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Cartas para Vigotski

Ensaios em Psicologia Clínica Histórico-Cultural

Para referência:

LIMA, A. I. B. (org.) Cartas para Vigotski: ensaios em psicologia clínica


histórico-cultural. 1 ed. Fortaleza: Editora da UECE, 2020.
Desafios da Prática Clínica
Janailson Monteiro Clarindo
Fortaleza, 10 de setembro de 2019.

Caro Lev S. Vigotski,


É com muita satisfação que finalmente escrevo a você. Não vou come-
ter o disparate de afirmar que é meu amigo, pois nunca ouviu falar de mim,
ainda assim, inicio esta carta com a palavra “caro”, porque é exatamente
isso que sua figura representa para mim. Você está presente materialmente
em minha vida há pelo menos doze anos, desde o momento em que come-
cei a desbravar os meandros dessa fascinante ciência que é a Psicologia.
Lembro da primeira vez que li um texto seu, em meados de 2007
em uma das salas ao mesmo tempo velhas e aconchegantes do Centro
de Humanidades da Universidade Federal do Ceará (UFC). Meu pensa-
mento foi mais ou menos esse: “o que afinal este homem está tentando
falar?”. Não o entendi. Percebi que seu discurso tinha uma base marxista,
mas ao mesmo tempo trazia algo de muito original que eu não conseguia
compreender por completo. Falava de dialética e de funções psicológicas,
levava o discurso de Marx e Engels para um campo psicológico e linguís-
tico; colocava a infância em uma posição privilegiada para se compreen-
der o desenvolvimento humano, mas não era um pedológico; tratava da
luta de classes, da atividade humana na sociedade e da fala internalizada
como uma nova etapa do processo de socialização; discutia imaginação,
memória, atenção, abstração e emoção a partir da mediação dos signos
linguísticos... Enfim, foi simplesmente demais para mim. E, por isso,

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pensei que aquela não seria uma teoria que me interessaria. Hoje, posso
dizer que meramente ainda não dominava os recursos simbólicos neces-
sários para compreender o que dizia.
Foram necessários alguns grupos de estudo, leitura de comentadores
e até um vídeo explicativo de Marta Kohl de Oliveira acerca das ideias
básicas de sua teoria para que eu pudesse finalmente começar a entender
o que estava querendo dizer. Entendi que almejava criar uma Psicologia
Geral, com princípios explicativos que fossem suficientes para desenvol-
ver os estudos dessa ciência de maneira mais responsável e alinhada com
os processos psicológicos humanos. Podemos dizer, portanto, que diver-
sos mediadores simbólicos e sociais, conseguidos com esforço e auxílio
de diferentes mestres, ajudaram-me nesse início de jornada.
Interessante pensar que, apesar de sua morte prematura em 1934, as
centenas de trabalhos que deixou escritos sobreviveram para a posterida-
de. Superando a censura de Stalin, a barreira da Guerra Fria, as pobres tra-
duções dos cognitivistas estadunidenses do final do século passado e, com
duras penas, finalmente ganharam a notoriedade que mereciam ao redor
do mundo no século XXI e, para mim não menos importante, chegarem
até as mãos de um jovem de dezenove anos cheio de sonhos e dúvidas.
Quando finalmente comecei a entender o que dizia em seus trabalhos,
lembro de pensar: “achei minha abordagem!”, já que é tão comum que haja
uma pressão (nem sempre saudável) sobre os estudantes de Psicologia
para que escolham uma das correntes consagradas de nossa área para usar
em uma futura prática. Pensei isso, pois notei que suas ideias ao mesmo
tempo científicas e subversivas poderiam ser os instrumentos ideais para
minhas pretensões adolescentes. Pela maneira como sua teoria chegou até
mim, acreditei que seria capaz de usá-la para mudar o mundo a partir de
uma atuação engajada, comprometida ética e politicamente com a socie-
dade brasileira. Percebe a importância que teve para mim já desde cedo?
Mais para o fim de meu curso, a figura da professora Veriana de Fátima
Rodrigues Colaço foi de extrema importância para minha formação, ela me
ajudou a lapidar as interpretações que tinha sobre sua teoria, mediando
um processo de aprendizagem mais significativo e conectado com o que
você realmente queria dizer.

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Claro, como em qualquer jornada pessoal rumo a um mundo me-
lhor, entraves foram encontrados, não havia só uma “pedra no caminho”,
o próprio caminho era feito de pedras, se me permite o tom jocoso. Pela
maneira como tive contato com sua teoria, acreditei ser possível usá-la
somente se, após formado, fosse atuar nas áreas da Psicologia Social ou
da Psicologia Escolar/Educacional, e essas foram áreas que não me
foram possíveis de adentrar, devido à realidade social e mate- rial de
meu país. Se quisesse atuar como psicólogo social, teria que ir para as
políticas públicas, que, por mais que estivessem em expansão noinício da
segunda década desse século, ainda representavam uma área de
condições não favoráveis para os profissionais psi, devido, princi-
palmente, aos baixos salários e à instabilidade empregatícia. Se optasse
pela área educacional, seria obrigado a entrar no mercado das escolas
privadas de Fortaleza, espaços que raramente oferecem condições reais
para que possamos aplicar, de fato, os princípios teórico e metodoló-
gicos de sua teoria.
Enfim, vi-me em um dilema (ou em uma crise, se preferir), meus
sonhos pueris de adolescente esbarravam na dura realidade de meu país
e de minha categoria. Para tentar viver conforme meus ideais, teria que
enfrentar dificuldades materiais as quais simplesmente não tinha con-
dições de enfrentar. Ao mesmo tempo, não queria deixar de contribuir
com a sociedade da maneira que imaginava que poderia.
Segui um caminho intermediário (ou sintético!): fui para a pós-gra-
duação. Iniciei uma pesquisa no mestrado do curso de Psicologia da UFC
que tinha como base teórica as suas ideias. Esta pesquisa resultou em uma
dissertação cujo título é “O Grupo: de espaço interacional à ferramenta
de mediação”. Estudei como sua teoria poderia auxiliar os profissionais
da Psicologia e da Educação a utilizar o processo grupal como um ins-
trumento de mediação para aprendizagem. Esse período foi bastante rico
para mim, principalmente, porque, mais uma vez, contei com a orientação
da professora Veriana Colaço. Tive a oportunidade de me aprofundar em
suas ideias e também na de comentadores delas, como James V. Wertsch
(acho que iria gostar dele).

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Apesar de tudo isso ter sido bastante significativo, foi uma aula de
uma disciplina do mestrado ministrada pela professora Zulmira Aurea
Cruz Bomfim que mais marcou esse período de minha formação. Na re-
ferida aula, recebemos a visita de Ana Ignez Belém Lima para falar sobre
as possibilidades de uma atuação em psicoterapia clínica histórico-cul-
tural. Este encontro foi marcante, pois, até então, nunca havia imaginado
como sua teoria poderia se adaptar nessa área clássica da Psicologia, já
que, como disse anteriormente, a maneira como seus escritos me foram
apresentados fazia com que eu limitasse as possibilidades de utilização
de seus princípios teórico-metodológicos a certos campos de atuação.
A professora Ana Ignez Lima me surpreendeu ao falar que, já há al-
guns anos, supervisionava estágios em psicologia clínica na Universidade
Estadual do Ceará (UECE), instituição na qual é docente até hoje. Neste
encontro, ela nos brindou com algumas reflexões que nos faziam vislum-
brar a possibilidade de uma atuação clínica histórico-cultural. Fiquei tão
interessado que conversei com a professora e, pouco tempo depois, fiz
parte da primeira turma do curso de Formação em Psicologia Clínica
Histórico-Cultural organizado por ela. Neste curso, tive contato, pela
primeira vez, com escritos seus com o tema da clínica psicológica, assim
como de discussões acerca da possibilidade de adaptação dessa clínica à
psicoterapia contemporânea.
Ao final do curso, já com o título de mestre, lecionava em Instituições
de Ensino Superior, ministrando disciplinas ligadas à sua teoria. Foi nesse
período que, enfim, comecei a atuar na clínica psicológica, com psicote-
rapia individual e, claro, usando como base a sua teoria.
É neste ponto que convém dizer a você o meu principal objetivo ao
escrever esta carta. Por mais que o curso tenha me ajudado, ao iniciar
minha prática percebi que muitas perguntas ainda estavam sem resposta,
principalmente em relação aos princípios metodológicos de uma atuação
clínica de base histórico-cultural. Percebi os desafios concernentes a tal
prática e gostaria de dividi-los com você. Por isso, tentarei aqui, justa-
mente, refletir acerca dos desafios de uma prática clínica alinhada com
os preceitos teóricos e metodológicos da Psicologia Histórico-Cultural.

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Tendo esse objetivo em vista ao escrever esta carta, convém dizer
como decidi organizá-la. Primeiro falarei sobre as dificuldades históricas
no que tange à organização de uma Psicologia clínica histórico-cultural,
tentando levar em consideração tanto o meu contexto social e cultural,
quanto o contexto inicial de desenvolvimento de sua teoria na antiga
União Soviética. Depois pretendo falar um pouco sobre as dificuldades
metodológicas e teóricas que envolvem a formulação de tal prática. Por
fim, falarei dos desafios práticos que se relacionam com a técnica do pro-
fissional no contexto da clínica.
Apesar de saber que nossa interlocução está limitada por uma bar-
reira temporal e que não receberei uma resposta sua, pelo menos não di-
retamente, foi você mesmo que me ensinou que na medida em que me
expresso verbalmente, seja pela fala ou pela escrita, não estou apenas ex-
ternando meus pensamentos, mas sim os construindo, pois pensamento
e linguagem são duas linhas de desenvolvimento que se entrelaçam e não
mais se separam no desenvolvimento das funções psicológicas superio-
res (VIGOTSKI, 2000). Assim, espero poder construir novas respostas
para superar (dialeticamente, claro) os desafios que doravante apresen-
tarei a você.

Desafios históricos para a formulação de


uma clínica histórico-cultural

Contexto histórico na URSS

Hoje, temos uma visão privilegiada dos processos históricos que


ocorreram na União Soviética durante o período de desenvolvimento de
seus estudos e imediatamente posterior a ele. Para entendermos os
desafios de se compor uma prática clínica histórico-cultural, precisa-
mos visualizar como se desenvolveram os acontecimentos ligados a tal
prática desde aquela época até hoje, afinal, como você mesmo disse em
referência à máxima aristotélica, um fenômeno só mostra o que de fato
é em movimento.

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Convém destacar que, como nos mostram Maria Aparecida Santiago
da Silva e Silvana Calvo Tuleski (2015), logo após os anos de guerra civel
na Rússia pós-revolução, os estudos relativos às doenças mentais e à saúde
psíquica eram delegados à Psiquiatria. No projeto de sociedade comunista
que vinha ganhando forma, à Psicologia cabia o papel de formar o novo
ser humano que estava nascendo. Este novo sujeito deveria representar
os valores comunistas da sociedade soviética. Logo, a Psiquiatria estava
mais próxima dos estudos sobre saúde e doença, normalmente ligados ao
saber clínico, e a Psicologia estava mais envolvida com a educação, obje-
tivando entender o desenvolvimento da consciência humana.
Durante o governo de Stálin, que começou em 1924 e foi até 1953,
houve diversas censuras em relação aos tipos de pesquisas e aos rumos
das teorias que estavam nascendo, inclusive seus estudos, sinto dizer, fo-
ram proibidos por vários anos após a sua morte. Eles foram considerados
pouco condizentes com os objetivos do regime, que priorizou as bases
teóricas reflexológicas pavlovianas. Com efeito, seus estudos foram con-
siderados subversivos dentro da própria União Soviética! Imagino que
isso possa incomodá-lo, tendo em vista o engajamento pessoal e político
que teve com o regime, mas, para mim, tais proibições indicam apenas a
potência transformadora que suas ideias têm.

Lev S. Vigotski foi psicólogo clínico?

A censura de seus escritos gerou alguns problemas no que tange ao


acesso às suas ideias, por isso, neste subtítulo, faço essa pergunta, que
sei ser óbvia para você, mas para a maioria de seus leitores atuais não é.
Como disse antes, seus textos chegaram no ocidente de maneira bastante
específica. Fernando Luis Gonzales Rey (2007a), psicólogo cubano que
passou grande parte de sua vida no Brasil desenvolvendo estudos a partir
de sua teoria, resume bem como seu trabalho inicialmente chegou até nós.

Por um lado, Vigotski entra nos Estados Unidos através


dos trabalhos de Bruner, psicólogo dedicado às ques-
tões de educação e do desenvolvimento, que foi um dos
pioneiros da Psicologia cognitiva, com a qual, apesar de

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sua ruptura, mantém pontos de contato que o levam a
centrar-se nos significados como categoria central do
desenvolvimento do enfoque sociocultural americano.
As questões das emoções e da personalidade, presentes
na obra de Vigotski, são completamente ignoradas nes-
sa perspectiva. Por sua vez, Vigotski entra na Psicologia
ocidental, especificamente na América Latina, com ex-
ceção de Cuba, através de sua significação para o de-
senvolvimento da Psicologia social, ressaltando-se o
valor político da obra de Vigotski para o desenvolvi-
mento de uma Psicologia social apoiada no marxismo.
De ambas as perspectivas, as questões da personali-
dade, o sujeito e a patologia, aspectos centrais para o
desenvolvimento de uma posição na clínica, são pouco
trabalhados (p. 198).

Com isso, destacamos que uma parte de seu trabalho foi negligencia-
da ou simplesmente esquecida no momento em que suas ideias inicial-
mente chegaram aqui. E a parte deixada de lado era justamente aquela
que nos ajudaria a entender a sua preocupação com as psicopatologias e
seu trabalho na clínica.
Tal situação desenrolou-se de maneira tão enviesada que, para muitos,
ainda hoje, é uma surpresa quando afirmamos que você fez trabalhos no
contexto da clínica psicológica. Precisamos, muitas vezes, recorrer ao li-
vro de Jaan Valsiner e René van der Veer (2000), teóricos dedicados aos
seus estudos e de seus colegas soviéticos, que lançaram talvez sua mais
famosa biografia, e nesta eles são claros:

Ele [Vigotski] não era um psicólogo infantil, mas um psi-


cólogo que se tornou cada vez mais interessado no pro-
blema teórico do desenvolvimento, o qual o levou a es-
tudar a diversidade cultural, patologia cerebral e outras
disciplinas. Por inclinação ele era um psicólogo teórico.
Na prática, seu trabalho aplicado dava-se mais em set-
tings clínicos (p. 339).

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São esses mesmo autores que ainda detalham que você realizou es-
tudos com pacientes histéricas, parkinsonianos, afásicos, esquizofrê-
nicos e pessoas com a doença de Pick. Ou seja, para nós fica evidente
que seu interesse na compreensão do psiquismo humano não o limitava
ao desenvolvimento de pesquisas em uma área ou outra da Psicologia,
como seu intento era de criar uma Psicologia Geral, seus trabalhos fo-
ram abrangentes o suficiente para abarcarem os mais diversos campos
da atuação psicológica.
Outra autora que nos ajuda a compreender seu papel nos estudos
voltados para a Psicologia clínica e Psiquiatria é a sua contemporânea
Bluma V. Zeigarnik (1979), que trabalhou junto a você nos últimos anos de
sua vida e, devido a tal influência, desenvolveu estudos em uma linha de
atuação que chamou de Patopsicologia Experimental, ciência que ela
classificou como intermediária entre Psicologia e Psiquiatria. Sobre o
encontro de vocês dois e a influência que teve no trabalho dela, Silva e
Tuleski (2015) dizem o seguinte:

Dessa maneira, a psicologia de Vigotski deu base à ex-


plicação de determinados transtornos mentais, que eram
tratados apenas no âmbito da psiquiatria, tida como o
campo científico competente para lidar com a saúde
mental [...] Zeigarnik trabalhou com Vigotski nesse pe-
ríodo, na segunda etapa de sua história profissional.
Esse encontro com a psicologia vigotskiana produziu
uma transformação em sua carreira, tornando-se a base
de todo o seu trabalho subsequente na Patopsicologia
Experimental” (p. 211).

Assim sendo, não resta dúvidas de seu papel essencial no desenvolvi-


mento de uma atuação clínica no contexto soviético de sua época. Isso, de
maneira nenhuma, quer dizer que você era apenas um psicólogo clínico,
já que hoje, com acesso a quase todas as suas obras, entendemos a vas-
tidão e importância de seu trabalho. Sabemos que foi um educador, um
pesquisador, um idealista... Mas o que acredito que não pode ocorrer é
o esquecimento de uma parte essencial de seus trabalhos, parte inclusive

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mais relacionada aos últimos anos de sua vida. Ou seja, imagino que não
esteja satisfeito em saber que o campo de interesse que mais o envolvia
no período de sua morte é justamente o mais negligenciado hoje. Para en-
cerrar essa parte (que percebo, agora, ao ler novamente, ter sido quase um
desabafo), copio a fala de Aquilles Delari Junior (2012) sobre o assunto:

Evidentemente, foi um grande educador, professor, pa-


lestrante, mas teve essa característica (pouco lembrada
pelos comentaristas menos informados) de ter clinica-
do, na linha da clínica pedológica. Pedologia era enten-
dida como uma ciência geral para o entendimento do
desenvolvimento da criança. Também atesta o trabalho
de Vigotski como clínico o fato de que a prevista, mas
ainda não acertada, publicação de suas obras completas
conterá seus ‘Cadernos clínicos’ (incluindo o caderno da
Clínica de Don, 1933-34) contendo conversações com
pacientes e casos clínicos... o que comprova que ele mes-
mo não só trabalhou com clínica como também registrou
suas intervenções.
De fato, Vigotski não apenas trabalhou com crianças como
recebia seus pais, e procedia a entrevistas, elaborava diag-
nósticos e tinha sua própria posição crítica quanto a como
proceder ao diagnóstico, na época (p. 4).

Tendo tudo isso em vista, e lembrando que anteriormente disse que


tentaria refletir acerca dos desafios de uma prática clínica alinhada com
os preceitos teóricos e metodológicos da Psicologia Histórico-Cultural,
uma pergunta que me acometeu durante o início de minha própria prá-
tica clínica foi: “mesmo tendo Vigotski sido também um psicólogo clí-
nico, por que a prática da clínica, inclusive psicoterápica, a partir de sua
abordagem desenvolveu-se de maneira tão incipiente de maneira geral?”.
Afinal, não podemos confundir o trabalho clínico com o psicoterápico,
sendo os dois não necessariamente interligados. Para responder a isso,
precisei, mais uma vez, recorrer aos trabalhos do cubano Gonzales Rey
(2007a; 2007b) e analisar o próprio desenvolvimento da Psicologia so-
viética em sua época.

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Barreiras para a clínica na primeira metade do século XX e
suas influências hoje
Rey (2007a; 2007b) elenca, em dois trabalhos distintos, além do
fato anteriormente mencionado a respeito da maneira enviesada que suas
obras chegam no ocidente, que podemos dizer que é o primeiro motivo
histórico que impossibilitou a formação organizada de uma clínica histó-
rico-cultural, mais outros antecedentes históricos associados à ausência
do referencial clínico no enfoque histórico-cultural, o que me ajudou so-
bremaneira a entender a quase ausência de trabalhos e pesquisas usando
sua teoria na prática clínica psicoterápica. A seguir, resumirei a maneira
como interpretei as outras argumentações do autor em mais quatro mo-
tivos principais.
O segundo motivo histórico que afastou sua teoria da prática clínica
em consultórios e demais espaços psicoterápicos individuais ou não está
relacionado à ideia soviética durante a primeira metade do século passa-
do de que era considerada burguesa qualquer produção que não coinci-
disse com a ideologia da época. Isso gerou, por exemplo, uma aversão à
Psicanálise freudiana nos círculos político e científicos (âmbitos que mui-
tas vezes eram difíceis de serem separados) da União Soviética. Freud e
seus trabalhos eram considerados como sendo a tradução de tudo aquilo
que representava a burguesia capitalista ocidental, classe à qual o regime
socialista se opunha fortemente. E tendo sido justamente os trabalhos
pioneiros de Freud que aproximaram a prática clínica médica aos cui-
dados individuais em saúde a partir de um viés semelhante ao que viria
a ser a psicoterapia psicológica, essa já se mostrou uma barreira para os
profissionais da antiga União Soviética tentarem adentrar nesse tipo de
prática com uma abordagem histórico-cultural.
O terceiro motivo é melhor compreendido ao estudarmos o surgi-
mento da Patopsicologia Experimental (SILVA, 2014). Hoje vemos com
mais clareza que o regime soviético fazia questão de separar a Psiquiatria
da Psicologia, sendo aquela mais voltada para a resolução das doenças
mentais e questões relacionadas à dinâmica saudável-patológico e esta mais
voltada para o âmbito da educação. Ou seja, enquanto cabia à Psiquiatria

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estudar as doenças mentais, era da Psicologia a missão de formar o novo
homem socialista que surgia com o advento do regime. Esse fator foi es-
sencial, inclusive, para a proibição de seus trabalhos no período do regi-
me stalinista, já que você ousava falar de questões patológicas a partir de
uma visão típica da Psicologia.
O quarto motivo para o afastamento histórico da Psicologia Histórico-
Cultural dos estudos clínicos e psicoterápicos também está relacionado
ao controle que o regime soviético almejava ter da narrativa relacionada
à constituição da nova sociedade socialista. Essa nova sociedade deveria
refletir as benesses que o novo regime supostamente estaria fornecendo
e uma prática clínica nos moldes das que se estavam ocorrendo no oci-
dente, com uma orientação psicoterápica, semelhante à prática médica,
com sessões periódicas particulares em consultório, voltada para a análise
do desenvolvimento pessoal do sujeito, levando em consideração traumas
e suas relações sociais, iria provavelmente evidenciar as falhas e prejuí-
zos que o sistema sócio-político ditatorial socialista estaria infringindo às
pessoas. Afinal, esta é uma das funções da clínica psicoterápica, ajudar o
sujeito a se situar na teia sociocultural a qual faz parte, entendendo que
tipo de opressões sofre da sociedade e como pode se proteger delas, ou
se subverter em relação a elas. Ou seja, uma prática clínica voltada para a
saúde pessoal do sujeito não combinava com a propaganda socialista stali-
nista: uma pessoa saudável deveria ser reflexo de uma sociedade saudável.
O quinto motivo, por sua vez, está ligado à Teoria da Atividade de
Alexis Nikolaevich Leontiev. Hoje, sendo sua biografia mais conhecida,
sabemos que seu relacionamento com Leontiev se desgastou com o pas-
sar do tempo devido, principalmente, a discordâncias teóricas. Ele estava
mais centrado na questão da Atividade como sendo a categoria central
do desenvolvimento humano e você continuava dando destaque a outros
temas, como a relação entre pensamento e linguagem e a mediação sim-
bólica no desenvolvimento das funções psíquicas superiores. Acredito
que este seja um assunto delicado para você, tendo em vista a proximida-
de que tiveram, mas preciso ser sincero e dizer que a teoria de Leontiev,
após a sua morte, foi, de certa maneira, considerada a sucessora natural

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da sua. A maneira como ele via a relação entre atividade externa e interna
de forma mais direta e sem necessariamente a ênfase na visão subjetiva
do sujeito a respeito de suas relações materiais encontrou um solo mais
fértil no campo político de meados do século XX na União Soviética.
Sobre isso, Rey (2007a) diz que este enfoque “se distanciou dos aspec-
tos da obra de Vigotski mais comprometidos com o desenvolvimento de
uma teoria da subjetividade”. Então, aspectos da teoria que enfocavam nos
processos de desenvolvimento ontológicos, mesmo que este ontológico
não pudesse ser visto separado da sociedade, não eram muito aceitos. A
ênfase deveria ser dada aos processos de organização social.
A partir disso, temos um cenário na própria União Soviética que di-
ficultou a difusão de estudos e pesquisas voltadas para a área clínica a
partir da Psicologia Histórico-Cultural no resto do mundo. Sendo assim,
percebemos um contexto bastante hostil para a formação de uma clínica
histórico-cultural tanto no oriente quanto no ocidente em anos subse-
quentes. Esse cenário só começou a mudar na própria Rússia no final do
século passado, mas no ocidente tal mudança está ainda mais atrasada,
com exceção de Cuba, como dissemos.
Delari Júnior (2012), ao falar justamente sobre os desafios de abor-
dar o sujeito e a clínica histórico-cultural, resume bem a falta de conhe-
cimento que ainda temos a respeito do tema. Em primeiro lugar, ele diz
que a própria Psicologia Histórico-Cultural e sua concepção diante do
ser humano não é hegemônica dentro da seara da ciência psicológica,
sendo pouco usada como base sequer em outras áreas de atuação do psi-
cólogo. O fato de você ter sido um autor proscrito em seu país por pelo
menos vinte anos contribuiu para a pouco divulgação de seu trabalho
aqui, segundo ele.
Além disso, no interior dos próprios círculos que estudam seus traba-
lhos aqui no Brasil, há dificuldade em desassociar a clínica psicoterápica
de uma atuação individualista e elitista, maneira como ela inicialmente
se firmou por aqui e por vários outros países.
No entanto, se compreendermos sua visão do que é o ser humano, sa-
beremos que onde há alguém pensando/sentindo, há um reflexo psíquico

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da sociedade em decurso. Ou seja, uma atuação a partir de um viés histó-
rico-cultural é eminentemente social e política, independente de ocorrer
em praça pública, em uma empresa, em uma escola ou em um consultório.
Sobre isso, Delari Júnior (2012), referindo-se a um de seus trabalhos
mais antigos sobre Psicologia, diz que:

Já em seu trabalho de 1925, Psicologia da arte (Vigotski,


1925/1999), mostra-se que não há uma dicotomia en-
tre o social e o individual em sua concepção, tampouco
um reducionismo do segundo ao primeiro. Ocorre que
Vigotski não diferencia a “psicologia individual” da “psi-
cologia social”, mas sim da “psicologia coletiva”, sendo
tanto a individual quanto a coletiva sociais em sua ori-
gem e funcionamento (p. 5).

Entender sua Psicologia como sendo necessariamente possível ape-


nas em um contexto coletivo é, portanto, um reducionismo de sua teo-
ria. Mesmo seu manuscrito de 1929 já falava sobre a lei genética geral
do desenvolvimento cultural, que, em suas próprias palavras, atesta que
“qualquer função no desenvolvimento cultural da criança aparece em
cena duas vezes, em dois planos – primeiro no social, depois no psicoló-
gico, primeiro entre as pessoas como categoria interpsicológica, depois
– dentro da criança” (VIGOTSKI, 2000, p. 26). Mais tarde, Angel Pino
Sirgado (2000) resumiu de maneira simples a lei que você formulou da
seguinte maneira: “toda função psicológica foi anteriormente uma rela-
ção entre duas pessoas” (p. 46).
Dessa forma, não faz sentido dividir a atuação psicológica em social
ou individual a partir da visão histórico-cultural. Evidentemente, de ma-
neira alguma quero desvincular seus trabalhos de uma tradição marxista
e negar a análise que fez do ser humano a partir da dinâmica de explora-
ção inerente às relações de produção e à luta de classes. Desejo apenas
deixar claro que a clínica psicológica, inclusive de caráter psicoterápico,
individual ou não, não deve ser expulsa da área de possibilidades do psi-
cólogo que segue sua tradição teórica.

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Desafios teórico-metodológicos
Primeiramente, precisamos reiterar a discussão a respeito da escas-
sez de trabalhos que abordem essa temática da clínica histórico-cultural.
Sei que, hoje, na Rússia, há alguns estudiosos que se debruçam sobre o
tema, no entanto nosso acesso a tais estudos é precário, problema agrava-
do pela barreira linguística. O mesmo ocorre com o Enfoque Histórico-
Cultural cubano sobre a temática. Com isso, é quase hercúlea a tarefa de
elaborar uma prática clínica que possa ser de fato considerada herdeira
de sua teoria é aliar as bases teórico-metodológico dela aos princípios
fundamentais que você elaborou ao desenvolver sua teoria.
Em trabalhos diferentes (1995, 2007, 2017), você organiza três prin-
cípios básicos que caracterizam a sua forma de ver o ser humano e a for-
ma como devemos proceder na análise e atuação prática para conseguir-
mos abarcar toda a complexidade inerente a tal sujeito no que se refere
ao surgimento e desenvolvimento de suas funções psicológicas superio-
res. Ou, em suas palavras: “três momentos determinantes sobre os quais
se apoia a análise das formas superiores de comportamento e que cons-
tituem a base de nossas investigações1” (VIGOTSKI, 1995, p. 100). Ou
seja, são três princípios básicos de seu método genético.
Eu considero que, se um profissional respeita esses três princípios, seja
na pesquisa ou na intervenção, em qualquer área de atuação da Psicologia,
estará realizando uma atuação histórico-cultural. Assim, resumirei a for-
ma como entendo esses princípios a seguir para deixar evidente que ca-
minho temos que percorrer na clínica para que esta possa ser vista como
histórico-cultural.
O primeiro princípio é analisar processos e não objetos. Ao falar
isso, acredito que você estava mandando uma mensagem clara para a for-
ma como as avaliações psicológicas e análises dos processos psíquicos se
davam hegemonicamente na Psicologia de sua época. A capacidade indi-
vidual e o estado atual de desenvolvimento do sujeito eram priorizados.
Ao fazer suas intervenções clínicas (VIGOTSKI, 1997), porém, você

1 Todos os trechos de obras em outras línguas foram livremente traduzidos por mim.

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buscava observar como o sujeito chegava até o ponto de desenvolvimento
em que estava ou desenvolvia um nível mais avançado com o auxílio do
pesquisador. Ou seja, mais importante do que saber o que o sujeito faz, é
saber como o faz. Ou, mais uma vez utilizando a máxima aristotélica: “só
em movimento um corpo mostra o que é”. Assim, as formas superiores
de conduta não devem ser vistas como objetos, coisas a serem analisadas,
mas sim como processos em constante transformação.
Em suas palavras:

Se no lugar de analisar o objeto analisássemos o processo,


nossa missão principal seria, naturalmente, a de reesta-
belecer geneticamente todos os momentos de desenvol-
vimento do referido processo. Nesse caso a tarefa funda-
mental da análise seria a de voltar o processo a sua etapa
inicial ou, dito de outro modo, converter o objeto em pro-
cesso (1995, p. 101).

Compreendendo que tal princípio se traduz como um desafio teóri-


co-metodológico para o desenvolvimento de uma prática-clínica históri-
co-cultural na medida em que subverte uma ideia corrente de que uma
intervenção clínica de ordem psicoterápica deve ser teleológica. Ou seja,
deve ter um fim predeterminado, um objetivo específico a ser alcançado.
Uma pessoa que busca um tratamento psicológico o faz, na maioria dos
casos, por notar a presença de um ou mais sintomas que a estão preju-
dicando em seus processos inter e intrapsíquicos. Alguém que está com
sintomas de ansiedade, normalmente, busca tratamento para fazer com
que tais sintomas desapareçam. Ponto final.
Se levarmos em consideração o princípio de analisar os processos e não
os objetos, nosso foco seria em converter o objeto específico, alvo da aten-
ção do sujeito, em um processo. Teríamos que fazer uma análise genética
do fenômeno e voltar a suas etapas iniciais, com o intuito de observá-lo em
desenvolvimento. A tarefa do profissional seria a de realizar uma “recons-
trução de cada estágio no desenvolvimento do processo: deve-se fazer com
que o processo retorne aos seus estágios iniciais” (VIGOTSKI, 2007, p. 64).

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O resultado gerado a partir dessa intervenção não necessariamen-
te seria o desejado pela pessoa em tratamento, mas, ao meu ver, poderia
potencializar outros tipos de desenvolvimento que nem mesmo imagi-
návamos que seriam levados em consideração. Logo, uma intervenção na
clínica histórico-cultural não poderia ter um objeto específico eviden-
te antes mesmo do início da intervenção, teríamos que trabalhar com a
ideia de que mais importante do que o objeto que estamos analisando, é
o processo de seu desenvolvimento e os desenvolvimentos que advirão
da intervenção.
O segundo princípio de seu método genético sustenta-se na ideia
de se enfatizar a explicação e não a descrição dos processos analisados,
ou seja, nossa análise precisa ser genotípica, buscando a gênese dos pro-
cessos, e não fenotípica, observando apenas a aparência do fenômeno.
Nesse caso, você nos ensina que embora certas atividades possuam mani-
festações externas semelhantes, elas podem diferir radicalmente em sua
essência. É necessário sermos criteriosos a respeito da natureza interna
dos fenômenos, apesar das características externas deles. Para isso, é pre-
ciso explicá-los, e não apenas descrevê-los do ponto de vista fenomênico.
Você disse que “o fenômeno não se define por sua forma externa,
mas sim por sua origem real” (VIGOTSKI, 1995, p. 102). O que leva à
busca da origem dinâmico-causal (por meio de uma análise genético-con-
dicional, termo que tomou emprestado de Kurt Lewin) dos fenômenos
que percebemos, ou seja, da relação entre a origem e a aparência deles.
Assim, esse tipo de análise se interessa “pelo surgimento e aparição, pe-
las causas e condições e por todos os vínculos reais que constituem os
fundamentos de algum fenômeno” (VIGOTSKI, 1995, p. 103).
Sendo assim, em uma prática clínica histórico-cultural, devemos rea-
lizar uma análise genética, ou seja, descobrir a gênese do fenômeno, suas
bases dinâmico-causais, a relação entre sua origem e sua manifestação.
Desvelar essas relações deve ser, portanto, uma das principais missões do
profissional no contexto dessa clínica. Isso, como pode imaginar, constitui,
ao meu ver, mais um desafio: a simples descrição de sintomas psicológicos
e/ou físicos não deve ser a base da análise do profissional. Nem mesmo

154
a fala externa da pessoa em tratamento deve ser tomada de forma literal
e considerada como um material ideal para a análise dos fenômenos que
serão trabalhados. O psicólogo clínico não deve se ater simplesmente à
descrição, à aparência, ao invés disso é necessário que busque os nexos
entre o que é dito, o que é percebido como evidente, e a origem, a real
natureza, a essência do fenômeno.
Esta tarefa, como pode imaginar, não é nada fácil quando envolve
processos de saúde e doença mental. O psicólogo deve ter em mente con-
ceitos fundamentais da teoria para conseguir analisar os fenômenos que
envolvem as funções psicológicas superiores das pessoas em tratamento.
Então, a história de vida do sujeito e a história do desenvolvimento dos
processos em análise a partir de um contexto de relações sociais é essen-
cial para se realizar essa análise genotípica em detrimento da fenotípica.
Para tentar levar tal princípio (e também o anterior) para a minha práti-
ca clínica, gosto de pensar que mais importante do que o estado atual de
determinado fenômeno que gera sofrimento psíquico, é como ele che-
gou até o estado atual.
O terceiro princípio de seu método que acaba por gerar um outro
desafio teórico-metodológico para a prática clínica é descrito por você
como o problema do comportamento fossilizado. Os comportamentos
fossilizados, como nos explica, são os processos psicológicos e compor-
tamentais que se automatizaram ao longo do tempo, já estão ocorrendo
na vida pessoal do indivíduo há um longo tempo, de tal forma que sua
origem histórica se encontra muito distante, assim já ocorrem de manei-
ra mecânica e repetem-se sem a necessidade de profunda reflexão. Em
suma, perderam sua aparência original.
Mais uma vez, ao estudarmos um fenômeno psicológico, “precisa-
mos compreender sua origem. Consequentemente, precisamos concen-
trar-nos não no produto do desenvolvimento, mas no próprio processo
de estabelecimento das formas superiores” (VIGOTSKI, 2007, p. 68).
Esse princípio, em um primeiro momento, não parece acrescentar muito
mais do que os anteriores à discussão, no entanto, ao falar dele, você traz
um aspecto muito importante, que é justamente o caráter interventivo

155
do pesquisador. Em suas palavras, “o pesquisador é frequentemente for-
çado a alterar o caráter automático, mecanizado e fossilizado das formas
superiores de comportamento, fazendo-as retornar à sua origem através
do experimento. Esse é o objetivo da análise dinâmica” (VIGOTSKI,
2007, p. 68). Assim sendo, o pesquisador intervém durante o processo
de análise e tenta, junto ao sujeito que participa do processo, recriar as
etapas do fenômeno estudado até que se possa retornar à sua origem. O
objetivo, com isso, é estudar o fenômeno historicamente, pois “Estudar
alguma coisa historicamente significa estudá-la no processo de mudança:
esse é o requisito básico do método dialético” (VIGOTSKI, 2007, p. 68).
Esse princípio traz uma consequência muito importante para a atua-
ção clínica histórico-cultural, uma vez que nos mostra que o método na
clínica precisa ser interventivo. O psicólogo não pode assumir uma po-
sição não diretiva e apenas deixar fluir o discurso da pessoa, ele deve as-
sumir um posicionamento ativo e auxiliar o sujeito a recriar a história do
desenvolvimento do fenômeno em questão. Esse processo deve ocorrer
a partir de uma interação direta entre o profissional e o sujeito em tra-
tamento. Aqui reside um grande desafio, já que o profissional deve atuar de
maneira direta, interventiva. Já que deve ser, em outras palavras, um
mediador, a grande pergunta que surge é: como?
Que tipo de estratégias devem ser usadas para caracterizar um méto-
do de atuação histórico-cultural? Como deve ser, de fato, essa interação
interventiva do profissional? O que, afinal, significa ser um mediador na
clínica? Essas são as perguntas que direcionarão a terceira parte dessa
carta que lhe escrevo e, acredito eu, serem as perguntas que traduzem de
maneira mais concreta os desafios dessa prática.

Desafios prático-estratégicos
Confesso que por muito tempo tive dificuldades em entender sepa-
radamente os três princípios do método explicitados acima, pois eles são
muito semelhantes e acabam descrevendo a mesma necessidade, sempre:
a de retornar à origem dos fenômenos. Hoje, compreendo que não devo

156
entendê-los separadamente, pois, de fato, falam exatamente sobre o mes-
mo procedimento. É uma forma específica de ver como atuam as funções
psicológicas superiores: (1) analisando suas manifestações em seu pro-
cesso de desenvolvimento, (2) entendendo a relação entre a origem des-
sas manifestações e sua atual aparência e (3) reconstruindo as etapas do
desenvolvimento de tais manifestações para que retornem à sua origem.
Logo acima, refleti um pouco acerca de como tais princípios trans-
formam-se em desafios em uma área tão incipiente da prática psicológica
como a psicologia clínica histórico-cultural. E algo que ficou claro a partir
desses desafios destacados é que, para se respeitar os princípios do método,
é necessário que o psicólogo seja um agente ativo no processo clínico, in-
clusive (talvez principalmente) no psicoterápico. Ser um sujeito ativo nessa
perspectiva não significa ditar regras, dizer o que a pessoa tem que fazer,
passar para ela um roteiro das estratégias que a levarão rumo à saúde. Não
cabe ao psicólogo criar uma panaceia para os problemas psíquicos que en-
volvem a dinâmica saúde-doença. Ser um agente ativo, ter uma abordagem
diretiva nessa perspectiva, ao meu ver, significa assumir um papel mediador.
E o que exatamente isso significa constitui o desafio final da prática
clínica que abordarei aqui. Com efeito, significa que, para respeitarmos
o seu método genético, temos que realizar no contexto da clínica proce-
dimentos semelhantes aos que você realizava em sua clínica, ou seja, o
método genético concretiza-se, na prática, a partir do método funcional
da estimulação dupla (VIGOTSKI, 2017; VIGOTSKI, 2007).
Em suas investigações, você constantemente criava tarefas, desafios,
os quais adultos e crianças deveriam resolver. As tarefas eram simples e
envolviam a avaliação do desenvolvimento das funções psicológicas dos
participantes, como memória e atenção. Você pedia, por exemplo, para o
participante pressionar um botão com a mão esquerda quando um estí-
mulo vermelho fosse mostrado e com a direita quando um estímulo ver-
de fosse mostrado; ou tarefas um pouco mais complexas, como a descrita
acima, mas com muitos outros estímulos que correspondiam a diversas
outras respostas. Às vezes, você dava instruções bem detalhadas, outras
vezes, instruções sucintas.

157
Dentre suas observações, destacou o fato de as respostas dos adultos
serem bastante diferentes das respostas das crianças. Os adultos, nor-
malmente, tentam apegar-se fortemente às instruções, enquanto as crian-
ças desejam, acima de tudo, partir diretamente para a tarefa, muitas ve-
zes ignorando as instruções. Essa é uma pista interessante a respeito das
funções psicológicas superiores, plenamente desenvolvidas nos adultos,
mas não nas crianças.
A parte mais importante de seu método e que a difere das estraté-
gias de investigação anteriores a sua reside justamente no segundo par
de estímulos que você fornecia para o sujeito realizar a tarefa, a segunda
estimulação, por assim dizer. Em um segundo momento, você repetia as
instruções, mas agora fornecia ao sujeito um instrumento mediador para
auxiliar em suas respostas, como cartões de cores diferentes ou desenhos
que permitia que as crianças fizessem para as ajudar. Essa segunda clas-
se de estímulos se configurava como meios auxiliares que serviam como
mediadores na realização das tarefas.
O interessante é que alguns desses meios auxiliares, estímulos mate-
riais de segunda ordem, por vezes, depois de um tempo, eram ignorados
pelos adultos, pois estes já internalizavam suas funções, fazendo com que
eles assumissem uma função mais simbólica no interior dos processos
psíquicos. Capacidade que as crianças de até mais ou menos oito anos
ainda não tinham. Elas ainda necessitavam dos mediadores físicos para
suas tarefas, fazendo com que assumissem uma função de signo.
O método funcional da estimulação dupla, em minha opinião, repre-
senta a materialização de seus princípios metodológicos e, de certa ma-
neira, sanou muitas de minhas dúvidas enquanto estudante e psicólogo
a respeito de como proceder durante minha atuação. Sempre acreditei
que tão importante quanto dizer o que precisa ser feito, era dizer como
deve ser feito. Em um contexto de investigação clínica pedológica, você
resume o método funcional da estimulação dupla da seguinte maneira:

Nossa abordagem para estudar esses processos é usar o


que chamamos de método funcional da estimulação dupla.
A tarefa com a qual a criança se defronta no contexto

158
experimental está, em geral, além de sua capacidade no
momento, e não pode ser resolvida com habilidades que
ela possui. Nesses casos, um objeto neutro é colocado
próximo da criança, e frequentemente podemos obser-
var como o estímulo neutro é incluído na situação e as-
sume a função de um signo. Assim, a criança incorpora
ativamente esses objetos neutros na tarefa de solucionar
o problema. Poderíamos dizer que, quando surgem di-
ficuldades, os estímulos neutros adquirem a função de
um signo e a partir desse ponto a estrutura da operação
assume um caráter diferente em essência.
Ao usar essa abordagem, não nos limitamos ao méto-
do usual que oferece ao sujeito estímulos simples dos
quais se espera uma resposta direta. Mais que isso, ofe-
recemos simultaneamente uma segunda série de estímu-
los que têm uma função especial. Dessa maneira, pode-
mos estudar o processo de realização de uma tarefa com
a ajuda de meios auxiliares específicos; assim, também
seremos capazes de descobrir a estrutura interna e o
desenvolvimento dos processos psicológicos superiores.
(VIGOTSKI, 2007, p. 82).

Então, no contexto da prática clínica, de maneira geral, sabemos o


que precisamos fazer: analisar processos e não objetos; explicar a origem
dinâmico causal da relação entre origem e aparência de um fenômeno; e
refazer as etapas do desenvolvimento de dado fenômeno para superar os
comportamentos fossilizados. E também sabemos como seguiremos esses
princípios: assumindo um papel ativo no processo de investigação/inter-
venção, um papel mediador. Para isso é necessário fornecer duas classes
de estímulos: os primários, que podem ser entendidos como orienta-
ções ou perguntas iniciais; e os secundários, que são estímulos auxiliares
fornecidos por nós ou criados no interior da relação entre profissional
e pessoa em tratamento para facilitar o processo de realização da tarefa.
Esses estímulos secundários assumem um papel de signo mediador das
funções psíquicas na realização da tarefa.

159
A partir disso, apresento a você nosso último desafio, que acredito
ser de ordem prática e estratégica: como adaptar o método funcional da
estimulação dupla para a clínica (psicoterápica) histórico-cultural?
Joaquim Quintino Aires (2006) descreve algumas técnicas, basea-
das nos estudos de Maria Rita Mendes Leal, que, segundo ele, poderiam
ser usadas em uma psicoterapia com adultos a partir de uma orientação
histórico-cultural. As técnicas dividem-se da seguinte forma:

As Técnicas Gerais são: Intercurso Mutuamente Contingente,


um padrão de interação social, como estudado por Rita Leal
(1975); Compreensão Empática, que assumindo a “eigen-
welt” do paciente reconhece a subjetividade e Pôr Verbo.
As Técnicas Específicas são: Repetição, com a intenção
de produzir uma maior verbalização da parte do pacien-
te; Marcação, com o objetivo de “apoiar” o diálogo, mas
sem o interromper; Focagem, para aumentar a ansieda-
de, promovendo maior atividade; Generalização, para
reduzir a ansiedade; Eco Emocional, ou seja, dar nome
às emoções do paciente; e Re-expressão, ou seja, des-
crever eventos de uma forma racional e objetiva.” (p. 6).

Apesar de tais técnicas parecerem eficientes em um contexto psi-


coterápico geral, talvez careçam de uma real conexão com o método ge-
nético histórico-cultural. É difícil percebermos como tais estratégias se
aproximam do método funcional da estimulação dupla.
Talvez Aleksandr L. Venger (2006) tenha mostrado uma alternativa
que esteja mais em consonância com seu método. Primeiramente é in-
teressante notar a maneira como o autor supera o dilema histórico que
apresentei anteriormente sobre as dificuldades de se desenvolver uma
clínica histórico-cultural. Ele argumenta que se você tinha a pretensão
de criar uma Psicologia Geral, naturalmente tal Psicologia Geral deveria
servir também para um dos campos mais típicos dessa ciência, o campo
clínico. Argumento que nós alinhado com o que eu mesmo apresentei
nesta carta.

160
A técnica que Venger (2006) propõe no contexto da clínica psicote-
rápica é ainda mais interessante. Ele sugere uma intervenção com um “ta-
lismã”. Essa técnica surgiu a partir de trabalhos que o autor fez com pes-
soas que sofreram traumas severos. Ao tratar de algum sintoma ou grupo
de sintomas trazidos pela pessoa em tratamento, o autor sugere criar um
talismã que evoque associações positivas na pessoa e, assim, diminua o
nível de ansiedade. O talismã seria um objeto que, outrora, não teria um
significado específico relacionado ao problema em questão na terapia,
mas depois da intervenção clínica passaria a assumir o papel de uma fer-
ramenta psicológica que mediaria os pensamentos e emoções do sujeito.
Entendo que esse tipo de intervenção possui direta ligação com o que
você propôs com o método funcional da estimulação dupla, na medida
em que estímulos artificiais são inseridos no processo que é analisado e
passam a assumir a função de signos mediadores das funções psicológicas
do sujeito. O talismã proposto por Venger (2006) medeia a memória do
sujeito, de maneira que o trauma ganha um novo significado no psiquismo.
Esta é uma técnica que guarda maior relação com seu método, mas é
claro que, para que possamos dizer que uma intervenção clínica (psico-
terápica) seja de fato histórico-cultural, esta teria que respeitar os prin-
cípios do método de maneira bastante fiel.
A seguir, com a intenção de dar minha contribuição para discussão,
elenco alguns pontos que considero serem possíveis caminhos que o psi-
cólogo clínico histórico-cultural deva seguir para superar, dialeticamente,
os desafios aqui apresentados em relação à prática clínica.
A atuação do psicólogo clínico histórico-cultural deve:

1) Ser ativa, interventiva, diretiva, interativa, participativa e dialógica.


2) Buscar analisar os fenômenos trazidos pelo sujeito em tratamen-
to a partir de uma visão genética. Ou seja, deve-se buscar analisar
processos e não objetos fixos, naturalizados; explicar a origem di-
nâmico-causal da relação entre origem e aparência de um fenôme-
no psicológico; e refazer as etapas do desenvolvimento de dado
fenômeno para superar os comportamentos fossilizados.

161
3) Usar como estratégia prática o método funcional da estimulação
dupla, fazendo, assim, com que o psicólogo seja um mediador da
relação. Ou seja, durante processo clínico, devem ser criados estí-
mulos auxiliares, artificiais, para que o sujeito possa mediar a sua
ação relacionada ao problema. Tais estímulos mediadores tem o
potencial de fazer com que o sujeito reflita acerca do que faz e
tenha um maior controle sobre a própria conduta.

Concluindo...
Os desafios apresentados nesta carta marcam uma trajetória de cons-
tante esforço de minha parte de entender sua teoria e de usá-la da manei-
ra mais fiel possível aos princípios que você acreditava que ele possuía.
Acredito que a Psicologia Histórico-Cultural fundada por você repre-
senta uma alternativa bastante viável para a atuação do profissional de
Psicologia hoje no Brasil, uma vez que vivemos uma época de precarieda-
de das instituições públicas e negligência dos processos relativos à saúde
mental da sociedade como um todo.
A sua visão acerca de como deveria ser a atuação em Psicologia me
lembra constantemente da importância de um pensamento revolucionário
no interior da prática psicológica. Pensar a clínica psicoterápica a partir
de sua visão é destacar uma visão de ser humano que interliga a saúde às
dinâmicas sociais e culturais.
Com isso, caro Lev S. Vigotski, espero ter mostrado como seu traba-
lho continua sendo relevante e fonte de novas discussões no meio cientí-
fico e em nossa cultura. A clínica psicológica, área de pesquisa e atuação
considerada tão importante por você, está crescendo e seus estudos estão
ajudando a jovens pesquisadores, como eu, a buscar respostas que pos-
sam contribuir com o desenvolvimento de uma sociedade mais saudável
e a superar os desafios impostos a nós. Agradeço por tudo que fez por
mim em todos esses anos e sei que ainda teremos muito o que conversar.

Saudações cordiais,
Janailson M. Clarindo.

162
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