não há perigo de voltar. E você, está bem?”. Pausa
mais ou menos longa e depois ela disse, com voz carinhosa: “É bom sentir
um pouco de saudade”. (Pausa.) “Pra você também, querida.” Depois ela
desligou o celular e guardou-o numa bolsinha bem presa a tiracolo no seu
vestido. Ele gostou que ela guardasse o aparelho.
Ele disse que nem trouxera o seu celular, pois só o usava a trabalho e
para falar com a ex-mulher e os lhos. Mas já estivera com os garotos essa
noite. “Os celulares são a praga do mundo moderno, mas às vezes são
necessários”, ela falou. “Pois eu não tenho nem carro”, ele disse. “Mas eu
tenho”, ela retrucou: “Acho que as mulheres precisam mais que os
homens.”
Ele cou contente que ela recusasse dois convites para dançar. Foi
depois do segundo convite que ela sugeriu que continuassem a conversa
num bar. Disse que depois o deixaria em casa. Talvez porque tivesse de
dirigir, não bebera nem uma gota de álcool. Ele bebera uísque
moderadamente e os dois aceitaram que um garçom os servisse de camarão
à americana.

Continuaram a conversa no carro. Ele confessou que fora um alívio


deixar a festa, aquelas pessoas todas falando de economia e política, já
bastava ter de acompanhar isso no jornal e na internet. Ela falou que não
tinha muito a ver com a maior parte dos convidados. “O Henrique é um
cara eclético, tanto é que casou comigo”, ela riu outra vez.
Tendo que pisar no freio e no acelerador, o vestido dela se levantou,
descobrindo boa parte das suas coxas, sem que ela mostrasse nenhuma
intenção disso. Ele gostou quando viu ligas nas meias dela, o que era muito
sensual. Ela percebeu o seu olhar e riu de novo, mas não ajeitou a saia e
ele cou contente que ela agisse assim. Ela não era linda, mas se tornara
uma mulher bem atraente. “Estranho que na faculdade a gente mal tenha
se falado”, ela disse. “Quem diria que a gente se encontraria assim”, ele
disse. “As coisas acontecem quando têm que acontecer”, ela falou:
“Desculpe o clichê.”
De modo que foi natural que, quando ela guardou o carro na garagem
do seu prédio, eles se dessem as mãos, se encaminhando para o elevador.
O apartamento era no sétimo andar e a primeira coisa que ela fez foi
chutar os sapatos para longe, no tapete. E fez com que ele se sentasse no
sofá.
“Quer que eu traga uísque para você?”
“Por favor”, ele disse.
Ela sumiu por um tempo na cozinha e ele reparou que nas paredes da
sala só havia a reprodução de um quadro, inusitado para uma parede, o Nu
descendo uma escada, de Marcel Duchamp, como ele logo reconheceu.
Ela trouxe uma garrafa de uísque, um balde com gelo e apenas um copo,
deixando tudo sobre uma mesa baixa em frente ao sofá.
“Você não bebe nunca?”
“Nunca. Tomei uns dois ou três porres quando era novinha, passei muito
mal e não quis mais. Também parei com a maconha, nem tenho em casa,
você se importa?”
“Nem um pouco. Só fumo eventualmente, quando me oferecem.”
Ele começava a servir-se da bebida e ela disse:
“Vou tirar as lentes, tudo bem?”
“Fique à vontade.”
Quando ela voltou, usava óculos de lentes grandes, pretos, muito
bonitos. Observou que ele bebia olhando para a reprodução e disse, com
um sorriso maroto:
“É o meu autorretrato, o que você acha?”
“Acho perfeito”, ele riu.
“Na parede, nenhuma abominação artística, como escreveu Baudelaire
em seu O quarto duplo. Você conhece?”
“Sim, como não.”
Como se estivesse feliz com o entendimento dos dois ela veio sentar-se
ao lado dele, encostando-se em seu corpo. Ainda estava com o vestido da
festa, e sua saia ergueu-se ainda mais do que no carro. Embora sendo um
sujeito tímido, foi como um pedido para que ele a acariciasse.
“Não vou pôr música”, ela falou. “Já bastou a da festa. Quer que eu sirva
mais uísque para você?”
“Não, obrigado. Estou bem assim.”
“Tira devagar as minhas meias”, ela falou.
Ele sentiu um imenso prazer em tirar uma meia dela e depois a outra,
puxando-as pelas ligas. Percebeu que a calcinha dela estava toda molhada e
tirou-a também. Gostou de ver que ela não raspava os pelos.
“Vamos para o quarto”, ela disse. “Lá é melhor.” Ela ergueu-se e o foi
puxando pelo braço. Fez com que se deitasse de costas na cama e foi
tirando toda a roupa dele com decisão. Chupou por algum tempo o seu
pau e depois afastou-se e, de pé, despiu-se. Seu corpinho, com seios
pequenos, era bonito e todo ele proporcional. E ele tornou a contemplar
sua boceta sem depilação, preservando o seu mistério. Depois ela sentou-se
na cama ao lado dele, estendeu a mão para a mesa de cabeceira, tirou da
gaveta uma camisinha, vestiu-a nele e, no momento mesmo em que ia
sentar-se no seu pau, este amoleceu imediatamente.
“Ah, desculpe”, ele disse. “Na minha primeira vez com uma mulher é
sempre assim. Fico com medo de falhar e aí é que falho mesmo.”
“Não se preocupe”, ela disse. “Vou retirar a camisinha e pôr o seu pau
mole na minha boca. Sem pressa, ele vai crescer, pode acreditar.”
Ele gostou daquele descompromisso do seu pau mole na boca de Luísa.
E, de fato, o seu pau foi cando duro. Falando de um modo meio
engrolado, por causa do pau na boca, ela disse: “É uma sensação
interessante, sentir um pau crescendo na boca”.
“Também acho”, ele mal conseguiu dizer, pois, com toda a excitação
daquela noite, percebeu que ia gozar. E, antes que isso acontecesse, afastou
o rosto dela do seu pau e teve uma ejaculação forte em cima dos seios dela.
“Você não precisava, podia gozar na minha boca”, ela disse, parecendo
amuada (ou seria ngimento?).
“Eu não sabia”, ele falou. “Desculpe.”
“Por favor, sem desculpas.” E ela levantou-se de um salto e encaminhou-
se para o banheiro. Sua bunda era magní ca, mas ele foi acometido por
sentimentos contraditórios. Por um lado, apesar de tantas boas sensações, a
trepada havia sido um fracasso. Ouvia a água do chuveiro caindo lá no
banheiro — Luísa com certeza queria lavar o corpo — e também ouviu,
em alto e bom som, os gemidos dela se masturbando. Sentiu-se deprimido
pelo seu fracasso. Mas também se sentia excitado com tudo aquilo e
acariciava o seu pau.
Luísa saiu do banheiro enrolada numa toalha, passou pelo armário,
pegou outra toalha e jogou-a para ele. “Para você, se quiser tomar um
banho”, ela disse, sem mostrar aborrecimento. E de fato ele queria lavar-se,
pois aquela transa toda desajeitada lambuzara o seu corpo. Lavou-se
meticulosamente, com uma esperança, talvez insensata, de que tudo ainda
poderia dar certo.
Mas quando saiu do banheiro, teve a surpresa de ver que Luísa lia um
livro, deitada na cama, vestida com uma combinação branca que deixava
ver uma pequena parte de uma calcinha preta. Ela estava muito atraente
vestida assim, porém ele teve certeza de que ela preferia ler porque cara
insatisfeita e entediada com a trepada e a presença dele. Sentiu então que
devia ir embora. Com a cabeça baixa, sem tirar a toalha, vestiu sua cueca e
sua calça. Mas, quando largou a toalha e ia vestir a camisa, ela falou,
olhando para ele, como já devia estar havia algum tempo:
“Por favor, não vista a camisa. Você ca bem assim, só com a calça e o
peito nu. Gosto de homens magros assim. Ah, me desculpe, agora sou eu
quem diz. Quis dizer que gosto de você assim. Você é um homem meio
feminino, o que me agrada.”
Ele entendeu que Luísa não queria despachá-lo e gostou disso.
“Você não se importa que eu leia um pouco, importa?”, ela disse.
“Não, claro, que à vontade.”
“Tem um lado gostoso nisso, que é carmos parecendo amigos íntimos,
uma familiaridade, sem cobrar nada um do outro, você não acha?”
“Acho. Uma espécie de aconchego e proteção, paz, nem importa que de
vez em quando se ouçam uns tiros nas redondezas”, ele riu.
“Isso aí. Se quiser, sirva-se de um pouco de uísque.”
Ele serviu-se, só um pouco, e cou observando-a. Havia mesmo um
aconchego nessa cena.
Da distância em que ele estava dela, dava para ver a capa do livro que
ela lia, verticalmente, sobre o seu corpo. Havia uma ilustração em forma
de gra te vermelho num muro cinzento, com o título da obra e o nome da
autora: O espírito do corpo, Júlia Fernandes.
Ele não resistiu e perguntou:
“Está gostando do livro?”
“Bastante. Você já leu Júlia Fernandes?”
“Não, mas já ouvi falar. Parece que vende bastante livros, não? Pelo
menos em termos de Brasil.”
“Por isso é execrada pela intelectualidade e por leitores mais so sticados.
Mas eu gosto do seu jeito cru de escrever, meio classe b. Descansa-me do
Centro de Artes e de tanta literatice publicada por aí. Quer que eu leia um
trecho pra você?”
“Eu gostaria muito.”
Não estava mentindo. Ela ler para ele em seu quarto lhe dava uma
sensação de familiaridade e intimidade. Com o copo com uísque na mão,
ele começou a ouvi-la e logo percebeu que ela tinha uma voz sóbria,
agradável, que lhe permitia concentrar-se sem esforço.

Quando foram apresentados — ela leu — eles não se beijaram no rosto,


como seria natural entre cunhado e cunhada, embora Helena fosse apenas
meia-irmã de Teresa, por parte de pai, criadas em casas diferentes, e só agora
ele a conhecia. Ela lhe estendeu a mão, cerimoniosa mas delicadamente, o
que lhe pareceu um gesto elegante. Mas abraçou demoradamente a irmã e
até beijou-a na boca. A nal, havia quatro anos que não se viam, por causa
do doutorado de Helena em Paris. E o casal viera a São Paulo especialmente
para vê-la, pois Helena, quatro anos mais velha que a irmã, queria conhecer
o cunhado e estava ocupada demais com suas aulas para poder ir ao Rio. E
fez questão de hospedá-los na casa velha que acabara de alugar.
O casal chegara às onze horas da manhã e as irmãs não quiseram perder
tempo para ir bater perna. “Helena quer comprar um maiô inteiriço, para
frequentar uma piscina. Disse que agora que zera trinta anos preferia não
usar biquíni. Como se não fosse tão magrinha. Vou ver se aproveito e compro
alguma coisa para mim.”
Henrique não achou nada mal car sozinho em casa, pois detestava fazer
compras. E sentiu um certo prazer de estar naquele lar feminino, ainda
bastante desorganizado, com livros por toda parte. Sentiu uma tentação de
subir ao quarto de Helena, abrir seu armário e ver suas roupas, mas se
sentiria um canalha se zesse isso. Então pegou para ler, ali na sala mesmo,
Breves entrevistas com homens hediondos, de David Foster Wallace, mas
não conseguia concentrar-se. Pois fantasiava estar com as duas irmãs dentro
de uma cabine de trocar de roupas e excitou-se muito com isso. Desde o
primeiro instante achara Helena uma mulher bonita e desejável e agora
também sentia desejo por sua própria mulher.
As duas voltaram animadas, às três horas, com várias sacolas. Haviam
almoçado no shopping e traziam uma quentinha com um canelone para
Henrique. Ele estava faminto e devorou rápido a sua comida, em frente a
Teresa. Helena dera uma desculpa qualquer sobre ler uns trabalhos e sumira
de cena. Mal ele terminou de comer, Teresa disse, excitada: “Comprei um
maiô igual ao de Helena, você quer me ver com ele?”.
“Claro”, ele disse. E de fato aquilo lhe acendeu um leve desejo.
No quarto, Teresa rapidamente tirou o vestido pela cabeça, depois se
livrou com dois golpes da calcinha e do sutiã. E começou a vestir o maiô
pelas pernas. Henrique foi acometido de um tesão que havia muito não
sentia pela mulher. Foi tirando vagarosamente o maiô de Teresa, reparando
em cada detalhe do seu corpo, até que não aguentou mais e deixou-a
completamente nua. Depois, atabalhoadamente, arrancou a própria roupa,
empurrou Teresa quase com brutalidade para a cama, e comeu-a
rapidamente, en ando bem fundo o pau na sua boceta. Foi tudo muito
rápido, mas ambos gozaram aos gritos e gemidos. Não se beijaram nem
trocaram uma só palavra. Depois cada um caiu para o seu lado na cama e
adormeceram rapidamente.
Quando se encontraram um pouco mais tarde com Helena na sala, ela
nem por um segundo demonstrou que ouvira seus gritos no quarto ou mesmo
que adivinhava o que acontecera lá. Era evidentemente uma mulher discreta.
Conversaram sobre amenidades, a vida em cada uma das suas cidades e,
quando Helena falou sobre Paris e o doutorado, o fez com uma sóbria
modéstia.
De noite foram os três ao cinema, assistir na sessão das dez ao lme
Melancolia, de Lars Von Trier. Como se fosse o mais natural a fazer,
Henrique sentou-se entre as duas mulheres e, como era habitual sempre que
iam ao cinema, ele e Teresa seguraram as mãos um do outro, desta vez com
um pouco mais de força, pelo que acontecera entre eles naquele dia.
E, também como se fosse natural, o braço esquerdo de Henrique e o direito
de Helena se tocaram na divisória entre as poltronas e assim caram durante
toda a sessão. Não quiseram jantar, apenas tomaram chá com biscoitos já
em casa. Henrique sentou-se numa poltrona de frente para o sofá em que se
acomodaram Helena e Teresa, bem juntinhas uma da outra e de vez em
quando trocando beijinhos e leves carícias. Era visível que estavam muito
felizes com o reencontro e Henrique também cou feliz de vê-las assim.
Conversaram os três sobre o lme, e Helena comentou que era um achado
muito bonito o do diretor dinamarquês tratar da morte da forma como o
zera, com a lenta aproximação da Terra de outro astro. Uma morte tão
bela, Helena suspirou, assim como a explosão de sensualidade da
protagonista recém-casada no nal do lme, deixando o marido abandonado
no quarto para transar com outro no jardim, ela ainda vestida de noiva, com
o vestido cobrindo os seus corpos. “Ah, se a proximidade da morte fosse
sempre assim”, disse Henrique.
Já eram duas da manhã quando Helena disse que estava fatigada e que ia
se recolher. Dessa vez despediu-se de Henrique com beijos nas faces e, ao
curvar-se sobre ele para beijá-lo no rosto, falou baixinho quase em seu
ouvido: “Vou deixar a porta do meu quarto destrancada”.
Helena não deixara dúvidas sobre as suas intenções, mas Henrique cou
matutando sobre como ir ter com a cunhada sem que Teresa percebesse.
Estava muito excitado com a sugestão de Helena, mas acabou comendo
Teresa, que se mostrava toda oferecida, com certeza por causa da foda tão
boa que tiveram quando ela experimentara o maiô e talvez também por
causa do clima de excitação que se instalara entre os três com aquele
encontro. Mas as coisas nunca se repetem, e teria sido uma trepada
aborrecidamente conjugal, não a houvesse Henrique comido vigorosamente
pelas costas, embora na xoxota mesmo.
Depois foi ao banheiro e, ao voltar, teve a boa surpresa de ver que Teresa
dormia. Felizmente ele não tinha o hábito de dormir nu, de modo que se
Teresa acordasse não estranharia o fato de ele estar vestindo uma bermuda e
uma camiseta. Mas estava muito preocupado, de todo modo, e vestiu-se o
mais silenciosamente que pôde. Viu no celular que já eram duas e meia da
manhã e disse para si mesmo: “É agora ou nunca”.
O quarto de Helena era no andar de cima e também foi muito
silenciosamente que ele subiu a escada, agarrando com força o corrimão. E,
não fosse o seu coração batendo muito forte, teria sido como um autômato
que ele se aproximou do quarto de Helena. Chegou a torcer para que a porta
estivesse trancada, mas ao girar o trinco este cedeu facilmente. A luz estava
apagada e, mesmo com uma luz acesa no banheiro, ele teve de acostumar os
olhos para ver Helena deitada de costas na cama, vestida com uma camisola
imaculadamente branca, que deixava suas coxas e sua xoxota de fora, como
que por descuido. Ele chegou uma das mãos bem perto da boceta dela, mas
hesitou em tocá-la assim dormindo. Foi quando ela abriu os olhos e disse,
languidamente:
“Você demorou, pensei que não viesse mais.”
“Fiquei preocupado que Teresa acordasse. Se ela souber que estou aqui
pode fazer um escarcéu, indignada.”
“Não tenha tanta certeza disso.”
“Por que você diz isso?”
“Intuição, meu querido.”
“De todo modo, não posso demorar. O que quer que eu faça com você?”
“Tire a roupa toda e deite-se de costas ao meu lado”, ela disse
prontamente.
Agradava a ele a segurança dela, tomando toda a iniciativa. Isso o
acalmava um pouco e ele obedeceu. Ela então ergueu o corpo, virou-se com
agilidade na cama e sentou-se sobre ele, sobre o pau dele. Estava duríssimo,
mas ele não podia vê-lo nem à boceta dela, encobertos pela camisola macia,
elegante, com toda a certeza parisiense. Era muito excitante foder assim,
ocultos pela camisola, ainda mais porque ela disse, retendo o gozo: “Fico
pensando na Justine de Melancolia, traindo o marido na noite de núpcias,
fodendo no jardim com o amante ocasional, os dois encobertos pelo vestido
de noiva de Justine. Cheguei a amá-la naquele momento. Fico ngindo que
também estou vestida de noiva”.
Era o que faltava para ele gozar. Depois livrou o seu corpo, porque voltou
a temer que Teresa os descobrisse trepando. E disse: “Sabe que eu também
poderia amar você?”.
Nesse momento ela estremeceu o corpo todo num longo orgasmo. Mas logo
depois ainda encontrou forças para dizer: “Não estraguemos as coisas. Quer
que eu traga uma outra mulher para trepar com a gente?”.
“Mas quem poderia ser? Teresa?”
“Por que não?”, ela disse.
Luísa fechou abruptamente o livro, deixou-o de lado, e olhou para ele,
ainda na poltrona, com o pau completamente duro por causa da leitura e
também porque durante uma boa parte dela, que durara uns quarenta
minutos, Luísa dobrara as pernas, deixando à mostra uma calcinha preta. E
disse a ele: “E você?”.
“Eu o quê?”
“Quer que eu traga uma mulher para foder com a gente?”
Ele não hesitou:
“Quero, quero muito. Mas quem poderia ser?”
Ela riu e disse: “Ah, a minha amiga. Se ela quiser, é claro. Mas acho que
seria bom para os três”.
Ficou claro para ele que ela podia gostar também de mulher, e que a
amiga devia ser sua amante.
“Mas e agora”, ela disse. “Quer que eu tire os óculos?”
“Como você quiser. Mas quero que saiba que não sou como o Henrique,
gosto muito de você de óculos, ainda mais lendo, parecendo uma moça
estudiosa”, foi a vez de ele rir, novamente.
“Mas é que sem os óculos eu não enxergo absolutamente nada. Os
óculos são bifocais, sem eles eu não vejo nem você, de perto ou de longe.
Fico completamente cega. Não quer me comer assim, cega?”
Outra vez ele não hesitou:
“Quero muito.”
“Dessa vez não precisa pôr camisinha. Eu também uso e, de resto,
con o em você. Que não tem nenhuma doença”, ela disse, já deixando os
óculos na mesa de cabeceira.
Desde a leitura ele estivera com o pau duríssimo e masturbara-se
lentamente, sem disfarces, com o pau para fora do zíper da calça, inspirado
pela história de Teresa, Helena e Francisco. Mas excitou-se novamente
com a proposta de Luísa. Livrou-se da calça e da cueca e veio sentar-se na
cama, contemplando e acariciando todo o corpo de Luísa, que estendia as
mãos para tocá-lo, sem ver coisa alguma, e ele se sentia não apenas
excitado, como também emocionado. Desde o princípio gostara muito dos
seios pequenos de Luísa, de sua calcinha preta, lisa, sem nenhum enfeite;
sem nenhum daqueles adornos vulgares que certas mulheres acham que
excitam muito os homens. Naquele momento, sem dúvida, Luísa era uma
mulher séria.
Bem devagar, ele foi tirando aquela calcinha e foi como se visse pela
primeira vez a boceta de Luísa. Era preciosa, levemente escondida pelos
pelos que ela não raspava, o que a tornava muito mais misteriosa. E ele
cou muito mais à vontade para mexer nela, vendo sem ser visto, como se
fosse um ato clandestino.
Depois começou a lamber aquela boceta, fazendo Luísa suspirar. Ela
permanecia silenciosa, como se já houvesse dito tudo. E abriu as pernas e
os braços, estes estendidos em forma de uma cruci cação, um sacrifício
litúrgico, e era impressionante como os dois sabiam disso sem se falar. E
também entendiam (um sabia que o outro sabia) que uma cega devia ser
comida assim, quase solenemente, sem qualquer malabarismo, apenas
abrindo as pernas toda entregue, desprotegida, como se ele abusasse dela.
E Luísa permanecia assim, séria, como em nenhum outro momento desde
que se reencontraram. Parecia profundamente absorta no mais íntimo do
seu corpo, que agora fora penetrado até o fundo. E ele descobriu que Luísa
tinha uma daquelas bocetas sugadoras, que envolvem em contrações o pau
de um homem, pelo menos quando trepava assim, em paz e gravemente
concentrada, pouco importava que tiros continuassem a ecoar sobre a
cidade.
Ele procurou demorar o maior tempo possível dentro daquela boceta,
para que Luísa gozasse do seu jeito. E ele percebeu que ela estava gozando
quando abandonou aquela posição de cruci cada e arranhou com força as
costas dele. Em nenhum momento se beijaram e, tão logo ela gozou,
libertou-se do corpo dele e caiu para o lado como se talvez desfalecesse, e
quem sabe não acontecera isso mesmo?
Olhando para ela adormecida, ele pensou que a estava amando, mas não
deveria dizer isso. Entendia perfeitamente que na leitura daquele livro ela
sinalizara um caminho e, se amor existisse, não devia ser mencionado para
não ser corrompido.

Mas Luísa ainda guardava uma surpresa. De olhos fechados, como se


dormisse, tornou a aproximar-se do corpo dele, dessa vez pelas costas,
roçando a boceta na bunda dele e segurando o seu pau lá na frente. E em
movimentos ritmados, e desta vez permitindo-se suspiros ofegantes, ela
gozou na bunda dele, ao mesmo tempo que lhe batia uma punheta que o
fez gozar outra vez, impressionando-o por conseguir gozar quatro vezes
num tão curto espaço de tempo. Quanto a ela, cava visível que chegara a
um limite, pois voltou a afastar-se do corpo dele e murmurou: “Estou
morta”. E voltou a adormecer, desta vez profundamente.
Ele se lembrou do trecho do livro que ela lera para ele, que não deixava
de ser uma espécie de parábola de que tudo devia ter o seu tempo. Então
levantou-se o mais silenciosamente que pôde, passou no banheiro, mas
apenas mijou e não quis lavar-se para não apagar os vestígios e os cheiros
dela. Depois veio até a poltrona e começou a vestir-se para ir embora, pois
não queria ser excessivo, para que ela, quem sabe, voltasse a desejá-lo.
Olhou para ela dormindo e sentiu-se enternecido. Mas, como se captasse
com um sexto sentido o olhar dele, ela abriu os olhos, colocou os óculos,
virou-se na cama e disse:
“Vou te levar até a porta.”
Com essa frase amável, mas incisiva, cava evidente que ela queria
dormir sozinha, quem sabe telefonar para a amiga? Mas ele não resistiu e
perguntou:
“Não quer me dar os números de seus telefones?”
“É melhor você me dar os seus, pode escrever ali no livro, aí tenho
certeza de que não os perderei. Há uma caneta Bic na mesa de cabeceira.”
Estava claro que, se alguém deveria propor um encontro, teria de ser ela.
E quem sabe não seria então o quase prometido encontro a três?
O livro estava aberto, virado com as páginas para a cama. Ao pegá-lo
para anotar os seus números telefônicos, ele percebeu que as páginas
abertas eram as duas últimas que ela lera para ele. Com a rapidez de todas
as mentes, ele virou uma página mais, que, com toda a certeza, ela ainda
leria para si mesma. E, não inocentemente, anotou ali os números de seu
telefone xo e celular. E alguma coisa lhe dizia que não devia escrever seu
nome, deixando a cargo dela lembrar-se dele.
Ela então levantou-se e, sempre nua, deu a mão para ele e, em silêncio,
o conduziu não apenas à porta do apartamento, mas até a do elevador.
Era visível que ela se lixava para o caso de algum vizinho a surpreender
ali nua.
O elevador chegou, ela deu-lhe um abraço e um beijo rápido, um
selinho, na boca. E foi ela mesma quem lhe abriu a porta do elevador.
Descendo no elevador, ele não tinha nenhuma certeza sobre até onde
aquilo que acontecera naquela noite iria levá-los, se levasse. De todo modo,
sentia-se feliz.
Saindo do edifício, ouviu alguns tiros não muito longe, mas cou
tranquilo. A rua estava deserta, mas a noite não era mais lúgubre.
Em preto e branco

Seria extremamente tedioso narrar até para si próprio, ou mesmo rever


com o psiquiatra, o processo que durou quase três anos em que a mulher
fora de nhando com esclerose múltipla até morrer com os músculos do
corpo paralisados, restando por último os do aparelho respiratório, quando
ele decidiu com o médico pela morte assistida. Isso não queria dizer que
ele não sentia sua falta, mas falta do quê, exatamente, principalmente em
que tempo da vida? E com a ajuda do psiquiatra ele foi se torturando cada
vez menos, até não sentir mais culpa, ajudado pelo fato de tanto ele quanto
Marília já terem conversado algumas vezes sobre isso e concordado que
uma morte boa era aquela com o menor sofrimento possível. E assim foi,
quando cou claro que morrer era o melhor para ela.
O que não quer dizer que ele não tenha chorado o su ciente e
demorado algum tempo para parar de procurar no apartamento a presença
dela. Não dormiam mais no mesmo quarto, antes até que a doença se
manifestasse e ela precisasse de enfermagem. E mesmo antes, sem
comentarem o assunto, já não trocavam de roupa um na frente do outro,
em respeito aos próprios corpos, ambos já tendo passado dos setenta anos.
E em quartos separados podiam gozar de uma privacidade em que ele se
permitia ver vídeos pornográ cos no computador até não suportá-los mais,
pois a representação do sexo era lamentável. Então ele lia e ela trabalhava,
sem maiores compromissos, em ilustrações para jornais e revistas,
enquanto ainda podia contar com as mãos e a computação grá ca.
Mas passaram a viver numa boa esse tipo de separação, viam e iam ao
cinema juntos, mantendo o hábito de car de mãos dadas no cinema, que
vinha desde sempre. E tinham também a delicadeza de não ligar os
celulares um na frente do outro mesmo que estivessem em silêncio, o que
os diferenciava de outros casais.
De todos esses hábitos, um dos que lhes eram mais caros, e sempre sem
premeditação, era chegarem à janela juntos, principalmente em dias de
chuva ou quando o céu estivesse mais limpo e as estrelas mais visíveis,
embora morassem apenas no sexto andar e tivessem somente uma nesga de
céu visível entre os edifícios. Trovões e raios eram um acontecimento.
Trabalhando temporariamente em fascículos de astronomia, ela aprendera
alguma coisa sobre o universo e gostava de falar nisso, e ele cava
abismado com a quantidade in nita de astros, trilhões e trilhões. Daí
podiam engrenar um papo, e ele gostava de escutá-la. Agora ele não tinha
mais com quem conversar sobre isso, embora não houvesse deixado de
chegar à janela e lembrar-se de Marília falando, meio em tom de troça,
que, diante da grandeza do universo, não era nada impossível que outros
planetas fossem habitados por algumas espécies de seres, ou que eles
mesmos permanecessem em outra dimensão do espaço e do tempo. Que
eles também fossem in nitos, senão eternos. E continuava a rir, porque
ambos estavam felizes. O bom humor de Marília era tal que uma das
últimas mensagens que lhe passou, catando milho no computador, antes
de não poder falar mais, foi a seguinte: Desculpe o mau jeito, mas quem
sabe a gente se vê por aí (rs). Ele era agnóstico, mas andou pensando: não
adianta pensar no depois, as coisas acontecerão exatamente como têm de
acontecer.
O fato é que ele demorou a se acostumar com a ausência dela, ainda
que num estado muito precário. Como companhia ele só tinha uma
diarista, que ia para casa às seis da tarde e voltava de manhã. Numa ilusão
de estar menos só, ele mantinha parte das luzes do apartamento acesas
durante as noites, inclusive as do quarto de dormir. Depois, passados uns
três anos da morte dela, uma noite ele decidiu deixar tudo apagado. De
todo modo o psiquiatra lhe receitava comprimidos para dormir, e ele tinha
três caixas de remédio tarja preta a seu lado na cama. E de fato ele dormia
por umas três, quatro horas seguidas. Depois não havia jeito senão car
acordado, a menos que tomasse mais e mais remédios, num círculo vicioso
que acabaria por levá-lo a um internamento e, por que não, à morte. E ele
guardava medicamentos su cientes para esta última eventualidade.
Mas aconteceu de ele acostumar-se com a escuridão, até curti-la, se
deixando car na cama, pensando o que lhe viesse à cabeça. E sentir-se
minúsculo e sozinho no universo com trilhões de astros era uma coisa que
o exaltava, o tornava imenso em sua pequenez. Apesar de tanta
luminosidade dos astros, ele às vezes pensava em si mesmo imerso num
breu absoluto e era um pensamento emocionante para se ter. E criou para
consumo próprio uma espécie de loso a barata que era a de que um ser
deve se cumprir até o m, como Marília se cumprira, com uma ajudinha
dele, que só chegaria às últimas consequências se algum sofrimento
insuportável o levasse a isso. E o a gente se vê por aí adquiriu essa
conotação de cumprir seu destino, como Marília, e, se alguma
possibilidade de reencontrá-la houvesse, teria de ser por aí. Porém, como
era natural, havia noites em que ele se mostrava mais inquieto, e para essas
noites guardava um cigarro comprado a varejo. Marília não suportava o
cheiro de cigarro, e então ele se acostumara a fumar à janela esse único
cigarro, soprando a fumaça para o mais longe possível.
Foi numa dessas noites em que ele se mostrou muito inquieto, rolando
de um lado para outro na cama, levantou-se, passou pelo banheiro e pela
cozinha, tomou um gole de coca-cola bebendo da própria garrafa, pegou o
cigarro sobre um livro da estante da sala e dirigiu-se à janela, sem acender
nenhuma luz. E demorou um pouco a acender o cigarro, antegozando o
prazer de fumá-lo. Não pensou em Marília porque ela jamais estaria com
ele fumando. Depois decidiu-se, nalmente, e deu uma tragada bem funda
com o mesmo prazer de sempre, até mais, que era o mesmo de respirar,
deixando a fumaça o maior tempo possível nos pulmões. Foi nesse instante
que ele avistou a mulher na janela do edifício em frente, bem próximo ao
seu. Havia alguma luz no apartamento dela, não muita, vinda de outro
cômodo, ou talvez de uma tela de televisão, e ele julgou ver que ela usava
uma combinação preta, traje que achava muito sensual. E a mulher
também fumava à janela e, com toda a certeza percebendo-o, começou a
fazer, com a brasa do cigarro, riscos imaginários no ar, como um sinal para
ele, que respondeu com o mesmo gesto. Até que ela atirou a guimba pela
janela e ele acompanhou aquela luzinha caindo até a calçada. A mulher
sumiu dentro do apartamento e ele, apesar de saber-se insensato, sentiu
ciúme dela, que talvez houvesse sido chamada por alguém lá dentro. Ele
esperou que ela voltasse, mas ela não voltou. Então foi a sua vez de atirar o
toco do seu cigarro no espaço, embora fosse organizado a ponto de deixar
um cinzeiro no parapeito da janela.
Desolado, ele não sabia mais o que fazer, pois não tinha o menor desejo
de voltar para a cama. As luzes estavam todas apagadas, mas era aquele
momento crítico da noite ou do dia, perto de cinco horas da madrugada,
quando não se sabe se ainda é noite ou se já desponta, quase imperceptível,
o dia. Sentiu-o como um momento zero, sinistro, vazio, quando ele sentia
a angústia do cantar do primeiro galo ou da primeira cigarra. Havia se
sentado no sofá e, num gesto instintivo, apertou simultaneamente três
teclas no controle da .
Era um lme americano em preto e branco, visivelmente da década de
50, cujo título ele não sabia e nem do que se tratava. Era noite no lme, e
na tela apareceu uma aglomeração de pessoas saindo de um teatro ou
cinema. Entre essas pessoas não havia nenhum ator ou atriz que ele
reconhecesse, mas seus olhos foram imediatamente atraídos para uma
mulher bem trajada, mas sem ostentação, com as mãos nos bolsos do
vestido, olhando para os lados, como se procurasse alguém, ansiosa. Mas
depois os olhos dela se xaram nele ali no sofá. E ele teve certeza de que a
mulher, solitária, o olhava nos olhos, e isso lhe pareceu uma loucura,
como se fosse ele que ela buscava, parecendo, embora triste, apaixonada,
ao que ele correspondeu imediatamente, fascinado. E entendeu que a
amava.
Mas isso era uma loucura ainda maior, pois, pela faixa etária dos
gurantes do lme nos anos 1950, agora eles já estariam todos mortos.
Ficou querendo vê-la por mais tempo, mas houve um corte para outra
cena e isso não aconteceu. E, sentindo-se como Cinderela, ouviu o
primeiro cantar de um galo e o canto de cigarras. O dia clareava
rapidamente e as imagens na tela da foram se tornando indistintas e ele
percebeu que não podia mais ver o lme, que era um lme velho. Sentiu
logo uma imensa nostalgia e que ele e a mulher haviam se encontrado em
tempos distintos, mas ambos se amavam perdidamente, e que eles, ou pelo
menos ele, estava condenado a buscar aquela mulher eternamente, por
mais que esse encontro fosse impossível.
Ele estava desolado de um jeito como poucas vezes estivera antes, numa
tristeza in nita, mas o dia o feria como se ele fosse um vampiro. Ergueu-se
e caminhou para o quarto, pensando que não lhe restava outra saída senão
matar-se, se quisesse encontrar aquela mulher em outro mundo, onde
viveriam juntos para sempre. E que, morrendo, seria o único modo de
encontrá-la, o único jeito de estarem no mesmo tempo. Levou uma jarra
d’água para o quarto e chegou a pegar uma primeira caixa de
comprimidos. Mas não tirou nenhum deles, pois teve medo de um
desencontro com a mulher do lme. Não quis nem mesmo tomar uns
poucos comprimidos para dormir, pois não queria perder a lembrança da
mulher, ou que os medicamentos vedassem seus sonhos, que talvez fossem
uma outra forma de encontrar-se com ela. Não queria nem assistir ao lme
outra vez, pois quem garantiria que, com o prosseguimento da história, ela
não fosse encontrar o personagem que a aguardava? Não, ele falou alto
para si próprio: Enquanto eu não alterar os destinos, ela será sempre minha.
Eterno

Não bastasse ele fazer setenta e oito anos naquela data, o que antes lhe
parecia uma idade impensável, o país, o seu país, se deteriorava cada vez
mais, com um presidente estúpido, ignorante e fascista e com um povo
beócio que o apoiava; a própria natureza fora exaurida até um ponto
inacreditável, com as árvores derrubadas, orestas pegando fogo, matando
os animais, os índios atacados, e os mares, as melhores praias, o oceano
impregnado pelo óleo grosso e viscoso.
O que lhe restava senão olhar para o espaço, embora os trilhões de astros
estivessem ocultos pela névoa? Mas bastava ele saber que existiam. E se
consolava contemplando o planeta Vênus, el a ele todas as noites, e
pensava: eis que existe sem mim, em algum ponto do espaço ele está lá.
Outra perspectiva que se abria era a arte, a imaginação, a memória. Ele
se sentia também fascinado ao acompanhar os bichos pela televisão, mas
tinha de reconhecer que era um devorar sem m, impiedoso, muitos
lhotes que não vingavam.
Nervosamente, começou a zapear na e passou por um canal que
acabara de mostrar um programa com Jim Morrison & The Doors e
lamentou que já fossem os créditos, mas junto com os letreiros ainda havia
a imagem de Jim Morrison cantando “Light my re” e ele se arrepiou
todo. Morrison, belo e imortal como um Deus e com seu olhar xo
adiante, contemplando o in nito dentro de si mesmo.
Morrison, que morrera, provavelmente drogado, numa banheira, aos
vinte e sete anos, mas ele o invejou.
Ele, o artista-escritor, se atirou também no passado, indo para a praia
com a jovem atriz dirigindo o carro, ele bebendo uísque e a moça com um
baseado na mão, e trocavam, o copo para a moça, o baseado para ele. Eles
haviam passado a noite assim, bebendo e fumando maconha e trepando, e
agora na rua a realidade parecia irreal. Ou, ao contrário, muito real. A
moça vestira apenas a camiseta e ele uma sunga, e pararam de qualquer
modo na la dupla, pularam para a areia, meio que tropeçando.
Foram andando em direção à água e, a meio caminho, ele a pôs deitada
em seus braços, carregou-a e a depositou na água, era um tempo de
liberdade, e ele a beijou e acariciou seus seios. Depois ele a trouxe de volta
e no toca- tas do carro Jim Morrisson continuava a cantar, agora The end,
this is the end, mesmo quando ninguém o estivesse escutando, eterno.
Escrito num guardanapo

Nesse momento em que o álcool ainda não me encharcou.


O botequim só meio cheio. Já tem tempo que ela morreu, mas agora
estou feliz. Penso que a nal eu a tive por alguns meses. Uma preta velha
me dizendo que depois de desencarnar a gente podia encarnar até num
animal, até num inseto. E acabaria por viver tudo de novo desta vida.
Ela morreu assassinada pelo cara que me sucedeu. Mas morta eu a amo
ainda mais, pois não vai me trair mais no mundo. E a espero aqui neste
botequim até que também eu morra. Mas por que não esperar algum
tempo? Não valho nada, mas sou todo o universo.
Lá fora dois tiros, mas ninguém aqui se importa.
Cheiro de fritura e de mijo. O balconista boceja. É ele mesmo quem
serve as mesas.
Peço mais um cálice e observo os ventiladores de teto em volta do velho
lampião. Mariposas voam em torno dele até que entram ali por um vão.
Logo, logo, vão morrer chamuscadas. Mariposas suicidas. Hipnotizadas
pela luz. E se uma delas for a minha amada? Deveria eu imitá-las, para
encontrá-la? Seduzido por esse pensamento.
O pensamento do nada também me seduz. Desencarnar de todo e para
sempre. De todo modo haverá os momentos em que terei vivido com ela.
Mesmo que agora suado e com as roupas sujas. Peço mais um. Os outros
frequentadores não são melhores do que eu, cada um com a sua história
encardida. Numa das mesas há uma mulher com três homens. De vez em
quando soltam gargalhadas e adivinho que um deles soltou uma piada suja.
Não gosto disso e peço para eles diminuírem o barulho. Na radiola fanha
está tocando “Por una cabeza”, de Gardel, e quero ouvir o tango que me
emociona. Por uns instantes eles se calam e me lançam olhares hostis. E
voltam a comer de boca aberta os seus pastéis gordurosos.
Vejo a lagartixa que desce vagarosamente das vigas e hipnotiza um papa-
moscas. Ele não leva a menor chance. E se a lagartixa for ela, nua e
sinuosa? Mas a coroa feia, com roupa de mocinha, de repente dá um grito,
arrasta sua cadeira, se levanta, aponta para a lagartixa e grita: Uma
lagartixa.
Um dos homens tira um dos sapatos, sobe numa cadeira e já vai esmagar
a lagartixa. Com uma velocidade que eu não imaginava ter, pulo até a
cadeira dele e o empurro com força. Ele se estatela no chão e geme, pode
ter quebrado algum osso. Um dos amigos e a mulher vêm socorrê-lo,
enquanto o terceiro homem se dirige a mim. Antes que ele me dê o
primeiro murro, olho para a parede ao alto, e a lagartixa desapareceu.
Depois apanho muito, inclusive da mulher e, se não fosse um guarda
chegar, podia até ter morrido. O guarda ameaça prender todo mundo.
Vou até o banheiro, olho-me no espelho e estou muito inchado e
horrível. Também estou enjoado, debruço-me no vaso e vomito muito.
Depois ainda sinto dores, mas o enjoo passou. Na porta está escrito: dou o
rabo e chupo o pau. E um número de telefone que deve ser de algum
desafeto de quem o escreveu, penso. Lavo meu rosto na pia, olho-me de
novo no espelho e, apesar do rosto inchado, sorrio. Volto para a minha
mesa, o pessoal da outra mesa agora fala baixo e não olha para mim.
Escrevo de novo no guardanapo, com letra miudinha: “Ela escapou, ela
escapou”.
Noites

A noite é um eclipse, um oásis. A noite pode ser um bálsamo ou um


tormento. A noite pode ser cheia de medo ou até terror. A noite do
hominídeo sozinho na caverna enquanto lá fora o vento uiva e há trovões e
relâmpagos. A noite da moça nua dormindo sozinha no quarto escuro,
recebendo no corpo re exos multicores que vêm dos luminosos do dancing
em frente. A noite desesperada e arfante dos dançarinos drogados ouvindo
a música eletrônica que ecoa pelo bairro. A noite de outra mocinha
dormindo abraçada com o homem que a conquistou com seu arrojo e
paixão. A noite dessa mesma mocinha dormindo entregue, sem saber que
um dia esse macho maldito a matará com facadas quando ela quiser deixá-
lo. A noite mais sábia das lésbicas. A noite dos que gostam de dormir
sozinhos numa escuridão igual a um breu. A noite do insone na escuridão
lúgubre do país. Os ruídos não identi cáveis na noite lá fora. Noites de
sonhos recorrentes, às vezes cheios de medo, do qual se quer se livrar, mas
o senhor dos sonhos não se deixa conduzir. E os sonhos que a gente sabe
que são importantes, mas dos quais não se consegue lembrar. Ou de
repente lembra. De todo modo deve-se dormir à noite com um bloquinho
de notas ao lado, na cama, para anotar os sonhos, contos e poemas. As
noites de Edgar Allan Poe escrevendo seus contos de amores necrófagos.
Noites dostoievskianas. São os sonhos um indício da existência de Deus?
Também a noite é uma criação de Deus? Os espíritos vagando na noite. A
noite do morto enterrado há pouco no caixão: “Onde foram parar todos?”.
A noite do homem que se imagina no paraíso. O paraíso é uma praça
arborizada no meio da qual passa um riacho murmurante entre pedras. Ali
há também um belo casarão em cuja varanda repousa Deus, numa cadeira
de vime. Deus, com um leve sorriso meio irônico, oferecendo-se à
contemplação dos eleitos. E o diabo, pode aparecer à noite? Sim, como
não, e a gente acorda trêmulo, aliviado por voltar à realidade e, por via das
dúvidas, reza uma ave-maria pedindo proteção. Mas será que existe mesmo
uma vida eterna? Existe mesmo Deus? Mas existir Deus não signi ca que a
gente voltará a viver. Mas quem sabe? A noite do homem que tenta se
concentrar para se comunicar com a mãe morta há muitos anos, nem que
seja num sonho. A noite em que pode aparecer também a mulher amada
que o homem conheceu num sonho e cou perdidamente apaixonado e se
mantém à espera de que ela venha visitá-lo de novo. A noite do senhor que
dorme só em seu quarto miserável e sem janelas, mas ele sente, dentro de
si mesmo, o universo in nito e pensa em como terá se criado essa vastidão
incalculável. E sabe que existem nessa vastidão espaços escuros imensos.
Existem também buracos negros que podem engolir galáxias inteiras — e
daí pode se inferir que existe Deus? A noite no exoplaneta K2-18b,
orbitando uma estrela anã vermelha, a 111 anos-luz da Terra e no qual
podem existir, embora improvavelmente, formas mínimas de vida, os
tardígrados. A noite em planetas a bilhões de anos-luz da Terra. E a noite
dos suicidas? Escolher, puxa vida, não existir durante toda a eternidade?
Mas se a morte for natural pode signi car que não viver durante toda a
eternidade é um pensamento extasiante. A última e de nitiva noite. As
noites dos noctâmbulos. A noite na jaula da fera. As noites com nossos
monstros. As noites com nossos remorsos. As noites com nossas loucuras. As
noites com nossos demônios. As noites com nossas preces. As noites de
tédio. As noigandres. As noites com nossos amores perdidos. As noites
cheirando lança-perfume. As noites dos fumadores de ópio. As noites de
Baudelaire. As noites de breu total. As noites de delírios de febre. Nossa
noite do suicídio. A noite da ressurreição. A noite nos bastidores vazios dos
teatros com seus fantasmas. As noites com seus cenários. A noite eufórica.
A noite da morte. A noite com medo. As noites de desesperança absoluta. A
noite do crime de Ágatha. A noite de sono com um livro aberto no peito. A
noite de chuva lá fora, ah, que bom! A noite dos enfermos querendo
desencarnar. A noite de escombros psíquicos. A noite do inconsciente
sempre vivo. A noite dos assassinos. A longa noite de tortura. A noite
surrealista. As noites dos sonhos esquecidos para sempre. A noite negra
com a mulher negra. A noite de lágrimas não confortadas. A noite da morte
do pai. A noite da escrita febril. A noite da escrita abortada. A noite
desesperada. A noite abençoada. As mil e uma noites.
Das memórias de uma trave de futebol em
1955

Para assistir a treinos só vêm mesmo os fanáticos, alguns sócios, a


garotada matando aula, alguns desocupados daqui de Laranjeiras. Meu
posto é privilegiado, não só pela posição que ocupo no gramado como pelo
fato de estar defendendo a baliza defendida pelo Castilho, o maior goleiro
do Brasil. Isso nem se discute. Mas o Fluminense está tão bem de goleiros
que o titular e o reserva, Castilho e Veludo, foram convocados para a
seleção na Copa de 54. Castilho treina entre os reservas para ser mais
exigido pelo ataque titular. Nada menos que Telê, Didi, Valdo, Átis e
Escurinho. Mas Didi é meia-armador e um exímio cobrador de faltas, que
bate com sua famosa folha seca.
A folha seca é assim: a bola vem pelo alto, mas perto do gol, perto de
mim, de repente perde a força e cai, tantas vezes na rede. Didi acaba de
bater uma falta dessas, só que a bola bateu na trave, eu, bem no ângulo.
Não sei se devo sentir orgulho ou decepção, acho que ambas as coisas. Pois
a cobrança foi perfeita, uma obra-prima, que assisti do meu posto
privilegiado, mas ao mesmo tempo me sinto defendendo o gol do Castilho,
meu irmão quase, eu diria. Didi sorriu para dentro, com seu jeito discreto,
pois foi bonito e engraçado. Pode isso? Pode.
Mas outras bolas entraram, a primeira delas do Telê, que recebeu um
passe do Didi, na ponta direita, e emendou de primeira, com efeito, a meia
altura, uma pintura de gol, até aplaudido pelos poucos assistentes. As
palmas num estádio vazio ecoam diferentes, um pouco melancólicas, pois
um gol desses devia ter sido feito no clássico de domingo, no Maracanã,
contra o Flamengo.
Ou a melancolia estará em mim? Pois sei que é chegado o meu m, até
madeira empena sob o sol, de vez em quando é preciso trocar as traves. Já
vieram aqui e me examinaram, umas três vezes, como se fossem médicos.
“É, tem de trocar”, um dos funcionários do clube disse. E debochou: “Pode
até dar cupim”. O Fluminense é conhecido por sua organização e vai
trocar logo. Enquanto isso, cumpro a minha obrigação. Quando a bola
bate em mim, depois de um bom chute, como a folha seca do Didi, sinto
quase como mérito meu. Mas bolas entram e tudo bem, é também parte
do meu jogo particular.
E é meio foda, do outro lado está o grande centroavante Waldo,
artilheiro do time e do campeonato. Hoje já marcou dois, um deles um de
seus famosos gols espíritas, marcado com as costas, depois de um centro
perfeito do Telê. E olha que não foi falha do Castilho, nenhum goleiro
poderia prever que, no meio da área, entre os zagueiros, o Waldo
encontrasse um jeito de arrematar com as costas. O outro gol foi normal,
ele fez uma tabelinha com o Átis, entrou na área e, frente a frente com o
Castilho, tocou no canto e marcou.
O Átis é um grande cabeceador. Sobe mais do que todo mundo e testa a
bola no ângulo e com força. Hoje deu duas cabeçadas assim, mas o
Castilho buscou. Uma das coisas legais do Átis é que ele é um grande
gozador, brinca com tudo e com todos. Mas às vezes isso enfurece a
torcida, quando o time está perdendo ou empatando com um clube
pequeno, aqui nas Laranjeiras mesmo. Uma vez saiu de campo até vaiado
e riu assim mesmo. Dizem que não liga muito para o azar porque vem de
uma família rica de São Paulo e não precisa do futebol pro ssional. Hoje
ele riu também, e os poucos que estavam no estádio aplaudiram, tanto as
suas cabeçadas com grande estilo quanto as defesas idem do Castilho.
Também o Robson, do time reserva, baixinho mas grande jogador, tem um
senso de humor impressionante, e um outro jogador nosso o chamou,
numa entrevista, de piada ambulante. Mas joga sério e é um grande
driblador, se não fosse o Didi no time seria o titular. Enquanto a
característica do Didi é fazer a bola correr, a do Robson é sair catando os
adversários. Muito estimado pela torcida.
Já o Duque, zagueiro central reserva, dotado de algumas qualidades, não
gosta de perder nem em treino e às vezes entra no time titular substituindo
o Pinheiro, também da seleção. Aqui mesmo, hoje, fez um gol contra na
minha baliza, mas um gol contra normal, pois foi cortar um centro rasteiro
e a bola deslocou, enganou o Castilho e entrou. O nosso goleiro teve de
consolar o Duque, que estava quase chorando, isso num reles treino.
Castilho é um grande pro ssional, ama tanto a pro ssão que fez com
que lhe amputassem um dedo da mão esquerda, que vivia in amando. E
ali no tricolor ele não podia dar sopa, com a sombra do Veludo. A
amputação foi um ato heroico para a torcida tricolor, que idolatra o nosso
goleiro.
Mas nem todos são craques consumados, há o Escurinho na ponta-
esquerda, dotado de uma velocidade impressionante, foi comprado do Vila
Nova, de Minas, por causa disso, mas muitas vezes centra alto demais e a
bola não chega nem perto de mim e muito menos do Castilho. E às vezes é
capaz de sair pela linha de fundo com bola e tudo. Mas, com sua
velocidade, puxa contra-ataques de uma rapidez impressionante, que não
raro terminam em gol nosso e às vezes dele mesmo. Titular indiscutível.
Voltando ao time reserva, que hoje defendo, há outros jogadores muito
bons, pois o Fluminense atravessa uma boa fase. Tem gente que aposta
nele para ser campeão, embora o Flamengo esteja buscando o tetra, com
jogadores do quilate de um Rubens, um Evaristo, um Zagalo. Fico
sabendo deles pelos comentários dos que passam aqui perto do gol, pois
time grande só enfrenta o tricolor no Maracanã. Entre esses nossos reservas
há jogadores tão bons quanto o Emílson Peçanha, apoiador, um negro
bonito, do sul, cheio de categoria, que forma dupla com o Ramiro, santista,
outro craque.
Zezé Moreira, o nosso técnico, é conhecido por sua obsessão defensiva.
No seu entender é uma “marcação por zona”. Mas no pensamento de
muitos é ferrolho mesmo. E a torcida arranca os cabelos quando o
Fluminense marca um gol num clássico e recua todo para se defender,
quase matando os torcedores do coração. E o Zezé não está nada satisfeito
com a gente hoje, pois já levamos quatro gols, o último do Didi que, como
se quisesse ir à forra da falta que bateu em mim, quer dizer, na trave,
chutou de efeito da entrada da área e encobriu o Castilho, marcando o
quinto gol.
O Castilho foi então substituído, não porque tivesse tido culpa nesses
gols, mas porque seu Zezé, por psicologia, pelo menos eu penso assim,
queria poupar o goleiro da seleção de uma goleada homérica. Castilho
deixou o campo e, para defender a baliza do outro lado, entrou o Jairo,
terceiro goleiro, mas também muito bom. O Fluminense é uma fábrica de
goleiros, se diz.
Quem veio defender a nossa trave foi o Veludo que, como já disse, é o
segundo goleiro do Flu e da seleção. Tem gente que acha até que ele devia
ser o titular. Mas eu tenho uma relação de afeto com o Castilho, que saiu
do juvenil do Olaria e veio para cá novinho e foi logo ganhando a posição,
para não sair mais, entrando no lugar do Adalberto, um guarda-metas
apenas mediano. Veludo é negro e, não sei se por isso, o pessoal, a
princípio, o encarou com descon ança. Tem uns que dizem que goleiro
negro não se cria. De fato, há poucos goleiros negros no futebol brasileiro,
mas Veludo é uma bela exceção, tanto é que na última Copa, em 54,
depois que o Castilho levou quatro gols dos húngaros, nenhum por culpa
dele, apesar de o Castilho estar nervoso, muita gente disse que, se o Veludo
tivesse sido o goleiro, ouvi, a história do jogo teria sido outra. Pode ser, mas
todo mundo sabe, até eu, que os húngaros são a melhor seleção do mundo,
atualmente. Tudo pode ser. Mas o certo é que, ultimamente, seu Zezé vem
revezando os dois no time titular.
E seu Zezé então põe o Veludo para jogar a última meia hora do treino
de uma hora. E o Veludo está jogando tão bem que parece justi car aquela
opinião. Pegou um tirambaço do Telê, mais uma cabeçada no ângulo, do
Átis, um arremate frente a frente do Valdo e uma porrada, apesar de meio
torta, do Escurinho. Tudo de tirar o chapéu.
Até que aconteceu aquele golaço do Clóvis. O Clóvis é centromédio,
mas chega muito bem na área adversária. E chegou na minha. Houve um
centro do Telê, sempre ele, o magrinho, sobre a área. O Clóvis matou a
bola no peito e em vez de pô-la no chão para arrematar, encobriu o Veludo
com o peito mesmo, e, pegando a pelota ainda com o peito, quase na linha
da meta, entrou com bola e tudo no gol, entrou em mim, e, confesso,
quei feliz com aquele lance magistral.
O problema é que o treino logo terminou. É complicado isso, quando
um espetáculo termina, mesmo um simples ensaio. Mas havia as estrelas
principais, os coadjuvantes, gurantes, espectadores. Todos, no gramado e
na assistência, vão conversando enquanto saem. Comentam entre si o que
assistiram, alguns, os torcedores mais fanáticos, até empolgados. Mas aí, aos
poucos, já começam a falar do espetáculo principal de domingo, o Fla-Flu.
Como eu gostaria de estar lá para participar ou ver. Mas, pior do que isso, é
que em breve meu tempo terá passado.
Ainda vejo um pôr do sol, meio cortado, porque a geral no piso superior,
do outro lado do campo, só me dá a visão até um ponto. Mas o crepúsculo,
embora essa palavra me cause arrepios, é sempre bonito. Bonito e triste.
Para piorar, volto a lembrar daquele cara que veio me ver, ver as traves, em
que deu dois chutinhos e depois disse aquele negócio de dar cupim. Mas
isso acontece com todos os seres, animados ou inanimados, me deu
vontade de responder, se conseguisse. E a noite logo vai cair. A noite
também é bonita, mas seria muito mais se fosse dia de jogo, o estádio
iluminado. Mas não. Para mim, em breve, será só escuridão.
A dama de branco

Temos a sorte de os apartamentos em nosso edifício serem providos de


sacadas. Embora pequenas, as sacadas são uma abertura para o universo.
Agora, com a diminuição do monóxido de carbono na atmosfera, com
muito menos carros circulando no Rio, várias estrelas se tornaram visíveis.
Estou pensando em comprar um telescópio pela internet. Enquanto isso,
contemplo o céu a olho nu mesmo. Me embriaga não passar de um ser
ín mo no cosmos.
Mas o que me leva a vir para a sacada de madrugada, mais do que as
estrelas, é contemplar a dama de branco, que circula pelo estacionamento
a céu aberto do edifício, sempre às três da manhã. Todos estão dormindo e
co contente com isso, pois, com ninguém mais a contemplá-la, é como se
a dama de branco me pertencesse exclusivamente.
Entendi por que ela sempre vem a essa hora. É porque não há ninguém
a importuná-la, a reclamar que ela não está usando máscara, como se
tornou obrigatório fora de casa. Imagino ver as suas feições, reparar como é
bonita. Uma beleza singular, que não consigo descrever. É compreensível
que ela queira caminhar a céu aberto e ao mesmo tempo protegida pelos
porteiros, que permanecem em seus abrigos nos portões do condomínio. As
ruas de noite são sempre perigosas e confrangeria meu coração se algum
mal acontecesse com a dama de branco.
Com minha imaginação solta, penso na dama de branco como uma
síl de, que parece levitar acima do solo com o seu vestido comprido,
esvoaçante. Penso nela como uma mulher pura, inclusive porque nestes
tempos de isolamento até os namorados não dormem mais juntos nem se
encontram. Não consigo imaginá-la na cama com homens, esses seres
brutos. Com outra mulher, talvez, mas agora deve dormir sozinha, quero
crer.
Para mim ela está em outra dimensão. Não tenho propriamente uma
religião, mas como guardo dois bons livros de astronomia, que volta e meia
releio, penso na grandeza para mim incalculável do universo. Trilhões de
astros, bilhões de anos-luz. Mas penso que, se houver um Deus, Ele não é
bom, como dizem, mas indiferente à sorte humana, isso se houver um
pensamento de Deus.
No entanto, como imaginá-Lo? Não deixo de usar para Ele as
maiúsculas de praxe. Cheguei a re etir, sem nenhuma certeza, só dúvidas,
se por acaso Ele ainda não estará sendo criado, muito aos poucos, pela
mente humana?
Mas o nada também não me angustia. Penso nele como uma espécie de
barato como o produzido pelo ópio, que experimentei duas vezes na Meca
que é Nova York, onde, com as informações certas, se pode experimentar
um pouco de tudo. Mas para conseguir o ópio tinha de digitar uma senha
no celular, ora vejam só. Nem sei o que aconteceria comigo se continuasse
naquela cidade. Experimentava a droga com uma mulher que eu não
amava nem desejava, como ela também não a mim, mas, depois que eu
lhe pagava, gostava de se deitar comigo, drogada, ambos silenciosos.
Não consigo deixar de pensar na dama de branco deitada comigo, quem
sabe nua, com seu corpo esguio, mas isso me parece um sacrilégio. A dama
vem à minha mente como uma pessoa solitária como eu, não imaginando
que a possam observar em sua caminhada, nessa hora tão deserta. Nem
transaríamos, pois já estou com setenta e nove anos.
Crio para a dama de branco uma história. Ela me conta sobre sua
infância. De como gostava de passear em sua rua de Botafogo de mãos
dadas com uma amiga muito especial. De como ela amava essa amiga que
morreu muito jovem, de uma doença misteriosa. Mas antes teve tempo de
falar que a esperaria. Não foi egoísta a ponto de pedir que a dama de
branco também a esperasse ou partisse logo para se juntar a ela. Então a
dama de branco teria experimentado várias relações, sempre com um
sentido de incompletude, até que chegou este tempo da peste e ela está em
isolamento, como eu. Às vezes, penso que a dama de branco é a própria
morte. Sei que isso é um modo de prendê-la e logo me penitencio e sei que
em outro momento pensarei outra coisa. A morte não passa de uma
obsessão minha.
Pelo menos é isso que imagino neste momento. Noutra hora posso
pensar que ela fora casada com um pianista, um jovem amável e sensível.
Depois apago, por ciúmes, esse pianista. Então é ela a pianista e eu a
escuto embevecido. Não, sou eu o pianista e toco para ela. Tento compor
no pensamento uma melodia, mas logo me vêm à cabeça as Gnossiennes,
de Satie, que eu escutava compulsivamente na sala antes de vir para a
varanda para acompanhar a dama de branco indo e voltando na área do
estacionamento, com a leveza de uma bailarina. Será ela uma bailarina?
Satie anotou que as Gnossiennes deviam ser tocadas com convicção e uma
tristeza rigorosa. Eu tenho essa tristeza rigorosa, que me faz feliz. Os títulos
de Satie são tão interessantes quanto suas obras: Três peças em forma de
pera, Prelúdios ácidos, Desespero agradável.
Satie compondo em seu con namento, só saindo, sempre de terno
negro, para encontrar seus amigos dadaístas. Como eu gostaria de estar
entre eles. Não, quero viver este momento mesmo. Quero ser eu próprio.
Mas quem sabe a dama de branco tocando as Gnossiennes para mim a seus
pés? Satie e eu amamos essa tristeza lírica. E a dama de branco, será? Não,
penso mesmo que ela é etérea, a caminhar quase sem tocar o solo. Será
que não pressente o meu olhar? Poderá ela me amar como eu a amo?
Satie fundou uma religião denominada “Igreja Metropolitana da Arte de
Jesus Condutor” e excomungava quem não aderisse a ela. Eu adiro a ela e
quem sabe poderia me casar com a dama de branco segundo os seus
rituais, ao som da Gnossienne no 1. Eu teria prazer em cozinhar para ela,
ser seu escravo. Não, não, porque aí haveria os perigos inerentes ao hábito.
Pre ro vê-la como que levitando lá embaixo.
Ah, mas como eu gostaria de deitar com a dama de branco numa cama,
consumindo ópio. Como não tenho ópio, vai este baseado mesmo. Seria
como se nos beijássemos, misturando nossas salivas em sua seda.
Carta marcada

Sim, é verdade que o Precioso Guru bebia até um


estado de completa intoxicação, encorajando seus
discípulos a imitá-lo. Mas a bebida é a ambrosia
dos deuses, o elixir da vida, o néctar da
imortalidade. Aqueles que nela mergulham até o
fundo tornam-se totalmente inconscientes do
mundo das aparências.
Quando o Grande Guru foi acusado de
irregularidades conjugais, ele perdoou seu crítico e
disse para si mesmo: Sendo este homem
desconhecedor da verdadeira signi cação da
Mahayana e das práticas iogues relacionadas aos
três principais nervos psíquicos, eu devo perdoá-lo.
Introdução de . . Evans-Wentz
ao Livro tibetano da grande liberação

Senhor Coordenador Regional, queridos companheiros.


Quase desnecessário explicar que o estado terminal em que me encontro
impossibilita que eu deixe o lugar onde estou con nado para transmitir
este depoimento pessoalmente, como é da praxe dos . Mas não deixam
de ser felizes, sob certos aspectos, as circunstâncias que me obrigam a
escrever em vez de falar, coisa para a qual não me sinto em condições nem
dotado, a menos que ainda me fosse permitido o uso, embora moderado,
de certos estímulos que seriam de todo impróprios em face da audiência a
que me dirijo. E também porque preciso de todo o meu restante tempo de
vida consciente para prestá-lo, a m de não deixar lacunas importantes em
minha trajetória que, espero, seja de utilidade e do interesse de todos. E, se
o senhor coordenador tiver a bondade de concordar, farei com que chegue
às suas mãos, encadernadas, várias cópias das páginas que tenho
preenchido, para que V. Sa. as distribua aos meus confrades.
E creio que todos concordarão que certas palavras, para que se articulem
e ecoem em todas as suas conotações, pedem uma dicção, digamos,
pro ssional. Pois há peculiaridades em determinadas trajetórias humanas,
na formação e encadeamento de certas personalidades, que não permitem
a sua apresentação simplesmente factual, sob pena de reduzi-las a causas e
efeitos elementares, como culpa e arrependimento, pecado e castigo.
Pois, se é certo que foi a utilização dessa substância, que é a razão
mesma de existir dessa entidade, que me levou, junto com o vício de
fumar, ao estado terminal em que me encontro — tirante o fato de que
nele acabaria por chegar de um modo ou de outro —, também é certo
que, sem uma longa convivência com tal substância, nenhum de nós
jamais poderia apreciar devidamente o estágio superior da abstinência.
Mas, de resto, tomando como o condutor pontos que falam de perto a
essa entidade e outros que julgo a ela indiretamente afetos — embora
sempre ao meu modo de selecionar prioridades, sínteses ou
desdobramentos —, deponho na mesma condição humilde e anônima dos
demais companheiros e conto a minha história.
Pulando os primeiros episódios, quando eu e meus amigos de
adolescência bebíamos e fumávamos apenas como uma iniciação à
masculinidade, que julgávamos dever passar necessariamente por um
mergulho na abjeção — sexo comprado, álcool, palavrões —, esta história,
que é a história de uma sede, inclusive de conhecimento, começa de fato
um pouco mais tarde, de qualquer modo a uma mesa, quando os amigos já
eram outros e nossa sede abrangia um espectro mais vasto e ambicioso, que
incluía o saber. Quanto aos estabelecimentos que frequentávamos, estão
reunidos em mim, talvez por deformação pro ssional da carreira que segui,
embora sem muito sucesso, num cenário, uma estilização, com os seus
elementos absolutamente essenciais, como o balcão, algumas mesas e
cadeiras, naturalmente copos e garrafas, pastéis gordurosos, cheiro de
frituras e mijo, o cubículo que serve de banheiro tanto para homens
quanto para as poucas mulheres que ali se aventuram, moscas, na
cenogra a ou subjetivas, quando ainda é dia, uma iluminação às vezes
baça, à noite, ao redor da qual voam cegas as mariposas, e que subitamente
adquire uma luminosidade radiosa e irreal a incidir diretamente sobre nós,
quando o poderoso ltro de certas poções já decanta a realidade. Neste
caso, a música é de Parker, João Gilberto, Coltrane, Monk, Davis, na
madrugada boleros em voga à época, mais ao gosto dos outros
frequentadores, da gerência e do serviço do estabelecimento. Em algum
lugar fora do palco, pois escrevo como se tudo se passasse no teatro, para
onde saem e de onde voltam intermitentemente os personagens-atores,
localiza-se a universidade, o seu curso noturno de Direito, que
desprezávamos com ardor — pois líamos de preferência justamente os
autores que nele não eram indicados —, mas que nos servia como ponto de
encontro e referência.
Talvez os nomes desses autores, aos quais se juntavam muitos outros,
também do cinema, da pintura, do teatro, não repercutam fundo em
muitos de vós, companheiros, mas suponho que a sua exótica sonoridade
poderá vos dar uma ideia de seu prestígio e, quem sabe, abrir em vós, como
abriu em nós, a princípio, aquele vácuo de conhecimento que nos induz a
preenchê-lo.
Assim é que à nossa mesa soavam com familiaridade nomes como
Dostoiévski, Kafka, Nietzsche, Kierkegaard, Joyce, Maiakóvski, Mallarmé,
Beckett, Freud, Marx e Sartre, mais amiúde o último que o penúltimo, por
julgarmos que o seu pensamento conciliava a farra, o sexo livre, com a
revolução, assim como em Faulkner não conseguíamos dissociar a
embriaguez costumeira do estilo que tanto admirávamos.
Enquanto as obras que nos admitissem nesse círculo seleto ainda
estavam inteiras por vir, podíamos desprezar ou condescender com outros
autores menores, em sua maioria compatriotas nossos, com a empá a de
quem nada até então intentara que xasse um limite às suas pretensões.
A paisagem desses nossos sonhos e fantasias era em geral constituída de
grandes bulevares ou bairros boêmios com suas livrarias intimistas, teatros-
palco para os grandes dramas da humanidade, museus e catedrais
documentando toda a História, percorridos por homens e mulheres, belos
em seus sobretudos, que passeavam sobre folhas amarelas de outono a sua
espiritualidade, que depois iam fazer germinar nos cafés, em cálices cujo
conteúdo e o rito para esvaziá-los eram em si mesmos obras do grande
espírito.
O seu sofrimento interior, como o nosso, era docemente suportado,
desde que se travestisse com o manto da poesia, dos amores absolutos e
terminais, do desespero metafísico, ou mesmo da tragédia, se o seu
desenlace se desse saltando de uma ponte de ornamentos sobre um rio
nublado.
Era natural, então, que o con ito entre essa ambientação e a outra, que
subitamente fazia valer suas prerrogativas à luz da manhã, desnudando
uma prosaica capital de província, com suas ruas sujas e seus habitantes
feiosos e ensimesmados, causasse em nós graves distúrbios, que tanto se
podiam tentar aplacar com o próprio elixir que confundia essas diferenças,
num círculo vicioso, como provocar periodicamente em nosso grupo
colapsos nervosos e defecções, às vezes até tragicamente.
Para alguns, um primeiro e singelo volume de contos ou de poesias da
sua lavra era o su ciente para exibir o fosso intransponível entre a sua
palavra pessoal e aquela outra, maior, que surge como um foco de luz
autônomo no interior do próprio fosso, clareando não só a sua escuridão
recôndita como irradiando essa luz por sobre as suas bordas. E logo houve
quem, dentre nós, saísse pela porta da frente do estabelecimento infecto
para, terminados os estudos, exercer carreiras respeitáveis, pelo menos em
tese, como a advocacia, a magistratura, a administração pública e o
jornalismo. E aí estão vários deles, com a sua satisfação barriguda, sua
prole e seus retratos nas paredes, como a exibir uma prova do acerto de sua
decisão de trocar o imaginário pelo real. Não que tenham deixado para
todo o sempre, como pretendem os membros dessa associação, o copo,
mas, quando se debruçam sobre ele, o fazem como uma traquinagem de
diletante, que lhes proporciona um sorriso de indulgência a se derramar
sobre as ilusões do passado.
Alguns poucos outros, porém, não podendo suportar a injustiça e
mesquinhez brutais do mundo que nos circundava — e talvez porque não
conseguissem transformar a si mesmos —, partiram decididamente do
mesmo estabelecimento para a luta de transformar politicamente a
realidade, para a revolução, aquela que acolhe igualmente ressentidos e
generosos, esquecendo-se talvez de que, dentro dos nossos princípios, essa
revolução deveria se conciliar com a farra, o sexo livre e, não menos, a
poesia. De qualquer modo, a esses todos, pela coragem física e moral de
sua decisão, de consequências quase sempre funestas, dedico o respeito do
meu silêncio, pois não se trata aqui, no âmbito desta entidade, da História
maior, e sim de uma outra, marginal e paralela, embora às vezes não
menos trágica.
Pois houve também quem, a macular a integridade e beleza do seu
sonho, às vezes antes de pô-lo verdadeiramente à prova, preferiu retirar-se
melodramaticamente pela porta dos fundos, como se fosse ao banheiro, e
sumisse junto com os seus dejetos no vaso sanitário, para aquele estado
que, muito mais do que a embriaguez, apaga todas as aparências e
diferenças e se encontra a uma gota da peçonha, de uma inspiração de gás,
um pulo no espaço, um apertar de gatilho, de distância. Mas agora que me
aproximo por outras vias do mesmo destino, pergunto-me se não lhes faltou
coragem ao saírem antes de transcorrido o baile.
E eis que outros procuraram manter íntegro o sonho, permanecendo
sentados, até hoje, guradamente, àquela mesma mesa, diante dos mesmos
copos, garçom, música e mariposa, e ali se pode vê-los, como se
indestrutíveis e eternos em sua cantilena — talvez já um tanto gasta e
repetitiva — onde se entrecruzam, na grande bacia da embriaguez, todas as
conjunções poéticas e os narrativos. E, se existisse algum mecanismo
capaz de reproduzir na íntegra o uxo dos seus delírios, às vezes até
silenciosos, teríamos aí, sim, a nossa grande obra coletiva, aquela que nos
redimiria a todos os que somos membros desta confraria.
Não existindo tal mecanismo, houve quem, dentre nós, procurasse ser
el ao sonho, transformando-o em matéria e realidade, ainda que à custa
de perdas, concessões, fracassos, e aí falo então de mim mesmo, por
escrito, que é como sei contar a minha história.

Durante um bom tempo, no início da minha juventude, acreditei que


seria salvo pelo amor e pela arte e pensava que as duas coisas deveriam vir
juntas. Porém acreditava piamente que, escrevendo de acordo com as
minhas pretensões grandiosas, o grande amor acabaria por cair em meus
braços, admirativo. E foi com essa duplicidade, eu acreditava, que entrou
em minha vida Simone. Eu ainda estava longe de beber a quantidade de
que fui capaz mais tarde, mas era uma euforia alcoólica que me criava a
ilusão de estar gestando um grande romance, que eu ia narrando para
Simone. Eu já descon ava que contar um livro era uma forma de não
escrevê-lo, mas era a mesma citada euforia que me levava a verbalizá-lo
para Simone, que naquela época era uma ouvinte atenta e generosa.
Enquanto não o rascunhava de verdade, resolvi estudar Direito, pois,
apesar de todos os meus sonhos românticos, não era insensível aos apelos
da realidade.
Passei no vestibular da melhor faculdade de Direito da cidade e fui
efusivamente cumprimentado por meus pais e por aqueles que deveriam
tornar-se meus futuros sogros. Não que eu sentisse em mim qualquer
vocação para os conhecimentos jurídicos, mas porque o vestibular de
Direito me parecia ser o mais fácil de todos e, naquela época, muitos
jovens que sentiam em si um gosto literário acabavam por se formar nesse
campo do saber e não em Letras. E para a grande maioria era necessário
ter uma pro ssão. No meu caso, particularmente, eu já namorava Simone,
uma moça bonita e séria, como se dizia à época e, para nós dois, se
quiséssemos usufruir de uma intimidade maior, não havia outro caminho
senão o casamento.
Como era comum em Belo Horizonte nessa época, namorávamos na
varanda da casa dela, com a janela da sala aberta, de modo que podíamos
ser vistos pela família lá dentro. E o máximo que nos permitíamos eram
beijos e abraços um pouco distantes. Até que um dia, não havendo
movimento na sala, en ei a mão dentro de sua blusa e do sutiã e afaguei os
seus seios (durinhos). Meu coração, e tenho certeza de que o dela também,
batia aceleradamente, mas, ouvindo o movimento na sala, tive de retirar a
minha mão. Embora ela houvesse suspirado durante aquele afago, logo
caíam lágrimas em seu rosto, que beijei ternamente, perguntando-lhe o
que havia.
“Júlio, você nunca vai me largar, vai?”, ela disse ainda meio chorosa.
“É claro que não”, eu falei.
“Promete?”
Eu disse que sim. Pois naquele momento eu prometeria qualquer coisa.
Não que estivesse nos meus planos, até então, casar-me logo. Mas, sendo
um pouco calculista naquele tempo, concluía rapidamente que não
encontraria outra jovem mais bonita e — era importante — séria. E as
carícias que, aos poucos, foram aumentando de intensidade, levavam-me a
desejar tê-la só para mim em minha cama, e era por demais excitante essa
perspectiva. Para que isso pudesse se dar, era implícito que a total
intimidade só seria aceitável para ela após noivado e casamento.
E eu, que tanto prezava a liberdade, só me relacionando sexualmente
com prostitutas e tendo um pai que me sustentava e sustentaria até eu me
formar, entreguei essa liberdade na bandeja. Não que isso não doesse, mas,
tão logo pusemos alianças de noivado na mão direita, as nossas carícias
foram aumentando de intensidade, embora tivéssemos de disfarçar,
ngindo que apenas nos dávamos as mãos ali na varanda ou no cinema, e
aos poucos essas mãos atingiam o cerne em cada um, via de regra por cima
da roupa, até que Simone passou a usar mais vestidos do que calças jeans,
de modo que eu acariciava as suas coxas e houve uma noite em que z
subir minha mão até a calcinha dela e en ei ali uma das mãos e senti sua
boceta inundada. Foi uma grande emoção, só superada quando tirei o meu
pau para fora da calça e, puxando a cabeça de Simone, z com que ela o
beijasse e depois chupasse, desajeitada. Não sei até que ponto isso chegaria,
não houvesse sua mãe nos agrado naquele momento.
Simone correu incontinenti para o seu quarto e minha futura sogra
acabou por sentar-se ao meu lado e tive de pedir desculpas a ela e
justi car-me, dizendo que pretendíamos nos casar tão logo eu me
formasse. Isso não a satisfez e ela perguntou-me quando se daria isso.
Como ainda faltavam dois anos para a conclusão do curso, fui obrigado a
dizer que poderia ser até antes desse prazo, desde que eu arrumasse um
emprego.
“Quando?”, ela insistiu.
“Este ano ainda. Fui convidado a trabalhar num escritório de
advocacia”, inventei aquilo na hora.
Isso pareceu satisfazê-la, mas meu pau continuava duro e só então me
dei conta de por quê, pois antes estivera muito preocupado com a
reprimenda de minha futura sogra. É que, enquanto ela me acuava como
uma policial, estivera o tempo todo virada para mim e seus joelhos se
colocavam a uma distância tão ín ma dos meus que quase chegavam a
tocar-me, de maneira que tive uma sensação de que ela me apertava
literalmente, de um modo que me fez sentir torturado sicamente… mas
com um início suspeito de desejo. Seria eu um masoquista? Não posso ter
certeza disso, mas é indiscutível que, desde o meu despertar físico na
adolescência, o sexo para mim sempre tinha de ter uma conotação de
pecado. E querem uma transgressão maior do que uma quase intimidade
com uma quarentona que poderia vir a ser minha sogra, vestida com um
certo aprumo severo, mas ao qual não faltava uma elegância caseira
noturna, com um traje que deixava visível a fronteira entre os joelhos e as
coxas?
Logo nos afastamos e, naquela noite, não demorei a ir para casa, um
pouco preocupado, assustado. Nem por isso deixei de estar excitado ao
deitar-me em minha cama, achava que sem dúvida pelo avanço corporal
que tivera com Simone — pagando um alto preço, certo? Nada menos que
a minha liberdade.
E, como era natural, masturbei-me, sim, aquela noite, pensando nos
meus avanços com Simone, é claro, é lógico. Mas, com a rapidez de que é
capaz o pensamento, teimava em imiscuir-se em minhas fantasias a
imagem de dona Esmeralda, a mãe de Simone, um pouco fugidia, mas
sem dúvida também partilhando, seminua, do meu leito.

Depois daquele incidente, passamos a namorar no sofá da sala, eu e


Simone, e obviamente tínhamos de nos comportar, porque a família dela
estava sempre por perto. É curioso, porém, que, ao cumprimentar-nos, eu
e dona Esmeralda sorríssemos um para o outro, e eu sentia no sorriso dela
uma cumplicidade pela proximidade e quase toque dos nossos joelhos e
também pelas minhas fantasias daquela noite, como se dona Esmeralda
houvesse pensado e sentido as mesmas coisas.
Mas não estávamos con nados àquela casa, eu e Simone. Podíamos dar
voltas de mãos dadas pelas redondezas, nos abraçarmos contra algum
muro, olhando para os lados e, uma vez ou outra, jantar fora.
Ao cinema ou ao teatro íamos raramente, mas acompanhados pela irmã
dela pré-adolescente. Pode parecer absurdo nos tempos que correm, mas
naquele tempo, em Belo Horizonte, era muito comum que os pais de uma
jovem, para deixá-la sair com um rapaz, exigissem que os dois fossem
acompanhados por alguém da família. A nós coube aquela irmã temporã
de Simone, que alguns meses antes completara doze anos. Durante as
sessões, ela dividia sua atenção entre nós e o lme, não propriamente para
nos vigiar e sim por mera curiosidade, pois parecia não conhecer muito
sobre as relações entre uma moça e um rapaz, e aquilo me inibia, embora
assistisse aos lmes com uma das mãos pousada no colo de Simone.
Alessandra, era esse o nome da garota, era de uma inocência comovente
e mimada por toda a família. Assim, era comum que se deitasse na cama da
irmã, e isso tinha um lado bom, que era permitir-me entrar também no
quarto, o resto da família tranquilizado por eu e Simone estarmos
acompanhados. Mas o fato era que eu cava imensamente perturbado por
ter aquela mocinha ali do nosso lado, às vezes dando uma das mãos a
Simone, o que eu fazia do outro lado, e às vezes Alessandra até a abraçava,
o que eu também fazia. Formávamos então uma trinca, eu sempre
vigiando a porta, que permanecia aberta para o corredor.
Quase desnecessário dizer que eu cava excitadíssimo e o meu coração
acelerava, principalmente quando via Alessandra tirando a roupa,
inocentemente, e cando só de calcinha — ainda não usava sutiã — para
ir tomar banho ali mesmo no banheiro privativo de Simone. Não se
preocupava nem em fechar a porta, o que Simone, menos inocente,
acabava por fazer. Até aproveitávamos nossa solidão temporária para
bolinarmos um ao outro. Meu pau continuava duríssimo, Simone o
apalpava por cima da minha calça, nem sonhando — ou será que sim? —
que o meu tesão tinha a ver também com a irmã, que para ela era uma
criança. O fato de os seus seios serem apenas uma latência me excitava
ainda mais, estranha coisa o sexo. Mas nada se comparou à minha emoção,
uma tarde, ao ver Alessandra sair do banheiro enrolada numa toalha, ir até
o guarda-roupa de Simone, pegar um vestido ao acaso e, para vesti-lo,
arrancar a toalha de seu corpo e se mostrar para nós, frontal e
resplandecentemente nua. Tanto eu como Simone camos um pouco
perplexos, mas fascinados por aquela visão. Impressionou-me vivamente
que os seios de Alessandra houvessem começado a crescer um mínimo,
como se brotassem naquela hora, desde a última vez que os vira, ou
melhor, imaginara vê-los. E que em seu púbis houvessem crescido uns
poucos pelos, nem de longe su cientes para vedar seu sexo.
Honrando a minha promessa à futura sogra, eu estagiava num escritório
de advocacia e estudava à noite. Comecei a matar aulas para chegar mais
cedo na casa de Simone, pois nossa intimidade ia crescendo
progressivamente e muitas vezes eu notava meu pau intumescido na
condução e no escritório. Num canto de minha consciência, eu já não
duvidava que o meu tesão não era apenas por Simone. Pois, nas vezes em
que não encontrava Alessandra lá, sentia uma decepção que logo abafava,
usando um método infalível que era o de conquistar mais alguns
centímetros do corpo de Simone, o que nos enchia de um desejo
exasperante.
Mas havia sempre alguma possibilidade de Alessandra estar em casa e,
com um pouco de sorte, no quarto de Simone, o que acontecia algumas
vezes. Quando ela não se encontrava eu cava decepcionado, mas
procurava esconder isso de Simone. Tenho certeza de que foi um erotismo
sempre duplo e latente que me levou a trepar com Simone pela primeira
vez. Não podendo ser no quarto dela, fomos obrigados a procurar um hotel
de encontros, um entre muitos erros que cometemos. Ou que pelo menos
eu cometi, e que chegou a ser desastroso. O quarto em que camos no
hotel, com vista para os fundos de uma rua, era escuro, deprimente e
cheirava a desinfetante. Tive certeza da virgindade de Simone, pela
inexperiência que demonstrou e pela dor que a fez quase gritar. Não tive
outra alternativa senão desistir e ainda consolar Simone, que não parava de
chorar.
Voltamos, então, com alívio, aos nossos encontros habituais na varanda
ou na sala e, quando as circunstâncias o permitiam, no quarto de Simone,
que pedia a Alessandra que casse ali com ela, talvez intuindo a
importância que isso tinha para todos. Era bem divertido, pois Alessandra
continuava a ser imatura, deitava-se com a irmã, por tabela comigo, e nos
divertia com os seus casos de estudante com os colegas de classe. Confesso
que sentia ciúmes desses colegas, mas tentava tirar isso da cabeça, pois ela
me tratava com muito carinho.
Até que aconteceu um divisor de águas, digamos assim. Estava eu
acostumado a ver Alessandra só de calcinha, o que nunca deixava de me
perturbar. Numa determinada tarde, ela novamente resolveu tomar banho
ali mesmo, no banheiro do quarto e, como de hábito, como se eu fosse um
irmão dela, foi tirando a roupa na minha frente. Só que nos preparara uma
surpresa, não só porque os seus seios haviam crescido mais um pouco, mas
porque ela segurava na mão um sutiã que tirou da bolsa. O que veio a
seguir talvez tenha sido uma encenação, mas possivelmente, pensei muito
depois, carregada de ingenuidade. Virando de costas para nós na cama, ela
tentou dar o laço no sutiã também nas costas, como se houvesse descoberto
o pudor da adolescência. Sua irritação pareceu genuína, pois, não
conseguindo atar o laço, exclamou:
“Quem me ajuda?”
Tanto eu como Simone nos levantamos de um salto, creio que Simone
num gesto protetor, e eu, além disso, num dos gestos mais instintivos que
tive durante toda a minha vida. E ambos estávamos seminus, pois antes
estivéramos cobertos por um lençol.
Cheguei primeiro, sob um olhar de reprovação de Simone, ao que
parecia. Mas isso não impediu que eu, com as mãos trêmulas, atasse o sutiã
de Alessandra e que o meu pau encostasse, sem querer (?), na bunda da
garota, coberta pela calcinha. Talvez Alessandra tenha percebido a
irritação da irmã, pois foi num impulso rapidíssimo que caminhou, quase
correu, de calcinha e sutiã e carregando um vestidinho, para o banheiro,
batendo a porta atrás de si.
Simone olhou furiosa para mim e disse: “Você me paga”. E me
empurrou com raiva para a cama. Só que, apesar de seus olhos chispantes,
jogou-se em cima de mim e sentou-se em minha barriga, dando-me tapas
na cara. Mas era óbvio que toda aquela situação também a excitara,
embora não tivéssemos tempo de chegar às últimas consequências, pois
Alessandra não demoraria a sair do banheiro. E, quando o fez, Simone e eu
separamos velozmente nossos corpos, deitando de costas na cama, cobertos
pelo lençol.
Com a cara mais angelical do mundo, Alessandra saiu do banheiro, não
vestida, e sim enrolada numa toalha, o que me deixou bastante curioso,
interessado mesmo, pois não sabia o que ela iria fazer depois. E o que ela
fez foi abrir o guarda-roupa de Simone. Pegou lá dentro um vestido, o mais
chique de Simone, e perguntou à irmã: “Posso?”. “Pode”, disse Simone,
com um ar de ressentimento.
Não sei se houve algum mal-entendido, pois Alessandra virou-se para nós
e deixou cair a toalha. Poucas vezes na vida meu coração bateu tão
acelerado. Eu e Simone camos perplexos, não só pelos seios da garota,
que pareciam crescer todos os dias, mas por seus pelos pubianos, que
também cresciam e começavam a vedar sua xoxota, tornando-a muito mais
misteriosa. Permanecemos em silêncio os três, mas tive certeza de que era
como se assistíssemos, eu e Simone, à transformação de Alessandra em
mulher, o que era realçado pelo traje de festa que vestiu.
Os ditados populares contêm verdades e um deles, aplicável ao meu
caso, era: tudo que é bom dura pouco. Naquela tarde mesma deve ter
caído a cha inteiramente para Simone, que, com certeza, advertiu a irmã,
pois o fato é que Alessandra, a partir daí, não cou mais nua na minha
frente. Pior ainda, arrumou um namorado, um rapaz fortinho que lutava
uma arte marcial e que, na primeira vez que me viu com as duas, olhou-
me, sério, de cima a baixo, até xar-se bem em meus olhos. Chamava-se
Alfredo e, embora não parecesse ter grande inteligência, cou claro que
percebera a ambiguidade que envolvia minha relação com as duas irmãs.
De cara fechada, puxou Alessandra pela mão e saiu do quarto, sem nem ao
menos despedir-se de mim. A garota ainda se virou e olhou-me nos olhos,
com um ar de quem se desculpava e se despedia.
Fiquei desolado e, desejoso de dar a volta por cima, empurrei Simone
para a cama, tranquei a porta e, embora ainda vestido, tirei sua calcinha e,
baixando minha própria calça, fui por cima dela, com o pau ainda duro,
mas que foi murchando, murchando, enquanto Simone procurava
inutilmente despertá-lo. Não foi preciso nem re etir para saber que a
presença de Alessandra tornara-se parte essencial em nossa relação,
naquele princípio de noite. E como se já não bastasse essa desventura, sua
mãe, lá de fora, bateu na porta e, sem o menor tato, perguntou-nos o que
estávamos fazendo. “Nada, mãe, já vou abrir”, disse Simone, e levantou-se,
recompondo a roupa, no que a imitei. Isso demandou algum tempo e,
quando Simone abriu a porta, eu estava sentado numa poltrona, mas dona
Esmeralda olhou-nos de cima a baixo e entendeu não só o que acabara de
acontecer como o que já vinha acontecendo fazia tempo.

A partir daí, começou um dos períodos mais insatisfatórios da minha


vida; tão insatisfatório que tenho até di culdade em relatá-lo. Mas,
resumindo com a maior brevidade possível, o pai e a mãe de Simone
cobravam, com perguntas indiscretas, que nos casássemos. “E se você
estiver grávida?”, a mãe perguntou a Simone, que me relatou a conversa
das duas: “Que vexame será casar-se nesse estado”. Para piorar as coisas,
não se demorou a descobrir que as regras de Simone estavam atrasadas, o
que com toda a certeza foi comunicado ao pai dela, pois certa noite em
que cheguei à casa deles o doutor Cândido me esperava à porta, junto com
a mulher e a lha, pôs a mão em meu ombro e, com um olhar de fúria e o
rosto avermelhado, ia me dizer alguma coisa grave, talvez uma ameaça,
mas, de repente, pôs a mão no peito e começou a vacilar. Dona Esmeralda
o amparou e o fez deitar-se, trêmulo, com os olhos cerrados, no sofá. Sua
mulher sumiu lá dentro e Simone fazia carinhos nos cabelos do pai e
olhava também para mim, como se eu devesse fazer alguma coisa. Eu me
sentia arrasado, mas também revoltado, como se eles todos me
chantageassem, me culpando por tudo.
Felizmente, dona Esmeralda voltou lá de dentro com alguns
comprimidos, que administrou ao marido que, aos poucos, foi se
tranquilizando. Mais felizmente ainda, constatou-se, dois dias depois, que
Simone não estava grávida, antes mesmo do resultado negativo do exame
de sangue que seu médico lhe prescreveu. Mas, a essa altura, eu já
propusera a Simone que nos casássemos dali a três meses, apenas o tempo
su ciente para que ultimássemos todos os preparativos. Obviamente, isso
foi comunicado a toda a família e tudo voltou a uma pacata e tediosa
normalidade, quando, por uma espécie de acordo tácito, voltamos a
namorar na varanda, mais preocupados em combinar os preparativos para
o casamento do que com avanços libidinosos, pois a gravidez, apesar de
falsa, fora uma espécie de advertência. E, algo que eu não queria assumir, a
presença de Alessandra fazia mesmo falta, pelo menos para mim, mas creio
que também para Simone, o que eu não ousava perguntar a ela. O certo
era que Alessandra agora se dedicava ao namorado. E eu também assistia a
quase todas as aulas na faculdade, pois estava em vias de ser reprovado.
Tive com meu pai uma conversa de homem para homem e ele não só
foi solidário com a minha situação, como me arranjou um estágio
remunerado no escritório de advocacia que dividia com o doutor Armando
Fonseca, o que já havíamos conversado algumas vezes, sem maiores
compromissos. Meu pai era o sócio majoritário e fazia a parte cível,
enquanto o doutor Armando cuidava da parte criminal. O estado de saúde
de meu pai era precário, ele já se sentia um homem realizado e se poupava
ao máximo, o que não o impediu de piscar um olho para mim e, com um
sorriso maroto, dizer que o casamento não era impeditivo de nada para os
homens. E que eu aproveitasse ao máximo minha lua de mel, e que minha
remuneração acordada — que era generosa — não deixaria de ser paga
enquanto isso. Uma lua de mel que brilhava em seus olhos e nos do doutor
Armando, pois é claro que eu apresentei Simone aos dois, numa festinha
que zemos de noivado, às vésperas do casamento. Confesso que quei
orgulhoso. Foi quando tive certeza do que já intuía havia muito: que meu
pai, certamente, não fora nada el, pelo menos em seus áureos tempos, a
minha mãe. Entendi, mais ainda, que meu pai era um homem à antiga,
para quem uma lua de mel era o ápice de uma vida sexual.
E assim aconteceu. Eu e Simone nos casamos no civil e no religioso, e
esta última cerimônia, embora eu não tivesse religião nenhuma, me
deixou excitado com a perspectiva de, a partir daí, poder gozar de toda
liberdade com Simone. Mas me senti um tanto perturbado por Alessandra
ser uma das damas de honra, pois ainda tinha idade, ou pelo menos o
physique du rôle, para fazer esse papel que, a julgar por seu sorriso, lhe
agradou muito, como se ela participasse não apenas da cerimônia, mas
também do que viria depois. Fiquei ainda mais perturbado quando, na
saída da igreja, à guisa de cumprimento, ela me beijou na boca muito mais
demoradamente do que seria de se supor num beijo em um noivo recém-
casado. Não se mostrava nem um pouco embaraçada, mas Jonas, o seu
então namorado, me fuzilou com os olhos e a puxou pelo braço,
rispidamente. E no meu pensamento faiscou, como um rápido relâmpago
que logo se apagou, que em meu casamento com Simone, quem sabe,
surgiriam novas oportunidades para que formássemos novamente um trio,
até com mais facilidade? Então posso dizer que, pelo menos em intenção,
traí minha mulher no dia mesmo do nosso casamento.
Mas não foi só isso que me excitou. Também o vestido de noiva de
Simone era como se fosse uma passagem radical no tempo, de virgem pura
a mulher, com um decote provocante e um corte lateral na saia. E também
porque, no órgão da igreja, na parte superior do templo, alguém tocava
Pour Elise, de Beethoven. Uma composição que, não sei por quê, talvez
por ser um dos poucos clássicos que eu conhecia desde a adolescência, me
parecia bela, fácil, cheia de frescor juvenil. Sim, era bem isso: juvenil,
como eu via Simone naquele momento, com ores de laranjeira no
cabelo.

Nossa lua de mel foi passada em Ubatuba, no litoral de São Paulo, para
onde fomos de táxi aéreo e onde Armando Fonseca tinha uma casa, que
nos emprestou para aquele m. E posso dizer que aqueles dias foram dos
melhores do nosso casamento. Não sei se o beijo de Alessandra teve a ver
com isso, mas o fato para mim, talvez para ambos, é que, apesar de já
termos intimidade, o casamento é que pareceu uma transgressão excitante.
Pedi que Simone pusesse o vestido de noiva, que fui tirando aos poucos, e
trepamos de todos os modos possíveis, sempre bem. E até o fato de
nadarmos nas praias da cidade e colhermos mexilhões na areia, que
preparávamos e comíamos, nos pareceu uma extensão de uma enorme
liberdade. Abrir uma concha que catávamos na praia e comer um
mexilhão era um ato que nos aproximava tanto da natureza e de nós
mesmos que Simone e eu preferíamos car em silêncio a dizer alguma
banalidade. Eu pensava comigo mesmo que o tempo parecia parado e que
poderíamos car assim para sempre. E nos sentíamos felizes e realizados.
Mas é quase desnecessário repetir lugares-comuns sobre o tempo, e
chegou o dia em que não podíamos adiar mais nosso retorno a Belo
Horizonte. Eu tinha combinado de assumir o meu lugar no escritório e
Simone precisava voltar às aulas de seu mestrado de pedagogia, pois só
faltava um semestre para terminar os créditos e então escrever a sua tese. Já
tinha feito os contatos para dar aulas numa faculdade particular e seria
impensável que não trabalhasse, pois morreria de tédio e de culpa.
Na verdade, eu, como estagiário, devia gradualmente substituir meu pai,
que já pouco trabalhava, preservando sua saúde. Apesar de estar energizado
com a temporada junto ao oceano, ou talvez por isso mesmo, o golpe foi
forte. O doutor Armando me designou para a parte cível do escritório e eu
tinha de assessorá-lo em alguns processos, gozando até de certa autonomia.
Eu era escalado para ir ao fórum, comparecer a algumas audiências, e foi
aí que caí na real. Esses processos giravam sempre sobre alguma demanda
nanceira, como aluguéis e prestações atrasadas, cobranças de bancos ou
do comércio, sonegação legalizada de impostos, pendências familiares
sobre bens, direito à guarda de lhos, inventários, direitos autorais não
pagos e assim por diante.
Apesar da diversidade dos casos, logo me senti entediado de ter de ler os
códigos civil e de processo civil e, às vezes, eu me dispersava inteiramente,
perdendo-me no meio daquelas letrinhas, e pensava com frequência em
Simone e no tempo em que só cuidávamos um do outro na praia, quando
o tesão de ambos parecia inesgotável. Mas, agora, não era raro que, ao
voltar para casa, eu encontrasse Simone estudando em seu pequeno
escritório e, se por acaso queria acariciá-la, levá-la para a cama, ela se
fechava e me falava claramente que tinha de estudar para alguma prova e
que eu esquentasse minha própria comida, que estava no forno. E que eu a
esperasse na cama, que ela iria logo, logo. Só que esse logo podia demorar
duas horas e, quando Simone vinha para o quarto, era comum que eu já
estivesse dormindo, com um livro de cção sobre o peito, pois, depois de
uma jornada inteira me dedicando ao direito, queria mesmo era sair do
real.
Simone não me acordava e estávamos em tempos diferentes. Pois se eu
despertava durante a noite e a via dormindo ao meu lado, indefesa, sentia
ternura por ela e ao mesmo tempo me excitava com a sua vulnerabilidade.
Até que houve uma noite em que a enlacei pelas costas e tentei comê-la
assim, no meio do sono, como se estivesse desacordada, pois tomava
comprimidos para dormir, esgotada e nervosa com os estudos. Simone
virou-se para mim, olhou-me a princípio desorientada e depois enfurecida,
empurrando-me com toda a força. Fiquei extremamente magoado e
perguntei se a incomodava que transássemos assim, pois ela era minha
mulher e eu a amava. Ela respondeu-me, ainda nervosa, que, se eu a
desejava, pelo menos a despertasse.
No entanto, descon ei que aquilo a excitara de algum modo, pois ela
virou-se para mim com as pernas entreabertas e tentou fazer com que eu a
penetrasse assim, meio de lado. Só que foi uma brochada fulminante de
minha parte, pelo que acontecera antes e talvez pelo convencionalismo
conjugal de nossa posição. Mas pelo menos Simone mostrou-se
compreensiva, pois, antes de virar-se para o outro lado e adormecer
imediatamente, passou a mão nos meus cabelos, consolando-me. Porém,
não consegui dormir naquela noite, atingido em meu orgulho e sentindo-
me um menino. De manhã cedo nem esperei minha mulher para
tomarmos o café da manhã juntos. Tomei uma rápida chuveirada, vesti
meu terno e a gravata e já ia saindo quando Simone saiu do quarto com
aquele ar apalermado de quem acabou de despertar. Balbuciei uma
desculpa sobre um processo que pedia minha intervenção urgente, dei-lhe
um beijo rápido na face, abri a porta e saí.
Todo homem sabe que uma brochada pode trazer sequelas em sua vida
conjugal, e assim foi comigo. Para não ser posto à prova em minha
masculinidade, passei a chegar em casa só depois de beber com alguns
colegas num bar próximo à faculdade. Encontrava Simone estudando ou
dormindo e cava agradecido por ela não me recriminar, pois estava
envolvida demais com seus estudos. Só fazíamos mesmo companhia um ao
outro nos ns de semana. Costumávamos ir ao cinema e jantar fora e,
invariavelmente, eu bebia. E notava com alívio que uma leve embriaguez
agia sobre as minhas inibições, tanto afetivas como sexuais. E passamos a
trepar regularmente aos sábados e domingos, e eu bebia também em casa.
Gostava de beber até na cama, às vezes nos momentos mesmo em que
transávamos, ela sentada sobre mim. Já Simone era abstêmia, pois tomava
seus medicamentos tarja preta diariamente. E o fato é que ambos nos
acostumamos com esse ritmo, que nos parecia absolutamente normal para
um casal. E posso dizer até que vivíamos bem, pois as minhas constantes
demoras na rua evitavam que nosso casamento resvalasse rapidamente para
o fastio, ao mesmo tempo que facilitavam os estudos de Simone. Eu estava
feliz, ou pelo menos acomodado, com a esposa que tinha.
Ao car meio bêbado com os colegas depois das aulas, não pensava que
estava evitando Simone, mas apenas que voltara a desfrutar de uma certa
liberdade, e me espantava e até me magoava um pouco que Simone não
me repreendesse, pois dormia a sono solto, meio sedada, quando eu
chegava.
Mas também pensava que era absolutamente natural certo enfado
depois de uma lua de mel, quando um casal se experimenta em todas as
posições, que me eximo de descrever aqui, pois, a nal, tirando uma fase na
adolescência, nunca me interessei pela escrita pornográ ca. Pre ro dizer
apenas que foram dez dias de intensas descobertas. E devo agradecer a
minha sogra por ter nos vigiado, e a Alessandra, que manteve nossa chama
acesa com sua simples presença no quarto de Simone, evitando que
caíssemos num tédio prematuro.
Foi um momento de descoberta também da solidão e liberdade e do
prazer da companhia masculina, invariavelmente no bar próximo à escola,
o mesmo onde passamos a nos encontrar, queridos companheiros, como se
já houvesse uma predestinação em minha vida. Naquela época as
discussões políticas eram acaloradas, pois, se éramos todos de esquerda, eu
um pouco menos do que eles, havia várias facções, algumas delas, por
wishful thinking, querendo precipitar a luta armada, outras defendendo a
tese de que se devia antes amadurecer um processo político. Algumas vezes
cheguei a pensar se não era a política uma variante da sexualidade, embora
muitos dos meus colegas, mais tarde, tivessem arriscado a própria vida e
sido torturados ou mortos no cárcere. Mas é uma história tão conhecida de
todos que me eximirei de contar isso também. Até porque eu próprio era
mais um espectador, um homem casado e fazendo estágio num prestigioso
escritório de advocacia, que exigia até que eu andasse de terno. O doutor
Armando, quase desnecessário dizer, era favorável à revolução, como ele e
seus iguais denominaram o golpe de Estado que levou os militares ao
poder.
Mas nossas diferenças iam muito além da política. Elas abrangiam a
própria existência, embora eu estivesse decepcionado com a minha, por ter
abandonado meus sonhos românticos de uma vida artística para cair no
conformismo pequeno-burguês. Apesar disso, eu era solidário com os
militantes e prestei alguns serviços à sua causa, como doar modestas
contribuições nanceiras e, já no regime militar, esconder uns dois ou três
guerrilheiros procurados, o que deixava Simone temerosa e, confesso, eu
também, pois sabia que não resistiria à tortura se alguns deles fossem presos
e obrigados a revelar onde haviam se abrigado e os policiais ou militares
viessem atrás de mim, supondo que eu fazia parte de uma das facções
rebeldes, e quisessem que eu lhes revelasse o que absolutamente não sabia.
Mas quanta gente não foi torturada e morta por equívocos iguais a esse?
De todo modo, minha participação política foi pí a, limitando-se a
opiniões e discussões nos bares, que passamos a variar, para não nos
expormos à repressão. Mas chegava uma hora em que eu tinha de voltar
para casa. Simone usava melhor o seu tempo, para estudar. Às vezes me
esperava, às vezes não. E eu chegava a sentir ternura por ela, vendo-a
adormecida à mesa com um livro de pedagogia e um caderno ao lado.
Cheguei mesmo, algumas vezes, a conduzi-la até a cama, tomando
cuidado para não despertá-la totalmente, pois percebia que ela também
não tinha interesse em transar.
O que não queria dizer que nosso casamento ia mal. Como vivíamos
horários incompatíveis, estávamos nos dando até bem um com o outro. Eu
chegava cansado da faculdade e meio bêbado, o que era conveniente para
Simone, que já começara a escrever com a nco a sua tese de mestrado,
muitas vezes indo até a noite. Eu não me interessava nem um pouco por
pedagogia, mas, quando acontecia de jantarmos juntos, conversávamos
cordialmente sobre a sua tese, eu ngindo interesse. E se alguma
animosidade existia era contra a inconcebível situação política brasileira, e
ambos estávamos de acordo nas severas críticas ao governo que, como os
mais instruídos sabiam, era uma ditadura que nem se disfarçava mais de
democracia.
Quanto ao meu trabalho, Simone até mostrava um interesse genuíno
pelos casos mais dramáticos na área penal, em que eu não trabalhava, mas
de que cava a par, no escritório, onde tinha de ouvir, ainda, as ideias
conservadoras — para dizer o mínimo — do doutor Armando. Ele achava
que o país estava no rumo certo e eu o escutava em silêncio, sem coragem
para contradizê-lo. Felizmente, as conversas de bar me permitiam
demonstrar toda a minha indignação.
Em geral eu já chegava sem fome em casa, depois de fazer refeições
ligeiras na rua, e, muitas vezes, encontrava Simone dormindo, auxiliada,
como já disse, por um ou mais comprimidos.
Nesse ritmo, era natural que nossa vida sexual fosse praticamente
inexistente e creio que, se não fosse determinado acontecimento, talvez eu
encontrasse uma amante lá mesmo na faculdade. As trepadas com Simone
já eram mais ou menos quinzenais, em geral num sábado ou domingo, e
nos esforçávamos para variar de posições na cama, como na lua de mel.
Mas não era mais a lua de mel e eu gozava logo e me incomodava o fato de
usar agora camisinha, pois Simone já planejava uma vida pro ssional em
que não poderia entrar a maternidade. Eu até gostava de ver Simone se
masturbar ao meu lado, depois do meu gozo, e sentia alívio ao vê-la gozar
e, tivesse eu energia para trepar de novo, até o faria, mas aí teria de pegar
outra camisinha, vesti-la com o meu pau meio mole e, além disso, Simone
já se mostrava totalmente saciada.
Foi quando aconteceu o fato que mudou a nossa vida, pelo menos
temporariamente. Voltava eu da faculdade ligeiramente embriagado, despi-
me procurando não chamar a atenção de Simone, mas ela dormia a sono
solto, com um livro aberto ao lado do corpo. Usava uma camisola leve
como sempre, e voltei a sentir uma certa ternura por ela. Ali nu, de pé,
observei que sua camisola estava meio erguida, deixando ver as suas coxas
e, para espanto meu, a sua xoxota. Com certeza se deitara tão cansada que
se esquecera de pôr a calcinha. Cheguei a admitir a hipótese de que ela
queria me seduzir, mas não, seu sono era muito pesado.
O fato é que fui acometido por um tesão irresistível por aquela cena.
Simone adormecida com um livro ao lado, com sua xoxota à mostra,
apenas um pouquinho entreaberta, certamente por um descuido. Foi
quando tive um ato que me pareceu louco e até arriscado, pois podia
enfurecer Simone por eu me aproveitar dela. Ajoelhando-me no colchão,
comecei a en ar meu pau duríssimo, cautelosamente, na boceta de
Simone. Ela não se mexeu e concluí que devia ter tomado algum poderoso
comprimido para dormir, como fazia às vezes, quando ia para a cama
muito cansada.
Simone não estava muito molhada e tive medo até de machucá-la, mas,
como ela não fazia nenhuma menção de se defender, meu pau foi
entrando. Quando eu já me mexia dentro da boceta de Simone, ela
nalmente cou molhada. Alguma coisa era profundamente diferente
naquela foda, pois não ejaculei prematuramente, e Simone,
semiadormecida, embora parecesse não acordar, suspirava muito baixinho
e encaminhou-se para um orgasmo, que coincidiu com o meu.
Fiquei encantado, mas, sem querer acordar minha mulher, saí
vagarosamente de dentro dela e deitei-me ao seu lado, vestindo antes a
cueca, para o caso de Simone acordar e não perceber que eu a comera
dormindo. Meus estudos e meu conhecimento do Direito me deixavam
plenamente consciente de que um homem podia ser acusado de violar a
própria mulher. Mas o que aconteceu foi Simone virar de lado, sem dar o
menor sinal de estar acordada. Enquanto eu, também de lado, me sentia
ainda encantado e nem dormi naquela noite, só pensando no ato que
acabara de acontecer.
No dia seguinte tomamos o café da manhã juntos e eu estava temeroso,
além de encabulado, com o que acontecera à noite. Mas, para satisfação
minha, Simone nem mencionou o assunto e pensei que ela devia estar
mesmo inconsciente quando fora comida, apesar de eu ter notado uma
ligeira alteração em sua respiração, próxima de um ou outro suspiro. E não
deixei também de notar que ela estava de bom humor nessa manhã,
embora só comentasse, ligeiramente, que seus estudos estavam indo bem.
Pelo que acontecera, tive um dia erotizado, tanto no escritório como na
faculdade, a ponto de ter de disfarçar o pau duro. Mesmo assim, depois da
aula ainda bebi no bar com alguns colegas, mas não muito, pois senti
vontade de voltar para casa e assim z. Se encontrasse Simone acordada eu
gostaria de trepar com ela, com um desejo que nascia da noite anterior, e
cheguei a pensar que o meu gozo mais demorado, e quem sabe também o
dela, ainda que inconsciente, fosse um sinal de que nossa vida sexual podia
mudar e de que eu podia me livrar para sempre de minha ejaculação
precoce. Mas, percebendo que Simone estava não só coberta, mas
parecendo profundamente adormecida, para decepção minha, resolvi não
forçar a sorte assediando-a. E como eu praticamente não dormira na noite
anterior, também peguei logo no sono.
No dia seguinte, tive a boa surpresa de ver a mesa posta para o café da
manhã, depois que saí do banho e me vesti. Era um sinal de que Simone
continuava de bom humor e resolvi sondá-la, perguntando-lhe sobre os
seus estudos, e ela me respondeu com afabilidade que, apesar das
di culdades, as coisas caminhavam no rumo certo. E, por sua vez,
perguntou-me como iam os meus estudos e o meu trabalho. Apesar de todo
o meu aborrecimento com ambos, resolvi não estragar o clima me
queixando, no que z bem, pois Simone me acompanhou até a porta e fez
um pequeno gesto, mas que para mim signi cou muito: ela não só ajeitou
a minha gravata, com o rosto bem próximo do meu, como me deu um
beijo que, embora ligeiro, foi na boca.
Voltei para casa um pouco mais cedo do que habitualmente, naquela
noite, apesar de mais embriagado que de costume, sabendo que, no íntimo,
queria ter coragem para alguma coisa que ainda não sabia direito o que era.
Encontrei Simone sentada à mesa, com um livro e um caderno abertos, e
ela saudou-me com um “Ora viva, chegando cedo”. Depois me perguntou
se eu queria que ela esquentasse um prato para mim, no forno, o que
aceitei satisfeito, pois não comera na rua. Enquanto comia um bom bife
com purê de batatas, que talvez ela própria houvesse preparado e não a
diarista, pois estava mais gostoso do que normalmente, pensei, então, que a
noite prometia. Eu comia calmamente enquanto Simone foi até o quarto e,
ao voltar, estava com a mão fechada. Depois abriu-a com dois
comprimidos que engoliu junto com um copo d’água. Eu, sinceramente,
não sabia se aquilo era bom ou mau sinal, e soube menos ainda quando
Simone bocejou e perguntou-me se eu me importaria se ela fosse estudar
deitada no quarto, pois estava muito cansada, mas ainda precisava rever
uma questão no livro. Eu disse que não, em absoluto, mas tive medo de me
decepcionar, pois viera para casa com a intenção de comer Simone
naquela noite. Mas não queria mostrar-me folgado e machista e z questão
de lavar os pratos na cozinha. E aproveitei para preparar uma dose de
uísque para mim.
Quando entrei no quarto, com o copo na mão, já encontrei Simone
profundamente adormecida. Mas o que havia de diferente naquela cena é
que ela estava de calcinha, sim, mas sem sutiã, e os seus seios estavam
tampados por um livro aberto. Era uma composição encantadora e resolvi
desfrutar dela por mais tempo. Fui tirando minha roupa e, em vez de vestir
uma bermuda, do jeito que dormia habitualmente, quei ali de pé,
completamente nu e bebendo, com o pau naturalmente muito duro.
Pensei que era uma cena ideal para que eu me masturbasse, mas não
queria acabar logo com aquilo. Então me sentei na cama, sempre
bebendo, de um modo tal que tive coragem de ir baixando a calcinha de
Simone devagarzinho e até cogitei se devia retirar o livro de cima de seus
seios, mas achei melhor não.
Para o que aconteceu a seguir, tive de depositar o copo no chão, mas
nem cheguei a retirar totalmente a calcinha de Simone, pois achei mais
erótico descê-la só até as pernas. Alcei-me até a sua boceta e encontrei
alguma resistência para entrar nela, pois estava novamente um pouco seca.
Tive medo, sim, de que Simone despertasse com aquela cena próxima de
uma violação, mas era tarde demais e, lenta mas incisivamente, penetrei
em Simone até o fundo e tive quase certeza de ver um ricto de dor nos
lábios dela, que no entanto logo se dissipou, e ela voltou a mostrar-se
profundamente adormecida, enquanto o livro caía ao seu lado e a visão de
seus seios rmes só tornava o meu desejo mais ardente. Constatei, contente
comigo mesmo, que demorei um tempo justo para gozar e que Simone,
embora nem abrisse os olhos, respirava pausadamente, no que nem
chegavam a ser gemidos, levando-a até um estremecimento último, um
clímax, quando ela cravou as unhas nas minhas costas, para depois
amolecer o corpo, afastar-me, virando-se para o lado e voltando a dormir.
Eu não deixava de estar feliz, mas me sentia também culpado, com
medo de que Simone despertasse e me acusasse de algum ato ilícito. Então
fui saindo bem devagar de dentro dela, voltei a subir sua calcinha, mas
achei que seria demais colocar de novo o livro aberto sobre os seus seios. E
fui lavar-me no banheiro, para onde levei o copo, cujo conteúdo bebi em
dois goles. Lá vesti a bermuda e depois voltei para o quarto. Simone agora
dormia a sono solto e deitei-me a seu lado. Talvez, ao contrário de minha
mulher, eu tivesse consciência plena do que acabara de acontecer. Tanto é
que, no dia seguinte, de manhã, z o menor ruído possível ao ir para o
banheiro e depois voltar para o quarto, onde me vesti sempre observando
Simone, que parecia dormir absolutamente relaxada. Ainda bem, pois eu
não estava a m de dar explicações. Preferia tomar o café da manhã na rua,
mas, quando já ia sair do quarto, com a gravata dependurada no pescoço,
Simone despertou, sorriu para mim e disse: “Puxa, dormi como uma pedra,
acho que nem sonhei. Você não se importa que eu que na cama mais um
pouco, importa, querido?”. “Claro que não”, eu disse, afobadamente, mas
tranquilizando-me com o seu tom bastante pací co e sonolento ao falar
comigo, para logo depois cerrar outra vez os olhos.
De todo modo, saí rapidamente de casa, como se fugisse de alguma
coisa, de algum ato vil que praticara naquela noite e que teimava em
agarrar-se a mim. No entanto, embora meu coração batesse forte, meu pau
estava nitidamente duro no elevador e, quando entrou outro morador do
prédio, cumprimentei-o polidamente, mas tomando o cuidado de manter a
pasta de trabalho contra o ventre.
Só que o meu pau teimava em endurecer no trabalho, sob a mesa, e
também na faculdade tive de fazer os maiores esforços para me controlar, o
que acabei conseguindo a duras penas. Por m, relaxei no bar e um ou
outro colega chegou a comentar comigo que eu andava muito bem-
humorado e que a vida de casado estava me fazendo bem. E um deles disse
até que me invejava.
Mas no que consistia exatamente essa boa vida de casado? Comer
Simone dormindo exerceu um papel fundamental nisso, não havia a
menor dúvida. Embora nenhum de nós dois comentasse o assunto, aquilo
vinha ao encontro de um fetiche de ambos, como se fôssemos dois
estranhos fodendo, o que não deixava que o tédio tomasse conta de nosso
casamento. E assim procedemos mais umas quatro vezes, com ligeiras
variações, como, por exemplo, eu comer Simone de bruços, sem, no
entanto, cometer nenhuma perversão, o que poderia ser catastró co para a
nossa relação, intuí. E lembro-me bem, pois foi prenúncio dessas
mudanças, que, certa noite, depois de passar pelo quarto e ver Simone
dormindo, coberta, pois era outono e já fazia um pouco de frio, levei um
pijama grená — lembro-me bem da cor — para o banheiro, onde o vesti
depois de tomar um banho. E fui fumar à janela da sala, o que seria
inadmissível no quarto, pois Simone não suportava a fumaça nem o cheiro
de fumo.
Morávamos no décimo andar de um edifício na Glória e dali tínhamos
uma visão privilegiada da cidade. Naquela noite pensei, o que não deixava
de ser um clichê, nos milhões de habitantes do Rio de Janeiro, cada um
vivendo a sua vida naqueles quartos iluminados. Mas eu estava
particularmente sensível e imaginei a quantidade de casais vivendo, cada
um ao seu modo, com seus amores e ódios, suas angústias e alegrias. E
pensei ainda que eu e Simone éramos até privilegiados, pois nos dávamos
bem, gozávamos de nossas liberdades e ainda tínhamos uma ótima, apesar
de meio estranha, ou vai ver por isso mesmo, vida sexual. Em suma,
éramos felizes, cheguei a suspirar, tragando a fumaça até o fundo de meus
pulmões.
Ao retornar ao quarto, com meu copo na mão, tive uma surpresa que
demorei um pouco a assimilar, mas que, no entanto, pareceu-me agradável
a princípio, pois acabaria por ser mortal para o nosso desejo repetirmos,
mesmo com pequenas variações, as nossas posições na cama. A última
coisa que podia esperar era que Simone estivesse usando um vestidinho,
que me pareceu de adolescente, estudantil, eu diria, com uma blusa
branca e uma saia xadrez, e com os joelhos dobrados, em que pousara um
livro. Como sua calcinha estava sedutoramente visível, pensei na sabedoria
de Simone de tentar-me com uma variação radical. Mas o que mais me
surpreendeu foram os seguintes gestos: Simone pousou o livro na cama e
pediu-me que lhe passasse o copo com uísque. E cheguei a hesitar:
“Mas você vai beber? Não acredito.”
“Vou, por quê, por acaso também não posso?”, ela disse rindo.
“Pode, claro”, apressei-me a dizer. “Mas aconteceu alguma coisa?”
“É, querido, você me conhece bem. Depois eu te conto. Mas primeiro
quero que você me obedeça, você jura?”
“Juro”, eu disse, descon ado, mas altamente tentado. E a obediência
que Simone me pediu foi que eu deitasse, nu, de costas, na cama. O que
mais me fez descon ar foi que nunca antes experimentáramos aquilo,
Simone beber na cama, ou fora dela, sentada sobre mim. E chegou a
passar por minha cabeça que Simone teria arranjado um amante, que lhe
ensinara novas técnicas. Pois, tirando apenas a calcinha e mantendo o
vestido, ela, depois de pedir que eu me despisse, sentou-se sobre mim e,
sempre com o copo na mão, fez com que eu a penetrasse. Fiquei mais uma
vez encantado, era como se eu tivesse uma nova mulher, que penetrei até o
fundo, o âmago, vou me permitir esse preciosismo. Mas, feliz ou
infelizmente, não deu para eu segurar por muito tempo o meu desejo e
gozei logo, gozei muito, em estertores, mas, agora sem dúvida felizmente,
Simone, sem largar o copo, pelo contrário tomando mais um longo gole, o
que tornava aquela variação até so sticada, também gozou, ou pelo menos
assim me pareceu. A minha grande e real surpresa foi que Simone deu
uma sonora gargalhada, de um prazer e uma felicidade inegáveis. Depois
me passou o copo e me disse, antes de cair para o lado:
“Tome, tome o seu uísque.”
Sentei-me na beirada da cama e de fato comecei a beber, e bastou um
longo e demorado gole para que o copo casse vazio. Queria conversar
com Simone, arrancar dela o que a zera beber e mudar tão radicalmente
de posição, arrastando-me com ela. Antes, resolvi ir até a cozinha, onde
deixara a garrafa de uísque, da qual me servi. Por alguma razão, nessa noite
me sentiria ridículo se fosse até o quarto já nu, inclusive porque Simone,
como percebi, continuava vestida e tornara a botar a calcinha. Então
peguei no armário do quarto uma bermuda e vesti-a.
Demorei algum tempo naquele meticuloso processo de tirar o gelo do
congelador, servir-me e depois vestir-me. Ainda estava tomado pela transa
tão diferente e interessante que eu e Simone tivéramos. No entanto, como
se tivesse de pagar alguma culpa, fui tomado novamente por aquele
pensamento inquietante que meu cérebro fabricava, como se fosse
totalmente independente de mim: e se o fato de Simone ter se comportado
de forma tão inusitada na cama, inclusive bebendo uísque enquanto
trepava, signi casse mesmo que ela arrumara algum amante, que a
ensinara esses novos hábitos?
Ao voltar para o quarto, estava decidido a esclarecer aquilo antes que me
corroesse o espírito. O problema é que, ao chegar no quarto, Simone
dormia placidamente e com um leve sorriso no canto dos lábios.
No dia seguinte, tomamos o café da manhã juntos e Simone parecia
feliz como na véspera. Devia ter gostado mesmo da nossa transação, tanto é
que me disse:
“Posso te pedir uma coisa, amor?”
“Pode, claro.”
“Vê se chega mais cedo hoje.”
E, de fato, à noite, quei apenas até a segunda aula em que se ministrava
uma prova, que z atabalhoadamente, me lixando para a minha nota. Não
passei pelo bar e fui direto para casa, onde tive uma nova e grande surpresa.
Simone, com outro vestido que me pareceu novo, até um tanto senhorial,
bebia sentada no sofá. A própria garrafa de uísque e um balde com gelo se
encontravam sobre a mesa baixa diante do sofá, junto com um copo vazio
que, com toda a certeza, era para mim.
“Vem, meu amor, senta aqui e bebe comigo.”
“Juro que não estou entendendo, querida, você aí bebendo. Aconteceu
alguma coisa, terminou a sua tese?”
“Senta aqui, já disse, que eu te explico.”
Eu estranhava tanto o comportamento de Simone, que, pela minha
cabeça, voltou a passar o pensamento inquietante do amante. Resolvi
ganhar algum tempo para pôr a cabeça no lugar:
“Espera um pouco, querida, deixe eu tirar a joça desse terno e tomar um
banho, para me lavar de um dia de trabalho.”
Lavei-me meticulosamente, mas não conseguia tirar da cabeça as
preocupações. De que Simone houvesse encontrado alguém mais ou, pelo
menos, estivesse insatisfeita com o modo como vínhamos transando.
Logo que saí do banheiro, enrolado numa toalha, Simone estendeu-me
um braço, tendo na mão um copo com uísque e gelo. Antes, ela depositou
o próprio copo na mesinha e disse:
“Vem, querido, vem.”
Eu até esperava vestir-me antes, para a conversa com Simone, que me
parecia séria, mas, como ela me ofereceu o copo cheio, estendi a mão para
pegá-lo. Simone, como se me desse um bote, arrancou a toalha do meu
corpo. Meu pau endureceu imediatamente e ela o pôs na boca, en ando-o
até a garganta. E, sempre com ele na boca, foi erguendo-se e tirando a
calcinha, mas sem tirar o vestido, o que era uma composição sensorial que
me tesava demais, pois nela havia uma boceta velada que, embora
conhecesse bem, eu podia imaginar de todas as maneiras. Mas antes que
eu me acomodasse assim, Simone exerceu uma pressão sobre mim e fez
com que eu me sentasse no sofá, nu e bebendo. E ainda sem tirar o
vestido, o que mantinha todo o mistério da sua boceta, fez com que eu a
penetrasse. Eu me consideraria o homem mais feliz do mundo, não fosse
ainda a inquietação de que Simone aprendera aquilo com alguém. Não
tinha coragem de perguntar-lhe isso, porém queria matar a minha
curiosidade:
“O que aconteceu, querida? Você está tão mudada.”
Foi quando Simone me disse de chofre:
“Eu estou grávida.”
Foi uma brochada fulminante. Tirei Simone de cima de mim e
perguntei, abismado:
“O que você disse?”
“Estou grávida, amor, nós vamos ter um lho. Nunca estive tão feliz.”

Não tinha levado nem uma fração de segundo para cair a cha.
Mergulhados numa intensa atração — até mesmo um ritualismo — sexual,
tínhamos deixado de usar preservativos aquele tempo todo, e a natureza
cobrava seu preço e a vida seguia o seu curso. A princípio, Simone não
conseguia esconder sua decepção com a minha falta de entusiasmo e cou
amuada. Depois, até tentou atrair-me, voltando àquele rito de deixar-se
surpreender apagada na cama, para que eu a comesse. Mas era tudo falso,
pois, grávida, ela não podia mais tomar seus remédios tarja preta, e, ainda
que tomasse, meu tesão se esvaíra de forma irreversível. E a mulher, em
sua animalidade, suas regras, suas idas ao ginecologista, suas tensões pré-
menstruais, me surgia em sua função maior, que era a de ter lhos,
amamentá-los, et cetera e tal. Claro que os homens também podiam
cumprir uma função como pais, de amar esses lhos e ajudar a educá-los,
tornarem-se mais companheiros do que amantes de suas esposas. De algum
modo, eu até entendia esse papel, mas o tesão se fora completa e
irremediavelmente, eu não conseguia nem tentar trepar com Simone. O
mais curioso é que o meu verdadeiro trauma com aquela gravidez se
estendeu às outras mulheres, pois, embora pudesse tornar-me amigo delas,
não havia como sentir por elas desejo, considerá-las um objeto sexual, pois,
no nal das contas, todas me pareciam mães em potencial, mesmo que eu
viesse a usar preservativos.
Era óbvio que o problema estava em mim, e cheguei a procurar um
médico psicanalista, mas, com o decorrer das sessões, fui percebendo que
não queria mudar, queria cumprir-me radicalmente até o m. Foi quando
me dediquei a prosseguir com a nco meus estudos, e até meu trabalho,
embora nunca pudesse gostar do Direito e de advogados, que eu
desprezava como uma classe prostituta que se dava intelectualmente a
quem pagasse melhor, e tornei-me mais diligente no escritório, recebendo
até elogios do doutor Armando. Mas, no meu íntimo, eu lamentava não
me dedicar à escrita desinteressada, à arte.

E agora, no tempo presente, apesar de ver próxima a minha morte, sinto-


me em boa parte realizado com essa peça escrita que os Alcoólicos
Anônimos, ironicamente, dão-me a oportunidade de realizar, pois sem essa
entidade eu corria o risco de destruir-me sem deixar nenhum legado.
Porque sim, se antes já bebia com regularidade, tornei-me de fato um
alcoólico dos mais pro ssionais, pois era capaz de beber todos os dias sem
tornar-me pastoso e inconveniente, desfrutando da companhia dos meus
pares masculinos, de nossas conversas cheias de um virtuosismo, quase um
brilhantismo, intelectual, que se gastava no botequim. Posso dizer que
bebia com método, como um escritor que admirava, o francês Alfred Jarry.
E não será assim que vive a maior parte dos aspirantes a escritor, realizando
sua literatura não escrita? E a bebida, como se sabe, casa perfeitamente
com o cigarro. E eu fumava desbragadamente, entupindo as minhas
artérias, o que me levou, mais tarde, a colocar pontes e stents nas
coronárias e nas pernas.
Mas, apesar disso, em casa as coisas corriam sem con itos dramáticos.
Pois era evidente que Simone realizava-se plenamente na gravidez,
mostrava-se até feliz e éramos cordiais e indulgentes um com o outro. E
não era só eu, mas também Simone, com sua barriga que começava a car
visível, que prescindia totalmente do sexo. Assim, nada mais natural que
passássemos a viver em quartos separados, o que permitia a ela, com seu
computador próprio, avançar na sua tese, eis que pelo menos os estudos
não eram incompatíveis com a gravidez. Cheguei a brincar com ela — que
recebeu o comentário com visível prazer — que não era só um, mas dois os
lhos que ela ia gerar. E, quanto a mim, podia sair e principalmente voltar
nas altas madrugadas sem causar incômodos ou dar satisfações. E tornei-
me tão cascudo com o álcool que podia passar noites em claro. E escrevia
mentalmente, para depois passar a limpo no escritório — a nal, era lho
de um dos donos —, mas não tinha tempo nem para ler literatura.

Foi quando se deu um novo divisor de águas em minha vida, na forma


de uma visita de Alessandra. Nada mais natural que uma mulher fosse
visitar a irmã, que sofrera um aborto espontâneo. Sim, Simone perdera a
criança e, para surpresa minha, não demonstrou estar muito traumatizada
com o fato e mergulhou ainda mais nos estudos. Quanto a mim, confessava
secretamente que sentia alívio com a interrupção daquela gravidez, pois
não tinha nenhum entusiasmo com a paternidade. Ainda mais que, depois
de uma atenção cautelosa para com Simone por sua perda, voltei à minha
vida habitual. E todos já terão percebido que eu era, ou sou, um rematado
egoísta.
Alessandra acabara de passar quase um ano na Europa, como uma
espécie de viagem de núpcias, e tinha aproveitado para fazer um curso de
arte. A última vez que eu a vira fora em seu casamento, chiquíssimo, na
igreja da Candelária. O marido, impecavelmente vestido, devia ser uns
vinte anos mais velho do que ela, mas era também muito bonito e, pelo
que soube, riquíssimo, do ramo das autopeças, em São Paulo.
Alessandra se vestira de branco, como a maior parte das noivas, mas,
mesmo para um não entendido como eu, dava para perceber que o seu
vestido era assinado por algum costureiro importante, que ousara bastante,
pois havia, além de um farto decote, um corte na saia que deixava entrever
a perna da noiva até acima de um dos joelhos e mesmo um pouquinho da
coxa. Mas o que verdadeiramente me encantou foi que, na la dos
cumprimentos, Alessandra me beijou na boca e deu uma risada, que
remetia ao meu próprio casamento, só que o marido dela, um gentleman,
nos observou sorrindo. Tive a impressão, quase a certeza, de que ele já
ouvira falar de mim.
Mas se me alonguei nesse preâmbulo, isso não quer dizer que serei
minucioso como ao falar de minha relação com Simone. Não apenas para
não me repetir e tornar-me enfadonho, mas também porque o meu amor
de adulto por Alessandra primou por certa economia e praticidade — era
mais qualitativo que quantitativo, sem nada perder do encanto das novas
descobertas. E eu tinha também a urgência dos que descon am que não
vão viver muito.
E agora ela estava de novo ali, elegantemente vestida, com o corpo um
pouco mais amadurecido, porém magro, e era evidente que se cuidava. As
duas irmãs se fecharam no quarto, certamente para trocar con dências
femininas. Deixado a sós, resolvi tomar um uísque, pois seria indelicado ir
embora sem me despedir de Alessandra, e também tive certeza de que
gostaria de vê-la de novo.
Quando as duas retornaram para a sala, uns quarenta minutos depois, eu
bebia sentado no sofá. Muito afável e sorridente, Alessandra perguntou se
eu prepararia um uísque para ela. “Com todo prazer”, eu disse, surpreso e
contente com aquela cumplicidade, pois assim nem sentia falta de minhas
conversas de botequim. Menos falta ainda senti quando Alessandra, com
um sorriso encantador, já sentada ao meu lado, disse um “E então?”, que
parecia subentender várias coisas, todo um tempo passado, embora não
falássemos disso, como se não houvesse lugar para saudosismos.
Mas imediatamente senti que algo se revitalizava dentro de mim e quei
desolado quando, mais ou menos meia hora depois, Alessandra levantou-se
para ir embora. E fui dar-lhe um beijo de despedida.
Nem sei a quem atribuir as intencionalidades quanto ao que aconteceu
em seguida. Talvez a Simone, que devia ter informado Alessandra de que
eu também estava para sair. Que, normalmente, já teria até saído. Ou
talvez a Alessandra, que me disse:
“Se quiser, posso te deixar em algum lugar.”
“Se não for problema para você.”
“Claro que não é problema, querido.”
No elevador, sorríamos um para o outro e pelo menos eu estava
encabulado, pelo reencontro com ela, tão mudada em alguns aspectos,
como a elegância no vestir. Mudança que verdadeiramente se concretizou
quando, já na rua, Alessandra puxou-me pela mão e me conduziu até um
carro negro cuja marca eu não sabia identi car, pois nunca liguei para
carros, nunca tive um, mas sabia que aquele era um carro luxuoso, embora
sem ostentação. Mas impressionado mesmo quei quando um homem
negro, bastante bonito, usando um terno também negro, saltou do banco
do motorista e veio abrir a porta traseira para nós. Alessandra fez um sinal
para que eu entrasse, o que pensei que era por comodidade sua, mas não.
Ela bateu a porta e sentou-se ao lado do motorista e percebi que ela se
sentiria incomodada sendo transportada no banco traseiro por um
empregado.
Depois virou-se para trás e perguntou o meu destino. Dei-lhe o endereço
do bar que frequentava — este bar, caros companheiros —, e Alessandra
perguntou ainda se eu me importava que ela fumasse, pois sabia, pela
irmã, que eu era um grande fumante. “Eu abro a janela”, acrescentou.
“Nem precisa”, eu disse, mas ela abriu assim mesmo. Mas o espanto maior,
um espanto bom, diga-se de passagem, foi quando ela tirou da bolsa uma
cigarrilha, acendeu-a com o acendedor do carro, que imediatamente foi
tomado por um cheiro adorável. Devia ser uma cigarrilha estrangeira,
pensei — e talvez isso tenha contribuído para que eu tivesse um prazer
maior do que o habitual fumando o meu cigarro.
Alessandra, não se importando, pelo menos não muito, com o motorista,
deixava ver parte das suas pernas. Isso, somado ao perfume da cigarrilha e
ao gesto sensual de manter essa cigarrilha no centro da boca, segurando-a
com os dentes, fez com que o meu pau passasse por uma verdadeira
ressurreição.
Ao parar diante da galeria bastante modesta do botequim, na praça
Serzedelo Corrêa, em Copacabana, ela disse:
“Você tem mesmo certeza que quer car aí?”
Aquela pergunta me deixou indeciso e com uma pequena esperança:
“Você sugere algum outro lugar?”
Ela foi rme:
“Sim, sugiro. O meu pequeno apartamento. Podemos tomar alguma
coisa lá, por que não? Não posso demorar porque vou a um casamento,
mas há tempo su ciente para tomarmos alguma coisa.”
“E o seu marido?”
“Meu marido mora em São Paulo, querido. E esse é o meu
apartamento.”
“Então vamos.”

Foi su ciente que eu entrasse naquele pequeno apartamento, em Santa


Teresa, para que me sentisse partilhando um espaço íntimo com
Alessandra. Como se o meu pau tivesse vida própria, ele endureceu.
Alessandra olhou para ele meio de lado e riu, sem que eu notasse algum
deboche da parte dela — parecia até compreensiva —, mas, mesmo assim,
senti-me obrigado a dizer: “Oh, me desculpe”.
Estávamos a três passos um do outro.
“Desculpar-se de quê, querido? Posso fazer alguma coisa por você?”, e aí
ela riu abertamente, ironicamente. Embora sentisse o rubor tomar as
minhas faces, aproximei-me dela, abracei-a e tentei beijá-la, mas ela se
afastou delicadamente.
A partir daí, passei por uma experiência das mais inesquecíveis, embora
possa parecer que nem foi tanto assim. Alessandra foi tomar um banho
enquanto quei sentado numa poltrona, bebendo e fumando, observando
o apartamento. E gostei de ver uma certa desordem, com discos e livros
espalhados pelo chão da sala. Quando saiu do banheiro, ela estava
enrolada numa toalha. Usando um secador de cabelo, deixou, talvez por
descuido, cair a parte de cima da toalha, por uma fração mínima de tempo,
pois logo se cobriu outra vez, rindo.
Mas aquele tempo mínimo foi su ciente para eu perceber, pela
pequenez rme dos seus seios, que era como se alguns anos não
houvessem passado desde a sua adolescência. Quase perdi a respiração.
Também me lembrei daqueles tempos quando ela caminhou até um
armário, que dava para eu ver dentro do seu quarto, onde pegou um
vestido, no meu entender elegantíssimo, e começou a vesti-lo pela cabeça,
fazendo a toalha cair aos poucos, à medida que se vestia.
Foi uma reação muito natural que eu continuasse excitado, e isso não
escapou a Alessandra, que riu de novo, maliciosamente, e logo já estava
sentada, de lado, sobre a pontinha dos meus joelhos, enquanto com as duas
mãos achou por bem segurar, bem de leve, a minha nuca. Fora tudo muito
rápido e, sentada assim de lado, em meus joelhos, era como se os seus
gestos não ultrapassassem os limites do parentesco. E ela até comentou:
“Puxa, até que en m te encontrei em casa. Já cheguei de viagem há
mais de um mês.”
Achei-me na obrigação de me justi car, até com sinceridade. Que,
desde a gravidez de Simone, mesmo quando esta não vingou, não
sentíamos mais desejo um pelo outro e eu saía praticamente todas as
noites. Ela havia visto com os próprios olhos que Simone já tinha o seu
quarto.
“É natural isso”, disse Alessandra. “Um casamento tem várias fases. E
Simone já me contou tudo.”
Num gesto que também me pareceu o mais natural possível, pousei uma
das mãos numa das coxas de Alessandra, mas o que aconteceu é que ela se
levantou depressa.
“Oh, me desculpe”, achei-me na obrigação de me justi car outra vez.
Porém Alessandra riu com gosto:
“Desculpar-se de quê, querido? Eu entendo.” E riu escancaradamente:
“Eu entendo tudo”. E foi sua vez de se explicar, um tanto ironicamente:
“O casamento, tenho de ir ao casamento.”
E logo já estava de pé, ajeitando o vestido sobre o corpo. Fora tudo
muito rápido e gracioso, assim como foi o ato dela de apoiar-se, logo a
seguir, em um dos meus ombros, para calçar os sapatos de salto alto, gesto
que, para mim, demonstrava um alto grau de familiaridade, para não dizer
intimidade. E logo já estávamos à porta, Alessandra dando-me o braço.

O motorista nos esperara durante esse tempo e, dessa vez, Alessandra


preferiu sentar-se no banco de trás junto comigo, com as pernas encostadas
na minha. Eu já me sentia completamente seduzido. Mas novamente foi
tudo muito rápido, pois logo estávamos diante da igreja de Santana, bem
no centro da cidade.
“Sinto não poder te deixar no seu bar, querido, mas quero ver se ainda
pego a hora dos cumprimentos.”
Quando o carro parou, desci junto com Alessandra e foi bonito vê-la
apenas me acenando com o gesto de um beijo e logo encaminhar-se com
um andar altivo para a entrada da igreja, não sem antes dizer: “Vê se me
liga. O Antônio pode te deixar onde você quiser”.
Eu não tinha o número dela. Mas com toda a certeza o acharia com
facilidade no celular ou na agenda de Simone.
Preferi dispensar os serviços de Antônio, o motorista negro. Não me
sentiria à vontade sozinho com ele naquele carro. Então peguei um táxi e
vim para o bar, onde saberia que encontraria vocês.
Naturalmente, Alessandra estivera usando um perfume muito agradável.
Mas não passou pela minha cabeça que aquele perfume tivesse me
impregnado tanto. Porém, foi mais do que esse vestígio em meu corpo e
minhas roupas que me denunciou, me entregou, para vocês, meus
companheiros. “Olha só como ele está”, falou um de vocês. Já outro disse:
“Entrega logo quem é a garota, que nós também queremos”. “Não seja
egoísta”, alguém mais disse. Sim, foi também algo no meu estado de
espírito que me entregou, pois eu senti que estava orgulhoso do que havia
acontecido naquele m de tarde. Senti que estava mais ereto, aprumado.
Mas todos os comentários de vocês, os que estavam ali naquela tarde,
vinham acompanhados de risadas obscenas. Senti até o fundo de mim o
quanto vocês eram feios e cafajestes; como era vulgar o gênero masculino,
comparado ao feminino. E, antes que pudesse me conter, dei um soco na
mesa, fazendo voarem copos e garrafas. E dei-lhes as costas em silêncio e
saí para a rua, vocês devem lembrar-se muito bem.
E, naquela tarde, iniciei um hábito que se estenderia pelo tempo em que
mantive um relacionamento com Alessandra. Sentar-me sozinho à mesa de
algum bar que me agradasse, depois de meus encontros com ela, e pensar
no que havia se passado entre nós, reviver aquilo sozinho, o que me deixava
feliz e realizado.
Cheguei em casa meio embriagado naquela noite, mas Simone estava
acostumada com isso e não demonstrou contrariedade, embora eu não
duvidasse nem um pouco que ela intuísse que se passara alguma coisa
entre mim e Alessandra. Mais ainda, que isso contasse com a sua total
aprovação. Mas se assim era, ela disfarçou, pois chegou a falar um pouco
naquilo que a mobilizava naquele tempo, que era apenas a defesa de sua
tese, depois da interrupção da gravidez. Fiz o possível para concentrar-me
em suas palavras, mas estava aéreo, tomado pelas experiências do dia, e
Simone, gentilmente, perguntou-me se eu precisava de alguma coisa.
Diante da minha negativa, ela balbuciou alguma coisa sobre se recolher e
de fato fez isso, indo para o seu quarto.
Foi uma noite agitada para mim, quando passei em revista,
minuciosamente, excitado, tudo o que acontecera comigo, de forma um
tanto escorregadia, naquele dia. Fumei desbragadamente e, no meio da
madrugada, não resisti à tentação, fui até a sala e anotei no meu celular,
com a mão trêmula, os números de telefone de Alessandra, que peguei no
celular de Simone. Depois, aproveitando que me levantara, servi-me
fartamente de uísque.

A minha primeira transa de verdade com Alessandra, lembro-me bem,


foi de uma espontaneidade e delicadeza sem igual. Estava eu bebendo e
fumando na sala, certo início de madrugada, quando o celular de Simone,
que ela deixara sobre a mesa baixa diante do sofá, tocou. Como Simone
dormia pesadamente com os seus remédios, dei uma olhada na tela,
movido pela curiosidade. E estava lá o nome de Alessandra gravado. O
telefone parou de tocar e depois tocou novamente. Num impulso, resolvi
atender. Logo reconheci que a ligação vinha de um ambiente onde tocava
uma música na maior altura, o que não me impediu de escutar a voz de
Alessandra. Um pouco embriagada, ela enrolava a voz e choramingava,
mas entendi que perguntou se dava para chamar Simone. Eu disse que
Simone já estava dormindo, mas que, se ela quisesse mesmo, eu a
acordaria. Ela não disse que sim nem que não e perguntei se estava
acontecendo alguma coisa. “Não está, mas pode acontecer. Eu estou muito
sozinha. Numa boate cheia de gente, aqui em São Conrado, mas sozinha e
sendo assediada. Vim com uns amigos, mas todos já foram embora. Posso
chamar um Uber, mas estou meio insegura de ir com um desconhecido
até Santa Teresa.” Perguntei se não dava para ela chamar o Antônio. “Não,
o Antônio não, ele não parece, mas é um empregado e está de folga. Por
que não vem você?”
Meu coração acelerou, pois entendi que aquele era um momento
crucial e que eu não podia falhar. Disse que iria, embora não desse muito
para con ar no seu estado, quando ela me explicou que era uma boate
chamada Venusiana, entre São Conrado e o Vidigal. Mais para o lado de
São Conrado, próxima ao Hotel Nacional.
Perto do meu prédio, no início da ladeira da Glória, em frente à Nona
Delegacia Policial, há um ponto de táxi. De tanto usá-los, acabei por
conhecer todos os motoristas e fui direto num cara que tinha o apelido de
Pací co, de tanto se meter em brigas. Sabia que ele também prestava
serviços aos policiais, quando era preciso. Perguntei se ele conhecia uma
boate chamada Venusiana, em São Conrado, e ele disse que sim, claro.
Como falei também que tinha pressa, ele partiu a toda velocidade para lá.
Logo que chegamos, entrei na boate e vivi um momento de tensão, pois
vi que Alessandra, usando calça jeans e camiseta branca, que lhe davam
um ar juvenil, dançava aparentemente sozinha no meio do salão, mas na
verdade cercada por dois caras que tentavam dançar com ela. Cheguei
perto deles e tentei fazer com que ela me visse. Com os olhos
semicerrados, ela não pareceu se dar conta de mim a princípio, mas depois
me viu, chegou até mim e caiu molemente nos meus braços. Os dois caras,
ambos bem mais fortes do que eu, em um passo chegaram até nós e cada
um segurou um dos meus braços, mas eu, com uma coragem que nem
sabia ter, desvencilhei-me deles e levei Alessandra até o balcão, onde ela
pagou a sua despesa com um cartão. Os dois sujeitos nos ladeavam, mas
puxei Alessandra depressa para a porta. Lá fora, continuamos a andar,
ainda mais depressa. Olhei para trás e vi que os caras nos seguiam e tive
muito medo. Mas foi Alessandra quem gritou com eles, com o celular na
mão, dizendo que ia chamar a polícia. Então eles pararam e um deles
gritou: “Vai, sua vagabunda”.
Alessandra então começou a andar devagar, me puxando pelo braço,
ofegante, como eu também estava. Andamos mais duas quadras, até que
Alessandra sentou-se no meio- o e z o mesmo. Aos poucos, nossas
respirações voltavam ao normal e Alessandra chamou a minha atenção
para o que eu já reparara. O silêncio era bem maior ali do que na
verdadeira cidade imensa, mais afastada; havia até um barulhinho de
grilos, uma escuridão maior da noite, que nos permitia ver mais estrelas do
que eu, pelo menos, estava acostumado. Ela aconchegou-se a mim, com a
cabeça no meu ombro, e enlacei-a, evitando que minha mão escorregasse
até os seus seios, para não me aproveitar dela naquele estado.
E o que aconteceu entre nós é que camos ali sentados no meio- o, de
braços dados, as pernas se encostando apenas levemente, como se fôssemos
namoradinhos. Era como se vivêssemos numa época um pouco posterior
ao tempo em que éramos três na cama de Simone.
“Você se lembra?”, ela perguntou, adivinhando os meus pensamentos.
“Claro que me lembro”, eu disse, apertando um pouquinho o seu braço,
apenas um pouquinho.
“Você não sabia como me atraía”, eu disse, “mas havia Simone e a
situação toda da casa e a sua idade, claro.”
Espantei-me com o que ela disse em seguida, pois pensava que era
justamente o contrário:
“Você era muito ingênuo e não sabe como também me atraía, mas de
um jeito muito especial.”
“Você?”
“Sim, eu. Eu me mostrava para você, mas havia também Simone. Nós
duas éramos muito ligadas.”
“Sim, eu sabia.”
“Mas talvez não soubesse como.”
Pensei um pouco e falei:
“É, talvez não soubesse mesmo. Mas cava muito excitado. Você não
imagina quanto.”
“Já eu tinha apenas uma noção de que as coisas eram assim e não dava
nome a elas.”
Para certa surpresa minha, Alessandra então me beijou. Foi um beijo de
leve, como se ela se desse conta de que éramos cunhados. Ou…
namoradinhos. Quando tentei en ar a língua na sua boca, ela afastou
delicadamente o rosto: “Outro dia, querido, outro dia”. E levantou a mão
para a la de táxi na porta do hotel, mais ao longe. Um motorista percebeu
o aceno e veio em nossa direção.
No táxi, eu dava a mão para ela e falava baixinho:
“Às vezes, você me parece duas pessoas, Alessandra.”
“Sim, duas pessoas, ou vai ver até mais. Você ainda não viu nada”, ela
deu uma risada.
“Você sozinha naquele antro, com dois caras que pareciam selvagens,
com aquela música eletrônica ensurdecedora e, de repente, refugiando-se
em mim.”
“Sim, no cunhado”, ela riu.
E voltou a pousar a cabeça no meu ombro, permaneceu assim e era
possível até que dormisse. Na porta do seu prédio, desci para deixá-la, e
voltamos a nos beijar, um pouco mais do que lá no meio- o, mas menos,
bem menos, do que se fôssemos namorados xos. “Você é um amor, Júlio”,
ela disse, e já ia entrar no prédio quando, num impulso, a puxei pela mão,
fazendo com que nos beijássemos, dessa vez sem restrições. Só posso dizer
que foi maravilhoso, e renovou tudo o que senti aquela tarde em seu
apartamento.
Foi uma emoção intensa beijar Alessandra, foi também como voltar no
tempo, só que eu me dava conta de que nunca estivéramos tão próximos
assim em tempos passados. Foi absolutamente natural que eu entrasse em
seu edifício junto com ela, que continuava a apoiar-se em meu braço, um
pouco vacilante.
Dentro do seu apartamento, ela se deixou cair para trás e tive de ampará-
la. Posso dizer em minha defesa que ela não estava totalmente bêbada
quando comecei a desabotoar sua blusa, pois sorria, talvez não exatamente
para mim, mas para ninguém, ou alguém invisível. Fiz ela deitar-se na
cama e mais uma vez na vida senti uma emoção intensa ao contemplar
seus seios. Porém, foi a primeira vez que acariciei esses seios, enquanto
tirava minha camisa. E z Alessandra erguer seu tronco, continuando a
ampará-la pelas costas. E nos beijamos longamente, ela com os olhos
fechados, mas totalmente entregue. E me dei conta de que a Alessandra
que estava comigo era uma Alessandra de um tempo em que não
estivéramos próximos, depois do casamento de ambos. Mas uma
Alessandra ainda juvenil.
Depois z com que ela tornasse a se deitar e, talvez porque estivesse
embriagada, não sei, começou a tirar a minha roupa, enquanto eu retirava
o resto da sua. E ali, nus, enquanto eu a penetrava, tive uma noção exata
dessa sua leveza e magreza no limite certo, enquanto eu vivia uma intensa
emoção. Talvez porque ela estivesse um pouco embriagada, não sei, mas
foi um gesto absolutamente natural que ela tivesse cado nua comigo na
cama. E também que me ajudasse a tirar minha roupa. Talvez não devesse
estragar com palavras o que aconteceu entre nós. Mas o certo, também, é
que, descrevendo-o, é como se revivesse tudo agora.
Não pretendo, de modo algum, descrever todas as minúcias da nossa
transa, mas talvez seja oportuno revelar que eu evitava pesar sobre o seu
corpo, tão mais leve que o meu. E quero dizer que Alessandra, nua sob
mim, era magrinha e juvenil, com as pernas apenas entreabertas, como se
ela se defendesse. No entanto, não resistiu a que eu a penetrasse. Embora
eu tomasse todos os cuidados, logo estava dentro dela, e me impressionou
que pudesse mergulhar tão fundo no seu corpo, como se ela não fosse um
ser quase juvenil. E me impressionou mais ainda que aquele ser, com os
olhos fechados e parecendo dormir serenamente, desse pequenos gritos,
não deixando dúvidas de que gozava, o que me permitiu também falar em
seu ouvido obscenidades, baixinho, quase mudas, como se estivesse com
uma donzela. Por isso mesmo obscenidades que pre ro omitir aqui, para
ser el ao clima que rolou entre nós.
Depois, percebi que Alessandra estava dormindo sob mim. Achei melhor
deixá-la assim e, cuidadosamente, suspendi meu corpo, pois tive receio de
que ela despertasse e, subitamente lúcida, caísse em si e estranhasse que
estivéssemos os dois nus em sua cama. A nal, éramos cunhados. E, apesar
da relação tão interessante que tivéramos naquela outra tarde, havíamos
parado em certo limite, que aliás era o que deixara a coisa tão rica e
interessante, inesquecível.
Enquanto, de pé, vestia as minhas roupas, eu a contemplava dormindo
nua e entregue, e não pude deixar de pensar em Simone, nas vezes em que
a comera dormindo — teria eu um certo padrão? —, mas tive certeza
absoluta de que amava Alessandra, sempre a amara.
A porta do apartamento, por dentro, fechava apenas com uma tranca.
Abri-a, tomei o elevador e saí para a rua. Fui descendo as ladeiras desertas
de Santa Teresa e sentia vontade de cantar e gritar, anunciando ao mundo
a minha felicidade. Porém a felicidade era uma coisa silenciosa e era bom,
isso.

Eu não pensava em outra coisa senão me encontrar outra vez com


Alessandra. Mas, sendo um homem discreto, para não dizer tímido,
preferia que nosso encontro se desse de forma natural, para sondar os seus
sentimentos. Pois ela podia até pensar que eu me aproveitara dela,
embriagada. Mas, cedo ou tarde, eu sabia, ela viria ver Simone, e isso
aconteceu três dias depois daquela madrugada. Estava eu sentado no sofá,
tomando um uísque, quando Simone saiu de seu quarto e veio me dizer
que Alessandra lhe passara um zap e viria dali a pouco nos visitar.
Sim, ela usou o pronome no plural, mas quei tão nervoso que pensei
em sair e ir para o nosso bar, companheiros. Ainda hesitava quando a
campainha tocou e, atendendo a um pedido de Simone, fui abrir a porta
com o coração batendo mais forte.
Porém, o que aconteceu é que Alessandra me cumprimentou da
maneira mais natural possível, em se tratando de cunhados, me dando um
beijo em cada face e um abraço que senti como cordial, não mais que isso.
E disse apenas: “Como vai você, Júlio?”, e respondi no mesmo tom.
Depois, quando já estávamos os três sentados na sala e Alessandra também
tomava um uísque, o que não deixei de notar, ela comentou, tranquila,
com Simone: “Ainda não agradeci direito ao Júlio, pelo socorro na outra
noite”. Aí Simone disse: “Pois é, a mim ele não disse nada. Se não fosse
você a me contar, eu nem caria sabendo”. “Vou convidá-lo para jantar,
para agradecer direito”, Alessandra disse. “Se Simone não se importar, é
claro.” “Eu, me importar?”, protestou Simone. “Fico feliz de vocês estarem
se dando tão bem.” Haveria alguma ironia, ou malícia, na fala de Simone,
ou estaria isso em mim?
Dali a dois dias, Alessandra me telefonou e combinamos de ela passar
para me pegar às nove da noite. Simone se despediu de nós à porta, o que
me deixou em dúvida se ela era muito inocente ou liberal demais. Não
tinha a menor ideia sobre até que ponto Alessandra contara sobre o nosso
encontro da outra noite. Pensei que o jantar seria no apartamento de
Alessandra e que ela até cozinharia para nós. Mas nada disso. Alessandra,
que dessa vez estava na direção do carro, me levou até um restaurante
japonês no Leblon. O pisar nos pedais fazia seu vestido — outra vez
elegante — erguer-se até o alto das coxas. Porque aquilo me excitava, ou
porque podia ser uma provocação, cheguei até a aproximar minha mão
dessas coxas tentadoras para tocá-las. Mas Alessandra já tinha posto uma
cigarrilha entre os dentes e pediu-me que a acendesse para ela. Então
acabei por não tocar as coxas de Alessandra, que, se percebeu o que eu
estivera prestes a fazer, não o demonstrou.
No restaurante, fazendo as honras da casa, ambos pedimos saquê e
zemos nossas escolhas. Conversamos um pouco e o assunto, puxado por
Alessandra, a princípio foi Simone, como se Alessandra quisesse deixar
bem claro os nossos respectivos papéis. No entanto, como a mesa era
pequena, nossos joelhos caram bem próximos. Mas a bebida me deu
coragem e, sem fugir do assunto Simone, narrei o episódio entre mim e sua
mãe, os joelhos quase se tocando na varanda da casa dela. Alessandra deu
uma gargalhada e, como se o próximo passo a ser dado fosse
necessariamente esse, encostou levemente os seus joelhos nos meus.
Encorajado por esse gesto e pela bebida, abandonei minha timidez e disse:
“Acho que sofro de um apego, uma atração, pela sua família”. Alessandra
tornou a rir e disse: “Você foi um amor na outra noite, Júlio”, e tocou no
dorso da minha mão, o que me levou a ir adiante, bem seguro de mim, e
dizer: “Adorei car com você. Tenho medo de me apaixonar”. Alessandra
então cou bem séria e disse:
“Amigos, Júlio. Foi legal na outra noite, mas nunca seremos mais do que
amigos.”
“Sim, amigos, claro”, eu disse, encabulado, e senti que enrubescia.
Ficamos certo tempo em silêncio, tive medo de que eu houvesse
afugentado Alessandra, ergui minha taça de saquê e disse: “À nossa
amizade”. O rosto de Alessandra se desanuviou e ela também disse,
fazendo sua taça tocar na minha: “À nossa amizade”.
Continuei com minha taça levantada e, não sei de onde tirei a coragem
para saudar, recitando: “Enivrez vous de vin, de poésie ou de vertu (realcei
esta última palavra), à votre guise”.
“Il faut être toujours ivre”, arrematou Alessandra. E tive certeza, queridos
companheiros, de que havia uma cumplicidade entre nós desde os
primeiros tempos passados na casa de Simone, era preciso apenas cultivá-
la. Tanto é que Alessandra nem me perguntou nada, ao me levar para o seu
apartamento.
Não pretendo, nem quero, narrar em minúcias as nossas transações,
como z em relação a Simone, curiosamente até por certo ciúme de
Alessandra e também para evitar certa monotonia narrativa. E pretendo me
ater ao essencial nesses encontros. Mas devo dizer que foi uma grata
surpresa descobrir que Alessandra também bebia habitualmente, não fora
apenas no encontro que me levara a transar com ela pela primeira vez.
Uma informação que julgo interessante colocar nesta espécie de relatório,
levando em conta o seu público-alvo.
Com certeza foi uma temeridade ela dirigir meio embriagada, embora
mostrasse boa resistência, do restaurante japonês até Santa Teresa,
felizmente sem atrair a atenção de nenhum guarda de trânsito. Mas o que
realmente importa é que ela se sentou nua sobre mim, com um copo de
uísque na mão. E ria o tempo todo e foi capaz de dizer coisas como:
“Como é bom foder com você assim, querido”. E a posição em que estava
permitiu que eu acariciasse os seus seios, pensando também na adolescente
que ela fora, mas dizendo apenas: “Como foi bom te reencontrar
Alessandra. Como faço para te rever?”.
Ela foi categórica:
“Deixa eu te procurar, querido, e vou ter de dar um tempo. Entre outras
coisas, meu marido está para chegar. Mas amigos não se cobram, não é
verdade?”
Logo depois ela já adormecera, como na primeira noite, e achei de bom-
tom cair fora, indo para o bar em que bebia sozinho, revivendo o que se
passara comigo. Tive certo ciúme daquele marido e Deus sabe de quem
mais. Fiquei também inseguro com aquele tempo que ela queria se dar,
mas, pensando bem, era preciso deixar que Alessandra sentisse a minha
falta. E, sobretudo, eu estava feliz.

Dali a duas semanas ela me telefonou. E fomos de novo jantar num


restaurante. Notei que ela estava meio aérea, pensativa. Distante, talvez.
Não nos tocamos, conversamos sobre vários assuntos e ela não demorou a
contar uma experiência que visivelmente mexera com ela:
“Sabe o meu marido?”
“Sim, claro”, eu disse, tentando aparentar uma indiferença que estava
longe de sentir, assumindo o papel de amigo e con dente.
“Ele me levou para dar um passeio de planador.”
“Ah, ele pilota planadores?”
“Aprendeu em São Paulo, e zemos amor (sim, foi esta a expressão que
ela usou, sonhadora) lá nos céus. Foi uma experiência maravilhosa. Eu
sentada no colo dele. Aquele silêncio absoluto, a não ser pelo vento nas
asas e nossas respirações ofegantes.”
Pensei que jamais poderia competir com um homem daqueles e não
resisti à tentação de botar para fora o meu sentimento de inferioridade:
“E em mim, o que você vê, Alessandra?”
Ela apertou carinhosamente a minha mão e disse:
“Você foi meu primeiro homem, amor, e isso marca, ainda mais porque
foi tudo muito bom.”
Tudo mudou como num passe de mágica, e passei em um segundo do
ressentimento à felicidade. Alessandra me deu um beijo na boca e logo já
estávamos em seu apartamento. Não pretendo, como já disse, narrar as
minúcias de minha transa com Alessandra para não conspurcá-la com
grosserias. Mas digo com alegria que ela tomou uma chuveirada, deixou a
porta do banheiro aberta, saiu enrolada numa toalha e depois pôs a
calcinha e pegou, no armário, outro vestido, elegante como sempre, apesar
de caseiro, e vestiu-o na minha frente. E posso dizer, com certeza, que uma
mulher se vestir na nossa presença é tão excitante quanto ver ela se despir.
E tivemos outra transa delicada, como se voltássemos atrás no tempo e
completássemos o que não fora possível realizar naquela época. E nos
deixamos car ali, abraçadinhos, por um bom tempo, mas não
exageradamente, pois eu já sabia como devia me comportar com a
Alessandra adulta.

Então aconteceu aquela noite cheia de surpresas, embora houvesse,


desde o princípio, uma predisposição. Chovia de maneira contínua e
ninha e eu me sentia melancólico. Mas há uma melancolia na chuva que
me deixa absolutamente cioso de ser eu mesmo, feliz talvez. E o
telefonema de Alessandra tornou as coisas absolutamente perfeitas.
Quando eu disse alô, ela perguntou: “Como é que você está?”. “Difícil
explicar”, eu disse. Então ela falou com a mais absoluta certeza, mas com
uma voz nem um pouco autoritária:
“Você está bebendo e fumando, sentindo-se melancólico com a chuva, e
no entanto não pode dizer que não está gostando. Mas vou dizer duas
frases de um poema do autor que sei que você ama. Se você disser qual é,
tenho um prêmio a te dar. Mas tenho certeza de que vai ser fácil, você vai
gostar.”
Alessandra fez uma pausa e, por alguma ligação mágica entre nós, ou
porque não podia ser outro o poema, disse, com uma voz absolutamente
adequada aos versos:
“Je suis como le vieux roi d’un pays pluvieux
riche, mais impuissant et pourtant très-vieux.”
Foi de imediato que eu disse Spleen e Charles Baudelaire. Fleurs du mal.
Alessandra tinha me ganhado para sempre com aquelas duas estrofes. Ela
bateu palmas e disse: “Agora você venha imediatamente para cá que eu
quero lhe oferecer um presente. Preciso lhe mostrar meu quarto e um
quadro. Isso se você quiser, é claro. Mas me dê uma hora, para eu arrumar
o quarto”.
“Mas você precisa me dar o endereço, claro, porque naquelas outras
noites foi tudo tão, tão… que não o guardei.”
Chamei um Uber, que me deixou no pequeno edifício em Santa Teresa
onde Alessandra tinha um estúdio, que, me dei conta outra vez, era em
tudo adequado a ela. Só que, dessa vez, estava muito bem arrumado, como
ela própria, Alessandra, vestida com apuro, o que, notei, era uma
característica sua, só diferente lá em São Conrado, embora não vá
descrever seu vestido, porque não tenho jeito para isso. Mas não me
escapou que era curto. Alessandra me fez sentar no sofá, deixou sobre ele
um cinzeiro com uma cigarrilha acesa e pediu que eu a aguardasse,
enquanto ela ia até a cozinha.
A volta de Alessandra foi esfuziante, porque ela retornou rindo, trazendo
um balde com gelo e uma garrafa de champanhe e abriu-a ela mesma,
enquanto eu segurava o balde. Quando a rolha da garrafa explodiu e bateu
no teto, Alessandra deu uma série de vivas e enlaçou o seu braço no meu,
assim bebemos os primeiros goles e, mesmo sendo um bebedor de uísque,
achei que a bebida estava divina.
“Obrigado pelo seu presente, minha querida, jamais podia imaginar. É
perfeito.”
“Para combinar com Baudelaire.”
Alessandra voltou a fumar a cigarrilha, enquanto eu fumava um cigarro
normal.
“Não, nada disso, meu amor, o presente é outro, mas apenas para você
ver.” E foi me puxando para o quarto, que estava arrumado
impecavelmente, nenhuma roupa ou livro fora do lugar. Mas o que se
destacava mais, por ser apenas um, era um quadro, de tamanho médio, na
parede em frente à porta. Nele eram retratadas algumas mulheres, que
pareciam se exibir num salão, usando roupas chiques, mas provocantes, de
uma maneira que beirava o vulgar. Aproximei-me da pintura e disse:
“Mas são só mulheres”, comentei. “Ao mesmo tempo chiques e
vulgares.”
“Sim, é bem isso, mas onde você acha que elas estão?”
“Um salão, pode ser?”
“Não deixa de ser, querido. Um bordel.”
“E as mulheres são prostitutas, claro?”
“De certo modo sim, mas são todas amigas ou conhecidas minhas. E da
melhor sociedade. Ficaram encantadas de posar como putas. Pode reparar
que elas se oferecem. A clientes que estão fora do quadro. Aliás, o quadro
pertence a uma delas. Tomei emprestado só para mostrar a você. Gostou
de alguma em especial?”
“Gosto de todas”, eu disse.
“Mas pode reparar em cada uma delas, não tenha pressa”, Alessandra
sorriu e parecia guardar algum mistério.
Fiz como ela indicava e comecei a reparar, uma por uma, em cada
mulher da pintura. Em primeiro plano, à direita, uma delas era vista de
per l, atrás de um balcão, sentada numa banqueta, diante de uma caixa
registradora e escrevendo num caderno. Pensei que ela devia estar
anotando os deves e haveres da freguesia, até porque havia chas e falsos
euros sobre a bancada. Mas dava para perceber que não era uma simples
empregada, pois havia também, à sua frente, uma taça de champanhe
igual às nossas e cheia até a metade. E, na pose e perspectiva em que ela se
encontrava, seu vestido se levantara até o alto de suas coxas, em que havia
ligas prendendo meias que pareciam de náilon. Fiquei em silêncio, mas
Alessandra me incentivou:
“E a moça que está lendo, qual é o livro?”
De fato havia uma moça com um livro aberto nas mãos, parecendo
concentrar-se na leitura, mas seu gesto não era nada inocente, pois, com as
pernas afastadas, ela deixava ver até sua calcinha, que era azul. Não dava
para ver o nome do autor, mas o título, a custo, pude decifrar:
“Mas é Albertine”, festejei.
“Muito bem”, Alessandra disse. “O pintor é so sticado e não faz por
menos. Apesar de toda a guração meio fora de época. Não admira que
todas essas mulheres da nossa melhor sociedade tenham concordado em
posar para ele, talvez algo mais”, Alessandra riu ironicamente. “E todas
amaram fazer o papel de putas. Mas e essa outra linda jovem, meio
geométrica, ajoelhada contra a parede, como se em desespero, junto à
janela. Te dou um doce se você adivinhar quem é.”
“Confesso que não sei. Mas parece que ela está grávida”, eu disse, depois
de pensar um pouco.
Alessandra falou, triunfante:
“É Jeanne Hébuterne, amor, a jovem amante de Modigliani que saltou
da janela quando ele morreu, já enfraquecido pelo álcool e pelas drogas,
como frequentemente acontece com artistas. Levou um lho com ela, pois
estava grávida de nove meses. Tudo é terrível, mas é também uma história
de amor, mais radical do que Romeu e Julieta.”
Eu me sentia perdidamente excitado com o conhecimento de arte de
Alessandra e seu humor também no, como o do pintor. Ela não estudara
botânica, como aspirara na adolescência. Na verdade, não cursara
nenhuma faculdade formal e adquirira cultura simplesmente lendo,
vivendo, viajando, e se transformara na mulher extremamente sedutora que
eu tinha ali à minha frente.
Voltando ao quadro, fomos em frente. Havia duas outras moças que
dançavam graciosamente com o rosto colado, com passos que pareciam de
um tango, diante de uma eletrola dessas antigas. Alessandra foi logo me
revelando que representavam elas mesmas, com muito gosto, ela disse
cinicamente. São amantes e queriam ser elas mesmas. Disse ainda que
uma delas, que gostava de espicaçar o marido, era a dona do quadro.
“Mas e a mulher que está servindo champanhe, com taças e uma garrafa
sobre uma bandeja?”, perguntei. “Me parece que há algo de falso nela.”
“Muito bem”, Alessandra disse. “Não é uma mulher, mas uma
transexual. O pintor gosta de dizer que faz uma arte degenerada e que isso
irrita os fascistas. Repare que ela foi retratada em primeiro plano,
oferecendo champanhe aos frequentadores do bordel, invisíveis.”
Eu aprendia depressa e disse para Alessandra:
“Sim, estou gostando dessa arte degenerada. Como aquela mulher com
uma perna sobre o sofá, numa pose obscena, sem calcinha, se oferecendo a
esses frequentadores, para não dizer aos contempladores do quadro,
excitados como eu estou agora, veja.”
O fato é que meu pau estava duro, oferecendo-se a Alessandra, que
pareceu morder a isca, aproximando-se de mim e acariciando-o levemente,
de um jeito encantador, que me excitou tremendamente. Mas ela parecia
distraída e disse, talvez como uma falsa reprimenda:
“Acabou?”
Pensei que talvez ela se referisse a um clímax e podíamos então… Mas
fui cauteloso:
“Acabei o quê?”
“Com o quadro?”, disse Alessandra, tirando a mão de meu pau, como
uma espécie de reprimenda. “Não está faltando alguma coisa? Faltando
alguém?”
Olhei para os olhos dela que estavam olhando para o fundo da pintura e
então me toquei. Havia uma mulher nua, esguia, bela, mas retratada em
dimensões pequenas, descendo uma escada que vinha de lugar nenhum. A
mulher era ninguém menos que Alessandra.
“Mas é o Nu descendo uma escada”, exclamei. “E a mulher nua é você.”
Olhei para Alessandra, quase encostando em mim, às minhas costas, e
ela sorria satisfeita:
“Que tal?”, ela disse.
“Linda, adorei. E sinto um grande tesão por ela. Você não caria toda
nua para mim, como ela? E eu te comeria toda magrinha, como no
quadro, desculpe-me ser tão franco.”
“Tudo bem, mas eu não ousaria. Já me basta ter posado para o pintor.”
“Você acha um desrespeito com Duchamp?”
“Não sei, iconoclasta como era. Mas não sei se ele aceitaria que
despíssemos sua mulher cubista e futurista. Esses artistas de vanguarda
gostam de pastichar os outros, mas quando os pastichamos costumam levar
a sério e car putos da vida. Além do mais, o pintor da obra, Carlos
Rodrigues, é atacado por alguns críticos, que o consideram um realista
anacrônico. Então vamos fazer o seguinte. Também quei excitada. Não
há nenhuma das outras mulheres que excite você? Posso tornar-me uma
delas.”
Dei uma geral rápida no quadro e não demorei a escolher a mulher
elegante com um dos pés sobre a poltrona, deixando ver até sua xoxota, e
disse isso para Alessandra.
“Já que é arte degenerada, quero essa, numa pose obscena, se oferecendo
aos frequentadores do bordel, para não dizer aos contempladores do
quadro, como eu”, acrescentei. “Veja”, e z um gesto de cafajeste,
acariciando o meu pau.
Alessandra não se fez de rogada. Nem precisou trocar o vestido e os
sapatos de salto alto. Tirou apenas a calcinha na minha frente, o que me
excitou mais ainda.
“Agora vem, não percamos tempo, amor”, ela disse. E logo depois que
eu cheguei junto dela e en ei minha mão entre suas pernas, ela atirou
longe sua taça e a cigarrilha e arrancou o vestido pela cabeça. Deitou-se
nua, e disse: “Me come, como se come uma puta. Então lembre-se, nada
de beijos”. Dito isso, abriu as pernas. Se era para jogar o jogo, eu o jogaria,
e tirei minha roupa rapidamente. Alessandra fez um gesto rápido, apenas
para vestir-me a camisinha, e entrei dentro dela. Entrei fundo. Alessandra
mantinha um dos braços contra o rosto, cobrindo os seus olhos,
demonstrando indiferença, como se não passasse mesmo de uma
pro ssional. Mas sua boceta, como se tivesse vontade própria, tragava em
contrações o meu pau e não pude deixar de pensar em vocês, meus
queridos companheiros, conversando com extremo mau gosto sobre o que
chamam de xoxota sugadora. E não demorei a gozar, gozei muito, como se
tivesse me guardado muito tempo para Alessandra. Ela nem se importou de
ngir explicitamente, arfando exageradamente até que soltou um suspiro
nal, claramente ngido. E imediatamente depois ela deu um jeito de
libertar-se de mim e disse:
“Agora me deixe sozinha.”
Tudo terminara tão rapidamente que, naquele momento e depois, tive
certeza de que se tratara mesmo de uma representação. No entanto, não
quei nem um pouco magoado, pelo contrário. Enquanto me vestia
depressa, olhei novamente para o quadro O bordel, para Alessandra de
olhos fechados, nua na cama, e tive certeza de que toda aquela
representação fora um lance maior de uma artista, pouco importava que
zesse parte da sua vida real. Saí logo para a rua e quei pensando no tanto
que a vida de minha cunhada fora eivada de representações, até mesmo
quando ela era uma pré-adolescente partilhando a cama com Simone e
comigo e representar zera parte de sua natureza, sem que ela analisasse os
seus atos, apenas os vivesse. E de novo em meu quarto tive de gozar outra
vez, então comigo mesmo, pensando em três Alessandras: a adolescente; a
adulta que se tornava minha amante; e aquela puta com uma obra em seu
quarto, de uma arte degenerada que me parecia genial, e ela me honrara
com o privilégio de partilhá-la comigo. E pensei se Alessandra não teria
uma vocação para puta e a punha em prática, até meio inconscientemente,
mas com extremo prazer e por amadorismo, a nal seu marido era muito
rico.
Quando quis ver o quadro outra vez, esperando também,
evidentemente, que nos inspirássemos nele para repetir a nossa deliciosa
encenação, Alessandra foi até meio seca ao informar, pelo telefone, que o
quadro já fora devolvido à sua verdadeira dona. E que, numa segunda
observação, talvez eu o achasse fruto de um gurativismo obsoleto, embora
ela considerasse que o mau gosto também tinha o seu lugar na história da
arte.

E continuamos transando nas várias posições possíveis, mas não vou


narrar detalhadamente as nossas fodas para não me tornar enfadonho e
repetitivo. E também conversávamos, claro, sempre bebendo uísque e
fumando. Eu me considerava um privilegiado em ter como interlocutora
uma jovem mulher inteligente, bela e culta, meio exibicionista, mas
sempre surpreendente, como Alessandra. Posso dizer que o erotismo entre
nós vinha também disso.
Certa noite, Alessandra se mostrava particularmente distante, sentada só
de calcinha sobre o sofá, lendo um livro de Anaïs Nin — e eu adorava
observá-la assim, simplesmente lendo — enquanto eu apenas bebia,
vestido displicentemente e descalço, esperando o que desse e viesse, talvez
sairmos para jantar, quando, de repente, ela fechou o volume, pensativa, e
me disse, com uma voz aliciadora, como se acabasse de tirar uma ideia do
próprio livro:
“Meu bem, posso te propor uma coisa?”
“Claro, querida, o que você quiser.”
“Vá até a cama e deite-se de bruços, nu, e feche os olhos.”
Fiz o que ela ordenou, satisfeito, cheio de expectativas.
Foi quando, de repente, Alessandra mudou de tom para uma voz
autoritária, quase agressiva:
“Você gostou de me comer igual a uma puta, não? Agora vou lhe
mostrar quem é o verdadeiro puto.”
Dito isso, Alessandra deitou-se sobre mim, já sem calcinha, e começou a
roçar sua boceta em minha bunda, em movimentos ritmados que foram
aumentando de intensidade, enquanto ela gemia, arfante, sem nenhum
ngimento, uma coisa que eu aprendera a identi car desde minhas
trepadas com Simone. Eu estava gostando muito de agir como um puto e
gozamos os dois juntos, eu me esfregando contra a cama, mas totalmente
tomado pela boceta de Alessandra, que eu sentia com uma espécie de tato
inusitado. Depois tivemos os dois, deitados de costas, a sabedoria de não
comentar nada sobre o que acabara de acontecer.
Foi aí que levei um verdadeiro tapa de Alessandra, quando ela me disse,
apesar de tudo o que vínhamos vivendo, de todas as variações que já
havíamos vivido:
“Assim corremos o risco de nos entediar.”
“Mas como assim?”, falei, surpreso. “Não acredito.”
“Isso mesmo que você ouviu.”
“Mas eu não me entedio com você.”
O silêncio de Alessandra foi dos mais signi cativos e ela, depois de car
um tempo pensativa, me comunicou:
“E se experimentássemos algo novo?”
“Como assim?”
“Alguma pessoa nova, pode ser. Você não há de pensar que eu só tenho
você e meu marido.”
“Olha, meu amor, para mim está bom assim. E pre ro não pensar que
não sou su ciente.”
Alessandra se animou subitamente:
“Mas quem sabe convidamos alguém mais?”
Foi minha vez de car em silêncio. Foi quando caiu a cha para mim.
Até que abri o jogo e disse, também sondando:
“Você me basta, Alessandra. Mas se achar que uma outra mulher pode
enriquecer nossa relação, pode ser uma boa ideia, por que não?”

Conhecia Alessandra o su ciente para não me espantar com o sumiço


dela, logo após a nossa trepada não ortodoxa, tão signi cativa para mim,
com as roçadas em minha bunda. Tanto é que não conseguia tirar tal
trepada da minha cabeça. No entanto, resistia à tentação de ligar para ela,
pois uma outra coisa que eu aprendera é que não devia ser excessivo. Mas
nos víamos em minha casa, quando Alessandra ia visitar Simone. Ela se
mostrava gentil comigo, chegava a passar a mão na minha cabeça, além
dos beijinhos de praxe no rosto. Mas a maior parte do tempo se fechava no
quarto com Simone. De todo modo, dava para eu perceber que ela estava
jovial, alegre, feliz mesmo. Diplomaticamente, sondei Simone sobre o que
estaria acontecendo com a irmã. “São coisas boas na vida dela. Mas o fato é
que ela gosta mesmo de viver”, Simone disse, meio enigmática.
Confesso que essas tais coisas boas me deixaram enciumado, pois
estavam acontecendo sem mim. Além do mais, coincidiu com um tempo
em que eu fazia exames de saúde, que constataram que eu estava com
problemas mais ou menos sérios no coração e nos pulmões. O médico foi
claro o bastante para me advertir que se eu não mudasse de vida não
duraria muito tempo. Foi pior, porque quei muito ansioso e fumei e bebi
ainda mais. Os colegas devem se lembrar desse tempo em que me mostrei
excessivamente nervoso, o que não me impediu de iniciar um mestrado em
Direito e frequentar o escritório, onde fazia tediosos trabalhos de rotina. O
bálsamo e a esperança vieram com um telefonema de Alessandra, quando
eu menos esperava.
“Qué tal?”, ela falou e, mais uma vez, eu podia perceber sua inteligência
maliciosa, pois, entre outras coisas, ela tanto podia estar me perguntando,
em alguma língua latina, se estava tudo bem comigo, como propondo que
nos encontrássemos, ou ainda, muito sutilmente, me interrogando sobre o
nosso último encontro.
“Ah, tudo bem, querida, que tal se nos encontrássemos?”
Alessandra era gentil e diplomática, fazendo com que eu é que me
sentisse requisitado:
“Era justamente o que eu estava pensando. Depois de amanhã, sexta, às
seis horas, está bom para você?”
“Sim, está ótimo.”
Mas foi aí que se deu a grande surpresa:
“Posso levar um amigo?”, ela disse. “Gostaria de apresentá-lo a você.”
Eu esperava tudo menos isso, mas não tive como me furtar:
“Po…de”, gaguejei. “Se isso… te agrada.”

As pessoas a quem vamos ser apresentados nunca são como esperamos.


Mas, dessa vez, foi mais do que o habitual. O homem de seus vinte e oito,
trinta anos — uns dez a menos do que eu — que encontrei à minha porta
foi mais diferente do que eu supunha. Era negro, longilíneo e de uma
beleza que não me agredia. Com uma simpatia cativante. Seu nome era
Nicholas. Incomodou-me que ele fosse muito mais bonito do que eu.
Sentamo-nos no sofá e, enquanto eu e Alessandra nos servíamos de uma
garrafa de uísque que ela deixara em cima da mesa, junto com um balde e
pratos com salgadinhos (Nicholas não bebia), engrenamos um papo.
“Nicholas é bailarino e coreógrafo”, Alessandra falou.
Ele não tinha nenhum porte ou voz afeminado.
“Que bacana”, eu disse.
“Alessandra fala muito de você”, ele disse.
“Espero que bem”, eu falei, sentindo-me um idiota.
“Claro”, ele disse. “Contou-me que vocês se relacionam desde que ela
era pouco mais que uma criança. Seu primeiro amor. Acho bonito isso,
essas relações que duram toda uma vida.”
Isso despertou em mim o quanto eu estava apegado a Alessandra.
“Acho que vamos morrer juntos”, ela falou. Mas seu tom era meio
sarcástico.
“Posso apostar que sim”, Nicholas disse, e seu tom me pareceu um
pouco cético, mas nem um pouco agressivo, até gentil.
“Nicholas trouxe um vídeo para a gente ver.”
“Se não incomodar”, ele disse.
“Estou louca para ver”, Alessandra disse.
“Eu também gostaria muito”, falei, educadamente.
Quando Alessandra curvou-se para colocar o vídeo, suas pernas caram
à mostra e ela usava uma liga negra sobre uma meia de náilon. Isso fez o
meu desejo dar um salto. Sem demonstrar ser afetado por isso, Nicholas
falou:
“A música é uma partitura inédita encontrada entre os papéis de Quincy
Jones, por sua última mulher. Algo absolutamente fantástico, que vai
naturalmente do jazz à bossa nova e ao rap.”
Quando ela retornou ao sofá, nos sentamos da maneira que eu julgava
mais adequada. Alessandra entre nós dois. Mas o sofá não era longo, de
modo que Alessandra encostou suas pernas em mim, o que atiçou ainda
mais o meu desejo. Provavelmente se encostava também em Nicholas, mas
procurei não pensar nisso. Eu estava com muitas saudades dela. E quando
ela acionou o start, segurou a minha mão sobre o seu colo, o que me
deixou não só ligado, mas também muito feliz.
A música, fundindo gêneros, como dissera Nicholas, era maravilhosa e a
dança também. Nicholas era uma gura ao mesmo tempo máscula e
delicada e dançava com uma parceira linda, muito morena, com jeito de
caribenha. Eu podia apostar que era cubana. Não davam saltos ou piruetas,
mas eram de uma agilidade impressionante. Moviam-se pelo palco
sozinhos, mas passavam a impressão de que estavam num cabaré. A
iluminação batia em cheio neles dois, deixando o resto no escuro, como se
eles utuassem no espaço.
Depois o vídeo acabou, Alessandra e Nicholas aplaudiram e eu terminei
por imitá-los. Alessandra disse que fora uma das melhores danças que vira
em sua vida, e quem lhe dera poder dançar assim. Nicholas sabia ser gentil
e retrucou. “Você vive, querida, e a maneira como você vive é uma arte.
Para os sábios, essa é que é a grande arte.”
Mas a música emendara em outra, com outra bailarina, e era uma dança
de salão, um bolero bastante estilizado. Nicholas levantou-se, puxou
Alessandra pela mão e eles se puseram a dançar de uma forma muito
graciosa. Eu continuava bebendo e apreciando o espetáculo de beleza que
era assistir aos dois dançando, mas não estava preparado para o fato de eles
passarem junto de mim e Alessandra puxar-me pela mão. Ainda mais sendo
eu uma pessoa desajeitada como sou. Só deu tempo de apagar o cigarro e
depositar meu copo sobre a mesa.
“Não faça nada, deixe-se levar”, Nicholas disse. E, de fato, apesar de toda
a minha falta de jeito, senti-me não como um dançarino, mas como uma
pessoa leve, fraca, que era levada de um lado para o outro, ao som do
bolero. E achei normal ser conduzido até a cama larga, de tantas delícias,
onde Alessandra e Nicholas se jogaram.
Depois começaram a se despir, com naturalidade, e a se acariciar. E
enquanto tiravam a roupa, com delicadeza, Alessandra olhou para mim e
disse-me: “Lembra-se?”.
Eu só pude sorrir com ela, pois o que Alessandra representava era aquele
tempo em que vivíamos aquela nossa trinca na cama de Simone. E o mais
louco é que, enquanto era abraçada por Nicholas, olhou para mim e com
um sorriso e os olhos brilhando ela disse, comovida: “Eu te amo, Júlio,
amo desde sempre”. “Eu também”, falei, mas não estava preparado para
ser puxado por eles dois, que começaram a tirar com mãos muito hábeis as
minhas roupas. E vi à minha frente um homem nu que me acariciava.
Todos os meus anos de formação, do meu passado e até antes de nascer, se
zeram valer, pois acredito que as pessoas, sexualmente, já nascem prontas.
Levantei-me de um salto e disse: “Quem vocês pensam que eu sou?”. E
me vesti rápido e esgueirei-me para fora do apartamento.

Fiz ainda uma outra tentativa de encontrar-me com Alessandra e ela


concordou, séria, desde que fosse na rua. Sentamo-nos num bar e, depois
de alguns preâmbulos, ela disse, friamente, que o nosso caso já dera o que
tinha que dar. “E não adianta insistir”, falou. E ainda me acusou de
homofobia. Foi aí, companheiros, que mergulhei ainda mais
profundamente, se isso era possível, no álcool, depois do trabalho, e na
nicotina. No emprego eu era obviamente omisso e não pretendo aborrecer
os amigos com minúcias processuais. Mas merece menção o meu último
caso. Tentando esquecer Alessandra, continuei a trabalhar durante o dia.
Durante as noites, como vocês bem sabem, encontrava-me com vocês.
Minha saúde começou a deteriorar-se de nitivamente. Cirrose, en sema e
problemas coronarianos. Fora terríveis depressões.
Foi então que certos acontecimentos revolucionaram para sempre a
minha vida.
Eu ia ao escritório apenas de tarde. Como não con avam em mim,
apenas ngiam que me davam trabalho, me passando processos tanto civis
quanto criminais para ler. E eu, por minha vez, também só ngia que os
lia, mas aquelas palavras não faziam sentido para mim, como, aliás, nem a
própria sociedade. Eu me tornara um verdadeiro homem à margem de
tudo e de todos. Cheguei a acalentar a ideia de suicídio, mas fui salvo não
apenas pela convivência com vocês, meus amigos do , como também
porque a perspectiva de passar para a eternidade, o nada, se por um lado
era muito atraente, livrando-me de todos os sofrimentos, por outro lado,
enquanto eu ainda estava vivo, não importava que como um rebotalho
social, vivia intensamente as memórias dos grandes amores da minha vida.
Na verdade era um só amor, embora partilhado com duas mulheres. Eu
repetia e repetia, como se tivesse uma tela cinematográ ca em meu
interior, aqueles momentos grandiosos em que estivera deitado na cama
com Simone e Alessandra, não o sexo completo, mas a iminência dele. Eu
me considerava um privilegiado, pois vivera momentos de absoluta
felicidade. Aqueles momentos em suspenso, que depois foram se re etir
nas minhas fodas incendiárias com a Alessandra adulta. E bastavam essas
memórias para justi car minha vida.
Por outro lado, sem nenhuma certeza disso, eu acalentava aquela ideia
do eterno retorno nietzschiano, que coincidia com as teorias astronômicas
da explosão primeira do grande átomo de uma enorme densidade que foi
se expandindo até formar o imenso universo, para depois contrair-se até
voltar ao átomo primeiro, quando tudo se repetiria, tanto em Nietzsche
como no universo físico, e voltaria eu a passar de novo por aquelas
experiências, e eu gostava de estar ali, vivo, com a ajuda do álcool,
obviamente, antecipando a repetição daqueles acontecimentos. E pensava,
também, sonhadoramente, como agora transmito a vocês, companheiros,
que tinha quase certeza de que já passara por tudo aquilo em vidas
anteriores, e o real motivo de eu ter me aproximado de Simone fora a
minha amada Alessandra. E não sei se era bem por isso, mas às vezes,
misteriosamente, sem que houvesse intenção de minha parte, sentia uma
possibilidade de Deus existir dentro de mim e que eu devia cumprir seus
desígnios. E quem sabe, meus amigos, isso também não encherá de alegria
os seus corações?
E passou-se uma outra experiência das mais signi cativas, um desfecho,
uma chave de ouro para minha vida amorosa — pois não vejo como o sexo
não possa assim ser considerado. Continuava a trabalhar no escritório,
evidentemente só porque meu pai era o sócio majoritário. O doutor
Armando me isolou numa sala e só me passava os serviços mais prosaicos,
como redigitar petições e defesas com erros de português, pois o meu
domínio da língua ainda resistia, assim como minha capacidade de
articular-me, como vocês podem ver por este próprio relatório.
Mas o acaso contribuiu sobremaneira para que esse último episódio
pudesse acontecer. A seção penal de nosso escritório defendia, por sua
própria natureza, os clientes mais ricos, inclusive atropeladores (homicídios
culposos) e assassinos em legítima defesa de “sua honra”. Estávamos com
um desses últimos casos, em que um empresário assassinara a esposa.
Quem iria representar o acusado seria naturalmente o doutor Armando ou
meu pai. Mas meu pai já estava no início da doença que acabou por levá-
lo. O doutor Armando andava ocupado com uma questão de direito
comercial que envolvia mais de trezentos milhões de reais e, já com uma
idade um pouco avançada, precisava de um assistente com toda a agilidade
mental para discutir cifras astronômicas, por isso contava com a
colaboração de um jovem advogado muito promissor que se unira a nós.
Restava então eu. Como era um caso que ganháramos em primeira
instância, a segunda instância já era considerada no papo. Vou narrar
brevemente esse caso, sem a pompa da linguagem jurídica, para não
aborrecer os colegas.

Nosso cliente era um milionário viúvo, de cinquenta e cinco anos, que


se casara com uma bela mulher de vinte, Catarina. Não se pode dizer que
ela casou por interesse, pois fez questão de continuar com o seu trabalho
de vitrinista, do qual tirava grande prazer, segundo as amigas que
testemunharam no julgamento a seu favor. Mas o marido, Eduardo, um
homem viajado e poliglota, a interessou desde o primeiro encontro numa
festa, quando ela o achou cativante, para o que contribuía sua experiência
de vida. E passaram uma lua de mel maravilhosa em países exóticos da
Ásia. Viver com Eduardo era uma aventura para Catarina. Quanto ao
futuro, ela simplesmente não pensava nisso.
Mas chegou aquele momento em que os noivos tiveram de cair na real.
Eduardo tinha de voltar aos seus negócios, e Catarina se entediaria se não
voltasse a trabalhar. Jovem saudável como era, não sentia culpa de transar,
esporadicamente, com amigos e ex-namorados. Achava isso até saudável
para o seu casamento, o que de fato era, conforme disseram suas
con dentes.
Eduardo, por sua vez, era inteligente e maduro o su ciente para não
tentar aprisionar a mulher dentro de casa. E até gostava de ouvi-la falar
sobre as vitrines que adornava com o capricho de uma artista plástica.
Eduardo gostava de arte e admirava a mulher, inclusive por sua autonomia
nanceira e pro ssional, que deixava claro que ela não se casara com ele
por dinheiro.
Quanto aos amigos com quem transava, ela não via motivos para
confessar isso ao marido, pois não tinha sentimentos de culpa nem vontade
de feri-lo. E chegava a convidar os amigos para saírem com eles e até para
irem à sua casa. Dançava com eles, os beijava quando chegavam e saíam,
um pouco mais próximo dos lábios do que Eduardo gostaria. Mas ele
segurava o ciúme, pois não queria estragar seu casamento.
Foi quando Catarina conheceu um bailarino, após assistir a um
espetáculo dele. Gostou tanto que fez questão de ir cumprimentá-lo nos
bastidores. Eduardo viu a esposa como que desfalecer nos braços do
dançarino e teve um mau pressentimento. Conforme declarou no
Tribunal, sentiu uma descon ança à primeira vista, mas conteve-se e
tentou pensar que aquilo seria um arroubo passageiro, que ngiria não ver,
pois mais importante que tudo era não perder Catarina.
Só que ele foi percebendo que a mulher passava cada vez mais tempo
fora de casa e também chegava com mais frequência tarde da noite. Até
que um dia, não aguentando mais, Eduardo resolveu interpelá-la e ela
achou que era uma boa oportunidade de pôr a coisa em pratos limpos, pois
estava a m de se separar. E foi franca com ele. “Olha, querido, estou
gostando de outra pessoa.”
Foi um choque forte demais para Eduardo, que começou a chorar e
depois implorou à mulher que não o deixasse, pois estava disposto a aceitar
tudo. Entendia que ela era uma mulher muito mais jovem e tinha
necessidade de ter relacionamentos com pessoas também mais jovens, sair
para dançar, divertir-se, en m. E que ele estava disposto a esperar que essa
fase passasse, pois aceitaria dividi-la, desde que ela não o abandonasse.
Mas Catarina feriu-o fundamente quando falou que, como mulher, não
conseguia mais manter relações com um homem que não amava. Ele
engoliu sua dor e aceitava que dormissem em quartos separados, apenas
pedia que ela o deixasse vê-la, às vezes, trocando de roupa, mas que não
fosse embora, sua alegria de velho era tê-la em casa. Catarina disse a ele
que aceitava, enquanto pensava no que fazer.
Tudo isso foi argumento da defesa de Eduardo, que foi bem-sucedida,
pois ele foi absolvido pelos jurados, por unanimidade, que aceitaram todas
essas atenuantes. Mas o que os levou mesmo a absolvê-lo foi o fato que
realmente fez Eduardo perder a cabeça.
Seus negócios o levavam a viajar, e foi justamente numa ida dele a
Buenos Aires que se deu o desenlace. Era para ele voltar só no dia
seguinte, mas car fora do país o deprimia e teve saudade de sua casa e de
sua mulher. E, nanceiramente, para ele não havia problema em fretar um
jatinho. Disse em seu testemunho que a aproximação das luzes do Rio o
emocionou e que trazia consigo um colar de brilhantes.
O que Eduardo não podia esperar é que, dando a liberdade que dava a
Catarina, ela fosse fazer com ele o que fez. Ao subir as escadas, viu a porta
do seu quarto aberta. Viu a luz acesa e, ao entrar no quarto, se deparou
com a cena que o chocou profundamente. Na cama de casal que até
algum tempo antes dividia com a mulher, Catarina dormia, de lado, e
enlaçando-a pelas costas um jovem negro. Ali havia amor, sem a menor
dúvida.
Os seres humanos são contraditórios em seus sentimentos. Ao mesmo
tempo que Eduardo se sentia profundamente ferido, havia um outro lado
seu — de um homem vasto, ou mesmo um artista, que ele poderia ter se
tornado — que achou bonita e singela aquela cena e, por mais louco que
pudesse parecer, sentiu-se parte dela. Ficou por longo tempo
contemplando tal cena, como se fosse um pecado desmanchá-la. Mas
alguma força em seu olhar, ou algum barulho que fez, deve ter despertado
o jovem negro, que abriu os olhos e xou-o. Mas não deu um pulo da
cama, como se poderia esperar de um homem comum. Ao contrário,
ergueu-se calmamente, sentou-se na cama, cobriu Catarina
carinhosamente com um lençol, levantou-se e veio cumprimentar
Eduardo com a mão estendida. “Muito prazer, Nicholas” — resolvi só
revelar seu nome aqui, companheiros, para melhor entretê-los com uma
surpresa. Eduardo estava tão perplexo que cumprimentou-o de volta e não
pôde deixar de reconhecer, como no teatro, que o rival era um jovem
esguio e bonito. Só depois saiu do quarto e foi sentar-se numa poltrona em
seu escritório.
Ali, Eduardo pôs-se a meditar, sua mente vagando por muitas trilhas e
bifurcações possíveis. Na cena que acabara de ver havia amor, sem dúvida.
E um lado seu ansiava — e em parte conseguia — ser uma terceira gura
naquele ato e conceder liberdade completa à esposa, e viver dignamente
uma solidão, preenchida com uma nobreza afetiva que era amar de
verdade sua esposa e deixá-la viver uma felicidade que seria também sua.
Já outro lado seu, que às vezes prevalecia, sentia um ódio profundo
contra aquele amor clandestino da mulher e — pensamento que não
queria assumir — ainda mais por um negro. Tinha um revólver guardado
num cofre e pensou se não era o caso de pegá-lo, ir até o quarto e matar os
dois.
Sua re exão levou tempo su ciente para que Nicholas fosse embora,
como foi informado por Catarina, que veio até o escritório e, sem dizer
uma só palavra, sentou-se em seu colo, enlaçou-o pelo pescoço e disse
primeiramente “obrigada”, ao que ele não respondeu. E depois: “Tenho
uma coisa para lhe contar”.
“Já sei”, ele disse: “Está apaixonada pelo rapaz e quer ir embora.”
“Não é apenas isso, querido. É que estou grávida dele.”
A princípio, Eduardo cou mudo. Mas agora a mágoa tomava
inteiramente conta dele. Algumas vezes propusera a Catarina terem um
lho. Não apenas porque desejava um herdeiro, mas também porque seria
uma forma de ter Catarina para sempre, mesmo que ela o abandonasse. Se
fosse uma menina, então… Sentiu-se verdadeiramente magoado e
cruelmente traído. Disse à esposa: “Meus parabéns”, com uma ironia que
era puro e cruel ressentimento.
Eduardo deu um beijo frio na face da mulher e disse, tentando
aparentar a maior calma possível: “Você pode ir dormir, querida. Confesso
que estou perplexo e preciso re etir sozinho”.
Mas no fundo já tinha uma decisão tomada. Dessa vez ela fora longe
demais, como se ele fosse um nada. Ficou assim por mais ou menos uma
hora, com pensamentos enlouquecidos na cabeça. Depois levantou-se, foi
até o cofre, abriu-o, pegou o revólver e nem veri cou se estava carregado.
Quando foi até o seu quarto, no qual surpreendera Catarina com o
amante, não sabia ainda se ia matar a mulher e nem mesmo se ela
continuava deitada ali. Por sua cabeça também passava uma ideia, ainda
obscura, de suicidar-se naquela cama em que passara momentos tão felizes.
Mas Catarina estava deitada lá, agora completamente nua e
profundamente adormecida. Ele pensou que talvez ela até estivesse
esperando para transar com ele, para que ele a perdoasse por tê-lo
envergonhado tanto. E se viu mesmo excitado com a mulher linda e nua
na cama. Chegou, como declarou, a tirar sua própria roupa para ter
relações com ela. Para poder despir-se, tivera de deixar o revólver sobre a
cama. Isso voltou a dar-lhe a ideia de matá-la ou suicidar-se, ou ambos.
Então pegou a arma, olhou-a, sem nem saber se estava carregada e, ao
apontá-la para a mulher, passou por sua cabeça o sentimento de que aquilo
era um pênis ereto, como o seu estava de fato. E, num gesto que declarou
ser irracional, puxou o gatilho, como numa roleta-russa. Pois, caso a arma
estivesse descarregada, tudo não passaria de um gesto simbólico que o
aliviaria da dor em sua alma. E o estrondo do tiro que ouviu o assustou,
ainda mais quando viu a mancha vermelha espraiar-se nas costas de
Catarina, na altura do coração.
Eduardo chegou até Catarina, sentou-se na cama e virou a mulher, para
auscultar seu coração. Mas este não mais batia e também os olhos de
Catarina estavam meio abertos e esgazeados, mortos. Então Eduardo não
teve dúvidas: apontou a arma para a própria cabeça e atirou. Só que, dessa
vez, não havia bala na agulha. Considerou, então, que o seu destino não
era morrer. Em mais um gesto tresloucado, deitou-se nu, na cama, ao lado
da mulher e, com o amor dos loucos, colocou o colar de diamantes no
pescoço da defunta. E, depois, nalmente, disparou outra vez o revólver,
que dessa vez estava carregado.
A bala penetrou na face lateral de seu crânio mas não chegou a matá-lo,
e ele caiu sobre a cama, desfalecido. E foi assim, com ambos os corpos
inertes e nus, abraçados, o que fez a delícia dos sádicos das páginas policiais
dos jornais e dos blogs e sites da internet, que a polícia, chamada por uma
das empregadas da casa, que ouvira os disparos, os encontrou.
Agonizante, Eduardo foi levado ao hospital, onde cou em coma por
uns dez dias. Ao acordar, só se lembrava vagamente do que acontecera e foi
preciso que o seu psiquiatra fosse lhe contando aos poucos o que ele zera.
Eduardo cou desesperado e não se conformava em estar vivo. Seu
psiquiatra internou-o numa clínica, onde o sedava a maior parte do tempo
para, nos intervalos, cada vez maiores, tratá-lo com psicoterapia. Foi um
trabalho insano para que o médico lhe devolvesse, se não o gosto, pelo
menos o direito à vida. E, sempre aos poucos, o fez entender que Catarina
fora também responsável por sua morte ao provocá-lo, de uma forma que
ninguém, nem homem nem mulher, aguentaria. Ainda assim, aquela
morte foi uma espécie de acidente, pois Eduardo, como já disse, nem sabia
que a arma estava carregada. Mesmo assim, não seria nem para ele estar
aqui no mundo, já que tentara acompanhar a mulher na morte, o que foi,
podem acreditar, um ato de amor. E só uma circunstância fortuita fez ele
não morrer de fato, já que suas mãos tremiam.
A peça de defesa do jovem advogado, que coincidia em muitos pontos
com a peça de acusação, era uma obra de arte, sem dúvida. A defesa do
meu colega fora brilhante porque factual, objetiva, sem o blá-blá-blá tão
comum ao jargão bacharelesco, e nosso cliente foi absolvido. Assisti ao
julgamento na primeira instância do Tribunal do Júri e posso revelar que
Eduardo, o réu, chorava copiosamente e houve até duas mulheres, entre os
jurados, que enxugaram suas lágrimas com lencinhos.

Eduardo foi absolvido, mas a promotoria recorreu e foi marcado um


novo julgamento. Quando o meu colega, Afonso, foi auxiliar o doutor
Armando na causa comercial que envolvia milhões, fui chamado para
substituí-lo, com a recomendação de que me limitasse a repetir a peça de
defesa de meu colega. Também eu, apesar da natural emulação com o
jovem doutor Afonso, tive de reconhecer que fora uma bela peça de
retórica. Parecia até o fragmento de uma boa e objetiva cção, que eu
tinha ali diante de mim, impressa. O que restava então para eu fazer? Só
mesmo repetir diante do júri aquela defesa, que a absolvição de Eduardo
estaria garantida. Para isso nosso escritório fora regiamente pago e bastava
continuar cumprindo a ética própria da advocacia. E ler de novo aquela
peça de defesa.
Mas não. Tendo nas mãos o retrato de Catarina nua, que fora distribuído
para o novo corpo de jurados, entregue e bela na morte como fora em vida,
não pude deixar de pensar em Alessandra, ainda mais porque Nicholas, por
quem eu sempre sentira certa admiração e atração, fora pivô do crime. Não
pude até deixar de pensar no sexo feminino como um todo. E o que saiu
espontaneamente de minha boca, sem que eu nem precisasse re etir, foi
uma peça que caria muito melhor na boca do promotor, que zera sua
acusação sem nenhum brilho ou convicção. Eu podia até pensar que ele
fora pago e instruído por Eduardo e sua família.
Eu falei, então, brevemente, que toda aquela peça de defesa não passava
de uma retórica que caria melhor num romance. E que devíamos fazer
justiça, sim, à morta e a todas as mulheres, sempre oprimidas pelos
homens. E que uma moça como Catarina (e secretamente eu pensava em
Alessandra) era uma amostra da generosidade que as mulheres podiam
oferecer aos homens e mesmo a outras mulheres, e que o amor que elas
sentiam era inseparável de sua liberdade, como aliás todo amor verdadeiro.
E o fato de Catarina ter sido surpreendida nua na cama do acusado,
abraçada por seu amado Nicholas, era a amostra de certa inocência,
pureza, da vítima, e que não havia nada de mais em seu ato. Ela fora
acometida de um desejo repentino que abrangia também Eduardo, e não
quis ofendê-lo com o seu ato de amor a Nicholas, pois achava que o
marido estava viajando. Pode-se dizer que o amor e o desejo são algo
difuso, que abrange todo o espectro humano. E quando Catarina
permaneceu nua e sozinha na cama do acusado, era uma amostra de que o
incluía também em seu afeto, de que era capaz de amá-lo mesmo depois
que estavam separados e de que vivia ela um grande caso de amor.
Por circunstâncias da vida, este que vos fala conhece Nicholas, um
artista, coreógrafo e dançarino, de uma beleza negra capaz de seduzir
mulheres e homens. E não devemos esquecer que ela estava grávida dele, e
podemos imaginar que tipo de ser nasceria, uma moça destinada a seguir a
mãe, um ser gerado do encontro deles.
E eu disse que os senhores jurados não podiam esquecer que aquela não
fora apenas a morte de um ser, mas de dois, já que Catarina estava grávida
de uma menina, e que essa menina já nasceria num ambiente de liberdade
e amor absolutos. E o criminoso, e não podemos chamá-lo de outro modo,
já estava a par da gravidez de sua ex-mulher, pois ele mesmo confessou que
isso o ferira ainda mais, porque sempre desejara ter um lho com Catarina.
E agora vinha ela com essa gravidez, de um negro — não conseguiu
esconder o seu racismo —, e isso ele não pôde suportar. Alegou que o seu
ato mortal fora fruto de forte comoção e de um estado alterado de
consciência. Mas se levarmos isso em consideração, estaremos absolvendo
todos os autores de feminicídios. Ao mesmo tempo, com sua declaração,
ele mostrou claramente que sabia que estava matando não apenas um, mas
dois seres humanos. E, se os senhores jurados o absolvessem, estariam
absolvendo todos os crimes nefandos contra as mulheres que acontecem
diariamente neste país.
Sei muito bem que o meu papel, dentro de um direito cego, seria o de
defender o acusado, como fez o meu colega, diga-se de passagem com
muito brilho. Mas fui acometido, aqui mesmo dentro desta sala, quando
ouvia o promotor tentar condenar Eduardo com uma argumentação
medíocre — e eu diria que até sem convicção —, por uma espécie de
iluminação que me fez ver que não podemos deixar impune esse crime,
pois seria um retrocesso nas conquistas sociais e existenciais dos últimos
tempos. É o que tenho a dizer.
Pelo burburinho na sala eu podia ver que minha pretensa defesa causara
espanto. E os cochichos dos jurados já me davam um sinal de sua decisão,
que seria de considerar Eduardo culpado.

Aquilo que, para uma moral de vida, seria considerado louvável, foi
condenado pelos juristas e advogados, com sua moral de classe e sua ética
muito particular, que havia muito tempo, secretamente, eu desprezava,
pois considero a advocacia uma espécie de prostituição engravatada.
Houve um murmúrio no recinto e dava para ver que as posições se
dividiam, sendo que os familiares de Catarina vieram me cumprimentar
efusivamente, embora a minha defesa fosse considerada por muitos como
uma traição a meu constituinte. Eu mesmo me sentia culpado diante de
meu colega, que funcionara admiravelmente na defesa de nosso cliente, e
também pensava em meu pai hospitalizado em estado grave e no doutor
Armando, cuja con ança eu traíra miseravelmente. Para não falar nos
familiares de Eduardo.
No entanto, dois acontecimentos me levaram a sentir-me mais seguro e
até grati cado. O primeiro deles foi uma surpresa que chegava a ser
inacreditável. Antes que eu pudesse escapar dali para re etir em paz em
algum bar do meu gosto, fui abordado por um funcionário do Tribunal,
que me disse que a juíza sacramentara a condenação e rogava que eu fosse
vê-la.
Não podia deixar de aceitar aquele convite e acompanhei o funcionário
até a ampla sala da juíza, com seus móveis muito confortáveis.
A doutora me deu dois beijos no rosto, o que me deixou à vontade desde
logo, ainda mais que ela trancou a porta. E fez com que eu me sentasse
num sofá de couro muito macio e perguntou se eu tomaria um uísque com
ela. Não hesitei em aceitar, porque estava gostando daquela mulher de seus
quarenta e tantos anos, com seus óculos grossos e sua toga, e uma bebida
era tudo o que eu precisava para relaxar, depois das emoções do
julgamento. Sentei-me onde ela me indicou, ela mesmo me serviu de
uísque com gelo, preparou uma dose para si e veio sentar-se ao meu lado,
nossas pernas se encostando.
Desde que terminara a relação com Alessandra eu não tivera mais
ninguém, e aquela proximidade com a doutora Matilde me excitou
imediatamente. E o fato de ela ser uma juíza, representar autoridade, me
levara a desejar comê-la, foder a autoridade. E alguma coisa nela,
curiosamente, zera-me lembrar da mãe de Simone e Alessandra, que
sempre, secretamente, eu desejara comer, num tesão que abarcava a
família inteira.
“Gostaria de cumprimentá-lo”, ela disse, “por sua atuação no
julgamento.” E não pude deixar de notar que a doutora Matilde era uma
dessas pessoas que tocam o interlocutor para falar com ele, ou pelo menos
estava sendo assim comigo. Só que, além de tocar-me no corpo, ela
encostava em meus joelhos.
“Foi espontâneo”, eu disse, “aconteceu na hora. Eu não preparei nada.
Quero lhe dizer que aquela postura de macho arrependido traído de
Eduardo me irritou. E ainda lembrei de outra pessoa dos meus afetos e, de
algum modo, pensei nela ao fazer minha defesa, quer dizer, acusação”, eu
ri.
A doutora Matilde deu uma sonora risada.
“Não precisa pedir desculpas, querido”, e a doutora Matilde deixou sua
mão cada vez mais próxima do meu pau, por cima da minha calça, como
se fosse a festinha que se faz num amigo. “Na minha opinião, você é um
daqueles poucos advogados capazes de trair as práticas judiciárias para se
colocar ao lado da verdadeira justiça, ao lado das mulheres vítimas de
assédio e feminicídio, cada vez em maior número neste país. Posso?”
Entendi que o seu pedido se ligava ao fato de ela ter desabotoado os
botões da minha calça e segurado com toda a gentileza o meu pau. Eu
estava encantado.
“Por favor, doutora.”
“Mas antes de fazer uma outra coisa, devo explicar-lhe algo muito
importante, está bem?”
“Claro.”
“Não transo com homens, pois gosto das mulheres. Mas creio que até
minha companheira entenderá o que vou fazer, embora eu nem pense em
contar a ela. Não vou trepar com você, pois isso seria forçar o meu corpo.
Mas posso chupar o seu pau, se você não se importar. É um modo de
render-me à sua atuação tão sensível no julgamento e recompensá-lo por
isso.”
Ela já estava com o meu pau em sua boca e abrira apenas a blusa, como
a mostrar-me que era uma mulher. E levantara a saia para masturbar-se. O
fato de ela ser uma juíza sem dúvida aumentava o meu tesão, aumentava
muito. Era como se eu me rebelasse contra todos aqueles anos exercendo a
advocacia, contrariando os códigos. Era como se eu fodesse a própria
justiça, tão hipócrita neste país. E eu mal podia grunhir:
“Você me mata, doutora Matilde.”
“Sim, vou acabar com você”, ela falou e riu, também grunhindo por
causa da sua boca cheia. E foi desse modo que ainda disse: “Pode gozar na
minha boca”.
E foi o que não demorei a fazer, porque o meu tesão era forte demais. E
quando o meu pau já amolecia, mas ainda em sua boca, o que era uma
sensação deliciosa, ainda de poder, a doutora Matilde gozava com as mãos
até chegar a um clímax tão intenso que teve de pegar uma almofada para
abafar seus gritos.
Depois nos recompusemos rapidamente, pois a doutora Matilde ainda
tinha obrigações a cumprir. Levou-me até a porta e, dessa vez,
cumprimentou-me estendendo a mão, como se voltasse à solenidade do
seu cargo. E disse:
“Não vamos nos explicar mais, certo? Nossos gestos já expressaram
tudo.”
“Certo”, eu disse. “A senhora tem toda a razão.”

Ao escritório eu só voltei usando minha própria chave, cedo pela manhã.


Sabia que não tinha mais a menor condição de continuar trabalhando lá.
Fui pegar na minha gaveta alguns papéis e escritos que me interessavam,
inclusive este relatório aqui, pois sempre aproveitei o meu folgado
expediente para escrevê-lo.
Achei natural que Alessandra me telefonasse. Tinha certeza de que ela
se orgulharia de mim. Sabia que não dava mais para retomarmos a nossa
relação, mas achava, e tenho certeza de que ela também achava, uma boa
ideia que estreitássemos nossa amizade. Marcamos um encontro durante a
tarde num bar muito acolhedor, e não me surpreendeu que ela viesse em
companhia de Nicholas. Mas me surpreendeu que eles se comportassem
como namorados apaixonados, de mãos dadas e trocando beijinhos.
Também percebi que ela não estava fumando nem bebendo. Ao notar que
eu observava a aliança em seu anular esquerdo, ela me disse, sorridente:
“Sim, nós nos casamos.”
Dei-lhes os meus parabéns e disse, também sorrindo:
“Ambos zeram uma boa escolha.”
“E tem mais”, ela falou: “Estou grávida, vai ser uma menina. Vai se
chamar Manoela.”
“Ora, vejam só”, não consegui me conter. Ela voltou a falar e também
Nicholas me dava a mão.
“Isso tornou ainda mais signi cativa a sua atuação no tribunal.”
Alessandra sempre fora muito inteligente e tive certeza de que entendera
que, quando acusei o assassino e defendi a vítima, pensava também nela.
“Sim, pensei também em você.”
Olhei para Nicholas, receoso de que ele demonstrasse algum ciúme,
mas não, pelo contrário. Por alguns segundos apertou mais a minha mão, e
Alessandra arrematou:
“Nunca esquecerei de você, principalmente naqueles primeiros tempos.”
“Eu também”, eu disse. Estava muito feliz, e nós três, sem que
precisássemos de palavras, sabíamos que não deveríamos prolongar nosso
encontro. Aquele era um arremate perfeito para o nosso amor. E não
queria estragar isso contando sobre minhas doenças e minha internação.
Então disse apenas:
“Vocês podem ir quando quiserem. Vou car mais um pouco e faço
questão de pagar a conta. Em homenagem a Manoela”, e levantei um
brinde, que eles retribuíram com seus copos de suco.
Olhei para eles se afastando e entrando num carro velhíssimo e cheio de
poeira. Perfeito para Nicholas. Pedi mais um uísque e acionei o mecanismo
que injetava mor na em meu corpo. A droga logo fez efeito e pensei: a
vida também pode ser perfeita. Entre as coisas que me alegravam,
ironicamente, estava o fato de saber que este depoimento só será lido por
vocês quando eu não estiver mais aqui. Mas quem sabe não estarei
embarcando numa nova aventura? Desencarnar me dava uma espécie de
euforia e havia ainda a possibilidade de eu encarnar de novo. Mas também
o nada absoluto me seduz. E não posso negar que a mor na ajudava.
Mas me liei aqui aos para ter a companhia de meus pares e não
liquidar antes do tempo a minha existência. E era fundamental para mim
contar a minha trajetória, que entrego a vocês, meus pares, certo de que ela
vos enriquecerá de algum modo. Escrevê-la é como viver duplamente e, se
há alguns momentos mais difíceis, o principal é repetir aqui mesmo, nesta
vida, o meu momento inicial de paixão por Alessandra, na companhia de
Simone. Viver mais do que duplamente, se a teoria de Nietzsche e dos
astrônomos estiver correta. Mas, por via das dúvidas, garanto aqui mesmo
essa duplicidade.
Para terminar, não posso conter o júbilo, do lugar em que me
encontro — nem que sejam o túmulo e as minhas cinzas —, de saber que
estas palavras terão a sua vida própria, pois os autorizo a mostrá-las onde
quiserem, mesmo fora dos limites desta confraria. Isso é tudo.
’ nasceu no Rio de Janeiro, em 1941. Iniciou sua carreira
como escritor em 1969, com o livro de contos O sobrevivente, e, desde então,
publicou mais de vinte livros — entre eles, os premiados O concerto de João
Gilberto no Rio de Janeiro, Um crime delicado, Amazona, O voo da madrugada,
O homem-mulher e Anjo noturno. Sua obra foi traduzida para o alemão, italiano,
francês, tcheco, espanhol e hebraico, além de adaptada para o cinema e o
teatro. Morreu em 2020.
Copyright © 2021 by herdeiros de Sérgio Sant’Anna

A editora agradece a colaboração de Rodrigo Teixeira.

Gra a atualizada segundo o Acordo Ortográ co da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor
no Brasil em 2009.

Capa
Rita da Costa Aguiar

Foto de capa
Bruna Prado

Preparação
Heloisa Jahn

Revisão
Camila Saraiva
Luciane H. Gomide

Versão digital
Rafael Alt

978-65-5782-308-8

Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da cção; não se referem a
pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles.

Todos os direitos desta edição reservados à


. .
Rua Bandeira Paulista, , cj.
- —São Paulo —
Telefone: ( ) -
www.companhiadasletras.com.br
www.blogdacompanhia.com.br
facebook.com/companhiadasletras
instagram.com/companhiadasletras
twitter.com/cialetras

Você também pode gostar