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Capa
Folha de rosto
Sumário
Apresentação
Anticonto
O pregador
A lha de Drácula
A aparição
Por que escrevo?
O bordel
Tarzan e o império perdido
Vejo
Um conto quase mínimo
Le bateau ivre
A moça de óculos
Em preto e branco
Eterno
Escrito num guardanapo
Noites
Das memórias de uma trave de futebol em 1955
A dama de branco
Carta marcada
Sobre o autor
Créditos
Apresentação
“Às vezes, penso que a dama de branco é a própria morte. Sei que isso é
um modo de prendê-la e logo me penitencio e sei que em outro momento
pensarei outra coisa. A morte não passa de uma obsessão minha.” Essas
palavras estão na narrativa que dá título a este livro — a última que Sérgio
Sant’Anna publicou em vida, dez dias antes de morrer.
Nos últimos anos, com problemas de saúde e sentindo a idade chegar,
Sérgio não escondia uma certa obsessão pela morte. Contudo, a pandemia
deu contornos mais agudos e concretos a essa obsessão e acirrou ainda mais
sua urgência criativa. Em abril de 2020, ele escreveu em seu per l numa
rede social: “Não quero assustar ninguém, mas acho a peste que nos assola
simplesmente aterrorizante. Não encontro outro modo de reagir senão
escrevendo”. No mês seguinte, a peste que nos assola interrompeu a vida e
a obra de um escritor obcecado pelo seu ofício e que, depois de meio
século de carreira, continuava em pleno domínio de seus poderes
criadores.
Numa fase da vida em que muitos artistas se aposentam ou se tornam
pastiches de si mesmos, Sérgio Sant’Anna continuava produzindo com
regularidade e qualidade assombrosas — nada menos que cinco títulos em
menos de dez anos, o último dos quais O anjo noturno, publicado em
2017. Em seus livros mais recentes, evitava chamar o que escrevia de
“contos”, preferindo o termo “narrativas”, que segundo ele permitia “mais
liberdade de temas, abordagens, tamanhos. Textos de cinquenta páginas ou
de página e meia”.
Este livro reúne todas as narrativas publicadas por Sérgio Sant’Anna
depois de O anjo noturno — onze textos que apareceram em jornais,
revistas e sites entre outubro de 2018 e maio de 2020. É importante dizer
que todas as narrativas que ele publicou na imprensa (e mais tarde na
internet) desde meados da década de 1970 foram depois incluídas em seus
livros, praticamente sem mudanças em relação à versão original. Assim,
tudo indica que esses onze textos seriam incorporados por Sérgio ao seu
próximo livro.
Mas se é verdade que todas as narrativas publicadas na imprensa
acabavam incluídas em seus livros, também é verdade que neles havia
sempre muito material inédito; com este livro, não foi diferente. Depois da
morte de Sérgio, foram encontrados em seu computador diversos arquivos
com textos inéditos. Alguns deles estavam visivelmente incompletos,
contendo apenas rascunhos e anotações; outros estavam claramente
concluídos (por exemplo, a expressão “ nal” constava no título do
arquivo). Outros, ainda, pareciam a meio caminho entre um esboço e um
trabalho terminado. Ao organizar este livro, decidi incluir os textos com
marcas de nalização e também os que me pareceram ter unidade e
qualidade su cientes para atender aos rigorosos padrões do autor. Assim,
foram acrescentadas mais seis narrativas inéditas, num total de dezessete
textos que formam a primeira parte deste livro.
A segunda parte deste livro é a novela inacabada “Carta marcada”, que
merece um comentário especial. Sérgio Sant’Anna trabalhou
extensamente nessa narrativa: em outubro de 2019, ele me disse que estava
escrevendo “uma novelinha”; em abril de 2020, poucas semanas antes de
morrer, disse que tinha terminado a novela, “ainda sujeita a revisões”, e
contou que já tinha até vendido os direitos de adaptação para o cinema. A
versão mais recente encontrada em seu computador mostra que, de fato,
Sérgio ainda pretendia fazer algumas revisões, como provam diversas
anotações e comentários em negrito inseridos ao longo do arquivo. Além
disso, há algumas inconsistências no texto, em particular uma nítida
clivagem entre o terço inicial e os dois terços nais da novela. A narrativa
começa na Belo Horizonte do nal da década de 1960 e faz referência a
questões próprias daquela época, como a ditadura militar; mais adiante, a
história passa abruptamente para o Rio de Janeiro dos dias de hoje, com
elementos contemporâneos como celulares, aplicativos etc. Os
personagens são os mesmos, mas não há qualquer sinal de que tenham
envelhecido, nem indicação alguma de passagem do tempo. Esse cavalo de
pau narrativo sem maiores explicações provavelmente não surpreenderia o
leitor se aparecesse numa novela de César Aira (escritor argentino que o
autor admirava e que traduziu dois de seus livros para o espanhol), mas é
algo um tanto inusitado em se tratando da obra de Sérgio Sant’Anna. É
muito provável que, numa revisão nal, ele removesse essas
inconsistências. De qualquer forma, está claro que Sérgio tinha muito
apreço pela novela e considerava que todos os seus elementos básicos já
estavam presentes. Assim, diante da escolha entre não publicar o texto
inacabado ou publicá-lo mesmo com suas eventuais imperfeições, optou-se
pela segunda alternativa, no entendimento de que tais imperfeições são
bem menores que os seus méritos.
Como é fácil notar, há muitos temas e ideias recorrentes neste livro: a
insigni cância do homem diante do universo, a devoção pela arte e pelos
grandes artistas conceituais como Marcel Duchamp e Erik Satie, a paixão
pelo futebol, as jornadas pelo imenso continente da memória, o sexo
naquilo que ele tem de mais cru e de mais sublime, a angústia diante da
morte. São temas e ideias que atravessam toda a obra de Sérgio e, nesse
sentido, este livro pode ser entendido como uma espécie de suma ou
síntese nal daquilo que o fascinava e o impelia a escrever. Em outras
palavras, o que o leitor encontrará aqui é uma gura central e
incontornável da literatura brasileira revisitando suas principais
obsessões — e, infelizmente para nós, pela última vez.
Em uma das últimas postagens em seu per l numa rede social, Sérgio
sentenciava: “O Brasil é um lme de terror”. Nesse lme, os mortos na
pandemia do coronavírus contam-se em centenas de milhares, e entre eles
um dos maiores escritores brasileiros — que, numa das narrativas deste
livro, escreveu: “uma esperança insensata me faz querer crer que depois da
morte prosseguirei nesse sonho, embora saiba que o sentimento do amor só
pode ser tão intenso e urgente porque temos a certeza de morrer um dia”.
Gustavo Pacheco
fevereiro de 2021
Anticonto
* Perdida é um lme brasileiro que de fato existe, muito bom, realizado há muitas décadas por
Carlos Alberto Prates Correia.
A lha de Drácula
Alguns alunos chamavam o colégio de prisão, mas íamos para casa nos
ns de semana, menos os que haviam tido algum problema disciplinar e só
saíam no domingo. Como castigo, tinham de decorar textos absolutamente
inúteis, às vezes em latim. E havia também os que moravam fora do Rio e
só iam embora nas férias.
O meu sonho era jogar no primeiro time dos médios, turma para a qual
eu fora designado, por causa dos meus quase quatorze anos. Mas eu não
tinha talento e categoria para jogar no primeiro time, então só disputava os
campeonatos internos. Nesses eu até que me saía bem, de zagueiro central,
porque era bom nas bolas pelo alto e tinha físico para enfrentar os
centroavantes adversários.
Mas para o primeiro time não dava, porque era composto só de craques.
No meio de cento e vinte alunos não era difícil achar uns vinte garotos
muito bons de bola. Além disso, o primeiro e o segundo time treinavam
entre si uma vez por semana, criando um entrosamento perfeito para a
seleção jogar contra equipes visitantes de outros colégios ou de turmas de
bairros. E jogando sempre em casa, porque eram internos, os jogadores
tinham um conhecimento perfeito do campo de terra, cheio de montinhos
e buracos, e não perdiam quase nunca.
Nas horas de recreio, o campo era liberado para todos fazerem o que
quisessem. Também se jogava sinuca, pingue-pongue, vôlei. Ou
simplesmente se podia car conversando em pequenos grupos de quatro
ou cinco, que se formavam de acordo com as a nidades entre colegas.
No meu grupo, de quatro, mentíamos sobre já ter tido mulheres, putas
obviamente. E havia o sonho irrealizável de sermos um dia alunos de um
colégio interno misto. E as namoradas que lá teríamos não serviam como
inspiração para nossas punhetas. Dormiríamos juntos, sim, mas cheios de
carinho e respeito. E os nossos afetos reais eram mais dirigidos aos amigos
íntimos. De vez em quando um de nós tinha um cigarro e fumávamos de
noite no pátio, com as mãos em concha, para não deixar visível a brasa.
Pensávamos muito em seguir carreiras militares, na Marinha ou na
Aeronáutica. E o nosso amigo Eduardo Augusto tinha um prestígio por
tabela por ter um irmão mais velho já voando na Escola da Aeronáutica, o
que ele também pretendia fazer.
Muito tempo mais tarde, dei com uma notícia de jornal sobre a morte e
a queda dele (identi quei-o pelo sobrenome) num avião da Força Aérea, o
que chegou a me emocionar.
Morando todos no Rio, era meio inexplicável que estudássemos num
colégio interno, o que, no caso de alguns, podia ser causado por uma
separação dos pais, mas não se falava nisso. Mas, quanto a mim, o que
meus pais queriam era que eu e meu irmão tivéssemos uma educação
religiosa e eu procurava não me revoltar muito com isso, até porque a
nossa amizade com os colegas era forte e também a nossa cumplicidade
nas transgressões disciplinares. Tentando me lembrar agora de nossos
encontros no recreio noturno depois do jantar, quando nos sentávamos
num muro meio alto nos limites do pátio, o que vem à cabeça é uma
mistura de saudade, poesia e melancolia.
Nas quartas-feiras havia sessões de cinema num auditório grande para
todos os alunos. Os irmãos costumavam escolher lmes de aventura, guerra
e faroestes. Cenas de sexo nem pensar, e dava para detectar quando a
película havia sido cortada. Mas uma vez deixaram escapar por um
segundo, num faroeste, uma cena em que um rapaz e uma moça novinhos,
amigos na pré-adolescência, tiram, inocentemente, as roupas num segundo
e mergulham de costas num riacho. Aquela cena nunca mais me saiu da
cabeça e creio que da dos outros também.
O irmão Francisco, regente dos médios, que também chamávamos de
seu Chico, era muito boa-praça e tentava fazer com que nos sentíssemos
bem no colégio. Todos gostávamos dele, que podia até nos ajudar em
momentos de crise pessoal. Depois daquele último recreio, o da noite,
íamos para uma grande sala de estudos até as oito e meia, quando subíamos
para o dormitório, para dormir às nove. Acordávamos às seis e meia e íamos
direto para a missa diária, chatíssima, antes do café da manhã. Os que
estavam em estado de graça, depois de ter se confessado na véspera,
podiam até comungar. Cheguei a fazer isso algumas vezes, pois era
convencido nas aulas de religião que existiam o céu e o inferno e podia-se
merecer um ou outro. Pensava em santos e demônios, e pela minha
cabeça, em momentos beirando uma certa loucura, agora vejo, chegou a
passar a ideia de tornar-me irmão marista. Éramos encorajados a ler a
História Sagrada, suas histórias me pareciam excitantes e havia até certo
erotismo velado em todos aqueles episódios de união entre homens e
mulheres.
Mas nada podia ser comparado ao tesouro que me caiu nas mãos,
emprestado por um colega: Tarzan e o império perdido, de Edgar Rice
Burroughs. Tarzan encontrara esse império desgarrado do império romano
e composto de dois reinos em duas cidades, Castrum Mare e Castra
Sanguinarius. Ler livros fora do currículo escolar era totalmente proibido
no colégio, e meu coração batia forte com a leitura emocionante, por suas
aventuras para nós secretas, em plena sala de estudos. Havia uma tática
para quem estava disposto a arriscar. Era pôr livros e cadernos uns em cima
dos outros numa pequena pilha, de modo que o livro proibido não casse à
vista, atrás de uma pequena pilha com outros livros e cadernos. Foi o que
z aquela noite, mas estava tão absorto na leitura que não vi o irmão
Francisco aproximar-se pelas minhas costas e arrebatar-me o volume,
justamente no momento em que lia, com o coração batendo forte, aquele
pedaço do livro em que Tarzan, escravizado pelo imperador Sublatus, de
Castra Sanguinarius, território desgarrado havia séculos do império
romano numa montanha da África, era obrigado a lutar como gladiador no
coliseu do reino. Tive vontade de chorar e até hoje ainda penso que Edgar
Rice Burroughs foi um dos melhores autores que li em minha vida, mas
não tenho coragem de relê-lo, com receio de desiludir-me.
Apesar do con sco do livro e da raiva que senti naquele momento, não
deixei de gostar do irmão Francisco. Às vezes ele interrompia um desses
estudos da noite e, entre outras coisas, falava de religião. Mas o seu Deus
não parecia ter nada a ver com o Deus e o Cristo dos outros irmãos. E não
me lembro de ele ter mencionado o inferno, apenas falava da bondade do
Senhor, sempre disposto a perdoar os nossos pecados, concedendo a todos
os arrependidos o paraíso.
E num dia daqueles, sem que nenhum sinal houvéssemos obtido da
vida, morreu um aluno da turma dos maiores, chamado Humberto, de
uma doença ao que parecia respiratória. Nunca tinha visto um defunto na
vida e quei impressionado com sua palidez e feiura. Fizemos la para vê-
lo na enfermaria e confesso que quei muito abatido com aquela visão.
Não houve aulas, o que acabou sendo pior, pois, atrás de piadas e
comentários mórbidos dos alunos no pátio, escondia-se em nós a
incompreensão e o medo. De todo modo, os irmãos acharam por bem não
cancelar os períodos de estudos e, naquela noite, o irmão Francisco falou
para nós, como seria de esperar, numa prédica que valorizava a fé e a
esperança. Disse que não estávamos aptos a compreender os desígnios de
Deus, que devíamos rezar por nosso colega que, possivelmente, já gozava
de uma bem-aventurança eterna.
Mas, nas prédicas costumeiras, irmão Francisco falava mais numa
felicidade terrena. E dizia que rezava para que todos nós fôssemos felizes
na vida. Quantos de nós teremos assim conseguido? Indiretamente, irmão
Francisco dava a entender que essa felicidade teria a ver com casamento e
lhos. E eu cava imaginando quem poderia ser a minha esposa, a quem
eu amaria muito e que me amaria.
Eu não era dos mais estudiosos, mas durante um dos quatro anos em que
fora interno decidi ser o primeiro da classe, estudando com uma força de
vontade férrea. Primeiro não consegui, como se não fosse talhado para isso.
Mas cava sempre entre os cinco, dez primeiros de minha classe. Porém,
isso não era o su ciente para satisfazer-me e logo me cansei daquele papel
e me aproximei das chamadas más companhias, que me pareciam muito
mais sedutoras do que a dos s que obtinham os prêmios e as distinções
nos estudos. Passei a falar muitos palavrões, e de sexo, como meus novos
amigos e, decididamente, parei com a religião, e a comunhão me pareceu
um sacramento ridículo. Passei a ser um dos últimos colocados de minha
classe e sentia um secreto orgulho disso. Irmão Francisco me olhava com
aquilo que me parecia a ironia de quem compreendia tudo. E não se opôs
a que no ano seguinte eu fosse transferido para a turma dos maiores, na
qual era permitido até fumar.
Mas, antes que isso acontecesse, o que eu queria mesmo era ser bom de
bola e do primeiro time dos médios, antes de ser transferido de turma e
logo depois sair do colégio. Admirávamos tanto aqueles garotos que
sentíamos até orgulho quando um deles se dignava a ser nosso amigo. O
time era tão bom que o goleiro era titular do infantojuvenil do Botafogo,
sendo dispensado dos treinos da semana. E, jogando num domingo um
amistoso contra o time do América, em Campos Sales, goleamos por cinco
a zero. Mas nunca fui craque, muito menos para aspirar à glória suprema
de jogar no time do meu Fluminense.
De todo modo, meu futebol foi melhorando à medida que me tornava
mais velho. Passando o tempo, muitos do primeiro time foram transferidos,
por idade, para a turma dos maiores. E cheguei a ser escalado, por duas
vezes, para treinar, deslocado para a lateral direita, no segundo time contra
os titulares. Estes, incluindo alguns novatos, eram muito melhores do que
nós, e eu tinha di culdade em marcar seu ponta-esquerda; me escondia
um pouco do jogo, mas não cheguei a comprometer.
Nos dias de jogos, o irmão Francisco escrevia no quadro-negro os
números dos alunos que deviam atuar pelo primeiro time. O titular da zaga
central, Bruno, estava com hepatite e sem ir ao colégio. Seu substituto
tinha o apelido de Pé de Ferro e não se saiu bem em dois jogos. Mesmo
assim foi uma grande surpresa ver o meu número, 104, no quadro-negro,
escalado para jogar, na minha verdadeira posição, num jogo contra o
Radar, time prestigiado do Leblon. Poucas vezes na vida senti tanto
orgulho, ao me entregarem a camisa três do time dos médios para entrar
em campo.
O jogo estava sendo muito mais difícil do que o costumeiro, porque a
turma do Radar era boa de fato. Mas abrimos a contagem numa arrancada
do Tito pela ponta-direita. O goleiro adversário saiu do gol e o Tito rolou
no outro canto e marcou. Depois dos abraços e coisa e tal, eles vieram para
cima e empataram, numa jogada de pé em pé, terminando com uma
cabeçada do centroavante no ângulo. Não se poderia dizer que tive alguma
culpa no lance, mas sempre ca uma sensação ruim quando a jogada foi
pelo nosso setor. Cheguei a subir com o centroavante, mas ele era muito
mais alto que eu.
Jogando em casa, um verdadeiro alçapão nosso, o empate, mesmo
contra o Radar, era uma derrota. Mas se podia esperar que o nosso ótimo
ataque resolvesse a parada e continuei jogando o meu jogo na defesa,
cumprindo o meu papel.
Veio um centro sobre a nossa defesa, antecipei-me aos atacantes
adversários e cortei a bola com o peito. E o normal seria que eu rebatesse a
bola para o campo deles, como era do meu feitio, aliás, o meu papel. Mas
vi um espaço vazio ainda no nosso campo e não sei o que me deu. Avancei
com a bola e, em vez de entregá-la ao nosso meia-armador para que ele
organizasse a jogada, passei do meio de campo, em direção à intermediária
deles. Cheguei a pensar em chutar em gol dali mesmo, mas o Álvaro, livre
na ponta esquerda, começou a gritar. Passa a bola, passa a bola, porra. E
quem era eu para desobedecer? E passei para ele, mas sem voltar para o
nosso campo.
O Álvaro era um craque. Deu um corte humilhante no lateral direito
deles, chegou rápido à linha de fundo e fez que ia chutar dali mesmo. Mas
não chutou, até porque o goleiro deles fechou o ângulo. O Álvaro então
olhou para a área, me viu entrando livre na pequena área, sem goleiro à
minha frente. E estendeu para mim na medida, com o gol escancarado à
minha frente. Era até mais fácil marcar aquele gol do que perdê-lo. E
concluí com o meu pé direito, o meu pé bom.
Jamais saberei por que a bola subiu tanto e perdeu-se por cima da trave.
Coisas de bola, só posso dizer. Logo depois o jogo acabou. O empate
contra um time como o Radar não era desonroso e não me cruci caram.
Mas tenho mais do que nunca uma certeza. Se aquela bola tivesse entrado,
minha vida — e nem falo de futebol — teria sido outra.
Vejo
“A noite no Rio está cando meio lúgubre, você não acha?”, ele disse
para ela. “As pessoas estão com medo de car na rua até mais tarde.”
Como a con rmar suas palavras, ouviam-se tiros mais ao longe, lá para
os lados de São Conrado.
“Se você quiser, a gente pode tomar alguma coisa no meu apartamento.
Estou achando você meio tenso”, ela disse.
“E você não ca nem um pouco, com essa insegurança toda na cidade?”
“Bem, é esse o lme e pre ro não pensar nessas coisas. E pelo menos há
mais silêncio nos bares. A gente às vezes pode até ouvir o barulho das
ondas, repara só, quando o sinal ca fechado para os carros. E quando não
estão passando os caminhões do exército”, ela riu.
Estavam na varanda de um bar-restaurante na avenida Atlântica, bem
vazio para uma noite de sexta-feira. E eram só vinte e três horas.
“De todo modo”, ela disse, “acho mesmo que vai ser mais agradável lá
em casa. Vamos comemorar o nosso reencontro.” Ela tocou de leve o pé no
pé dele sob a mesa, como acontecera na festa. Muito de leve, mas deu para
perceber que era intencional. Como se quisesse deixá-lo mais à vontade e
transmitir-lhe segurança.
“Não se assuste se ouvir tiros bem mais próximos do que esses de agora.
Os fundos do meu prédio dão para o morro do Chapéu Mangueira. Mas
meu apartamento é de frente para a rua Gustavo Sampaio”, ela sorria. “E
em Laranjeiras, está mais tranquilo?”
“Até que está, e o exército nem vai lá. Escutam-se tiros, sim, mas vêm de
trás de um paredão no morro Dona Marta. Nesse último mês explodiram
três bancos nas redondezas do meu prédio. Acordei com as fortes
explosões, mas logo voltei a dormir”, foi a vez de ele rir, mais descontraído,
querendo entrar no espírito dela. Achou bom quando o garçom trouxe a
conta que ele pedira e pagou sozinho, pois ela só bebera água mineral,
enquanto ele tomara uma dose generosa de uísque. E só comeram
amendoins, quatro sacos que compraram de um garoto mirrado que devia
ter uns treze anos e entrara no bar calçando sandálias havaianas velhas.
Não comentaram, mas ambos sabiam que os amendoins eram só para
ajudar o garoto. E foi ela quem pagou.
Eles tinham resolvido sair da festa porque o som estava muito alto, para
as pessoas dançarem. Eles já haviam cumprido suas obrigações com o
an trião e só queriam conversar. Fora ela quem sugerira que fossem para
um bar na praia.
A princípio ele não a reconhecera na festa, num clube na Urca. Ele
havia se sentado sozinho numa mesa de quatro lugares, a mais afastada
possível da orquestra. Ela estivera dançando com o an trião e, quando
pararam, se aproximou toda sorridente da mesa dele. Ele não era cabotino
para achar que as mulheres davam em cima dele. Mas não era raro que
uma mulher se interessasse por ele e havia quem dissesse que era um
homem bonito. Ela então disse, sorrindo ainda mais: “Não está me
reconhecendo?”.
“Acho que estou”, ele disse, encabulado. “Mas, para ser sincero, não me
lembro de onde.”
“Da Escola de Comunicação, Marcelo.”
“Luísa”, ele exclamou e levantou-se para beijá-la, depois puxou uma
cadeira para ela sentar-se: “Mas você mudou muito.”
“Envelheci, você quis dizer”, ela disse, num tom meio irônico.
“Não, pelo contrário. Você parece mais jovem e bonita, se me permite
dizer. Lembro que de repente você sumiu da escola.”
“Tranquei a matrícula no terceiro semestre e nunca mais reabri.
Descobri logo que não queria ser jornalista.”
Não bastasse ele fazer setenta e oito anos naquela data, o que antes lhe
parecia uma idade impensável, o país, o seu país, se deteriorava cada vez
mais, com um presidente estúpido, ignorante e fascista e com um povo
beócio que o apoiava; a própria natureza fora exaurida até um ponto
inacreditável, com as árvores derrubadas, orestas pegando fogo, matando
os animais, os índios atacados, e os mares, as melhores praias, o oceano
impregnado pelo óleo grosso e viscoso.
O que lhe restava senão olhar para o espaço, embora os trilhões de astros
estivessem ocultos pela névoa? Mas bastava ele saber que existiam. E se
consolava contemplando o planeta Vênus, el a ele todas as noites, e
pensava: eis que existe sem mim, em algum ponto do espaço ele está lá.
Outra perspectiva que se abria era a arte, a imaginação, a memória. Ele
se sentia também fascinado ao acompanhar os bichos pela televisão, mas
tinha de reconhecer que era um devorar sem m, impiedoso, muitos
lhotes que não vingavam.
Nervosamente, começou a zapear na e passou por um canal que
acabara de mostrar um programa com Jim Morrison & The Doors e
lamentou que já fossem os créditos, mas junto com os letreiros ainda havia
a imagem de Jim Morrison cantando “Light my re” e ele se arrepiou
todo. Morrison, belo e imortal como um Deus e com seu olhar xo
adiante, contemplando o in nito dentro de si mesmo.
Morrison, que morrera, provavelmente drogado, numa banheira, aos
vinte e sete anos, mas ele o invejou.
Ele, o artista-escritor, se atirou também no passado, indo para a praia
com a jovem atriz dirigindo o carro, ele bebendo uísque e a moça com um
baseado na mão, e trocavam, o copo para a moça, o baseado para ele. Eles
haviam passado a noite assim, bebendo e fumando maconha e trepando, e
agora na rua a realidade parecia irreal. Ou, ao contrário, muito real. A
moça vestira apenas a camiseta e ele uma sunga, e pararam de qualquer
modo na la dupla, pularam para a areia, meio que tropeçando.
Foram andando em direção à água e, a meio caminho, ele a pôs deitada
em seus braços, carregou-a e a depositou na água, era um tempo de
liberdade, e ele a beijou e acariciou seus seios. Depois ele a trouxe de volta
e no toca- tas do carro Jim Morrisson continuava a cantar, agora The end,
this is the end, mesmo quando ninguém o estivesse escutando, eterno.
Escrito num guardanapo
Nossa lua de mel foi passada em Ubatuba, no litoral de São Paulo, para
onde fomos de táxi aéreo e onde Armando Fonseca tinha uma casa, que
nos emprestou para aquele m. E posso dizer que aqueles dias foram dos
melhores do nosso casamento. Não sei se o beijo de Alessandra teve a ver
com isso, mas o fato para mim, talvez para ambos, é que, apesar de já
termos intimidade, o casamento é que pareceu uma transgressão excitante.
Pedi que Simone pusesse o vestido de noiva, que fui tirando aos poucos, e
trepamos de todos os modos possíveis, sempre bem. E até o fato de
nadarmos nas praias da cidade e colhermos mexilhões na areia, que
preparávamos e comíamos, nos pareceu uma extensão de uma enorme
liberdade. Abrir uma concha que catávamos na praia e comer um
mexilhão era um ato que nos aproximava tanto da natureza e de nós
mesmos que Simone e eu preferíamos car em silêncio a dizer alguma
banalidade. Eu pensava comigo mesmo que o tempo parecia parado e que
poderíamos car assim para sempre. E nos sentíamos felizes e realizados.
Mas é quase desnecessário repetir lugares-comuns sobre o tempo, e
chegou o dia em que não podíamos adiar mais nosso retorno a Belo
Horizonte. Eu tinha combinado de assumir o meu lugar no escritório e
Simone precisava voltar às aulas de seu mestrado de pedagogia, pois só
faltava um semestre para terminar os créditos e então escrever a sua tese. Já
tinha feito os contatos para dar aulas numa faculdade particular e seria
impensável que não trabalhasse, pois morreria de tédio e de culpa.
Na verdade, eu, como estagiário, devia gradualmente substituir meu pai,
que já pouco trabalhava, preservando sua saúde. Apesar de estar energizado
com a temporada junto ao oceano, ou talvez por isso mesmo, o golpe foi
forte. O doutor Armando me designou para a parte cível do escritório e eu
tinha de assessorá-lo em alguns processos, gozando até de certa autonomia.
Eu era escalado para ir ao fórum, comparecer a algumas audiências, e foi
aí que caí na real. Esses processos giravam sempre sobre alguma demanda
nanceira, como aluguéis e prestações atrasadas, cobranças de bancos ou
do comércio, sonegação legalizada de impostos, pendências familiares
sobre bens, direito à guarda de lhos, inventários, direitos autorais não
pagos e assim por diante.
Apesar da diversidade dos casos, logo me senti entediado de ter de ler os
códigos civil e de processo civil e, às vezes, eu me dispersava inteiramente,
perdendo-me no meio daquelas letrinhas, e pensava com frequência em
Simone e no tempo em que só cuidávamos um do outro na praia, quando
o tesão de ambos parecia inesgotável. Mas, agora, não era raro que, ao
voltar para casa, eu encontrasse Simone estudando em seu pequeno
escritório e, se por acaso queria acariciá-la, levá-la para a cama, ela se
fechava e me falava claramente que tinha de estudar para alguma prova e
que eu esquentasse minha própria comida, que estava no forno. E que eu a
esperasse na cama, que ela iria logo, logo. Só que esse logo podia demorar
duas horas e, quando Simone vinha para o quarto, era comum que eu já
estivesse dormindo, com um livro de cção sobre o peito, pois, depois de
uma jornada inteira me dedicando ao direito, queria mesmo era sair do
real.
Simone não me acordava e estávamos em tempos diferentes. Pois se eu
despertava durante a noite e a via dormindo ao meu lado, indefesa, sentia
ternura por ela e ao mesmo tempo me excitava com a sua vulnerabilidade.
Até que houve uma noite em que a enlacei pelas costas e tentei comê-la
assim, no meio do sono, como se estivesse desacordada, pois tomava
comprimidos para dormir, esgotada e nervosa com os estudos. Simone
virou-se para mim, olhou-me a princípio desorientada e depois enfurecida,
empurrando-me com toda a força. Fiquei extremamente magoado e
perguntei se a incomodava que transássemos assim, pois ela era minha
mulher e eu a amava. Ela respondeu-me, ainda nervosa, que, se eu a
desejava, pelo menos a despertasse.
No entanto, descon ei que aquilo a excitara de algum modo, pois ela
virou-se para mim com as pernas entreabertas e tentou fazer com que eu a
penetrasse assim, meio de lado. Só que foi uma brochada fulminante de
minha parte, pelo que acontecera antes e talvez pelo convencionalismo
conjugal de nossa posição. Mas pelo menos Simone mostrou-se
compreensiva, pois, antes de virar-se para o outro lado e adormecer
imediatamente, passou a mão nos meus cabelos, consolando-me. Porém,
não consegui dormir naquela noite, atingido em meu orgulho e sentindo-
me um menino. De manhã cedo nem esperei minha mulher para
tomarmos o café da manhã juntos. Tomei uma rápida chuveirada, vesti
meu terno e a gravata e já ia saindo quando Simone saiu do quarto com
aquele ar apalermado de quem acabou de despertar. Balbuciei uma
desculpa sobre um processo que pedia minha intervenção urgente, dei-lhe
um beijo rápido na face, abri a porta e saí.
Todo homem sabe que uma brochada pode trazer sequelas em sua vida
conjugal, e assim foi comigo. Para não ser posto à prova em minha
masculinidade, passei a chegar em casa só depois de beber com alguns
colegas num bar próximo à faculdade. Encontrava Simone estudando ou
dormindo e cava agradecido por ela não me recriminar, pois estava
envolvida demais com seus estudos. Só fazíamos mesmo companhia um ao
outro nos ns de semana. Costumávamos ir ao cinema e jantar fora e,
invariavelmente, eu bebia. E notava com alívio que uma leve embriaguez
agia sobre as minhas inibições, tanto afetivas como sexuais. E passamos a
trepar regularmente aos sábados e domingos, e eu bebia também em casa.
Gostava de beber até na cama, às vezes nos momentos mesmo em que
transávamos, ela sentada sobre mim. Já Simone era abstêmia, pois tomava
seus medicamentos tarja preta diariamente. E o fato é que ambos nos
acostumamos com esse ritmo, que nos parecia absolutamente normal para
um casal. E posso dizer até que vivíamos bem, pois as minhas constantes
demoras na rua evitavam que nosso casamento resvalasse rapidamente para
o fastio, ao mesmo tempo que facilitavam os estudos de Simone. Eu estava
feliz, ou pelo menos acomodado, com a esposa que tinha.
Ao car meio bêbado com os colegas depois das aulas, não pensava que
estava evitando Simone, mas apenas que voltara a desfrutar de uma certa
liberdade, e me espantava e até me magoava um pouco que Simone não
me repreendesse, pois dormia a sono solto, meio sedada, quando eu
chegava.
Mas também pensava que era absolutamente natural certo enfado
depois de uma lua de mel, quando um casal se experimenta em todas as
posições, que me eximo de descrever aqui, pois, a nal, tirando uma fase na
adolescência, nunca me interessei pela escrita pornográ ca. Pre ro dizer
apenas que foram dez dias de intensas descobertas. E devo agradecer a
minha sogra por ter nos vigiado, e a Alessandra, que manteve nossa chama
acesa com sua simples presença no quarto de Simone, evitando que
caíssemos num tédio prematuro.
Foi um momento de descoberta também da solidão e liberdade e do
prazer da companhia masculina, invariavelmente no bar próximo à escola,
o mesmo onde passamos a nos encontrar, queridos companheiros, como se
já houvesse uma predestinação em minha vida. Naquela época as
discussões políticas eram acaloradas, pois, se éramos todos de esquerda, eu
um pouco menos do que eles, havia várias facções, algumas delas, por
wishful thinking, querendo precipitar a luta armada, outras defendendo a
tese de que se devia antes amadurecer um processo político. Algumas vezes
cheguei a pensar se não era a política uma variante da sexualidade, embora
muitos dos meus colegas, mais tarde, tivessem arriscado a própria vida e
sido torturados ou mortos no cárcere. Mas é uma história tão conhecida de
todos que me eximirei de contar isso também. Até porque eu próprio era
mais um espectador, um homem casado e fazendo estágio num prestigioso
escritório de advocacia, que exigia até que eu andasse de terno. O doutor
Armando, quase desnecessário dizer, era favorável à revolução, como ele e
seus iguais denominaram o golpe de Estado que levou os militares ao
poder.
Mas nossas diferenças iam muito além da política. Elas abrangiam a
própria existência, embora eu estivesse decepcionado com a minha, por ter
abandonado meus sonhos românticos de uma vida artística para cair no
conformismo pequeno-burguês. Apesar disso, eu era solidário com os
militantes e prestei alguns serviços à sua causa, como doar modestas
contribuições nanceiras e, já no regime militar, esconder uns dois ou três
guerrilheiros procurados, o que deixava Simone temerosa e, confesso, eu
também, pois sabia que não resistiria à tortura se alguns deles fossem presos
e obrigados a revelar onde haviam se abrigado e os policiais ou militares
viessem atrás de mim, supondo que eu fazia parte de uma das facções
rebeldes, e quisessem que eu lhes revelasse o que absolutamente não sabia.
Mas quanta gente não foi torturada e morta por equívocos iguais a esse?
De todo modo, minha participação política foi pí a, limitando-se a
opiniões e discussões nos bares, que passamos a variar, para não nos
expormos à repressão. Mas chegava uma hora em que eu tinha de voltar
para casa. Simone usava melhor o seu tempo, para estudar. Às vezes me
esperava, às vezes não. E eu chegava a sentir ternura por ela, vendo-a
adormecida à mesa com um livro de pedagogia e um caderno ao lado.
Cheguei mesmo, algumas vezes, a conduzi-la até a cama, tomando
cuidado para não despertá-la totalmente, pois percebia que ela também
não tinha interesse em transar.
O que não queria dizer que nosso casamento ia mal. Como vivíamos
horários incompatíveis, estávamos nos dando até bem um com o outro. Eu
chegava cansado da faculdade e meio bêbado, o que era conveniente para
Simone, que já começara a escrever com a nco a sua tese de mestrado,
muitas vezes indo até a noite. Eu não me interessava nem um pouco por
pedagogia, mas, quando acontecia de jantarmos juntos, conversávamos
cordialmente sobre a sua tese, eu ngindo interesse. E se alguma
animosidade existia era contra a inconcebível situação política brasileira, e
ambos estávamos de acordo nas severas críticas ao governo que, como os
mais instruídos sabiam, era uma ditadura que nem se disfarçava mais de
democracia.
Quanto ao meu trabalho, Simone até mostrava um interesse genuíno
pelos casos mais dramáticos na área penal, em que eu não trabalhava, mas
de que cava a par, no escritório, onde tinha de ouvir, ainda, as ideias
conservadoras — para dizer o mínimo — do doutor Armando. Ele achava
que o país estava no rumo certo e eu o escutava em silêncio, sem coragem
para contradizê-lo. Felizmente, as conversas de bar me permitiam
demonstrar toda a minha indignação.
Em geral eu já chegava sem fome em casa, depois de fazer refeições
ligeiras na rua, e, muitas vezes, encontrava Simone dormindo, auxiliada,
como já disse, por um ou mais comprimidos.
Nesse ritmo, era natural que nossa vida sexual fosse praticamente
inexistente e creio que, se não fosse determinado acontecimento, talvez eu
encontrasse uma amante lá mesmo na faculdade. As trepadas com Simone
já eram mais ou menos quinzenais, em geral num sábado ou domingo, e
nos esforçávamos para variar de posições na cama, como na lua de mel.
Mas não era mais a lua de mel e eu gozava logo e me incomodava o fato de
usar agora camisinha, pois Simone já planejava uma vida pro ssional em
que não poderia entrar a maternidade. Eu até gostava de ver Simone se
masturbar ao meu lado, depois do meu gozo, e sentia alívio ao vê-la gozar
e, tivesse eu energia para trepar de novo, até o faria, mas aí teria de pegar
outra camisinha, vesti-la com o meu pau meio mole e, além disso, Simone
já se mostrava totalmente saciada.
Foi quando aconteceu o fato que mudou a nossa vida, pelo menos
temporariamente. Voltava eu da faculdade ligeiramente embriagado, despi-
me procurando não chamar a atenção de Simone, mas ela dormia a sono
solto, com um livro aberto ao lado do corpo. Usava uma camisola leve
como sempre, e voltei a sentir uma certa ternura por ela. Ali nu, de pé,
observei que sua camisola estava meio erguida, deixando ver as suas coxas
e, para espanto meu, a sua xoxota. Com certeza se deitara tão cansada que
se esquecera de pôr a calcinha. Cheguei a admitir a hipótese de que ela
queria me seduzir, mas não, seu sono era muito pesado.
O fato é que fui acometido por um tesão irresistível por aquela cena.
Simone adormecida com um livro ao lado, com sua xoxota à mostra,
apenas um pouquinho entreaberta, certamente por um descuido. Foi
quando tive um ato que me pareceu louco e até arriscado, pois podia
enfurecer Simone por eu me aproveitar dela. Ajoelhando-me no colchão,
comecei a en ar meu pau duríssimo, cautelosamente, na boceta de
Simone. Ela não se mexeu e concluí que devia ter tomado algum poderoso
comprimido para dormir, como fazia às vezes, quando ia para a cama
muito cansada.
Simone não estava muito molhada e tive medo até de machucá-la, mas,
como ela não fazia nenhuma menção de se defender, meu pau foi
entrando. Quando eu já me mexia dentro da boceta de Simone, ela
nalmente cou molhada. Alguma coisa era profundamente diferente
naquela foda, pois não ejaculei prematuramente, e Simone,
semiadormecida, embora parecesse não acordar, suspirava muito baixinho
e encaminhou-se para um orgasmo, que coincidiu com o meu.
Fiquei encantado, mas, sem querer acordar minha mulher, saí
vagarosamente de dentro dela e deitei-me ao seu lado, vestindo antes a
cueca, para o caso de Simone acordar e não perceber que eu a comera
dormindo. Meus estudos e meu conhecimento do Direito me deixavam
plenamente consciente de que um homem podia ser acusado de violar a
própria mulher. Mas o que aconteceu foi Simone virar de lado, sem dar o
menor sinal de estar acordada. Enquanto eu, também de lado, me sentia
ainda encantado e nem dormi naquela noite, só pensando no ato que
acabara de acontecer.
No dia seguinte tomamos o café da manhã juntos e eu estava temeroso,
além de encabulado, com o que acontecera à noite. Mas, para satisfação
minha, Simone nem mencionou o assunto e pensei que ela devia estar
mesmo inconsciente quando fora comida, apesar de eu ter notado uma
ligeira alteração em sua respiração, próxima de um ou outro suspiro. E não
deixei também de notar que ela estava de bom humor nessa manhã,
embora só comentasse, ligeiramente, que seus estudos estavam indo bem.
Pelo que acontecera, tive um dia erotizado, tanto no escritório como na
faculdade, a ponto de ter de disfarçar o pau duro. Mesmo assim, depois da
aula ainda bebi no bar com alguns colegas, mas não muito, pois senti
vontade de voltar para casa e assim z. Se encontrasse Simone acordada eu
gostaria de trepar com ela, com um desejo que nascia da noite anterior, e
cheguei a pensar que o meu gozo mais demorado, e quem sabe também o
dela, ainda que inconsciente, fosse um sinal de que nossa vida sexual podia
mudar e de que eu podia me livrar para sempre de minha ejaculação
precoce. Mas, percebendo que Simone estava não só coberta, mas
parecendo profundamente adormecida, para decepção minha, resolvi não
forçar a sorte assediando-a. E como eu praticamente não dormira na noite
anterior, também peguei logo no sono.
No dia seguinte, tive a boa surpresa de ver a mesa posta para o café da
manhã, depois que saí do banho e me vesti. Era um sinal de que Simone
continuava de bom humor e resolvi sondá-la, perguntando-lhe sobre os
seus estudos, e ela me respondeu com afabilidade que, apesar das
di culdades, as coisas caminhavam no rumo certo. E, por sua vez,
perguntou-me como iam os meus estudos e o meu trabalho. Apesar de todo
o meu aborrecimento com ambos, resolvi não estragar o clima me
queixando, no que z bem, pois Simone me acompanhou até a porta e fez
um pequeno gesto, mas que para mim signi cou muito: ela não só ajeitou
a minha gravata, com o rosto bem próximo do meu, como me deu um
beijo que, embora ligeiro, foi na boca.
Voltei para casa um pouco mais cedo do que habitualmente, naquela
noite, apesar de mais embriagado que de costume, sabendo que, no íntimo,
queria ter coragem para alguma coisa que ainda não sabia direito o que era.
Encontrei Simone sentada à mesa, com um livro e um caderno abertos, e
ela saudou-me com um “Ora viva, chegando cedo”. Depois me perguntou
se eu queria que ela esquentasse um prato para mim, no forno, o que
aceitei satisfeito, pois não comera na rua. Enquanto comia um bom bife
com purê de batatas, que talvez ela própria houvesse preparado e não a
diarista, pois estava mais gostoso do que normalmente, pensei, então, que a
noite prometia. Eu comia calmamente enquanto Simone foi até o quarto e,
ao voltar, estava com a mão fechada. Depois abriu-a com dois
comprimidos que engoliu junto com um copo d’água. Eu, sinceramente,
não sabia se aquilo era bom ou mau sinal, e soube menos ainda quando
Simone bocejou e perguntou-me se eu me importaria se ela fosse estudar
deitada no quarto, pois estava muito cansada, mas ainda precisava rever
uma questão no livro. Eu disse que não, em absoluto, mas tive medo de me
decepcionar, pois viera para casa com a intenção de comer Simone
naquela noite. Mas não queria mostrar-me folgado e machista e z questão
de lavar os pratos na cozinha. E aproveitei para preparar uma dose de
uísque para mim.
Quando entrei no quarto, com o copo na mão, já encontrei Simone
profundamente adormecida. Mas o que havia de diferente naquela cena é
que ela estava de calcinha, sim, mas sem sutiã, e os seus seios estavam
tampados por um livro aberto. Era uma composição encantadora e resolvi
desfrutar dela por mais tempo. Fui tirando minha roupa e, em vez de vestir
uma bermuda, do jeito que dormia habitualmente, quei ali de pé,
completamente nu e bebendo, com o pau naturalmente muito duro.
Pensei que era uma cena ideal para que eu me masturbasse, mas não
queria acabar logo com aquilo. Então me sentei na cama, sempre
bebendo, de um modo tal que tive coragem de ir baixando a calcinha de
Simone devagarzinho e até cogitei se devia retirar o livro de cima de seus
seios, mas achei melhor não.
Para o que aconteceu a seguir, tive de depositar o copo no chão, mas
nem cheguei a retirar totalmente a calcinha de Simone, pois achei mais
erótico descê-la só até as pernas. Alcei-me até a sua boceta e encontrei
alguma resistência para entrar nela, pois estava novamente um pouco seca.
Tive medo, sim, de que Simone despertasse com aquela cena próxima de
uma violação, mas era tarde demais e, lenta mas incisivamente, penetrei
em Simone até o fundo e tive quase certeza de ver um ricto de dor nos
lábios dela, que no entanto logo se dissipou, e ela voltou a mostrar-se
profundamente adormecida, enquanto o livro caía ao seu lado e a visão de
seus seios rmes só tornava o meu desejo mais ardente. Constatei, contente
comigo mesmo, que demorei um tempo justo para gozar e que Simone,
embora nem abrisse os olhos, respirava pausadamente, no que nem
chegavam a ser gemidos, levando-a até um estremecimento último, um
clímax, quando ela cravou as unhas nas minhas costas, para depois
amolecer o corpo, afastar-me, virando-se para o lado e voltando a dormir.
Eu não deixava de estar feliz, mas me sentia também culpado, com
medo de que Simone despertasse e me acusasse de algum ato ilícito. Então
fui saindo bem devagar de dentro dela, voltei a subir sua calcinha, mas
achei que seria demais colocar de novo o livro aberto sobre os seus seios. E
fui lavar-me no banheiro, para onde levei o copo, cujo conteúdo bebi em
dois goles. Lá vesti a bermuda e depois voltei para o quarto. Simone agora
dormia a sono solto e deitei-me a seu lado. Talvez, ao contrário de minha
mulher, eu tivesse consciência plena do que acabara de acontecer. Tanto é
que, no dia seguinte, de manhã, z o menor ruído possível ao ir para o
banheiro e depois voltar para o quarto, onde me vesti sempre observando
Simone, que parecia dormir absolutamente relaxada. Ainda bem, pois eu
não estava a m de dar explicações. Preferia tomar o café da manhã na rua,
mas, quando já ia sair do quarto, com a gravata dependurada no pescoço,
Simone despertou, sorriu para mim e disse: “Puxa, dormi como uma pedra,
acho que nem sonhei. Você não se importa que eu que na cama mais um
pouco, importa, querido?”. “Claro que não”, eu disse, afobadamente, mas
tranquilizando-me com o seu tom bastante pací co e sonolento ao falar
comigo, para logo depois cerrar outra vez os olhos.
De todo modo, saí rapidamente de casa, como se fugisse de alguma
coisa, de algum ato vil que praticara naquela noite e que teimava em
agarrar-se a mim. No entanto, embora meu coração batesse forte, meu pau
estava nitidamente duro no elevador e, quando entrou outro morador do
prédio, cumprimentei-o polidamente, mas tomando o cuidado de manter a
pasta de trabalho contra o ventre.
Só que o meu pau teimava em endurecer no trabalho, sob a mesa, e
também na faculdade tive de fazer os maiores esforços para me controlar, o
que acabei conseguindo a duras penas. Por m, relaxei no bar e um ou
outro colega chegou a comentar comigo que eu andava muito bem-
humorado e que a vida de casado estava me fazendo bem. E um deles disse
até que me invejava.
Mas no que consistia exatamente essa boa vida de casado? Comer
Simone dormindo exerceu um papel fundamental nisso, não havia a
menor dúvida. Embora nenhum de nós dois comentasse o assunto, aquilo
vinha ao encontro de um fetiche de ambos, como se fôssemos dois
estranhos fodendo, o que não deixava que o tédio tomasse conta de nosso
casamento. E assim procedemos mais umas quatro vezes, com ligeiras
variações, como, por exemplo, eu comer Simone de bruços, sem, no
entanto, cometer nenhuma perversão, o que poderia ser catastró co para a
nossa relação, intuí. E lembro-me bem, pois foi prenúncio dessas
mudanças, que, certa noite, depois de passar pelo quarto e ver Simone
dormindo, coberta, pois era outono e já fazia um pouco de frio, levei um
pijama grená — lembro-me bem da cor — para o banheiro, onde o vesti
depois de tomar um banho. E fui fumar à janela da sala, o que seria
inadmissível no quarto, pois Simone não suportava a fumaça nem o cheiro
de fumo.
Morávamos no décimo andar de um edifício na Glória e dali tínhamos
uma visão privilegiada da cidade. Naquela noite pensei, o que não deixava
de ser um clichê, nos milhões de habitantes do Rio de Janeiro, cada um
vivendo a sua vida naqueles quartos iluminados. Mas eu estava
particularmente sensível e imaginei a quantidade de casais vivendo, cada
um ao seu modo, com seus amores e ódios, suas angústias e alegrias. E
pensei ainda que eu e Simone éramos até privilegiados, pois nos dávamos
bem, gozávamos de nossas liberdades e ainda tínhamos uma ótima, apesar
de meio estranha, ou vai ver por isso mesmo, vida sexual. Em suma,
éramos felizes, cheguei a suspirar, tragando a fumaça até o fundo de meus
pulmões.
Ao retornar ao quarto, com meu copo na mão, tive uma surpresa que
demorei um pouco a assimilar, mas que, no entanto, pareceu-me agradável
a princípio, pois acabaria por ser mortal para o nosso desejo repetirmos,
mesmo com pequenas variações, as nossas posições na cama. A última
coisa que podia esperar era que Simone estivesse usando um vestidinho,
que me pareceu de adolescente, estudantil, eu diria, com uma blusa
branca e uma saia xadrez, e com os joelhos dobrados, em que pousara um
livro. Como sua calcinha estava sedutoramente visível, pensei na sabedoria
de Simone de tentar-me com uma variação radical. Mas o que mais me
surpreendeu foram os seguintes gestos: Simone pousou o livro na cama e
pediu-me que lhe passasse o copo com uísque. E cheguei a hesitar:
“Mas você vai beber? Não acredito.”
“Vou, por quê, por acaso também não posso?”, ela disse rindo.
“Pode, claro”, apressei-me a dizer. “Mas aconteceu alguma coisa?”
“É, querido, você me conhece bem. Depois eu te conto. Mas primeiro
quero que você me obedeça, você jura?”
“Juro”, eu disse, descon ado, mas altamente tentado. E a obediência
que Simone me pediu foi que eu deitasse, nu, de costas, na cama. O que
mais me fez descon ar foi que nunca antes experimentáramos aquilo,
Simone beber na cama, ou fora dela, sentada sobre mim. E chegou a
passar por minha cabeça que Simone teria arranjado um amante, que lhe
ensinara novas técnicas. Pois, tirando apenas a calcinha e mantendo o
vestido, ela, depois de pedir que eu me despisse, sentou-se sobre mim e,
sempre com o copo na mão, fez com que eu a penetrasse. Fiquei mais uma
vez encantado, era como se eu tivesse uma nova mulher, que penetrei até o
fundo, o âmago, vou me permitir esse preciosismo. Mas, feliz ou
infelizmente, não deu para eu segurar por muito tempo o meu desejo e
gozei logo, gozei muito, em estertores, mas, agora sem dúvida felizmente,
Simone, sem largar o copo, pelo contrário tomando mais um longo gole, o
que tornava aquela variação até so sticada, também gozou, ou pelo menos
assim me pareceu. A minha grande e real surpresa foi que Simone deu
uma sonora gargalhada, de um prazer e uma felicidade inegáveis. Depois
me passou o copo e me disse, antes de cair para o lado:
“Tome, tome o seu uísque.”
Sentei-me na beirada da cama e de fato comecei a beber, e bastou um
longo e demorado gole para que o copo casse vazio. Queria conversar
com Simone, arrancar dela o que a zera beber e mudar tão radicalmente
de posição, arrastando-me com ela. Antes, resolvi ir até a cozinha, onde
deixara a garrafa de uísque, da qual me servi. Por alguma razão, nessa noite
me sentiria ridículo se fosse até o quarto já nu, inclusive porque Simone,
como percebi, continuava vestida e tornara a botar a calcinha. Então
peguei no armário do quarto uma bermuda e vesti-a.
Demorei algum tempo naquele meticuloso processo de tirar o gelo do
congelador, servir-me e depois vestir-me. Ainda estava tomado pela transa
tão diferente e interessante que eu e Simone tivéramos. No entanto, como
se tivesse de pagar alguma culpa, fui tomado novamente por aquele
pensamento inquietante que meu cérebro fabricava, como se fosse
totalmente independente de mim: e se o fato de Simone ter se comportado
de forma tão inusitada na cama, inclusive bebendo uísque enquanto
trepava, signi casse mesmo que ela arrumara algum amante, que a
ensinara esses novos hábitos?
Ao voltar para o quarto, estava decidido a esclarecer aquilo antes que me
corroesse o espírito. O problema é que, ao chegar no quarto, Simone
dormia placidamente e com um leve sorriso no canto dos lábios.
No dia seguinte, tomamos o café da manhã juntos e Simone parecia
feliz como na véspera. Devia ter gostado mesmo da nossa transação, tanto é
que me disse:
“Posso te pedir uma coisa, amor?”
“Pode, claro.”
“Vê se chega mais cedo hoje.”
E, de fato, à noite, quei apenas até a segunda aula em que se ministrava
uma prova, que z atabalhoadamente, me lixando para a minha nota. Não
passei pelo bar e fui direto para casa, onde tive uma nova e grande surpresa.
Simone, com outro vestido que me pareceu novo, até um tanto senhorial,
bebia sentada no sofá. A própria garrafa de uísque e um balde com gelo se
encontravam sobre a mesa baixa diante do sofá, junto com um copo vazio
que, com toda a certeza, era para mim.
“Vem, meu amor, senta aqui e bebe comigo.”
“Juro que não estou entendendo, querida, você aí bebendo. Aconteceu
alguma coisa, terminou a sua tese?”
“Senta aqui, já disse, que eu te explico.”
Eu estranhava tanto o comportamento de Simone, que, pela minha
cabeça, voltou a passar o pensamento inquietante do amante. Resolvi
ganhar algum tempo para pôr a cabeça no lugar:
“Espera um pouco, querida, deixe eu tirar a joça desse terno e tomar um
banho, para me lavar de um dia de trabalho.”
Lavei-me meticulosamente, mas não conseguia tirar da cabeça as
preocupações. De que Simone houvesse encontrado alguém mais ou, pelo
menos, estivesse insatisfeita com o modo como vínhamos transando.
Logo que saí do banheiro, enrolado numa toalha, Simone estendeu-me
um braço, tendo na mão um copo com uísque e gelo. Antes, ela depositou
o próprio copo na mesinha e disse:
“Vem, querido, vem.”
Eu até esperava vestir-me antes, para a conversa com Simone, que me
parecia séria, mas, como ela me ofereceu o copo cheio, estendi a mão para
pegá-lo. Simone, como se me desse um bote, arrancou a toalha do meu
corpo. Meu pau endureceu imediatamente e ela o pôs na boca, en ando-o
até a garganta. E, sempre com ele na boca, foi erguendo-se e tirando a
calcinha, mas sem tirar o vestido, o que era uma composição sensorial que
me tesava demais, pois nela havia uma boceta velada que, embora
conhecesse bem, eu podia imaginar de todas as maneiras. Mas antes que
eu me acomodasse assim, Simone exerceu uma pressão sobre mim e fez
com que eu me sentasse no sofá, nu e bebendo. E ainda sem tirar o
vestido, o que mantinha todo o mistério da sua boceta, fez com que eu a
penetrasse. Eu me consideraria o homem mais feliz do mundo, não fosse
ainda a inquietação de que Simone aprendera aquilo com alguém. Não
tinha coragem de perguntar-lhe isso, porém queria matar a minha
curiosidade:
“O que aconteceu, querida? Você está tão mudada.”
Foi quando Simone me disse de chofre:
“Eu estou grávida.”
Foi uma brochada fulminante. Tirei Simone de cima de mim e
perguntei, abismado:
“O que você disse?”
“Estou grávida, amor, nós vamos ter um lho. Nunca estive tão feliz.”
Não tinha levado nem uma fração de segundo para cair a cha.
Mergulhados numa intensa atração — até mesmo um ritualismo — sexual,
tínhamos deixado de usar preservativos aquele tempo todo, e a natureza
cobrava seu preço e a vida seguia o seu curso. A princípio, Simone não
conseguia esconder sua decepção com a minha falta de entusiasmo e cou
amuada. Depois, até tentou atrair-me, voltando àquele rito de deixar-se
surpreender apagada na cama, para que eu a comesse. Mas era tudo falso,
pois, grávida, ela não podia mais tomar seus remédios tarja preta, e, ainda
que tomasse, meu tesão se esvaíra de forma irreversível. E a mulher, em
sua animalidade, suas regras, suas idas ao ginecologista, suas tensões pré-
menstruais, me surgia em sua função maior, que era a de ter lhos,
amamentá-los, et cetera e tal. Claro que os homens também podiam
cumprir uma função como pais, de amar esses lhos e ajudar a educá-los,
tornarem-se mais companheiros do que amantes de suas esposas. De algum
modo, eu até entendia esse papel, mas o tesão se fora completa e
irremediavelmente, eu não conseguia nem tentar trepar com Simone. O
mais curioso é que o meu verdadeiro trauma com aquela gravidez se
estendeu às outras mulheres, pois, embora pudesse tornar-me amigo delas,
não havia como sentir por elas desejo, considerá-las um objeto sexual, pois,
no nal das contas, todas me pareciam mães em potencial, mesmo que eu
viesse a usar preservativos.
Era óbvio que o problema estava em mim, e cheguei a procurar um
médico psicanalista, mas, com o decorrer das sessões, fui percebendo que
não queria mudar, queria cumprir-me radicalmente até o m. Foi quando
me dediquei a prosseguir com a nco meus estudos, e até meu trabalho,
embora nunca pudesse gostar do Direito e de advogados, que eu
desprezava como uma classe prostituta que se dava intelectualmente a
quem pagasse melhor, e tornei-me mais diligente no escritório, recebendo
até elogios do doutor Armando. Mas, no meu íntimo, eu lamentava não
me dedicar à escrita desinteressada, à arte.
Aquilo que, para uma moral de vida, seria considerado louvável, foi
condenado pelos juristas e advogados, com sua moral de classe e sua ética
muito particular, que havia muito tempo, secretamente, eu desprezava,
pois considero a advocacia uma espécie de prostituição engravatada.
Houve um murmúrio no recinto e dava para ver que as posições se
dividiam, sendo que os familiares de Catarina vieram me cumprimentar
efusivamente, embora a minha defesa fosse considerada por muitos como
uma traição a meu constituinte. Eu mesmo me sentia culpado diante de
meu colega, que funcionara admiravelmente na defesa de nosso cliente, e
também pensava em meu pai hospitalizado em estado grave e no doutor
Armando, cuja con ança eu traíra miseravelmente. Para não falar nos
familiares de Eduardo.
No entanto, dois acontecimentos me levaram a sentir-me mais seguro e
até grati cado. O primeiro deles foi uma surpresa que chegava a ser
inacreditável. Antes que eu pudesse escapar dali para re etir em paz em
algum bar do meu gosto, fui abordado por um funcionário do Tribunal,
que me disse que a juíza sacramentara a condenação e rogava que eu fosse
vê-la.
Não podia deixar de aceitar aquele convite e acompanhei o funcionário
até a ampla sala da juíza, com seus móveis muito confortáveis.
A doutora me deu dois beijos no rosto, o que me deixou à vontade desde
logo, ainda mais que ela trancou a porta. E fez com que eu me sentasse
num sofá de couro muito macio e perguntou se eu tomaria um uísque com
ela. Não hesitei em aceitar, porque estava gostando daquela mulher de seus
quarenta e tantos anos, com seus óculos grossos e sua toga, e uma bebida
era tudo o que eu precisava para relaxar, depois das emoções do
julgamento. Sentei-me onde ela me indicou, ela mesmo me serviu de
uísque com gelo, preparou uma dose para si e veio sentar-se ao meu lado,
nossas pernas se encostando.
Desde que terminara a relação com Alessandra eu não tivera mais
ninguém, e aquela proximidade com a doutora Matilde me excitou
imediatamente. E o fato de ela ser uma juíza, representar autoridade, me
levara a desejar comê-la, foder a autoridade. E alguma coisa nela,
curiosamente, zera-me lembrar da mãe de Simone e Alessandra, que
sempre, secretamente, eu desejara comer, num tesão que abarcava a
família inteira.
“Gostaria de cumprimentá-lo”, ela disse, “por sua atuação no
julgamento.” E não pude deixar de notar que a doutora Matilde era uma
dessas pessoas que tocam o interlocutor para falar com ele, ou pelo menos
estava sendo assim comigo. Só que, além de tocar-me no corpo, ela
encostava em meus joelhos.
“Foi espontâneo”, eu disse, “aconteceu na hora. Eu não preparei nada.
Quero lhe dizer que aquela postura de macho arrependido traído de
Eduardo me irritou. E ainda lembrei de outra pessoa dos meus afetos e, de
algum modo, pensei nela ao fazer minha defesa, quer dizer, acusação”, eu
ri.
A doutora Matilde deu uma sonora risada.
“Não precisa pedir desculpas, querido”, e a doutora Matilde deixou sua
mão cada vez mais próxima do meu pau, por cima da minha calça, como
se fosse a festinha que se faz num amigo. “Na minha opinião, você é um
daqueles poucos advogados capazes de trair as práticas judiciárias para se
colocar ao lado da verdadeira justiça, ao lado das mulheres vítimas de
assédio e feminicídio, cada vez em maior número neste país. Posso?”
Entendi que o seu pedido se ligava ao fato de ela ter desabotoado os
botões da minha calça e segurado com toda a gentileza o meu pau. Eu
estava encantado.
“Por favor, doutora.”
“Mas antes de fazer uma outra coisa, devo explicar-lhe algo muito
importante, está bem?”
“Claro.”
“Não transo com homens, pois gosto das mulheres. Mas creio que até
minha companheira entenderá o que vou fazer, embora eu nem pense em
contar a ela. Não vou trepar com você, pois isso seria forçar o meu corpo.
Mas posso chupar o seu pau, se você não se importar. É um modo de
render-me à sua atuação tão sensível no julgamento e recompensá-lo por
isso.”
Ela já estava com o meu pau em sua boca e abrira apenas a blusa, como
a mostrar-me que era uma mulher. E levantara a saia para masturbar-se. O
fato de ela ser uma juíza sem dúvida aumentava o meu tesão, aumentava
muito. Era como se eu me rebelasse contra todos aqueles anos exercendo a
advocacia, contrariando os códigos. Era como se eu fodesse a própria
justiça, tão hipócrita neste país. E eu mal podia grunhir:
“Você me mata, doutora Matilde.”
“Sim, vou acabar com você”, ela falou e riu, também grunhindo por
causa da sua boca cheia. E foi desse modo que ainda disse: “Pode gozar na
minha boca”.
E foi o que não demorei a fazer, porque o meu tesão era forte demais. E
quando o meu pau já amolecia, mas ainda em sua boca, o que era uma
sensação deliciosa, ainda de poder, a doutora Matilde gozava com as mãos
até chegar a um clímax tão intenso que teve de pegar uma almofada para
abafar seus gritos.
Depois nos recompusemos rapidamente, pois a doutora Matilde ainda
tinha obrigações a cumprir. Levou-me até a porta e, dessa vez,
cumprimentou-me estendendo a mão, como se voltasse à solenidade do
seu cargo. E disse:
“Não vamos nos explicar mais, certo? Nossos gestos já expressaram
tudo.”
“Certo”, eu disse. “A senhora tem toda a razão.”
Gra a atualizada segundo o Acordo Ortográ co da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor
no Brasil em 2009.
Capa
Rita da Costa Aguiar
Foto de capa
Bruna Prado
Preparação
Heloisa Jahn
Revisão
Camila Saraiva
Luciane H. Gomide
Versão digital
Rafael Alt
978-65-5782-308-8
Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da cção; não se referem a
pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles.