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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais


Faculdade de Serviço Social

Jonatas Lima Valle

Entre o princípio da emancipação e o fardo da institucionalização:


dilemas do projeto ético-político profissional na busca de caminhos para
a intervenção

Rio de Janeiro
2012
Jonatas Lima Valle

Entre o princípio da emancipação e o fardo da institucionalização:


dilemas do projeto ético-político profissional na busca de caminhos para a
intervenção

Dissertação apresentada, como requisito parcial


para obtenção do título de Mestre, ao Programa
de Pós-Graduação em Serviço Social, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área
de Concentração: Trabalho e Política Social.

Orientadora: Profª. Dra. Valéria Lucília Forti

Rio de Janeiro
2012
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A

V181e Valle, Jonatas Lima.


Entre o princípio da emancipação e o fardo da
institucionalização: dilemas do projeto ético-político profissional
na busca de caminhos para intervenção / Jonatas Lima Valle. –
2012.
262 f.

Orientadora: Valéria Lucília Forti.


Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Faculdade de Serviço Social.
Bibliografia.

1. Assistentes sociais – Ética profissional - Teses. 2. Serviço


Social – Teses I. Forti, Valéria Lucília. II. Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Serviço Social. III.
Título.

CDU 36

Autorizo apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta Dissertação, desde que
citada a fonte.

_____________________________________ ___________________________
Assinatura Data
Jonatas Lima Valle

Entre o princípio da emancipação e o fardo da institucionalização:


dilemas do projeto ético-político profissional na busca de caminhos para a
intervenção

Dissertação apresentada como requisito


parcial para obtenção do título de
Mestre, ao Programa de Pós-graduação
em Serviço Social, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de
concentração: Trabalho e Política
Social.

Aprovada em 17 de setembro de 2012.


Banca Examinadora:
_______________________________________________
Prof.ª Dra. Valéria Lucília Forti (Orientadora)
Faculdade de Serviço Social – UERJ
_______________________________________________
Prof. Dr. Guilherme Silva de Almeida
Faculdade de Serviço Social – UERJ
_______________________________________________
Prof.ª Dra. Maria Thereza Candido Gomes de Menezes
Escola de Serviço Social – UFF
_______________________________________________
Prof.ª Dra. Larissa Dahmer Pereira
Escola de Serviço Social – UFF

Rio de Janeiro
2012
AGRADECIMENTOS 1

Sou eu mesmo e serei eu mesmo então.


E não há nada de errado comigo não! Não, não, não...
Não preciso de modelos, não preciso de heróis, eu tenho os meus amigos
(Legião Urbana).

Certa vez, minha amiga Juana me pediu que lesse um trecho de sua dissertação para
lhe dizer o que eu pensava a respeito. Talvez ela esperasse apenas elogios, mas, chato que sou,
tentei implicar ao máximo com o que lia. Uma das bobeiras que indiquei transmitiu-se numa
fala mais ou menos assim: “Juana, se é só você que está escrevendo, porque você se refere
sempre na primeira pessoal do plural?”. Nem lembro o que ela respondeu, no entanto, antes
de começar a escrever a dissertação, quando pensava na importância dos “agradecimentos”,
me dei conta de como cada pessoa que se relacionou comigo me proporcionou experiências e
sensações que, apesar de serem indescritíveis em sua plenitude, são suficientemente capazes
de, ainda que sutilmente, revolucionar meu destino, a cada contato. Sei que pode parecer um
pouco “dramático”, mas essa linha de pensamento me fez chegar à conclusão de que cada
relação que construí pode ter sido responsável por imensuráveis impactos em minha
dissertação. Nesse sentido, gostaria de dizer que, toda vez em que, durante a dissertação, me
referir na 1ª pessoa do plural, estarei homenageando também àqueles que, em minha opinião,
foram responsáveis por experiências capazes de auxiliar a construção dessa dissertação. Isso
pode ter ocorrido por meio de ensinamentos dos temas teóricos discutidos, da discussão de
aspectos da vida cotidiana ou, simplesmente, por meios que me proporcionaram sensações
“terapêuticas” indispensáveis para que eu chegasse ao fim desse tortuoso e complexo
processo, tais como força, descontração, carinho, serenidade e esperança. Essa tarefa, apesar
de ser a mais gostosa de toda dissertação, foi também uma das mais difíceis e vulneráveis à
injustiça. Primeiro porque certamente esquecerei alguns sujeitos também decisivos nesse
processo (como lembrei tarde demais, por exemplo, do Rodrigo Lima, da Edna Donzelli, da
Talita Arrabal, da Thatiana Gomes e da Ana Paula Prado nos agradecimentos do TCC) e,
segundo, porque o ato de fazer considerações a respeito dos “destacados” estará
necessariamente fadado à insuficiência diante do brilhantismo dessas pessoas e de suas
respectivas contribuições em minha trajetória pessoal e acadêmica.
Primeiramente, gostaria de insistir no auto-vulnerabilizante “agradecimento a Deus”.

1
Diferentemente do que fiz nas outras seções desta dissertação e em decorrência do “tom” pessoal e informal que proponho
para esta parte do trabalho, não utilizarei a 1ª pessoa do plural como referência a mim.
Tratando-se de um ser invisível, intocável e que não ouvimos, cabe-me, ao contrário dos
demais agradecidos, lançar algumas notas defensivas. Minha noção de Deus está ligada a
alguns aprendizados a respeito do “Deus” cristão - ainda que essas noções não pareçam
coincidir com aquelas ensinadas por grande parte das igrejas cristãs que tive contato. Refiro-
me aqui, basicamente ao fato de que compreendo que as atitudes dos homens não são
controladas nem por Deus, nem pelo Diabo, mas apenas inspiradas por meio de
ensinamentos – e, no meu entender, por sensações. Por isso, não pretendo atribuir a Deus a
autoria dessa dissertação, até porque não lhe culparia caso não concluísse a mesma. Gostaria
apenas de agradecer pelos ensinamentos que a passagem de Jesus na terra me deixaram e pela
sensação de amparo e inspiração que, a menos para mim, parecem tão mágicas e inexplicáveis
quanto à fé em alguém que não vejo, não toco, não escuto, mas sinto.
Também gostaria de agradecer minha mãe e meu pai. Seria clichê eu dizer que se não
fosse por eles provavelmente nem teria condições de chegar a uma Universidade pública, num
país em que essa oportunidade é um privilégio para poucos? Talvez sim, mas é verdade. E
verdades precisam ser ditas. Eles são absolutamente responsáveis por verdadeiros altruísmos,
até heroísmos, me amando, muitas vezes, mais do que a eles próprios. Pessoas cujas provas de
amor por mim não se explicam nem se justificam e, se expressam em dívidas que,
provavelmente, jamais terei a honra de pagar. Grande parte dessas dívidas, nem me lembro: os
transtornos ainda na barriga de minha mãe, os choros de madrugadas, as fraldas a serem
trocadas, as noites que tiveram que deixar de sair para cuidar de mim, o dinheiro “investido”
em brinquedos para mim que poderiam ter sido revertidos para eles mesmos, o suor dos
trabalhadores por mim, seja no emprego fora ou dentro de casa etc. História de carinho que
hoje segue com a mesma prontidão de sempre a cada esboço de solicitação minha. Nessa raiz,
também gostaria de agradecer minha irmã (“Martinha”), que quando conheci tentei rejeitar,
acusando-a de querer me passar “carequice”, ou “sabotar” sua existência – cobrindo seu rosto
com pomada – etc. Mas não teve jeito, acabei tendo que amá-la também, afinal, desde sempre
suportou, numa proximidade indesejável, todos meus defeitos. Dentre todas suas qualidades,
nesse período de mestrado, gostaria de destacar sua solidariedade e prontidão. Jamais
esquecerei, por exemplo, das folgas dela de trabalho em que ela abdicou de seu notebook,
para que eu pudesse “adiantar” minha dissertação nos momentos vagos do plantão e da
“cirúrgica” salvação do meu pen-drive.
Antes de agradecer a essa pessoa, gostaria de pedir que quem não se chamar “Kelly
Cortes de Oliveira”, não leia esse parágrafo, pois, seguindo a linha de pensamento de
Fernando Pessoa, que dizia que “as cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas”, penso
que precisarei ser ridículo para escrever um “agradecimento” sincero à minha namorada. Meu
pai sempre me disse: “a mulher que você escolher não poderá ser só sua esposa, ela também
precisará ser sua companheira, tem que te apoiar e brigar junto contigo”. De fato, sempre que
me lembro disso, consigo ter ainda mais certeza de que estou com a pessoa certa. Talvez não
bastariam o apoio mimador e admirador – que tanto me forneceram conforto e energia -, nem
as críticas – que me irritavam tanto que me forçavam a melhorar para não ouvi-las novamente
-, se ela não tivesse ido além do “falar”, prontificando-se a tarefas chatíssimas como fazer,
consertar e colar os gráficos no Excel, corrigir trechos da minha péssima escrita etc. “Enfim”,
gostaria de agradecer ao meu “amorzinho” por todo amor e todas provas de amor que por
inúmeras vezes, foram “magicamente” capazes de me resgatar de momentos duros impostos
pela realidade quando precisei.
“Você gosta mesmo de mim, se arriscando a me perder assim, ao me explicar o que eu
não quero ouvir”. Sempre me lembrei dessa canção da Legião Urbana quando Valéria se via
obrigada a fazer alguma de suas francas críticas referentes ao trajeto do meu estudo. Receber
críticas nunca é agradável, mas, talvez também pela experiência que tive em Ouvidoria, soube
reconhecer a importância fertilizadora delas, sem me sentir agredido (como por diversas vezes
parecia que Valéria temia) e assim chegar a esse momento agradecendo de coração à minha
orientadora. Por isso também, acredito que Valéria cumpriu esse papel num sentido de
profundo comprometimento, não apenas orientando de maneira perspicaz e inteligente, mas
também levando em conta algumas das minhas múltiplas resistências, inseguranças e limites
que permearam minha relação com meu objeto. Esses e outros fatores se somaram à amizade
e solidariedade da mesma que, ao lado da querida Cleier Marconsin, me deram muita força no
começo do mestrado, quando sem bolsa de estudos e sem trabalho, transcrevia entrevistas da
pesquisas delas em troco do dinheiro que, suprimiria os gastos com passagens e xerox do
curso (e, obviamente, cerveja). Esse agradecimento se estende à sua mãe, à sua filha Lorena e
logicamente ao meu camarada Roberto (seu marido), que, além de sempre se mostrar disposto
a bater um bom papo pelo telefone, teve a solidariedade de se mostrar preocupado com meu
processo de conclusão dessa dissertação e com as minhas “bermudas”.
Também gostaria de agradecer aos integrantes de minha banca. Inicialmente, agradeço
à Maria Thereza Menezes por sua solidariedade indescritível. Afinal, além de sua rara perícia
em provocar minha reflexão, seja nas quatro disciplinas que fiz com ela ou nos muitos
momentos fora de sala de aula, não posso deixar de expor minha profunda gratidão.
Principalmente em relação às duas pacientes orientações que me concedeu (sem ter sido
avisada previamente) sobre a construção do pré-projeto a ser enviado ao processo seletivo do
mestrado e para a entrevista na segunda fase desse mesmo processo seletivo. Sua prontidão e
solidariedade, mesmo diante de uma rotina acadêmica em que “o professor não tem tempo
para nada”, me despertaram mais do que gratidão, mas também ensinamentos a respeito da
solidariedade que, em minha opinião, apenas se aprende em gestos. Agradeço também ao
Guilherme Silva de Almeida que, com a mesma postura solícita e interessada que conduziu as aulas que
tive com ele, também aceitou gentilmente nosso convite em participar da banca referente a essa
dissertação. Agradeço, por fim, à Larissa Dahmer, que de maneira muito rápida conquistou minha
admiração pela seriedade, disciplina, competência e técnica com que conduzia suas aulas e pesquisas na
academia. Particularmente, gostaria de agradecer às orientações que tive como seu monitor, que foram
rigorosamente enriquecedoras para que iniciasse, não apenas a vontade de ministrar disciplinas
academicamente, mas também me ajudaram metodologicamente a desenvolver pesquisas.
Também gostaria de ressaltar os professores com os quais tive aulas na Universidade
Estadual do Rio de Janeiro: Alba, Inês Bravo, Mônica Cesar, Rosângela, Ciavatta, Marilda,
Rose Serra, Guilherme, Behring, Mário Duyer, Valeria Forti, Vanda e Silene. E, as professoras
Rosimary Gonçalves e Eliana de Mendonça, que me ajudaram a acessar os entrevistados que
necessitava para o trabalho empírico, antes de mudar minha metodologia. Gostaria de destacar
também o professor Maurílio Matos, por sua incrível competência em articular simpatia e
seriedade, mostrando-se assim um dos professores mais acessíveis da Faculdade de Serviço
Social da UERJ. Além de suas considerações na banca de qualificação, gostaria de agradecer
também pela reunião posterior que me ajudou muito no amadurecimento da metodologia de
pesquisa empírica e por ter cedido alguns momentos de sua aula para que pudesse ter acesso à
turma de especialização selecionada para aplicação dos questionários. E, aos professores com
os quais tive aula na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): José Paulo Netto,
Mauro Iasi, Carlos Montaño e Alejandra Pastorini. Gostaria de agradecer, ainda, a alguns
professores da Universidade Federal Fluminense, cujas marcas do conhecimento e da
admiração perpassaram inúmeras vezes essa dissertação, entre eles destaco: o professor Luiz
Marcos que, além das grandes aulas, me ensinou muito pelo exemplo de ser humano e amigo
que é e como orientador da pesquisa e extensão que tive no acampamento “Terra Prometida”
do MST cujas reflexões tiveram impactos muito relevantes, até mesmo a respeito da
militância. À Sônia Lúcio, pelo exemplo de garra e criticidade que conseguiu me passar. Ao
Rodrigo Lima que, com suas aulas maravilhosas, conseguiu me cativar ainda mais em relação
à profissão e que, hoje como amigo de pós-graduação (e facebook), continua a fazê-lo. Ao
Haroldo Abreu que, como orientador de graduação, me passou conhecimentos essenciais para
desenvolver meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de acordo com meus interesses e
questionamentos, fazendo florescer em mim um sentimento de insatisfação que foi decisivo
para minha escolha pelo ingresso nesse mestrado. À professora Rita de Cássia que se mostrou
sempre solícita para facilitar o processo metodológico da minha pesquisa empírica. Além das
professoras Luciana Paula, Graça, Juan e Gleyce Figueiredo.
Quero destacar também, companheiros que tive o prazer de conhecer ou reviver nesses
tempos de mestrado. Thiago Sobral que foi fundamental nos estudos que me prepararam para
o ingresso no mestrado, pois conseguia me animar todos os dias do nosso grupo de estudos (o
“cafezinho”), que na verdade, era uma dupla de estudos, mas que envolvia, além de leitura,
tentativas de exposição para o outro, tentativas humilhantes de aprender inglês, invasão no
grupo de estudos da Vivi Mattos, Aline, Ivy Carvalho, Morena Marques etc. Daiane M. Rocha
que, assim como Sobral, é companheira de longos tempos da UFF e daquela chapa folclórica
do ENESS de 2008 em Londrina, e que me enche de orgulho pelo ser humano que é e pela
competência e potencial que possui. Sara Martins, que soube, mesmo diante da elegância
acadêmica da “prima rica” (UFRJ), manter o que chamamos de “essência UFF”, ou seja, ser
uma pessoa desbocada, falastrona, irreverente, espontânea, descontraída, engraçada, crítica,
apaixonada, boa de papo e, apesar de insuportavelmente chata, impossível de não querer
sempre por perto. Ivy Carvalho, que em contraste da Sara, é educada, simpática, agradável...
Enfim: um doce! Nem parece que está fazendo mestrado! Agradeço pelas conversas intensas e
maduras que tivemos na UFRJ, nos “Uni-vos” (nossos luais) ou pelos telefonemas que me
passaram confortos e conselhos muito valiosos. Além do Aldemar, “Kinha” Alves, Hugo
Parra, Juan, Cecilia, Carol Rodrigues, Rita, Monique Bier; às funcionárias Rosiléia, Andrezza
e Luana, e à turma de Especialização em Saúde da UERJ que colaborou decisivamente com
minha pesquisa e às colegas de graduação da UERJ: Carolina Nunes, Érika, Rita, Juliana e
Luciana da Conceição.
Aos antigos e permanentes amigos da UFF, que seguem me acolhendo com um ânimo
sincero toda vez que visito o campus do Gragoatá e, que venho mantendo contato constante
mesmo depois de quase 3 anos de minha formação. Esse carinho certamente me transmite
força, principalmente porque percebo o valor e a expectativa que eles depositam em mim toda
vez que perguntam sobre o mestrado e quando vou começar a dar aula lá. Sem querer ser
radical demais, citando aqueles que foram amigos imprescindíveis em minha graduação e que,
certamente não me esquecerei, gostaria de cometer a insensibilidade de citar, pelo menos,
aqueles que venho mantendo contato mais constante nesses anos de mestrado: Rodrigo Rios,
Jamille Borges, “Xis”, Josival Moura, Marcus, Monique, Lorena Morelli (e sua mãe),
Fernandinho Brasil Cascon, Bianca, Debora Bahia, Vinícius, Adriev, as Camilas, Taiane,
Nelsinho Coelho, Samira Heitor, Patricio, Mariana Cainelli, Aninha “Poodle”, Josie (apesar
de pegar meus livros sem pedir e não devolver), “Ceci”Almeida, Emilia de Fátima, Livinha
Ribeiro (“Pinguim”), Alissandra Iede, Iany Monteiro, Janiny Pereira, Mari Aquino, Paloma
Monteiro, Amanda Medeiros, Juliana Carino, “Déia”, Paloma Monteiro, Maria Elaine, Emilly
Marques, Felipe (da UFOP), “Léo-UNE”, Leonardo Fragoso, Juliana Chaves, Izadora,
Mariana Piedade, Lilian Duca, Rafaela, Thalita Monteiro, Nathalia Franca, além dos alunos
de quem fui monitor e que ainda se mostram grandes torcedores nessa minha caminhada.
Dentre esses amigos do tempo de graduação, tenho que destacar alguns que, além da
preciosa amizade, desempenharam reflexões que foram essenciais para a potencialização
desse estudo. Primeiramente, gostaria de destacar Juana Cunha da Costa, que com toda sua
paixão, delicadeza e sensibilidade, me provocou algumas das dúvidas mais instigantes e
polêmicas para iniciar e desenvolver meu TCC e que, depois de formada, ao se tornar a
grande referência de assistente social que tenho, se transformou numa espécie de “guia” a
quem fiz questão de consultar a respeito dos passos metodológicos mais importantes dessa
dissertação. Ingrid Adame Moreira que, com toda sua doçura, me tira de “monitor” até hoje,
sempre me concedendo a honra de opinar a respeito de algumas de suas decisões mais
importantes no Serviço Social e trazendo problematizações extremamente enriquecedoras
para meu estudo. Talita Arrabal, uma das preciosidades mais espontâneas, puras e aguerridas
que tive a sorte de conhecer e que, “para nossa alegria”, passou a se dedicar aos estudos sobre
o projeto ético-político e sobre a prática profissional, me passando opiniões valiosas e a
esperançosa sensação de que ainda discutiremos muito nesse destino confuso. Telma Regina
que, com sua maneira intensa, rebelde e carinhosa, sempre foi uma companheira fiel de
problematizações, lendo criticamente dezenas de páginas da minha dissertação para colocá-la
em teste comigo. Désirée Drumond que, ao mesclar uma das personalidades e potenciais que
mais admiro com a importância que dá as minhas opiniões, recorrendo a mim a respeito de
questões a respeito de seu estudo (tão diferentes dos meus), me inspirou/forçou a melhorar.
Felipe Gouveia (o “Robert”), que além das diversas problematizações a respeito do
“reformismo”, me ajudou a levar esse debate com suas ótimas indicações bibliográficas.
Poliana Santanna por conceder conversas valiosas a respeito de suas experiências de estágio,
residência e de TCC.
Gostaria ainda de agradecer alguns amigos externos ao Serviço Social, que seguem há
anos me dando força. Barata, agradeço pela amizade pura, bonita e divertida (e teimosa!), pois
a todo tempo soube me proporcionar a esperança, a segurança e a teimosia tão necessárias
para o difícil percurso que percorri nesse mestrado. À Bia Macri, por nunca me deixar beber
sozinho e sempre me fazer rir com suas pirraças. Pedro Henrique, meu afilhado e amigo que,
há mais de 15 anos (quanto tempo!), vêm tornando meus dias substancialmente mais leves e
engraçados com sua maneira despreocupada, alegre e debochada de encarar a vida. À amiga e
“irmã” Ana Cecília Caputi que, além do apoio de sempre e pelos bons papos, me ajudou nos
perrengues financeiros dos primeiros meses de mestrado me “emprestando” seu bilhete único
(me doando seu “vale-transporte”). Ana Carol... Em verdade ela que teria que me agradecer
por aguentar as asneiras que fala e suas doideiras; por exemplo: aparecer na minha casa sem
ser convidada e interromper meus estudos para me tirar como cobaia das suas aulas de
biologia no pré-vestibular. Luiza Vinhosa, não apenas pelas conversas e pela amizade tão
intensas que me proporcionou nesses anos, mas por toda ajuda direta que deu para o
desenvolvimento dessa dissertação, lendo e corrigindo partes da mesma. Maiara Goulart,
pelas conversas virtuais e pelo acolhimento inesquecível que nos garantiu em minha viagem à
Florianópolis. “Julik” Serra, pela companhia singularmente simpática e divertida que foi em
algumas idas às aulas da UERJ. “Lú” Castro, pela companhia extremamente atenciosa,
acolhedora, sensível, inteligente e disposta a ouvir minhas angústias em relação ao mestrado.
À minha ex-terapeuta Amanda Pinho, que foi absolutamente decisiva no período em que
pretendia fazer a prova do mestrado, mas particularmente na sessão que precedeu a entrevista
com a banca, onde conseguiu me proporcionar a confiança e tranquilidade que precisava. À
Valéria Calvo, por se esforçar em me auxiliar a fazer correções de português dentro dos
prazos implorados. À “tia” Beth, não apenas por ajudar a moldar essa pérola de namorada que
tenho, mas também pelos maravilhosos cremes de milho e pelas companhias para tomar
vinho. Também gostaria de agradecer Ana Paula Prado, “Leco”, Lívia Cortes, Jardel, Lívia
Bekendorf, Guto, Fernando, “Julynhah”, Natalia Azevedo, Fred, Wagner, Orfeu, “Zé”, Aissa,
João Luiz, Chris, Paula, Zé, “Rondinha”, Paulo, Amanda e “JV”.
Preciso agradecer ainda os companheiros de trabalho do Ary Parreiras que tornaram
esse percurso tão agradável e pedagógico. Sobre eles, gostaria de iniciar com Sarah Cristina,
que conheci desde o primeiro trote na graduação e, desde então sempre tive a felicidade de
estar em contato, seja nos corredores e palestras da UFF, estágio no CRAS Cubango,
corredores do mestrado da UERJ, aniversários etc. Por essa longa e intensa trajetória de
amizade, me mostro profundamente grato, feliz e orgulhoso de permanecer em contato nesses
dois anos de plantão sério das sextas-feiras no “Aryzão”. À Aline Bergmann, mas só por
causa das caronas! Mentira, até que foram muito boas as “terapias” que tive com ela no trajeto
de carro ao trabalho, onde eu tentava desabafar para uma psicóloga a respeito da minha
dissertação e ela, como psicóloga exemplar que é, me interrompia para falar como ela está
traumatizada pela época em que fez mestrado (espero que ela me pague pelas consultas). À
Roberta que, mesmo roubando demais e inventando regras nas nossas rivalizadas partidas de
mímica, Uno, Sueca e adedanha, aprendi a aceitar. Afinal, o que esperar de uma torcedora do
Fluminense? Angélica, pelos conselhos maduros e serenos que ela sempre me deu em troca do
empréstimo do sofá da Ouvidoria, pelas correções de português e, principalmente, por
cumprir o papel de “cobaia” ao conceder uma entrevista para testar meu roteiro de entrevistas
programado pela pesquisa empírica desse mestrado. Thaís Lima, minha coordenadora
malvada que sempre suportou meus defeitos (principalmente em relação à dificuldade em ser
objetivo no livro de comunicação e ao lugar de colocar os papéis) e tornando o setor tão
agradável. Vera, pelo exemplo de personalidade e destreza com que lida com as situações de
dificuldade e com a leveza que trata os assuntos cotidianos. Silmar, pelo exemplo de seriedade
que desempenha a respeito de seu trabalho e por estar ao meu lado quase sempre que sofri
bullying nos plantões. Vivi Gonçalves, pela simpatia, espontaneidade, fofura e leveza que lhe
fizeram conquistar o posto de “drupa” dinâmica nos meus plantões, tornando-se uma pessoa
de confiança e companheirismo indispensáveis. Irene, principalmente pelos múltiplos e
aprofundados papos a respeito das complexidades dos nossos campos particulares de
intervenção profissional. Letycia, que mesmo prevendo no “Tarot” que eu teria mil filhos e
não concluiria meu mestrado, me apoiou nesse processo. Domênica, a “caozeira”, pela boa
companhia de “quaragem” e pelas dicas a respeito do campo da assistência. Horrana, somente
por me ceder o caneco mais charmoso do setor... Ou melhor: quero agradecer ao caneco da
vaquinha! Mariana, por aceitar os intrusos (como eu) em seu setor, com aquele sorriso gostoso
e simpático de sempre. Claudia, pelos cafés horríveis que me amargam as manhãs de plantão.
Sarah “lagartixinha”, que, na verdade, só me atrapalhou, pois, todo plantão vinha interromper
a construção da minha dissertação, dizendo cinicamente “Jonatas, termina logo essa
dissertação”, e emendava com alguns dos loucos assuntos que nunca chegamos a alguma
conclusão. Laura, por suas doideiras e pela companhia de “birita”. Isabel e Keyla (as mais
antipáticas da nutrição). Além de: Renata, Renatinha, Ayrelle, Patrícia, Chico, Marlon, Ana
Paula, Cléber, Lidiane e Breno.
Também gostaria de agradecer aos recém colegas de trabalho do Centro de Referência
da Assistência Social Engenho Pequeno. Em especial: Carla, Ermínia e Vanessa Lima.
Para fechar com “chave de ouro”, gostaria de agradecer à “turma mais bonita da
cidade”. Uma turma composta por pessoas tão especiais e com qualidades tão transbordantes
que foram capazes de impedir que eu enlouquecesse nesse período aparentemente infinito de
pouco mais de dois anos. Isso porque não são apenas pessoas que souberam transmitir
ensinamentos surpreendentes e variados por meio de conversas, ações, reações etc, mas
principalmente por me proporcionarem companhias valiosas absolutamente inesquecíveis. Foi
verdadeiramente uma honra caminhar com esses sujeitos. Marianne Alonso (para os fortes:
“Oslay”), pela companhia divertidíssima a cada engarrafamento na ponte, pelos momentos de
surtos, pelos momentos de auto-ajuda em dupla, pelos planos não materializados, pelas
formatações, pelas “pérolas”, pelas risadas gostosas, pelo cuidado quase maternal, pela
solidariedade; enfim, pela amizade irrestritamente confiável que me proporcionou (mas não
pense que me esqueci que você gritou comigo!). Vivi Mattos, agradeço pela paciência
aparentemente inesgotável que teve com meus desabafos, ideias e debates calorosos pelo
facebook e MSN, tendo opinado a respeito de quase todos pontos que tive dúvida nessa
dissertação, me apoiado em absolutamente todos momentos em que teve oportunidade e me
surpreendido pela radicalidade ética e democrática expressa em suas mínimas atitudes. Carol
Frade, minha querida mestra assistente social, pela seriedade e pelo empenho que tanto me
inspiraram, pelas manias “nerds”, discursos complexos e prolixos que tanto me divertiram
nesses tempos de UERJ. Morena Marques - que aprendi a admirar desde os tempos remotos
de ENESS – pela essência delicada, conciliadora e democrática que consegue imprimir em
seus atos, pelas conversas inteligentes, embasadas e esclarecedoras que teve comigo, pela
humildade e respeito que conseguiu imprimir diante de nossas diferenças e pela confiança que
sempre depositou em mim. Ao Guilherme Rezende, pela acolhida mimadora e confortante em
sua casa (nosso CA), pelos papos produtivos e improdutivos (a maioria) e pelo cuscuz mais
gostoso que já comi na minha vida. Maria Clara Assumpção, eu agradeço pelas implicâncias
que lhe fiz sofrer sem deixar de me retornar com muita amizade e paciência. Ao Roberto
Coelho pelas palestras que consegue dar a cada pergunta que fiz a respeito de qualquer
assunto (trabalho, música, caneta etc), todas elas certamente me ensinaram bastante. Lívia
Pequeno, pela forma bem-humorada e agradável que sempre dedicou sua atenção quando
requisitada. Aline Miranda, por ser referência de todo momento que senti vontade de
comentar ou rir de alguma coisa mas que, por uma questão de bom senso, não pude e, por me
dar o livro do Max Beer. Charles Marvio, pelos grandes aprendizados com suas intervenções
do tipo “você sabia?” e pelo jeito divertido de tratar a todos. Verônica Oliveira, por ser uma
das pessoas mais éticas, doces e agradáveis que já tive o prazer de conhecer, e por fornecer
importantes “pareceres” em grande parte das minhas indecisões no trajeto inicial da
dissertação. Matheus Thomás pela capacidade quase mágica de desmistificar os exageros que
muitas vezes são atribuídos aos problemas e pelas conversas sempre interessantes que traz
consigo. Além de Ewerton, “Chris”, Sirley, Dani Brandt e Ana Paula. E, obviamente,
agradeço à Nathy Figueiredo, pelas formas dramáticas de me conscientizar a respeito de como
tudo realmente pode dar errado, pelo afeto profundo e sincero, pelos monopólios nos
assuntos, pelas piadas, pelos divertimentos, pelos telefonemas sistemáticos (principalmente na
medida em que o prazo foi se acabando) e pela certeza de que ainda vou rir muito ao lado dela
nessa vida.
RESUMO

VALLE, Jonatas Lima. Entre o princípio da emancipação e o fardo da institucionalização:


dilemas do projeto ético-político profissional na busca de caminhos para a intervenção.
2012. 262 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Faculdade de Serviço Social,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

O objetivo desse estudo é refletir sobre questões pertinentes aos limites e às


possibilidades que permeiam o exercício profissional de assistentes sociais comprometidos
com o que se convencionou chamar, no meio profissional, de Projeto Ético-Político do
Serviço Social brasileiro. O que, em nossa compreensão, requer considerar os impactos da
intervenção profissional em relação aos diferentes projetos societários. Para a realização
desse estudo, retomamos debates que consideramos centrais para pensarmos a intervenção
do assistente social, enfatizando os dilemas e pretensões postos a esse profissional,
partindo dos interesses burgueses que conformaram o Projeto institucional que lhe traz
requisições. Buscamos pensar a tensão presente entre esse Projeto Institucional e o referido
Projeto Ético-Político, considerando as relações de oposição e “poder”, e possíveis
“negociações” estabelecidas entre ambos, pois, assim, pudemos mergulhar nesse universo e
avaliarmos o conceito de autonomia profissional, em busca de possibilidades interventivas
pertinentes à materialização (ainda que relativa) do Projeto Ético-Político do Serviço
Social brasileiro. Para enriquecer esse debate, realizamos uma pesquisa empírica que
recorreu instrumentalmente a questionários e a entrevistas. O primeiro teve a finalidade de
contribuir para a escolha dos profissionais a serem entrevistados e enriquecer alguns dados
de análise. A entrevista foi realizada com assistentes sociais que atuam na área da saúde,
empregados pelo Estado, em processo de formação continuada e que alegaram
compromisso com o referido Projeto Ético-Político Profissional.

Palavras-chave: Serviço Social. Intervenção profissional. Projeto Ético-Político. Projeto


institucional.
ABSTRACT

The aim of this study is to discuss issues pertinent to the limits and possibilities that
permeate professional practice of social workers committed to what is called, in a
professional, Project Ethical-Political Brazilian Social Service. What, in our understanding,
requires consideration of the impacts of professional intervention in relation to various
corporate projects. To conduct this study, we resumed discussions that we consider central to
think the intervention of a social worker, emphasizing the dilemmas and claims made in this
work, starting from the bourgeois interests that shaped the institutional design that brings
requests. We seek to think the present tension between this project and the Institutional
Ethical-Political Project said, considering the relations of opposition and "power", and
possible "negotiations" between both established because, well, we dive into this universe and
evaluate the concept of professional autonomy in search of relevant interventional
possibilities for realizing (albeit relative) Project Ethical-Political Brazilian Social Services.
To enrich this debate, we conducted an empirical research which used instrumentally to
questionnaires and interviews. The first aimed to contribute to the choice of professionals to
be interviewed and enrich some data analysis. The interview was conducted with social
workers who work in health care, state employees, in continuous formation process and
argued that commitment to that project Ethical-Political Professional.

Keywords: Social Services. Professional intervention. Design ethical-political. Institutional


project.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...…..................................................................................................... 17
1 ELEMENTOS A RESPEITO DO PROJETO INSTITUCIONAL................... 22

1.1 A expressão “questão social”: suas dimensões objetivas e subjetivas..................... 22


1.2 Alguns componentes a respeito das políticas sociais e sua conformação no 37
projeto institucional.....................................................................................................
1.3 Projeto institucional e suas requisições pedagógicas e assistenciais para o 55
assistente social.............................................................................................................
2 CAMINHOS E “DESCAMINHOS” NA BUSCA DO ENFRENTAMENTO AO 69
PROJETO INSTITUCIONAL..................................................................................
2.1 Algumas considerações (essenciais) acerca da apropriação do marxismo pelo 73
Serviço Social brasileiro..............................................................................................
2.2 Formação e consolidação do projeto ético-político do Serviço Social brasileiro.... 79
2.3O Campo de intervenção e a questão da “crise de materialização” do projeto ético- 93
político...........................................................................................................................
2.4 Duas concepções acerca da dimensão assistencial e pedagógica da prática 107
profissional....................................................................................................................
3 REFLEXÕES ACERCA DE ESTRATÉGIAS DE MATERIALIZAÇÃO 124
DO PROJETO ÉTICO-POLÍTICO NO ÂMBITO DA POLÍTICA DE
SAÚDE..............................................................................................
3.1 Alguns elementos acerca da autonomia profissional................................................. 130
3.2 Referências teóricas das assistentes sociais entrevistadas........................................ 171
3.3 Particularidades dos projetos institucional e profissional e as demandas dos 188
usuários.........................................................................................................................
3.4 Limites e possibilidades das funções (pedagógicas e assistenciais) dos assistentes 203
sociais............................................................................................................................
3.5 Limites e possibilidades das estratégias profissionais voltadas para os impactos 223

intra institucionais.......................................................................................................

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................... 240

REFERENCIAS.......................................................................................................... 250

APÊNDICE A – Questionário....................................................................................... 258

APÊNDICE B – Termo de consentimento.................................................................... 260

APÊNDICE C - Roteiro de entrevista........................................................................... 261


17

INTRODUÇÃO

O surgimento do Serviço Social está intrinsecamente relacionado às estratégias


monopolistas da burguesia organizada, que precisou frente à reação e ao fortalecimento da
classe trabalhadora, encontrar novas formas de se “legitimar politicamente incorporando
outros protagonistas sociopolíticos [...] mediante a generalização e a institucionalização de
direitos e garantias cívicas e sociais” (NETTO, 2007b, p. 27). Essa questão determinará a
função “instrumental” que requisitará essa profissão na pretensão de colaborar com o projeto
societário burguês de produzir e reproduzir a estrutura econômica do capitalismo. O recurso
básico que busca garantir que essa função seja materializada é o “contrato de trabalho”, na
medida em que esse contrato é capaz de subalternizar formalmente esse profissional em
relação ao contratante.2
No caso brasileiro, em virtude das particularidades de seu desenvolvimento capitalista,
a “contradição do assalariamento” se explicitou, a partir do momento em que, ainda sob a
chamada “autocracia burguesa” (NETTO, 2007a), o Serviço Social brasileiro avançou
culturalmente, aproximando-se do pensamento marxista e prosseguiu com avanços
intelectuais e organizacionais importantes. Tais avanços mudaram os rumos do Serviço Social
no país e incentivaram uma tentativa de ruptura com a prática profissional 3 conservadora, que
disseminava rigorosamente os intuitos monopolistas. Esta mudança de postura foi, aos
poucos, se conformando num projeto profissional que trouxe substantivas inovações, não
apenas no âmbito organizativo, mas também nos comprometimentos formais da categoria
claramente expressos nos princípios que enfeixam o atual Código de Ética da profissão.4
Assim, o que se configurava como uma contradição sociopolítica, enquanto prática que

2
É exatamente nesse sentido que surge a expressão “fardo institucional”, que está presente no título dessa dissertação. Desde
já, devemos sinalizar que o termo “fardo” é aqui referido como conjunto de constrangimentos que a condição de assalariado
irá impor ao assistente social. Porém, a repulsa em relação a essa condição não será compreendida nesse estudo como algo
que signifique o entendimento de que isso possa ser suprimido ou superado nos marcos do capitalismo. Não estamos
equivocadamente em defesa do exercício profissional desinstitucionalizado. Pelo contrário, trata-se de um fardo que deve ser
carregado, pois o assalariamento é para os assistentes sociais a mediação necessária para sua reprodução. Isso também não
nega ou elimina, porém, a existência e possibilidade de ampliação da autonomia relativa resguardada ao profissional - ponto
chave para essa reflexão.
3
O estudo que pretendo realizar, apesar de ter a prática profissional do assistente social como “menina dos olhos”, não irá se
ater ao nebuloso e polêmico debate em torno da categorização deste elemento como “trabalho” ou “práxis interativa”, por
entender que qualquer convicção relacionada a esses conceitos não interferirá nos resultados pretendidos. Nesse sentido, as
diferentes nomenclaturas utilizadas nessa dissertação para se referir ao cotidiano profissional não significará um
posicionamento particular acerca desse debate.

4
Esse Código de Ética profissional, datado de 1993, traz em si, elementos notavelmente progressistas, dentre eles o
compromisso pelo “reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas políticas a ela inerentes –
autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais”, que inspira o título dessa dissertação.
18

reproduzia o status quo (cuja essência permanecia imersa perante os olhos da categoria), pôs-
se à tona, impondo, a partir de então, ao assistente social, um desafio ético, materializado nos
princípios inscritos no atual Código de Ética profissional, que apontou para uma ruptura com
a ordem vigente e, consequentemente, com o projeto político institucional que os subordina.
No entanto, como afirma Yolanda Guerra, se,

[...] a perspectiva de ruptura [...] coloca-se como um avanço do sentido de romper com os
paradigmas teórico-metodológicos da tradição positivista, o mesmo não ocorre com relação à
intervenção. Esta continua tendo, por um lado, a marca do pragmatismo e, por outro, do
reformismo conservador (2007a, p. 27).

Isso significa que, na atual conjuntura, a maturidade ética e política da categoria pouco
vem conseguindo se manifestar no campo de intervenção profissional, diante das contradições
que lhe são inerentes. Essa fragilidade vem desperdiçando possibilidades de colaborar na
construção de condições – objetivas e subjetivas – para que a classe trabalhadora possa
caminhar rumo à superação dessa ordem. Ela pode também contribuir para a vulnerabilização
da legitimidade da perspectiva marxista na profissão, e, consequentemente, de seu
significativo conjunto de avanços concretizados (principalmente no plano jurídico, literário, e
organizacional), que, embora consistente em seus discursos e formulações, passa a se tornar
mais frágil frente a ameaça do conservadorismo.
Apesar dessa questão já possuir certa visibilidade no cenário da literatura profissional,
devemos dizer que não foi diretamente dessa literatura que partiu nosso interesse em tomá-la
como objeto de estudo no mestrado. Essa escolha começou a ser “peneirada” no primeiro
período das aulas de supervisão de estágio quando, ainda na graduação da Escola de Serviço
Social da Universidade Federal Fluminense, pudemos perceber que a euforia em relação ao
conhecimento crítico adquirido pela graduação em processo passava a dar lugar a uma
profunda e coletiva decepção com a realidade do campo de intervenção profissional.
Notamos, em grandes companheiros de turma, uma decadente tendência à naturalização dessa
decepção que tendia a conduzi-los a discursos fatalistas, ou mesmo a perspectivas teórico-
metodológicas, consideradas por nós, de cunho conservador. Aterrorizados com a
possibilidade de caminharmos para o mesmo destino, esforçamo-nos a estranhar cada
manifestação que nos conduzisse à marcha desses companheiros de turma, até que, após a
conclusão da monografia5 – onde foi discutido o projeto ético-político profissional do Serviço

5
Essa monografia foi orientada por Haroldo Abreu e, a partir das considerações das discussões travadas na apresentação
pela banca – formada pelas professoras Gleyce Figueiredo e Maria Thereza de Menezes –, tornou-se um recurso fundamental
para a iniciativa dessa dissertação.
19

Social brasileiro e suas contradições inerentes à inserção institucional –, chegamos a


perguntas muito parecidas com essas:

O que fazer na prática profissional para que suas tarefas – que serão realizadas de qualquer
maneira, ainda que certos indivíduos as recusem – não dificultem, antes favoreçam, um
projeto de sociedade nova? Que função cabe ao Serviço Social – o que conhecemos
atualmente – em face da aspiração das classes subalternas para construir uma realidade
qualitativamente mais profunda, mais humana, mais plena que esta situação capitalista? (1993,
p. 15-16).6

Nesse sentido, o estudo que pretendemos realizar se estrutura a partir desses


questionamentos, logicamente não a fim de esgotá-los, mas, antes, de colaborar com a
categoria dos assistentes sociais, no sentido de aperfeiçoar essas perguntas e de lançar novas
para, finalmente, esboçar reflexões que auxiliem os assistentes sociais na inadiável tarefa de
construir respostas interventivas comprometidas com a classe trabalhadora. Para isso, essa
dissertação buscará captar e discutir elementos presentes no cotidiano profissional que sirvam
de inspirações estratégicas viáveis e efetivas para uma prática comprometida com o “projeto
ético-político” do Serviço Social brasileiro, de maneira que essas ações sejam efetivamente
funcionais ao princípio de emancipação da classe trabalhadora. Dessa forma, assim com
Palma, podemos dizer que

Dirijo-me aos assistentes sociais que buscam e desejam as possibilidades políticas na prática
profissional que a sociedade lhes atribuiu, que se angustiam por tornar este exercício
profissional um estímulo, e não um obstáculo, às lutas dos setores populares por uma nova
justiça social (1993, p. 16).

Para esses fins, a dissertação está organizada em três capítulos, onde a teoria marxista
será o recurso teórico fundamental para a construção do debate acerca dos elementos que
consideramos centrais na disputa entre o projeto ético-político profissional e o projeto
institucional das instituições estatais 7. No primeiro, buscamos resgatar discussões pertinentes
ao surgimento da profissão no cenário internacional, a fim de resgatar alguns elementos
centrais e gerais que ajudem a situar o papel do Serviço Social junto ao Estado burguês. Esse
esforço preza por desnudar aspectos relevantes a respeito da essência do projeto de
intervenção que a instituição requisitará aos assistentes sociais por ela contratados. Iniciamos

6
Essas questões me levaram – sob a orientação do professor Haroldo Abreu – a desenvolver meu Trabalho de Conclusão de
Curso (TCC) sobre os limites que o projeto institucional conservador impõem ao assistente social devido às contradições
inerentes aos espaços sócio-ocupacionais deste profissional.

7
Mesmo reconhecendo a significativa existência de assistentes sociais atuando em empresas e no chamado "Terceiro Setor"
por exemplo, nosso estudo foca na intervenção profissional no âmbito do Estado.Principalmente por ser o campo que contrata
mais assistentes sociais. Isso não indica que desconsideramos a utilidade das análises exploradas aqui para profissionais que
atuem em outros campos.
20

com a exposição da estrutura econômica capitalista, passando pelo surgimento da “questão


social”, pela maturação da organização política da classe trabalhadora – que ajudará a explicar
o surgimento das políticas sociais –, até chegarmos ao debate acerca das instituições
contratantes do assistente social. Esse debate cumpre a função de expor a base estratégica que
a instituição contratante requisitará ao assistente social e suas relações com um projeto
societário essencialmente conservador.
No segundo capítulo, o leitor acompanhará, inicialmente, um debate comprometido
em expor a existência de uma margem de autonomia resguardada a cada profissional, que
garante a possibilidade de, em alguns momentos, intervir de acordo com projetos de atuação
profissional diferentes daqueles propostos pela instituição. Nesse capítulo, também
situaremos como essa possibilidade abriu margem para inúmeros debates na categoria, o que
resultou na incorporação da teoria marxista e dos elementos de um projeto societário
vinculado não à conservação do sistema capitalista, mas sim à emancipação da classe
trabalhadora. Uma ousadia que, como veremos, levará a diversos equívocos a respeito da
supracitada autonomia profissional. Nesse capítulo, ainda destacaremos a dificuldade em
transformar esse projeto societário emancipatório em projetos profissionais capazes de serem
relativamente materializados. Expomos também a necessidade de se refinar esses projetos
profissionais de acordo com uma perspectiva metodológica que parta de uma noção de
totalidade, capaz de pensar articuladamente as dimensões (objetiva e subjetiva) da prática
profissional, para que os “meios” não entrem em conflito com o norte societário.
Para finalizarmos, no capítulo 3 exploramos alguns dos múltiplos determinantes que
permeiam a autonomia profissional. Esse debate será feito com o subsídio de alguns dados
extraídos das entrevistas realizadas e dos questionários respondidos na fase da pesquisa de
campo. Seguido desse debate que configurará o tópico 3.1, mergulhamos nos dados obtidos a
partir das entrevistas como dispositivos privilegiados para conduzir os debates até o final do
capítulo. Nesse sentido, buscamos extrair daqueles profissionais entrevistados seus laços com
o âmbito acadêmico, compreendendo o debate teórico como sustentáculo para a intervenção
profissional. Também levantamos aspectos da realidade que demonstrem como se dão as
complexas relações de interesses entre os projetos de intervenção do profissional e as
demandas de intervenção por parte dos usuários e da instituição a partir do ponto de vista
dessas profissionais. Por fim, tentaremos refletir em torno das estratégias profissionais
capazes de favorecer de fato um projeto de sociedade emancipatória.
Antes de iniciarmos o Capítulo 1, cabe destacar que esse percurso reflexivo foi
subsidiado pela experiência, não apenas como estagiário e bolsista dos períodos de graduação,
21

mas principalmente como profissional. Essa última experiência se baseia tanto na área da
saúde - na Ouvidoria do Instituto Estadual do Tórax Ary Parreiras -, quanto da assistência –
no Centro de Referência da Assistência Social do município de São Gonçalo. Consideramos
fundamental a concomitância entre essas experiências e o desenvolvimento desta dissertação,
não apenas por ter proporcionado uma aproximação com o campo da saúde pública (nosso
universo empírico do estudo), com os múltiplos e complexos interesses existentes nas
instituições contratantes e outros elementos, mas, principalmente, por potencializar o
conteúdo presente nas literaturas lidas e clarear os discursos proferidos pelas profissionais
pesquisadas.
Essas experiências profissionais, além de permitirem a confrontação com essa
realidade pesquisada, possuem ainda a qualidade de viabilização para a reprodução social.
Trata-se de uma qualidade que, cada vez mais, desafia grande parte dos trabalhadores, em
especial aqueles que atuam nas políticas sociais em tempos de neoliberalismo. Período em
que, apesar dos avanços formais, insistem em predominar a realidade de abandono dos
recursos institucionais e de vulnerabilização das formas de contratação – que faz com que a
inerente “contradição do assalariamento” na nossa sociedade seja potencializada. Esses
aspectos se somam a múltiplas questões que permeiam nossa cultura, como, por exemplo, o
clientelismo e o autoritarismo, que se aprofundam tomando ares cada vez mais explícitos e
avassaladores na medida em que o período das eleições municipais se aproxima.
Esse conjunto de desafios nos parece fundamentais para respeitar e compreender os
limites impostos pela realidade cotidiana do assistente social na maioria dos campos de
intervenção e, contraditoriamente, para captarmos a necessidade e possibilidades de sua
intervenção. O que, sem dúvida, toma uma importância ainda maior na medida em que nos
referimos a uma dissertação de marcante enfoque na dimensão política da prática profissional
e nas possibilidades de que sua efetivação seja funcional a um projeto de emancipação da
classe trabalhadora.
22

1 ELEMENTOS A RESPEITO DO PROJETO INSTITUCIONAL

1.1 A expressão “questão social”: suas dimensões objetivas e subjetivas

“É de lágrimas que eu faço o mar pra navegar”


Los Hermanos

Para discutirmos “questão social”, partiremos de considerações básicas sobre a


estrutura econômica que lhe conforma. Trata-se da estrutura econômica capitalista, que marca
uma era de conflitos e contradições no âmbito das relações sociais. Sua configuração está
ligada ao período em que a burguesia (inicialmente revolucionária) investiu os excedentes que
havia apropriado em meios de produção com finalidades privadas,8 ou seja, objetivando o
lucro. A burguesia precisava realizar investimentos que assegurassem um retorno que
garantisse, além de sua subsistência (e seu luxo), a reprodução dos trabalhadores e forma
alienada e a reposição dos mesmos investimentos, possibilitando a continuidade do processo
produtivo.
Nasceu, assim, o proletariado: uma massa desprovida dos meios de produção que, sem
ter como produzir o necessário para a sua subsistência, precisou submeter-se à burguesia
como forma de garantir sua sobrevivência.9 Dessa maneira, encontramos, por um lado, “um
grupo de compradores possuidores de terras, maquinaria, matérias-primas e meios de vida [...]
e, por outro lado, um grupo de vendedores que nada tem a vender senão sua força de trabalho,
os braços e cérebros laboriosos” (MARX, 2004c, p. 87).
Kowarick aponta que, com a apropriação privada dos meios de produção, a burguesia
produziu “condições materiais que metamorfoseiem a pessoa em força de trabalho, impedindo
sua reprodução autônoma e obrigando-a a se transformar em mercadoria que se vende no
mercado de trabalho” (1994, p. 104). O autor ressalta que, além disso, a burguesia criou

8
Os excedentes que a burguesia possuía durante o período revolucionário é fruto da acumulação originária do capital, que
ocorreu a partir da expansão mercantil na Idade Média e início da Idade Moderna. Esse processo foi ainda mais acelerado a
partir da Expansão Ultramarina, que possibilitou a “descoberta de ouro e prata da América, a extirpação, escravização e
sepultamento, nas minas, da população nativa, o início da conquista e saque das Índias Orientais”, além da “transformação da
África num campo para a caça comercial aos negros” (MARX apud HUBERMAN, 1984, p. 169).

9
Segundo uma estatística feita na Inglaterra em 1851: “apenas 2% da população economicamente ativa eram constituídos
de patrões; 3,7% de administradores e gerentes; 5,3% de artesãos, pequenos lojistas e pequenos produtores camponeses que
trabalhavam por conta própria ; 87% de assalariados permanentes e provisórios, sem posse de meios próprios de subsistência;
sendo os 2% restantes indeterminados” (ABREU, 1994, p. 4).
23

condições para condicionar essa pessoa no sentido de convencê-la a se “incorporar no


processo produtivo, aceitando a situação de assalariado em vez de escolher outra alternativa
de vida” (KOWARICK, 1994, p. 104)
O sucesso dessa expropriação em “duplo sentido”, como definiu o autor citado, se
baseia em uma modalidade de divisão social do trabalho10 em que a burguesia comanda um
processo produtivo no qual os trabalhadores, utilizando os meios de produção privados,
transferem valor a objetos que são apropriados pelo capitalista. Ao final desse processo, o
produto não pertence ao produtor, mas ao burguês. Este devolve ao trabalhador apenas uma
parcela daquilo que produziu (o salário)11 e se apropria do restante (a mais-valia).12 Além
disso, o produto é cobiçado pelo capitalista não por seu valor de uso, mas por seu valor de
troca, legitimado em um momento seguinte (na circulação) sob a forma de mercadoria.
Essa relação de exploração entre “aqueles que compram direitos relativos à força de
trabalho para obtenção de lucro (os capitalistas) e aqueles que vendem direitos relativos à
força de trabalho para viver (os trabalhadores) existe em lados opostos, concernente a essa
divisão entre comprador e vendedor” (HARVEY, 2005, p. 131), e expressa a oposição e o
antagonismo inerentes à relação entre essas classes. Tal oposição no campo estrutural vem à
tona à medida que o capitalismo se desenvolve. Isso porque ambas as classes disputam entre
si a proporção da riqueza total produzida durante o processo de trabalho. Em resumo: se o
trabalhador aumenta para si (em forma de salário) a proporção da riqueza que produziu, o
burguês diminui a proporção da riqueza em sua posse (em forma de lucro) e vice-versa.
Para intensificar essa oposição, há outra forma de disputa relacionada aos meios de
produção, cujas consequências recaem sobre a classe trabalhadora. Trata-se da inevitabilidade
da competição entre capitalistas. Isso significa que os donos dos meios de produção não
dependem apenas da produção fabril para permanecerem lucrando. Seus produtos, quando

10
Tauile conceitua “divisão social do trabalho” como uma “divisão por comunidades (entre famílias, por exemplo) e por
gêneros completos de produtos (como a clássica divisão entre produtores de vinhos e produtores de tecidos), podendo ocorrer
em âmbito local, regional ou internacional” (2001, p. 63). Ela ganha novas características no contexto capitalista, no qual se
complexifica diante de cada contexto sob a direção burguesa. A burguesia busca hierarquizá-la e aperfeiçoá-la como meio de
despolitizar os trabalhadores e aumentar os lucros produtivos.

11
O “salário” é o dispositivo pelo qual o burguês consegue subordinar o trabalhador a essa modalidade exploratória de
produção, pois é por meio dele que o trabalhador consegue obter acesso às condições materiais mínimas para sua
sobrevivência. Por isso, “o emprego é encarado [pelo trabalhador] não como uma atividade, mas como um meio de se obter
uma parcela dos frutos da atividade produtiva” (SINGER, 1977, p. 99). Marx assinala que “esse elemento histórico ou social
que entra no valor do trabalho [salário], pode aumentar, diminuir, ou até mesmo, desaparecer completamente, de tal modo
que só subsista o limite físico” (apud ANTUNES, 2004, p. 116).
12
Marx aponta a mais-valia como “o fim imediato e o produto por excelência da produção capitalista” (2004b, p. 155).
24

entram no mercado, concorrem com os produtos de outros capitalistas, o que os ameaçam.


Dessa forma, seus produtos precisam possuir, além de qualidade, baixos preços para atraírem
o mercado consumidor, pois é durante a circulação que a riqueza é realizada.
À medida que o capital se expande, essa competição pressiona os capitalistas para que
efetivem uma progressiva baixa nos preços das mercadorias. Dessa forma, as condições para
vencer essa competição se modificam. Isto significa que, para ampliar ou manter o lucro, os
capitalistas precisam aumentar a produção, pois aqueles “que não pretendam aumentar a
escala de seus negócios ou se recusem a fazê-lo acabam naufragando no mar da concorrência”
(NETTO; BRAZ, 2007, p. 125). Explicita-se nessa condição, uma tendência econômica
definida como “reprodução ampliada”, que gradativamente tornou-se uma tendência geral no
mundo do capital. Essa ampliação se dá a partir do aumento da extração da mais-valia
relativa13 e/ou da mais-valia absoluta.14
Devido aos limites tecnológicos existentes no início do capitalismo, os investimentos
em capital variável15 nas primeiras décadas de avanço do sistema eram proporcionalmente
maiores em relação aos investimentos em capital constante. 16 Com o desenvolvimento do
capitalismo, durante o século XIX, essa tendência foi, aos poucos, sendo invertida. A partir
desse período, os capitalistas passaram a aumentar a produtividade do trabalho mediante o
emprego de meios de produção mais eficazes.17 Isso foi impulsionado, principalmente, pelos
diversos inconvenientes que a massificação dos trabalhadores causava constantemente nas
fábricas; pela maior lucratividade dessa opção a médio e longo prazos e pelos grandes saltos
tecnológicos estimulados pela necessidade de ampliar a taxa de mais-valia. É nesse
movimento de subordinação do trabalhador e valorização do capital “que a acumulação

13
Trata-se da mais-valia efetivada a partir da estratégia de aumentar a “produtividade do trabalho, mediante o emprego de
meios de produção eficazes que permitam reduzir o tempo de trabalho excedente da jornada de trabalho” (IAMAMOTO;
CARVALHO, 2008, p. 57).

14
Essa modalidade de extração de mais-valia é obtida através da extensão da jornada de trabalho ou da redução dos
salários.
15
Trata-se da força de trabalho, isto é, do “trabalho vivo”.

16
Dá-se o nome de “capital constante” aos meios de produção e às forças produtivas (técnica, máquinas), isto é, ao trabalho
morto.
17
Devemos destacar, porém, que tais avanços tecnológicos não servem à libertação universal do ser social em relação à
natureza. Pelo contrário, o emprego das novas máquinas, servindo à lógica de produção capitalista, é uma arma de
acumulação e exclusão que pode levar toda a classe trabalhadora à degradação humana. A “mais-valia relativa” possui um
caráter oculto, na medida em que cria a ilusão de que, com os investimentos em máquinas, o trabalhador passaria a gerar
menos valor. Na verdade, essa ideia é uma falácia, já que o que a máquina faz é potencializar a força de trabalho como
qualquer outro instrumento de trabalho. As novas máquinas são, portanto, incapazes de criar valor independentemente da
força de trabalho.
25

capitalista sempre produz, e na proporção da sua energia e extensão, uma população


supérflua” (MARX, 2010, p. 733) (também expropriada dos meios de produção), que se
convencionou chamar de superpopulação relativa.

A acumulação crescente e a centralização se convertem numa fonte de nova mudança da


composição do capital ou reiterado decréscimo acelerado de sua componente variável se
comparado com a constante. Esse decréscimo relativo de sua componente variável, […]
aparece, por um lado, inversamente, como crescimento absoluto da população trabalhadora
sempre mais rápido do que do capital variável, ou de seus meios de ocupação. No entanto, a
acumulação capitalista produz constantemente […] uma população trabalhadora adicional
relativamente supérflua ou subsidiária, ao menos no concernente às necessidades de
aproveitamento por parte do capital (MARX, 2010, p. 190).

Esses sujeitos constituem um segmento inserido dentro da classe trabalhadora. Isso


porque, apesar dessa classe assumir “determinações diversas em variados contextos
históricos” (MONTAÑO; DURIGUETO, 2010, p. 85) (dimensão conjuntural), ela possui uma
dimensão estrutural referente ao “papel que desempenham e o lugar que ocupam os sujeitos
no processo produtivo” (MONTAÑO; DURIGUETO, 2010, p. 86). Ou seja:

O que determina o caráter dessa classe no MPC [modo de produção capitalista] é a


propriedade da força de trabalho […] o fato de um trabalhador vender ou não sua força de
trabalho não muda o caráter de ter essa como única fonte de renda. Ou seja, vender sua força
de trabalho converte o trabalhador em „empregado‟. Não vender a força de trabalho converte o
trabalhador em „desempregado‟. Trabalhador desempregado... Desempregado mas
trabalhador! (MONTAÑO; DURIGUETO, 2010, p. 95).

Segundo Karl Marx, mesmo que os sujeitos que compõem a massa desempregada não
tragam ganhos materiais imediatos à produção, indiretamente cumprem um importantíssimo
papel político disciplinador em relação àqueles que estão inseridos no mercado de trabalho.
Isso porque os primeiros atuam como uma “[...] alavanca da acumulação capitalista, até
mesmo uma condição de existência do modo de produção capitalista” (MARX, 1988, p. 91).
Quanto a isso, podemos observar em Iamamoto:
[...] durante as fases de expansão econômica, o exército industrial de reserva exerce uma
pressão sobre os trabalhadores ativos, nos momentos de superprodução e crise funciona como
um freio às suas exigências. Atua como uma pressão baixista dos salários e favorecedora da
subordinação do exército ativo às imposições do capital na sua fome insaciável de absorção de
trabalho não pago (2008, p. 60).

Nesse sentido, podemos afirmar que a estrutura que determina esse trágico impasse
acaba por utilizar parte da classe trabalhadora (a superpopulação relativa) como instrumento
de persuasão no processo de subalternização daqueles inseridos no mercado de trabalho.18

18
Apesar da determinação degradante e despolitizante que a “superpopulação relativa” exerce sobre os setores ativos da
classe trabalhadora, devemos ressaltar que as determinações não se constituem como fatalidades rígidas, inevitáveis,
inflexíveis e mecânicas; mas sim como forças pressionadoras. Ou seja, ainda que a tendência destes setores mais
26

Dessa forma, temos, basicamente, dois movimentos que favorecem o acúmulo de riqueza sob
o poder dos capitalistas (e, necessariamente, de pobreza entre a classe trabalhadora):
1) Cria-se uma multidão de sujeitos disponíveis para serem explorados, mas aos quais
as instituições burguesas não têm interesse de realizar o pagamento de salários regulares. O
resultado no plano material para esses sujeitos é uma condição de sobrevivência
extremamente precária.
2) Ameaçados pela pressão causada involuntariamente pelos trabalhadores inativos, os
trabalhadores ativos tornam-se mais vulneráveis ao desemprego, tendo em vista a diminuição
de seu poder de resistência política. O resultado concreto disso é um aumento da exploração
por parte de seus empregadores, através da redução dos salários19 e da deterioração das
condições de trabalho.
A partir dos entraves que limitam as proporções de riquezas produzidas nas mãos dos
trabalhadores (ativos ou inativos), o consumo tende a sofrer um decréscimo relativo, o que
significa, no plano mais amplo do mercado, uma queda relativa das vendas em relação à
crescente capacidade produtiva. Isto agrava a competição entre os capitalistas, o que tende a
gerar crises de superprodução, levando muitos deles à falência. Esta é seguida por fusões, o
que torna os capitalistas mais raros devido a uma progressiva concentração dos meios de
produção nas mãos de poucos. Os capitalistas que resistem no mercado se tornam cada vez
mais poderosos, pois concentram cada vez mais capital sob seu domínio. Isso lhes garante
uma riqueza ainda mais desproporcional em relação ao restante da população da sociedade
capitalista e melhores condições nas disputas pelas proporções da riqueza produzida
pela/contra a classe trabalhadora.
O resultado dessa tragédia sistêmica, ao contrário do que é discursado por aqueles que
advogam pelo capitalismo, é que “o antagonismo entre pobres e ricos, longe de dissolver-se
no bem-estar geral, aguçara-se” (ENGELS apud ABREU, 1994, p. 3), de maneira que, “do
ponto de vista da população trabalhadora, esse processo se expressa numa pauperização
crescente em relação ao crescimento do capital” (IAMAMOTO, 2008, p. 66). Assim, a
tendência, nesse modo de produção, é que a riqueza seja distribuída de maneira cada vez mais

pauperizados seja a despolitização, existe a possibilidade de que os sujeitos históricos encontrem maneiras para que esta
tendência seja anulada ou amenizada.
19
Lúcio Kowarick (1994), ao resgatar o surgimento e o processo de concretização do trabalho “livre” no Brasil, também
aponta para a importância dessa massa na arrancada da industrialização da cidade. Além disso, o autor destaca a relação entre
“a abundância da mão-de-obra” e o preço pago pelos proprietários pela força de trabalho.
27

desigual, ainda que essa distribuição possa ser brevemente desacelerada ou revertida. Nesse
processo, a riqueza é progressivamente transferida para a burguesia na mesma medida em que
a proporção de seus membros é cada vez menor na sociedade. Ao mesmo tempo, a classe
trabalhadora cresce e empobrece.20
Essa breve análise é suficiente para apontar que a acumulação da pobreza é
fundamentalmente determinada pela forma de acumulação da riqueza, que, no capitalismo, é
ancorada na apropriação privada de uma classe que precisa manipular uma forma peculiar de
produção socializada. Isso permite destacar que há, no capitalismo, uma particularidade em
relação às outras formas de sociabilidade que precederam o mesmo. Isso já é empiricamente
perceptível na “primeira onda industrializante iniciada na Inglaterra no último quartel do
século XVIII” (NETTO, 2007b, p. 153). Trata-se daquilo que José Paulo Netto destaca ao
afirmar que a dinâmica de pobreza e pauperismo, iniciada com o capitalismo, é “um
fenômeno novo”, visto que é “radicalmente nova a dinâmica da pobreza que então se
generalizava”, “precisamente porque ela se produzia pelas mesmas condições que
propiciavam os supostos, no plano imediato, da sua redução” 21 (NETTO, 2007b, p. 154), já
que “o pauperismo [já] não podia ser associado ao baixo desenvolvimento das forças
produtivas, nem à escassez da produção material de bens” (SANTOS; COSTA, 2011, p. 1).
Na medida em que o salto no padrão das forças produtivas representava um potencial
suficiente para a erradicação da pobreza, essa possibilidade foi efetivamente contrariada pela
racionalidade burguesa fatalmente assentada na progressiva degradação relativa das
condições empíricas de vida da classe trabalhadora em geral. Em suma: a expressão
social da estrutura econômica capitalista é a crescente desigualdade econômica entre
burgueses e trabalhadores.
Esse fenômeno empírico, resultante da natureza crescentemente desequilibrada da
distribuição de riqueza na sociedade capitalista, “ao atingir todo o cotidiano do operário,
transforma-o num cotidiano de sofrimento, de luta pela sobrevivência” (IAMAMOTO, 2008,
p. 66, grifos nossos. Esse sofrimento é captado por Haroldo Abreu quando descreve:

20
Isso explica a afirmação da mesma autora quando afirma: “a produção e reprodução da riqueza material [...] é
indissociável das relações sociais” (IAMAMOTO, 2008, p. 65), tamanha profundidade do nexo entre as condições de vida de
cada sujeito e sua posição econômica.
21
“Pela primeira vez na história registrada, a pobreza crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de
produzir riquezas” (NETTO, 2007b, p. 153).
28

[...] nas primeiras décadas de desenvolvimento do capitalismo industrial, tanto na Inglaterra


quanto no continente europeu, as condições de existência do proletariado e do conjunto das
classes subalternas não detentoras de capital caracterizavam-se por pobreza, fome,
desemprego, habitação, em cortiços, ausência de saneamento, doenças, alcoolismo,
prostituição, difusão de seitas e cultos de caráter apocalíptico etc. As condições materiais e
morais da vida deterioravam-se com a industrialização e a urbanização, sob a égide da divisão
social entre trabalho e capital [...] (1994, p. 4).

Esse “cotidiano de sofrimento”, determinado pela nova dinâmica de pobreza


inaugurada pela estrutura econômica capitalista, não pode ser tomado como uma
conseqüência final desse processo. Trata-se de um processo que, de acordo com Marilda
Iamamoto, é “denso de conformismos e rebeldias” (2012), e incide, de maneira mais ou
menos profunda, nas próprias relações sociais do capitalismo. Sem ignorar as possibilidades
desse sofrimento ser internalizado – sem maiores conseqüências para o âmbito das relações
sociais – pelos sujeitos-sofredores, a história do amadurecimento do capitalismo nos mostra
que, esses sujeitos passam a externalizar sua insatisfação diante do sofrimento por meio do
que chamaremos aqui de “rebeldia”. Por isso, Alejandra Pastorini aponta que “[...] os conflitos
que podem dar ao levantamento da população subalterna [...] tem como ponto de partida o
descontentamento social” (PASTORINI, 2004, p. 112, grifos nossos). Isso significa que a
“rebeldia” é o ato de externalizar o “cotidiano de sofrimento” produzido pela nova dinâmica
de pobreza no âmbito das relações sociais, independentemente da coerência, profundidade e
efetividade do ato.
A relação entre essa forma de postura por parte dos trabalhadores e seus determinantes
estruturais é contemplada por Rosa Luxemburgo no trecho a seguir:

Esses conflitos sociais e políticos, no entanto, são por si sós, em última análise, apenas o
produto do caráter economicamente insustentável do sistema capitalista e tiram justamente
dessa fonte seu agravamento crescente, na medida exata em que esse caráter insustentável
torna-se sensível (apud LUCÁKS, 2003, p. 126).

Esse conjunto de fatores conforma um novo fenômeno na história da humanidade, que


é denominado “questão social”. Podemos dizer que ele é empiricamente perceptível e
consagrado (até mesmo para o senso comum) por seu “conjunto das expressões das
desigualdades da sociedade capitalista madura” (IAMAMOTO, 2007, p. 27, grifos nossos),
cujos fundamentos se radicam na particularidade da “nova dinâmica de pobreza”.
Porém, essa marca corresponde apenas a uma das duas dimensões básicas da chamada
“questão social”: sua dimensão objetiva. No entanto, também podemos perceber que a
“questão social” não pode ser “focada exclusivamente como desigualdade social entre pobres
e ricos” (IAMAMOTO, 2007a, p. 59). Como esse fenômeno envolve “sujeitos reais e
concretos, que sentem, pensam, agem e sofrem os efeitos da desigualdade social” (DUARTE,
29

2012), ele apresenta também uma dimensão subjetiva.22 Trata-se daquilo que se apresenta a
nossos olhos como “rebeldia”, que pode ser explicada a partir do “cotidiano de sofrimento”
imposto aos trabalhadores a partir de sua inserção subalterna na sociedade capitalista.
Portanto, é possível afirmar que a dimensão subjetiva da “questão social” é consequência
direta de sua dimensão objetiva. 23 Nesse sentido, Marilda Iamamoto ressalta que a “questão
social” deve ser compreendida “em suas dimensões objetivas e subjetivas, isto é, em seus
determinantes estruturais e no nível da ação dos sujeitos” (2009a, p. 15), pois a “questão
social” “sendo desigualdade é também „rebeldia‟, por envolver sujeitos que vivenciam as
desigualdades e a ela resistem e se opõem” (2007a, p. 28).
Como já foi explicitado anteriormente, o trabalhador pode lidar de duas formas com
esse “cotidiano de sofrimento”: externalizar por meio da "rebeldia" (reagir) ou internalizar por
meio da subordinação passiva (consentir). No entanto, é necessário demarcar que existem,
por meio da “rebeldia”, diferentes percursos possíveis pelos quais o trabalhador pode
conduzir sua reação diante desse “cotidiano de sofrimento”. Apesar de se rebelar
(externalizar seu sofrimento no âmbito das relações sociais), o sujeito pode e, até mesmo,
tende a recorrer às mais variadas formas de reiteração dos determinantes da “questão social”.
Metaforicamente, pode-se dizer que, diante de seu sofrimento, o trabalhador que se rebela está
em um labirinto, onde a “rebeldia” que o leva a caminhar, por si só, não o liberta, pois a
maioria dos caminhos o conduz à mesma encruzilhada inicial: o sofrimento de origem
estrutural. Portanto, não basta andar, é preciso saber por onde andar; não basta a
“rebeldia”, é preciso que a ela seja articulada à consciência.
A necessidade de consciência em relação ao caminho a seguir envolve, previamente, a
necessidade de consciência em relação à sua respectiva situação atual e de seus determinantes.
É importante destacar que existe uma rede de entraves ao desenvolvimento da consciência,
sendo os primeiros deles relacionados ao próprio “lugar” a partir do qual os trabalhadores se
relacionam com o fenômeno em questão: o cotidiano empírico do trabalhador assalariado. Por
conta desse “lugar” de análise, ao não se conformarem com as condições às quais são

22
Apenas gostariamos de destacar que o fato de apresentar um caráter “subjetivo” não elimina os rebatimentos que tal
subjetividade apresentará no plano objetivo. Ou seja, adiantar que, baseado no método materialista-dialético de Marx, esse
estudo, ainda que se permita atentar às dimensões objetivas e subjetivas de alguns fenômenos sociais relevantes para esse
objeto de estudo, não se proporá a negar e/ou ignorar a intrínseca relação entre ambas as dimensões.
23
A vinculação entre essas duas dimensões da “questão social fica evidente nessa passagem de Stévan Meszáros:
“Juntamente com a diminuição constante do número dos magnatas do capital, que usurpam e monopolizam todas as
vantagens deste processo de transformação, cresce a massa da miséria , da opressão, da escravidão, da degeneração, da
exploração; mas, com isso, cresce também a revolta da classe trabalhadora, uma classe sempre crescente em número, e
disciplinada, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista” (2004, p. 346).
30

submetidos, os trabalhadores tendem a culpabilizar apenas as principais expressões objetivas


que permeiam seu “cotidiano de sofrimento” e, consequentemente, a concentrar suas ações
exclusivamente contra essas expressões objetivas. No entanto, na medida em que a pobreza se
relaciona não apenas com a distribuição de riquezas, mas também com a distribuição dos
meios de produção de riquezas, a desigualdade da distribuição de riquezas possui um caráter
de “efeito” e não de causa em relação à estrutura econômica. Segundo Leandro Konder, “não
adianta combater o efeito, sem combater a causa” (1981, p. 40) e, de acordo com Braz e
Netto:
[...] a „questão social‟ é determinada por essa lei [lei da acumulação capitalista]; tal „questão‟,
obviamente, ganha novas dimensões e expressões à medida que avança a acumulação e o
próprio capitalismo experimenta mudanças. Mas ela é insuprimível nos marcos da
sociedade onde domina o MPC [modo de produção capitalista]. Imaginar a „solução‟ da
„questão social‟ mantendo-se e reproduzindo-se o MPC é o mesmo que imaginar que o
MPC pode se manter e se reproduzir sem acumulação do capital. (BRAZ; NETTO, 2007,
p. 139, grifos nossos).

Portanto, concluímos que, na medida em que a transformação efetiva e geral das


condições de vida dos trabalhadores não ocorre sem que suas determinantes sejam
transformadas, é necessário que sejam encontrados meios de “atingir a estrutura social e
econômica da sociedade” (KONDER, 1981, p. 40). Isso significa que é necessário que os
trabalhadores se rebelem não apenas contra a dimensão objetiva da “questão social”
(expressões da estrutura econômica), mas também contra as próprias questões inerentes ao
modo de produção capitalista. Isso requer o desenvolvimento de uma consciência que
possibilite uma resolução efetiva do sofrimento desses sujeitos, ou seja: o desenvolvimento de
uma consciência de classe. Desta forma, vislumbra-se a possibilidade de não apenas se
revoltar contra as relações predeterminadas, mas de também alterá-las (IASI, 2007, p. 28-29).
Na medida em que a “rebeldia” precisa atingir prioritariamente a “causa” em detrimento do
“efeito”, a consciência de classe é fundamental na orientação das “rebeldias”, ou seja, para
que haja coerência entre objetivo e resultado.
Nesse sentido, podemos dizer que a inevitável dimensão subjetiva da “questão social”
– determinada em primeira instância pela estrutura econômica capitalista – traz em si um
germe político potencialmente capaz de determinar, em segunda instância, a própria estrutura
econômica.24 Lógica expressa por Friedrich Engels:

24
Neste estudo, o termo “determinar” é concebido de maneira dialética em oposição ao sentido determinista que considera
as determinações de forma unilateral. Dessa forma, compreendemos a possibilidade de que o elemento determinado em
primeira instância produza também efeitos de segunda instância sobre o determinador motriz. Traduzindo essa lógica para o
caso estrutural, podemos dizer que, embora para Marx a estrutura econômica determine a política, a política pode determinar
uma transformação sobre o “econômico”. Os resultados dos processos sociais não podem, portanto, ser analisados
mecanicamente, já que dependem fundamentalmente dos sujeitos neles envolvidos.
31

O desenvolvimento político, jurídico, filosófico, religioso, literário, artístico, etc., baseia-se no


desenvolvimento econômico. Mas todos eles reagem, também, uns sobre os outros e sobre a
infra-estrutura econômica [...] Não se pode dizer, pois, que a situação econômica exerce um
efeito automático, como às vezes se é levado a crer, por uma simples questão de comodidade
(apud CARVALHO, 1986, p. 28).

É, portanto, a inerente dimensão subjetiva da “questão social”– através de sujeitos


sociais ativos –, quando alinhada à consciência de classe, que possibilita a destruição do modo
de produção capitalista e, consequentemente, da “questão social” em sua totalidade (“nova
dinâmica de pobreza” e a “rebeldia”). Para atingir o status de “rebeldia” radicalmente
consciente, é preciso que a dimensão subjetiva ultrapasse os limites do individualismo 25 e
externalize – de maneira consciente e organizada – a indignação. Nesse sentido, o elemento
central a ser levado em consideração deve ser o embate revolucionário contra a propriedade
privada dos meios de produção e contra a divisão de classes. Entretanto, isso não significa
negar a importância de travar batalhas imediatas contra os efeitos do sistema na tentativa de
amenizar o sofrimento causado pelos mesmos. 26
Podemos concluir que a dimensão subjetiva da “questão social” apresenta duas
questões importantes em relação ao modo de produção capitalista:
1° Se, por um lado, apresenta uma tendência inofensiva, por outro, apresenta um
potencial revolucionário.27
2° Pode ser confundida e anestesiada pelo capital, mas nunca eliminada pelo
mesmo.
Até as primeiras décadas do século XIX, existiam formas de resistência coletiva muito
rudimentares, se levarmos em consideração o alcance da organização e a combatividade dos
setores organizados em oposição à burguesia do período. Isso porque a consciência da classe
trabalhadora ainda se limitava àquilo que se conceitua como “consciência em si”. Esse estágio
da consciência expressa um caráter prematuro de lutas por demandas pontuais e imediatistas,
motivadas quase inteiramente pelo desespero, sem praticamente nenhuma compreensão da

25
“[...] a injustiça vivida como revolta é partilhada numa identidade grupal, o que possibilita a ação coletiva” (IASI, 2007,
p. 28).
26
Exemplo de bandeiras menos radicais, mas indispensáveis: aumento de salário, diminuição da carga horária de trabalho,
melhores condições de trabalho, saúde, educação, moradia etc. Esse tema será abordado com maiores detalhes e profundidade
no capítulo seguinte.

27
Ao chamar a atenção para esse potencial revolucionário, estamos nos referindo à possibilidade dessa dimensão subjetiva
da “questão social” se atrelar à consciência de classe para si, nos termos marxistas.
32

totalidade. 28 Dessa forma, suas lutas eram fadadas a mudanças superficiais, incapazes de
colocar em questão a estrutura econômica capitalista. No entanto a proliferação da “rebeldia”,
ainda que embrionária e frágil, trouxe consigo a proliferação de reformas 30 no âmbito da
distribuição econômica. Ou seja, essa forma de consciência, ainda que imatura, foi capaz de
gerar melhorias nas condições de vida dos setores organizados e, consequentemente, limitar,
parcialmente, a concentração de riqueza na esfera da distribuição.
Essas formas de “rebeldias” embrionária sofreram rapidamente repressões duríssimas
do Estado. Além disso, as manifestações de sofrimento mais isoladas e “despolitizadas” 29
eram abrandadas por práticas extremamente superficiais como a caridade e o paternalismo,
que se manifestavam sempre de maneira estigmatizante, culpabilizadora, espontânea e
isolada. Essas últimas estratégias, embora amenizassem a escassez material no cotidiano da
classe trabalhadora (dimensão objetiva da “questão social”), eram suficientes para manter a
ordem.30
As estratégias preventivas colocadas em prática pelos setores dominantes expressavam
um caráter ainda extremamente arcaico. Por um lado, devido às próprias limitações objetivas
da burguesia naquele período. Ela não possuía um volume excedente suficiente para conceder
uma parcela considerável de suas riquezas às grandes reivindicações da classe trabalhadora
sem comprometer os lucros necessários para a reprodução do capital. Por outro lado, porque
as formas de organizações e reivindicações da classe trabalhadora eram débeis, e, portanto,
não exigiam da burguesia estratégias de desmobilização mais sofisticadas.
Essa debilidade estava diretamente ligada ao estágio de consciência dos trabalhadores
daquele período, expresso pelo termo “consciência em si”. 31 O proletariado carecia de uma
consciência e organização de classe fundamentada na crítica revolucionária à ordem burguesa

28
Devemos indicar que a história do amadurecimento da luta dos trabalhadores é complexa, não-linear, recheada de
avanços e recuos, à mercê das conjunturas objetivas e da própria organização da classe capitalista. Isso indica que não
consideramos os estágios da consciência de classe de maneira gradual e irreversível na direção de uma radicalidade que
provoque, necessariamente, uma revolução.
29
Partimos do pressuposto de que toda prática social em uma sociedade classista gera impactos políticos sobre a realidade,
ainda que tais impactos não sejam captados, nem mesmo tenham feito parte anteriormente da teleologia do ator social. Desta
forma, o termo será utilizado entre aspas para enfatizar que gera impactos políticos, mas que vão contra a politização
necessária aos interesses da classe trabalhadora, ou seja, uma politização nos parâmetros burgueses.
30
Trata-se de uma premissa gramsciana, que parte do suposto de que um exército vence a guerra quando se prepara em
tempos de paz.
31
Esse estágio é bem explicitado por Gramsci no seguinte trecho: “Em sua primeira fase sindical, a luta econômica é
espontânea, ou seja, nasce inelutavelmente da própria situação em que se encontra o proletário do regime burguês, mas não é
em si mesma revolucionária, isto é, não leva necessariamente à derrubada do capitalismo” (2004, p. 293).
33

que lhes possibilitasse lutar não apenas pela distribuição menos desigual da riqueza, mas
também pela superação das condições que geram e reproduzem a apropriação privada da
riqueza socialmente produzida. Em outras palavras, eles ainda não possuíam meios para lutar
pela socialização dos meios de produção. Faltava-lhes a forma de consciência denominada por
Marx como “consciência de classe para si”. Essa condição permitiria mudar o eixo central da
luta dos efeitos para as causas, transformando a classe trabalhadora em um sujeito coletivo
revolucionário capaz de combater a essência da ordem vigente.
Os avanços dos trabalhadores, em termos da construção de uma consciência
emancipatória, ocorreram de tal maneira que já no período que vai:

Da primeira década até a metade do século XIX, [onde] seu protesto da classe trabalhadora]
tomou as mais diversas formas, da violência ludista à constituição das trade unions,
configurando uma ameaça real às instituições sociais existentes (NETTO, 2007, p. 154).

Isso ocorreu principalmente na Inglaterra, onde o capitalismo e suas consequências já


estavam bem estabelecidos, o que pode ser explicado, em grande parte, pelo fato de que

Por volta de 1840, o capitalismo liberal inglês ainda não possuía excedentes econômicos
disponíveis nem estratégias reformadoras da ordem socio-política que lhes permitissem
pactuar com os movimentos subalternos (ABREU, 1994, p. 12).

“Desde então, os movimentos subalternos passaram a reconhecer a positividade do


capitalismo, quer visando sua incorporação ao mesmo quer buscando superá-lo” (ABREU,
1994, p. 12). Essa ofensiva ganhou força até o emblemático ano de 1848, marcado por
diversas revoluções. Apesar de ter a França como palco central, exerceu grandes repercussões
sobre toda a Europa.
Segundo José P. Netto,

As vanguardas trabalhadoras ascenderam, no seu processo de luta, à consciência política de


que a „questão social‟ está necessariamente colada à sociedade burguesa: somente a supressão
desta conduz à supressão daquela (2007, p. 156).

Apesar de provisoriamente derrotado, esse momento histórico evidencia uma


impetuosa politização da dimensão subjetiva da “questão social”, dando a ela uma tonalidade
ameaçadora em relação aos interesses burgueses. A classe trabalhadora, a partir daquele
momento, passou a apresentar, através de sua força e consciência, um efetivo potencial
revolucionário. Diante do fato de que, “desde 1848, a ortodoxia dos fundamentos
individualistas e excludentes do Estado de direito liberal também se revelou incapaz de
articular a estabilidade e a legitimidade do desenvolvimento capitalista” (ABREU, 1994, p.
34

16), uma questão crucial se impôs à burguesia: diante da impossibilidade de erradicar as


determinações que produzem o “cotidiano de sofrimento”, como tornar inofensiva a dimensão
subjetiva da “questão social”? Ou melhor, como confundir a consciência desses trabalhadores
para que ela não se articule à “rebeldia”? Era necessário que a burguesia, a partir de sua
consciência de classe (burguesa), disseminasse discursos ideológicos capazes de moldar a
consciência dos trabalhadores durante seu processo de amadurecimento da consciência de
classe.
Frente à impossibilidade de permanecer ignorando as reivindicações da classe
trabalhadora, a expressão “questão social”, segundo Netto, “começou a ser utilizada na
terceira década do século XIX e foi divulgada até a metade daquela centúria por críticos da
sociedade e filantropos situados nos mais variados espaços do espectro político” (NETTO,
2007, p. 152). Diante da possibilidade de “canalização” da dimensão subjetiva do fenômeno, a
expressão “questão social” passou a ser apropriada e difundida por intelectuais orgânicos da
burguesia após 1848. Eles possuíam o ideológico propósito de propagandear esse fenômeno
no campo do “social”, considerado um compartimento estanque, cuja forma, supostamente,
não sofreria alterações de acordo com os demais campos (econômico, político etc.). Dessa
forma, buscou-se promover o ocultamento do elemento político e os determinantes
econômicos imprescindíveis na conformação dessa “nova dinâmica de pobreza”, não
explicitando que o fenômeno apontado pela expressão “questão social” é, na verdade, um

Conjunto de problemáticas sociais, políticas e econômicas que se geram com o surgimento da


classe operária dentro da sociedade capitalista [...] refere-se ao processo de desenvolvimento
do próprio capitalismo (PASTORINI, 2004, p. 104).

Nessa manobra, a burguesia passou a afirmar a questão estratégica de conservação das


estruturas sociais, que ontologicamente interessa apenas aos intuitos burgueses, como uma
questão “social” geral, que deveria ser pensada e resolvida por toda a sociedade com o
objetivo de se alcançar um fictício bem comum. Dessa forma, “a „questão social‟ perde
paulatinamente sua estrutura histórica determinada e é crescentemente naturalizada, tanto no
âmbito do pensamento conservador laico quanto no do confessional” (NETTO, 2007a).
Podemos dizer, portanto, que a “questão social” foi um fenômeno preexistente, embora
apresentada através de uma expressão recém-nascida e já travestida de ideologia e
maquiagens. Isso está ligado ao fato de que, como expressão, a “questão social” nasceu
justamente numa fase em que esse fenômeno atingiu uma nova etapa, na qual sua dimensão
subjetiva foi elevada a um patamar ético-político voltado para a emancipação da classe
trabalhadora. O surgimento do termo demarca não o nascimento do fenômeno, mas sim a fase
35

em que, diante da maturidade da dimensão subjetiva da “questão social”, a burguesia, ao se


perceber diante do fantasma da revolução, reconheceu o risco desse fenômeno para a
manutenção da ordem social.
A expressão surgiu como o reconhecimento tardio, por parte da burguesia, de tal
fenômeno, indicando não apenas o aprofundamento do pauperismo, mas também e,
principalmente, do “perigo que ele significava para a ordem burguesa” (PASTORINI, 2004, p.
111). Podemos, portanto, afirmar que o que se colocava como problema para a burguesia não
era a escandalosa proliferação da pobreza e da miséria – e a desigualdade gritante que
correspondia a essa nova qualidade de pobreza (a dimensão objetiva da “questão social”) –,
mas sim a outra face da mesma moeda: a qualidade madura da dimensão subjetiva da
“questão social”. A partir do momento em que essa dimensão se mostrou politizada, ameaçava
a estrutura produtora do dramático cotidiano da classe trabalhadora. Nesse sentido,

Politicamente, [a „questão social‟] passa a ser reconhecida como problema na medida em que
os trabalhadores empobrecidos, de forma organizada, oferecem resistência às más condições
de existência decorrentes de sua condição de trabalhadores para o capital (SANTOS; COSTA,
2011, p. 12).

O momento seguinte ao calor do ano de 1848 foi marcado por um breve recuo das lutas
populares, enfraquecidas não apenas pelas derrotas, mas também pelo período de
prosperidade do capital. No entanto, esse período de relativa paz entre classes dava sinais de
falência nos finais da década de 1860 e início da década de 1870, quando a burguesia assistiu,
aterrorizada, a uma crescente adesão à ideologia revolucionária no seio da classe trabalhadora.
Esse fato ameaçador, aprofundado e constantemente aguçado pela crise sistêmica de 1873,
requisitou da burguesia uma série de respostas consistentes, regulares e articuladas ao
potencial revolucionário que, dessa vez, portador de uma consciência de “classe para si” e
com maior experiência, consciência e articulação, se mostrava ainda mais importante. Diante
da consistente e consciente estratégia dos trabalhadores daquele período, ficou claro que as
fragmentadas e desarticuladas concessões materiais, medidas de controle social e formas
filantrópicas já não eram capazes de “despolitizar” o sofrimento da classe trabalhadora. Além
disso, medidas repressivas também não bastariam para recuar suficientemente a
externalização do “cotidiano de sofrimento”.
O que estava no cerne da questão era a “reprodução da hegemonia burguesa”, e por
isso podemos dizer que havia, naquele momento, um contexto de crise hegemônica provocada
36

pela “rebeldia” da classe trabalhadora.32 Dessa forma, a burguesia necessitava disseminar,


com maior eficiência, os pressupostos de sua ideologia entre a classe trabalhadora a fim de
fortalecer a hegemonia burguesa. Diante da veracidade dos fatos empíricos vivenciados pelos
trabalhadores, o discurso por si só se mostrou cada vez mais ineficiente e, com isso, a contra-
hegemonia passou a se apresentar como uma ameaça cada vez mais eminente.

32
Essa noção de crise hegemônica é inspirada em Gramsci, que discorre a respeito dessa questão da seguinte maneira:
“Fala-se de „crise de autoridade‟: e isso é precisamente a crise de hegemonia, ou crise de Estado em seu conjunto”
(GRAMSCI, 2007).
37

1.2 Alguns componentes a respeito das políticas sociais e sua conformação no projeto
institucional

O governo apresenta suas armas: discurso reticente, novidade inconsistente e a liberdade


cai por terra
Os Paralamas do Sucesso.

Como foi possível perceber no tópico anterior, buscamos conduzir a reflexão


pautando-nos no antagonismo entre a classe burguesa e a trabalhadora, em sua necessária
relação contraditória e conflituosa que, a partir de determinado momento histórico, passou
a ganhar outra proporção. Trata-se da segunda metade do século XIX, quando os
trabalhadores passaram a expressar, por meio de lutas, suas insatisfações com suas
condições de reprodução social. O progressivo amadurecimento da “rebeldia” expressa
nessas lutas produziu uma espécie de “espectro” da revolução. Ou seja, a proporção e o
amadurecimento da qualidade dessas lutas apontaram para a burguesia a verdade de que
esse sistema poderia perfeitamente ser posto abaixo. Isso confirmou algumas tendências
expostas no Manifesto do Partido Comunista, no qual Marx e Engels afirmaram que “a
burguesia não forjou apenas as armas que lhe trazem a própria morte; ela produziu também
os homens que portarão essas armas”(MARX; ENGELS, 2012).
O fantasma da revolução que assombrava a burguesia foi percebido pela mesma
não apenas porque alguns setores da classe trabalhadora se dedicavam à derrubada do
sistema, mas também porque muitos trabalhadores começaram a expressar suas
insatisfações, demandando melhorias imediatas em seus padrões de vida. Diante de uma
série de demandas contestatórias feitas pela classe trabalhadora (sejam elas radicais ou
superficiais) e de suas conquistas, a burguesia se via ameaçada, precisando fortalecer sua
hegemonia para reproduzir o capitalismo. Essa necessidade de reprodução da sua
hegemonia burguesa frente à classe trabalhadora se pauta numa questão que, a nosso ver,
corresponde a algumas das preocupações mais notáveis da principal produção literária de
Nicolau Maquiavel: “O Príncipe”.
38

Chevallier observa que, para Maquiavel,

O novo príncipe33 vive no seio do perigo, que dois receios o acompanham e devem
acompanhá-lo:‟objeto de um, são o interior de seus Estados e o proceder dos súditos;
objeto do outro, o exterior e os desígnios das potências circundantes‟ (2012, p. 36).

Para não extrapolarmos as finalidades desse estudo, nos ateremos às preocupações


que Maquiavel aponta ao príncipe apenas no que tange aos seus receios no “interior de
seus Estados”, ou seja: na relação com seus súditos.34 O medo do príncipe é colocado por
Maquiavel de maneira objetiva no capítulo 3 de seu livro, quando afirma que “os homens,
com satisfação, mudam de senhor pensando melhorar e esta crença faz com que lancem
mão de armas contra o senhor atual” (2012).
Essa necessidade do medo do príncipe em relação aos seus próprios súditos alertada
por Maquiavel é empiricamente exemplificada pelo autor, quando afirma que
Se consideraram aqueles senhores que, na Itália, perderam seus Estados nos nossos
tempos, como o rei de Nápoles, o duque de Milão e outros, achar-se-á neles, primeiro um
defeito comum quanto às armas, pelas razões que já foram expostas; depois, ver-se-á que
alguns deles, ou tiveram a inimizade do povo, ou, tendo o povo por amigo, não
souberam garantir-se contra os grandes, eis que sem estes defeitos não se perdem os
Estados que tenham tanta força que possam levar a campo um exército (2012, grifos
nossos).

Podemos considerar que esse momento em que os homens, insatisfeitos, creem e se


prontificam a mudar de senhor na expectativa de melhorar a vida corresponde a um cenário
político muito próximo ao momento em que Antônio Gramsci chama de crise de
hegemonia na classe dirigente, há pouco mencionada nessa dissertação.35 Contexto que se
coloca como preocupação de Maquiavel no que tange aos perigos inerentes ao “interior de
seus Estados”, e que pode ser evitado, basicamente, por dois meios: o “temor” e o “amor”.
Isso quer dizer que, para Maquiavel, o príncipe deve se esforçar para ser amado pelos
súditos, evitando que seja tomado como cruel, mas que “não deve, pois, temer a má fama

33
O termo “príncipe” para Maquiavel equivale aos poderosos de sua época, governantes de seus reinos. Porém, os
princípios, dilemas e propostas apontados pelo autor para esses governantes demonstram, em grande medida,
permanecerem utilitariamente contemporâneos para os dominadores de hoje.

34
A discussão feita por Maquiavel pode ser muito útil para pensarmos o capitalismo hoje, principalmente se
percebermos analogamente algumas semelhanças gerais entre o “príncipe” e o Estado capitalista e, entre os “súditos” e a
classe trabalhadora.
35
Gostaríamos apenas de assinalar que Gramsci e Maquiavel são autores separados não apenas por tempos distintos,
mas também por terminologias relativamente diferentes, portanto, a comparação entre ambos nesse momento não
pretende harmonizá-los mecanicamente, mas apenas demonstrar como ambos tratam basicamente da mesma questão
nesse momento. Tanto é que uma das referências mais constantes e relevantes nas obras do cárcere de Gramsci é
exatamente a de Maquiavel.
39

de cruel, desde que por ela mantenha seus súditos unidos e leais” (MAQUIAVEL, 2012). É
nessa mesma linha de análise que Gramsci aponta que

O exercício „normal‟ da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime parlamentar,


caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo
variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer
com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos quais, por isso,
em certas situações, são artificialmente multiplicados (2007, p. 95).

Pontuada a existência e relevância do mecanismo coercitivo (o “temor”), para fins


desse estudo, devemos nos ater ao mecanismo consensual (o “amor”). Essa questão é
recorrentemente abordada por Maquiavel em praticamente toda obra, o que aponta sua
relevância para o príncipe (os governantes), que, por isso, deve ser articulada pelo mesmo
às mais variadas questões de um governo. A seguir, poderemos visualizar a revelância para
o autor, no que concerne a essa estratégia de adquirir o “amor” (ou consenso) dos súditos:

príncipe natural tem menores razões e menos necessidade de ofender: donde se conclui
dever ser mais amado e, se não se faz odiar por desbragados vícios, é lógico e natural
seja benquisto de todos (MAQUIAVEL, 2012, grifos nossos).

Um príncipe é necessário ter o povo como amigo, pois, de outro modo, não terá
possibilidades na adversidade (MAQUIAVEL, 2012, grifos nossos)
Dentre todas as coisas de que um príncipe se deve guardar está o ser desprezado e
odiado, e a liberalidade te conduz a uma e a outra dessas coisas. (MAQUIAVEL, 2012,
grifos nossos)

Cada príncipe deve desejar ser tido como piedoso e não como cruel (MAQUIAVEL,
2012, grifos nossos)
Um príncipe sábio, (…) deve apenas empenhar-se em fugir ao ódio, como foi dito.
(MAQUIAVEL, 2012, grifos nossos)
Que o príncipe pense [...] em fugir àquelas circunstâncias que possam torná-lo odioso
e desprezível; sempre que assim proceder, terá cumprido o que lhe compete e não
encontrará perigo algum nos outros defeitos. (MAQUIAVEL, 2012, grifos nossos).

Mas, a respeito dos súditos, quando os negócios externos não se agitam, deve-se temer
que conspirem secretamente, contra o que o príncipe se assegura firmemente fugindo
de ser odiado ou desprezado e mantendo o povo com ele satisfeito; isto é de
necessidade seja conseguido, como já acima se falou longamente. Um dos mais poderosos
remédios de que um príncipe pode dispor contra as conspirações é não ser odiado pela
maioria, (…) pois quem conspira não pode ser sozinho, nem pode ter por companheiros
senão aqueles que acredite estarem descontentes (MAQUIAVEL, 2012, grifos nossos).

Um príncipe deve dar pouca importância às conspirações se o povo lhe é benévolo; mas
quando este lhe seja adverso e o tenha em ódio, deve temer tudo e a todos. Os Estados
bem organizados e os príncipes hábeis têm com toda a diligência procurado não
desesperar os grandes e satisfazer o povo conservando-o contente, mesmo porque este
é um dos mais importantes assuntos de que um príncipe tenha de tratar
(MAQUIAVEL, 2012, grifos nossos).
40

Diante dessa necessidade de cortejar o consenso, o autor chama a atenção para um


recurso primário, que encontra materialidade até mesmo na grande política: a
manipulação.36
Esse recurso é sintetizado pelo autor quando afirma que “aquele que engana sempre
encontrará quem se deixe enganar” (MAQUIAVEL, 2012) Isso abre margem para que
conclua que “o príncipe pode ganhar o povo por muitas maneiras” (MAQUIAVEL, 2012).
Aprofundar-se sobre quais seriam essas maneiras não foi pretensão do autor na obra
pesquisada. 37 No entanto, recorrendo à história das “lutas sociais”, gostaríamos de chamar
a atenção de um recurso que, para o destino do capitalismo, será decisivo: a reforma.
Se retornarmos ao início deste tópico (1.2), veremos que destacamos a ligação entre
o “fantasma da revolução”, à evidência de que, na conjuntura européia, os trabalhadores
estavam demandando melhorias em seus padrões de vida. Na verdade, podemos dizer que
para que essas demandas fossem colocadas em prática, exigia-se uma série de reformas no
plano da realidade.
Diante desse impasse, podemos recorrer a Max Beer que, em seu livro História do
socialismo e das lutas sociais, nos relata uma série de estratégias históricas em que as
classes dominantes aplicaram, a fim de reproduzir sua posição dominante. Para
desenvolvermos essa dissertação, gostaríamos de destacar um dos recursos utilizados pelas
classes dominantes: a elevação relativa das condições de vida dos setores subalternos.
Apenas para fins didáticos, gostaríamos de apresentar uma passagem específica em que
esse recurso foi utilizado:

36
Essa manipulação estará significativamente presente nas discussões a respeito da “ideologia” no livro “A ideologia
Alemã” de Marx e Engels.
37
Devemos assinalar que ele indicou alguns mecanismos capazes colaborar nesse sentido. Como por exemplo, quando
afirma que “Ademais, deve, nas épocas convenientes do ano, distrair o povo com festas e espetáculos. E, porque toda
cidade está dividida em corporações de artes ou grupos sociais, deve cuidar dessas corporações e desses grupos, reunir-se
com eles algumas vezes, dar de si prova de humanidade e munificência, mantendo sempre firme, não obstante, a
majestade de sua dignidade, eis que esta não deve faltar em coisa alguma” (MAQUIAVEL, 2012). É interessante notar
que, mesmo nesse exemplo simplório, o autor concebe não apenas um esforço prático por parte do príncipe, mas também
material, na medida em que essas “festas e espetáculos” podem significar investimentos econômicos por parte do
príncipe. Vale lembrar que, Maquiavel parece se inspirar decisivamente numa estratégia muito antiga proveniente do
Império romano conhecido como “A política do Pão e Circo”. Ocorre que, “na Roma antiga, a escravidão na zona rural fez
com que vários camponeses perdessem o emprego e migrassem. O crescimento urbano acabou gerando problemas sociais
e o imperador, com medo que a população se revoltasse com a falta de emprego e exigisse melhores condições de vida,
acabou criando a política “panem et circenses” , a política do pão e circo. Este método era muito simples: todos os dias
havia lutas de gladiadores nos estádios (o mais famoso foi o Coliseu) e durante os eventos eram distribuídos alimentos
(trigo, pão). O objetivo era alcançado, já que ao mesmo tempo em que a população se distraia e se alimentava também
esquecia os problemas e não pensava em rebelar-se. Foram feitas tantas festas para manter a população sob controle, que
o calendário romano chegou a ter 175 feriados por ano” (WITT, 2012).
41

Quando em Esparta se implantou um Estado comunista, em Atenas o poder estava nas


mãos da nobreza. Por meio de empréstimos e da usura, os nobres pouco a pouco
despojaram os camponeses de seus bens. Os sacerdotes e os juízes eram recrutados entre
os nobres. Essa situação determinou um profundo descontentamento nas camadas
inferiores da sociedade. Depois de afogar em sangue grande número de conspirações e
revoltas, os nobres resolveram encarregar o jurista Dracon da elaboração de um código de
leis, que se tornou célebre pela sua crueldade. É a partir dessa época que uma lei
draconiana passou a dignificar uma lei severa, brutal, iníqua, destinada à opressão do
povo. Naturalmente, por esses meios, não foi possível senão aumentar o mal-estar geral. O
povo exigia, cada vez com mais o perdão das dívidas e a divisão das terras. Diante da
ameaça de uma sublevação no ano de 549 a. C., a nobreza encarregou Sólon, considerado
amigo do povo, de „estabelecer a paz entre a nobreza e o povo, adotando para esse fim
todas as medidas legais necessárias‟.
Sólon realizou uma reforma econômica e política completa. Suprimiu todas as hipotecas
que oneravam os agricultores e libertou os homens que, por não terem podido pagar suas
dívidas, haviam sido transformados em escravos (BEER, 2006, p. 57-58).

Obviamente, por coerência cronológica, a estratégia da nobreza supracitada não se


inspira em Maquiavel. No entanto, indica um consenso com esse pensador, na medida em
que reconhece a necessidade de se estabelecer estratégias que garantam legitimidade ao
“príncipe” em relação aos “súditos”, ou de maneira mais geral: dos dominantes em relação
aos dominados. Podemos dizer, ainda, que a estratégia dessa passagem histórica exposta
por Beer centra-se no recurso às reformas, por parte dos dominantes, como meio de
adquirir consenso de seu projeto societário em relação aos seus “súditos”.
Para pensarmos essa via estratégica, que consiste em fazer o recurso de reformas
com fins à reprodução hegemônica, no caso capitalista, devemos destacar que, para
ganharem materialidade prática, as reformas requisitam de uma série de reestruturações
sociais (jurídicas, financeiras, institucionais etc.). Essas reestruturações, por sua vez,
costumam indicar a necessidade de um complexo e heterogêneo leque de serviços
assistenciais a serem prestados continuamente, com vistas ao atendimento de determinados
sujeitos.
As melhorias das condições de vida provocadas nos sujeitos devem ser
compreendidas a partir de suas duas dimensões (objetiva e subjetiva), que indicam as duas
funções básicas que esses serviços, enquanto mediações dos objetivos implícitos nas
reformas, vêm cumprir. A respeito de sua função objetiva, podemos destacar que esses
serviços são capazes de promover melhorias concretas no cotidiano dos segmentos
subalternos de cada tipo de sociedade. Nesse sentido, os serviços tendem a trazer consigo
uma relativa “amenização” em relação à dimensão objetiva da “questão social” inerente ao
capitalismo. Isso indica que, no plano objetivo, esses serviços expressam uma evidente
conquista da classe trabalhadora – apesar da superficialidade dessas mudanças que se
limitam a interferências no plano das “riquezas já produzidas”, deixando de atingir a lógica
42

de produção econômica.
Além dessa dimensão objetiva ressaltada até aqui, correspondente às melhorias nas
condições de vida que os serviços direcionados pelas reformas promovem nos setores
subalternos beneficiados por elas, devemos considerar ainda sua dimensão subjetiva. Ela se
expressa na medida em que os serviços prestados necessariamente produzirão uma série de
impactos nas maneiras de pensar e agir dos sujeitos envolvidos nesse processo. Aqui nos
interessa primordialmente o fato de que esses efeitos produzirão impactos políticos nesses
sujeitos, o que, no plano da totalidade, direta ou indiretamente, trarão impactos
(fortalecedores ou degradantes) no plano da hegemonia. Devemos estar cientes de que não
há uma relação mecânica entre o impacto objetivo e o impacto subjetivo. Ou seja, não
podemos dizer se esses serviços, automaticamente, amenizarão ou potencializarão a
“rebeldia” da classe trabalhadora. Podemos afirmar apenas que eles contribuirão (ainda que
de maneira extremamente sutil) para uma dessas alternativas.
Essas considerações não buscam indicar que esses impactos subjetivos são obra do
acaso, desenhado de maneira meramente espontânea. Isso porque uma série de
determinantes – sejam eles de caráter estratégicos ou acidentais – influenciará nesse
resultado. Dentre eles, o que será centralmente determinante, entre a positividade da
dimensão objetiva desses serviços e a qualidade que sua dimensão subjetiva tomará,
será uma luta submersa que pedagogicamente disputará a consciência dos sujeitos
envolvidos no processo de reforma. Trata-se neste sentido, de mais um dos campos em
que a luta de classes é passível de ocorrer mediante a disputa ideológica. Na medida em
que os serviços – enquanto conquistas da classe trabalhadora – são passíveis de disputas
ideológicas entre burgueses e trabalhadores, coloca-se uma relevante questão submersa: a
disputa entre projeto(s) conservador(es) e revolucionário(s) pela direção pedagógica
na tentativa de manipularem, em cada particularidade em que esses serviços são
exercidos, seu impacto subjetivo de acordo com seus respectivos horizontes
societários.38
É exatamente esse ponto que abre margem para que, no campo das possibilidades,
as demandas apresentadas pela classe trabalhadora (melhorias nas condições de vida) se
conjuguem com as demandas postas pela burguesia (reprodução hegemônica). Assim, na

38
Vale destacar que o projeto revolucionário é aquele conduzido por setores da classe trabalhadora em seu momento de
“catarse”, ou seja, quando expressam a qualidade de “consciência para si”, agindo ativamente no cenário político em prol
da emancipação de toda a classe por meio da tomada de poder.
43

medida em que a fase monopolista do capitalismo se assentava – e, com ela, a maturação


da dimensão subjetiva da questão social –, a burguesia, que já via as reformas serem
progressivamente arrancadas pelos trabalhadores, passou a investir em forma e
sofisticação, a fim de prevalecer pedagogicamente nesse campo subjetivo de disputa, de
maneira que fosse possível manipular os impactos políticos dessas reformas de acordo com
seus interesses hegemônicos. Pensando a questão do recurso às reformas no caso
capitalista, podemos destacar o pensamento de Gramsci que, da penumbra de seu cárcere,
enxergará com clareza e precisão a essência desse recurso como mecanismo de reprodução
da hegemonia na era capitalista. Ele assinalará que

O fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que sejam levados em conta os


interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida, que se
forme um certo equilíbrio de compromisso, isto é, que o grupo dirigente faça sacrifícios de
ordem econômico corporativa; mas também é indubitável que tais sacrifícios e tal
compromisso não podem envolver o essencial (2007, p. 48).

Estes sacrifícios apontados por Gramsci passaram a ser apropriados como parte
essencial das estratégias burguesas de modernizar o princípio maquiavélico 39 de cortejar o
“amor” de seus súditos, ou em termos mais atualizados: de adquirir o consenso por parte da
classe trabalhadora. Tal estratégia consiste em que, diante da já factual e progressiva
derrota no que tange às reformas (em termos de sua dimensão objetiva), a burguesia
voltou-se para disputar aquilo que ainda não estava previamente direcionado no que
concerne às reformas: os impactos subjetivos provocados nos sujeitos beneficiados por
elas.
No entanto, para que pudesse realizar uma estratégia suficientemente vigorosa
capaz de fazer frente às ofensivas dos trabalhadores, a burguesia precisou articular-se de
maneira sólida. Isso a obrigou a encontrar um órgão central capaz de apurar os interesses
da burguesia. Frente às particulares necessidades de manutenção da hegemonia burguesa
durante o período de transição do capitalismo para sua fase monopolista, o único órgão
privilegiado e potencialmente capaz de cumprir as exigências de associação e intervenção
da burguesia era o Estado. Assim, foi sendo aprimorado paulatinamente, através de uma
série de iniciativas que o exacerbasse como agente “educador”. Isso complexificou

39
Fizemos questão de colocar o termo “maquiavélica” entre aspas a fim de demarcar nosso contraste em relação ao
sentido que esse termo passou a ganhar para o senso comum ou mesmo, para alguns setores vulgares da academia. Nesse
sentido, ao referenciar Maquiavel nesse momento, não estamos tentando tratar determinada postura como algo
adjetivista, mas sim a coincidência entre essa postura e o reconhecimento da necessidade de conquistar,
permanentemente, a hegemonia dos “súditos”, presente na obra de Maquiavel situada nessa dissertação.
44

significativamente suas relações internas e internacionais (GRAMSCI apud LIGUORI,


2007, p. 27), fazendo com que sofresse relevantes transformações ao longo do tempo,
fazendo-o deixar de ser um “simples” “comitê executivo da burguesia”, para se tornar uma
condensação concreta mediadora de ações muito mais complexas e variadas. Rosa
Luxemburgo, já em 1914, consegue absorver esse movimento estratégico que a burguesia
passou, progressivamente, a conduzir por meio do Estado, destacando:

É evidente que o próprio desenvolvimento do capitalismo modificou profundamente o


caráter do Estado, alargando constantemente a sua esfera de ação, impondo-lhe novas
funções (2012).

Esse alargamento da esfera de ação do Estado abrangeu diversas questões. Porém,


uma em especial será aprofundada nesse momento: a condução de reformas capazes de
garantir melhorias nas condições imediatas de vida da classe trabalhadora. No entanto,
Rosa também faz questão de destacar que se o Estado promove melhorias nas condições de
vida também para a classe trabalhadora, isso não é feito por livre e espontânea iniciativa,
mas, sim, por conta do potencial político dos trabalhadores.

O Estado apenas assume medidas “sociais” se pressionado [...] verifica-se o crescimento


das funções de interesse geral do Estado, as suas intervenções na vida social, o seu
controle desta (LUXEMBURGO, 2012).

Nesse momento, a burguesia passou a conceder, criteriosamente, uma série de


serviços destinados à classe trabalhadora, principalmente por meio do Estado, a fim de
tentar manipular os impactos subjetivos das referidas melhorias nas condições de vida dos
setores da classe trabalhadora beneficiados, de acordo com seus interesses hegemônicos.
Nas palavras de José Paulo Netto, o Estado passou a “buscar legitimação política através
do jogo democrático”, tornando-se “permeável às demandas das classes subalternas, que
podem fazer incidir nele seus interesses e suas reivindicações” (NETTO, 2007, p. 29) mais
imediatas e superficiais. Isso, por um lado, fez com que fosse “possível obter, ainda no
interior da economia capitalista e sob dominação do Estado burguês, o reconhecimento e a
satisfação de expressivas demandas das classes subalternas” (COUTINHO, 2008, p. 43).
Por outro lado, permitiu que, de maneira premeditada, esses mesmos direitos e garantias
cívicas e sociais servissem à finalidade de criar uma sensação de solidariedade e consensos
entre trabalhadores e as classes dominantes. Precisamos estar atentos para o fato de que,
mesmo que signifique uma relativa redistribuição das riquezas produzidas socialmente – o
que necessariamente desacelera a expansão da burguesia e garante condições de vida
45

menos indignas aos trabalhadores –, os serviços provocados por essas reformas, por si
próprios, não ameaçam a propriedade privada dos meios de produção, pois atuam
limitadamente no plano da distribuição relativa das riquezas socialmente produtivas, e não
no meio de produzir essas riquezas socialmente produzidas.
Dessa maneira, podemos dizer que, através do Estado, tais concessões burguesas
foram apropriadas como meio de negar e confundir a consciência de classe de grande parte
dos trabalhadores, limitando, assim, as possibilidades de fortalecimento da “contra-
hegemonia” e, consequentemente, fortalecendo a hegemonia burguesa.
Isso dá sentido às palavras de István Mészaros, quando afirma que

As mesmas ideias, entretanto, parecem incomparavelmente mais persuasivas e servem


muito melhor a seu propósito ideológico inerente quando reformuladas [...] pelo Estado.
Sem este enraizamento prático, [...] a „administração científica‟ da competição capitalista
poderia aspirar a produzir, no máximo, alguns benefícios locais (2004, p. 145-146).

Essas considerações nos dão fundamentos capazes de compreender Luxemburgo


quando aponta que, apesar da progressiva ampliação das funções do Estado daquele
período – inclusive possibilitando ganhos empíricos para os “súditos” –, o Estado mantinha
sua essência burguesa tão acesa quanto antes. Isso porque as mudanças expressas por essa
ampliação – apesar de poderem desacelerar a acumulação da burguesia nacional – não
colocavam em xeque nenhuma base estrutural do modo de produção capitalista e, por
buscarem despolitizar a ação dos trabalhadores, mantinham-se em pleno acordo com o
projeto societário de conservação da ordem burguesa.
O Estado atual é, antes de tudo, uma organização da classe capitalista dominante. Se ele
se impõe a si mesmo, no interesse do desenvolvimento social, funções de interesse geral é
unicamente porque e somente na medida em que esses interesses e o desenvolvimento
social coincidem, de maneira geral, com os interesses da classe dominante
(LUXEMBURGO, 2012).

Com isso, se torna “absurdo minimizar a eficácia prática da manipulação do Estado


para criar um consenso em relação às crenças ideológicas” (MÉSZAROS, 2004, p. 145). É
nessa linha de pensamento que Gramsci chega a afirmar que, partindo do ponto de vista da
própria burguesia, “deveria ser um princípio de governo buscar elevar o padrão da vida
material do povo além de um certo nível” (2007a, p. 233).
Além disso, o Estado tem o potencial, que historicamente vem sendo cumprido, de,
por meio dessas reformas, antecipar-se não apenas ao processo revolucionário, mas até
mesmo à (maturação da) “rebeldia” trabalhadora. Trata-se também de uma indicação de
Maquiavel quando afirma que
46

Um príncipe inteligente deve observar essa semelhança de proceder, nunca ficando ocioso
nos tempos de paz, mas sim, com habilidade, procurar formar cabedal para poder utilizá-
lo na adversidade (MAQUIAVEL, 2012).

Esse princípio é contemporaneizado para os tempos capitalistas também por


Gramsci na fase monopolista do capitalismo, em que, para ele, “um Estado vence uma
guerra quando a prepara de modo minucioso e técnico no tempo de paz” (2007, p. 24). Em
suma, podemos concluir que “o Estado ora é pressionado a incorporar certas demandas
como forma de pôr fim a uma luta que possa desestabilizar o sistema, ora se antecipa
estrategicamente para evitar o eventual início e um confronto social” (MONTAÑO;
DURIGUETO, 2010, p. 145).
Gramsci, inclusive, ciente de que é na crise hegemônica40 que a classe trabalhadora
encontra o chão privilegiado para a promoção de sua libertação em relação às amarras do
capital, dá pistas sobre a necessidade das forças burguesas se anteciparem à formação
desse contexto:
Como toda crise significa uma queda no padrão de vida popular, é evidente que se faz
necessária a preexistência de uma área de segurança suficiente para que a resistência
„biológica‟ e, portanto, psicológica do povo não desmonte ao primeiro choque com a nova
realidade (2007, p. 234).

Em suma, podemos dizer que, as estratégias de legitimação da ordem burguesa


ousaram se efetivar também no mesmo processo de incorporação de demandas dos
trabalhadores – ora evitando o proliferamento/amadurecimento da “rebeldia” dos
trabalhadores, ora antecipando essa própria “rebeldia”. Esse processo em que, por meio
da prestação contínua de serviços estatais, a burguesia monopolista constrói uma rede
sistemática e estruturada, tendo em vista colocar em prática seu projeto reformista de
cunho essencialmente conservador guiado pela finalidade de reprodução hegemônica,
passou a ser chamado de políticas sociais do capitalismo.
A novidade que marca as políticas sociais não está, portanto na estratégia de
segmentos da classe dominante em recorrer a reformas como tentativa de reproduzir sua
legitimidade frente a seus dominados. No entanto, esse recurso às reformas, sob essa
intencionalidade, passa a fazer uso dos serviços com sistematicidade e constância capazes
de articular instituições diversas num mesmo projeto político (o projeto institucional, que
aprofundaremos mais adiante). Dessa forma, podemos dizer que esse fenômeno é

40
Embora as crises econômicas não sejam o suficiente para derrubar o capitalismo, sua importância não deve ser
desprezada. Isso porque elas podem se configurar em elementos que contribuem para a eclosão de uma crise hegemônica,
fenômeno fundamental para o desencadeamento de um processo revolucionário.
47

demarcado por uma temporalidade. Ou seja, ele se relaciona intrinsecamente ao


“enfraquecimento das bases materiais e subjetivas de sustentação dos argumentos liberais
[que] ocorreram ao longo da segunda metade do século XIX e no início do século XX”
(BEHRING; BOSCHETTI, 2008, p. 67).
O processo de expansão e materialização das políticas sociais passa a ganhar
diferentes contornos de acordo com diversos fatores, porém, assim como todos fenômenos
sociais, é passível de análise e apresenta generalidades históricas.
Um elemento que devemos destacar refere-se à origem material dos serviços
prestados por essas políticas sociais. Iamamoto destaca que

[...] tais serviços não são mais do que uma forma transfigurada de parte do valor criado
pelas classes trabalhadoras, apropriado pelos capitalistas e pelo Estado, sob a forma de
trabalho excedente ou mais-valia [...], [que] ao assumirem esta forma, aparecem como
doação, como expressão da face humanitária do Estado ou da empresa privada, e não
como a devolução de um serviço já pago (2007b, p. 96).

No entanto, precisamos reconhecer que, a grosso modo, essas políticas sociais


provocam a real sensação do trabalhador aproximar-se da humanização que os avanços
históricos nas forças produtivas tornaram possíveis hoje – ainda que impossivelmente
universalizáveis, enquanto persistir a organização capitalista. Dessa forma, podemos dizer
que essas políticas permitem experimentar sensações próximas àquelas que a emancipação
do trabalhador em relação à burguesia (transgressão do capitalismo) pretende generalizar.
Os serviços prestados por essas políticas sociais (chamadas por alguns de “salários
indiretos”) apresentam a relevante qualidade de satisfazer necessidades que apenas o
salário desses trabalhadores não permitiriam.
Essas consequências são legítimas e, por si mesmas, não podem ser menosprezadas.
Dessa forma, as políticas sociais são capazes de provocar uma relativa transferência de
parcela da riqueza socialmente produzida pelos trabalhadores para os próprios
trabalhadores – o que, consequentemente, significa uma limitação na acumulação de
riquezas nas mãos da burguesia.
No entanto, essas consequências supracitadas inerentes às políticas sociais não
podem ser julgadas apenas em si. A elas devemos atrelar duas considerações básicas, que,
ao lado desses aspectos supracitados, também compõem o plano objetivo das políticas
sociais. Na verdade, tratam-se de dois limites intrínsecos às política sociais: um diz
respeito ao fato de que elas são incapazes de viabilizar a justiça social (e, por isso, não são
vias suficientes para a construção do comunismo) e o segundo atrela-se ao fato de que, a
48

longo prazo, as políticas sociais tendem a fortalecer o próprio capitalismo.


A primeira questão está ligada ao fato de que esses serviços promovidos por essas
políticas sociais se limitam a interferir no plano superficial, deixando a estrutura
econômica – a menos a nível do imediato – intocável. Pois, como lembrado por Gramsci,
ainda que “o grupo dirigente faça sacrifícios de ordem econômico corporativa [...] é
indubitável que tais sacrifícios e tal compromisso não podem envolver o essencial
(2007, p. 48, grifos nossos).
Por isso, podemos afirmar que essa dimensão, ainda que seja capaz de atingir níveis
relativamente amplos, em termos de universalização geográfica, limita-se, quando muito, a
atingir, de maneira significativa, os países centrais do capitalismo. Essas melhorias
puderam ser muito bem percebidas no período de “Welfare State”, em que Elaine Behring
e Ivanete Boschetti afirmam que, por conta dessas políticas sociais,

Houve, naquele momento, uma melhoria efetiva das condições de vida dos trabalhadores
fora da fábrica, com acessos ao consumo e ao lazer que não existiam no período anterior,
bem como uma sensação de estabilidade no emprego, em contexto de pleno emprego
keynesiano diluindo a radicalidade das lutas e levando a crer na possibilidade de combinar
acumulação e certos níveis de desigualdade (2008, p. 89, grifos nossos).

No entanto, além desses sacrifícios não alterarem a estrutura capitalista, essas


políticas sociais, contraditoriamente, são capazes de trazer, posteriormente, importantes
retornos econômicos (em termos de distribuição) aos próprios capitalistas, capazes não
apenas de colaborar na reprodução do sistema capitalista, mas também de
amortecer/prorrogar suas crises cíclicas.
Nesse sentido, Vicente de Paula Faleiros, conclui que historicamente:

A intervenção „não mercantil‟ do Estado contribuiu, com efeito, para a gestão da mão-de-
obra, para a criação e melhoramento dos recursos humanos, para a produtividade das
empresas, para o estímulo da demanda. Nestas condições, a intervenção „não
imediatamente mercantil‟ favorece contraditoriamente a economia do mercado em seu
conjunto (FALEIROS, 2007a, p. 47).41

A partir dessa linha de pensamento, podemos destacar que tais políticas “outorgam
um complemento ou substituto salarial por meio da dotação, direta ou indireta, de dinheiro
às populações carentes” (PASTORINI apud MONTAÑO, 2007, p. 85), funcionando como
um salário indireto aos trabalhadores que significam, do ponto de vista do capitalista, a
“diminuição dos custos de manutenção e reprodução da força de trabalho, socializando o

41
São exemplos dessas políticas voltadas para a “gestão da mão-de-obra, para a criação e melhoramento dos recursos
humanos, para a produtividade das empresas, para o estímulo da demanda” às chamadas “políticas de geração de renda”.
49

que antes era uma carga exclusiva do empregador” (PASTORINI apud MONTAÑO, 2007,
p. 85). Nesse mesmo processo, ao aumentar o poder de barganha da classe trabalhadora de
modo geral, as políticas sociais estimulam o consumo da população, e assim adiam e
amenizam esse importante fator desencadeador das crises econômicas do capital.

O Estado capitalista assume através desse mesmo conjunto de ações uma série de
„investimentos não rentáveis para o capital‟ [...] que demandem recursos que superem a
disponibilidade dos capitalistas, transforma os recursos públicos em meios de favorecer e
estimular o capital, cria a infraestrutura necessária para os investimentos e a circulação do
capital, estabelece facilidades jurídicas e, sobretudo, gere moeda e o crédito em favor da
acumulação de capital, e investe em, grandes empreendimentos, aplanando com tudo isso
a concorrência intercapitalista (FALEIROS, 2007a, p. 65).

Ao extrapolar o atendimento aos setores da classe trabalhadora inseridos no


mercado de trabalho, e atender com rigorosa frequência42 à chamada “superpopulação
relativa”, essas políticas sociais também contribuem para manter um “exército industrial de
reserva” que, além de “dócil”, seja tecnicamente preparado para substituir – sem grandes
prejuízos econômicos – os trabalhadores economicamente ativos no mercado de trabalho.
Isso, consequentemente, contribui para “despolitizar” as formas de expressão da dimensão
subjetiva da “questão social” daqueles trabalhadores inseridos no mercado de trabalho.
Essas funções econômicas contribuem basicamente para aquilo que Montaño e
Durigueto chamaram de “efeito imediato” das políticas sociais, onde

A população que recebe esses „salários indiretos‟, ao ter garantidas certas necessidades
básicas pelo Estado, pode consumir outros produtos e serviços oferecidos pela empresa
privada; reverte-se assim o déficit de demanda efetiva, superando-se temporariamente a
crise de superprodução, ao consolidar um mercado de consumo em massa local.
Enfim, [...] o Estado intervém na regulação do ingresso de mercadorias externas, porém o
faz pretendendo desenvolver um mercado de consumo em massa local, destinando
parcelas do fundo público dirigidas ao financiamento das políticas sociais, assistenciais
ou previdenciárias, que, operando como verdadeiros ‘salários indiretos’ [...], permitem
reverter o déficit de demanda efetiva e a tendência ao subconsumo que, num contexto de
crise de superprodução, ameaçam o regime de acumulação então vigente (2010, p. 176,
grifos do autor).

Essa crença oscila constantemente de acordo com o contexto de cada região,


ecoando com maior intensidade naqueles momentos em que as políticas sociais se
generalizam e amenizando-se nos momentos em que as intervenções por parte do Estado
em políticas sociais se dissolvem. 43 Por isso, podemos dizer que, apesar de sua sedução ter

42
Resguardadas as variações regionais e históricas.

43
Na tentativa de evitar o risco de tratar a questão da ampliação das políticas sociais de maneira unívoca, ou melhor,
levando em conta apenas as ofensivas políticas da classe trabalhadora, gostaria de salientar o fato de que a ampliação
dessas políticas “depende tanto do nível de socialização da política conquistado pelas classes trabalhadoras, como das
estratégias do capital na incorporação das necessidades do trabalho” (MOTA apud MARCONSIN, 2012, p. 182), assim
50

atingido um grau apelativo muito maior no período de Welfare State, ela seguirá
“cantando” como uma “sereia”, na tentativa de assediar a todo momento a esperança do
trabalhador em alternativas “dentro da ordem” – com maior ou menor intensidade.
No entanto, devemos destacar que a maior parte desses aspectos não são
empiricamente evidentes e, podemos dizer que, tanto seu processo de distorção quanto o de
exposição, possuem em si uma indispensável carga político-pedagógica referente à
dimensão subjetiva presente no processo de melhoria das condições de vida da classe
trabalhadora. Elas trazem, em si, os elementos decisivos para definir se essas políticas
sociais serão efetivamente funcionais ao projeto de emancipação dos trabalhadores ou se,
ao contrário, servirão como meios fundamentais à reprodução da hegemonia da classe
burguesa. Exatamente por isso, essa função é absolutamente decisiva para uma apropriação
estratégica por parte do pensamento marxista a respeito do debate.
Dessa forma, uma série de distorções a respeito dessas políticas sociais se espraiam
em meio às concepções de mundo que permeiam a classe trabalhadora de modo geral e, em
especial, àqueles setores usuários dessas políticas sociais. A primeira questão a esse
respeito que gostaríamos de destacar refere-se à crença na possibilidade de combinação
entre capitalismo e a elevação contínua nos padrões de vida da classe trabalhadora até que
se elimine a dimensão objetiva da “questão social”. Metaforicamente, podemos dizer que é
como alguém que pretenda secar uma pia sem antes fechar a torneira, ou seja: o erro de
tentar resolver os efeitos sem atacar as causas. Tal equívoco atinge significativamente não
apenas o senso comum da classe trabalhadora, mas também grande parte das análises
intelectuais que se propõem socialistas.
Trata-se do perigo que podemos correr no caso de levar em conta apenas os
efeitos positivos da dimensão objetiva das políticas sociais, empolgando-nos diante do
salto que vêm promovendo em termos de amenização da dimensão objetiva da
“questão social”. Isso induz a um esquecimento de funcionalidade reformista, tal análise
desatenta ao fato de que a redistribuição efetivada por essas políticas sociais “não reverte a
situação de desequilíbrio social, na medida em que [...] é feita sobre [...] uma pequeníssima
parcela” (PASTORINI apud MONTAÑO, 2007, p. 73) da totalidade dos recursos sociais
produzidos, já que não toca nos meios de produzir a riqueza.
Essa interpretação que unilateraliza a política social, buscando observar apenas essa

como da quantidade de capital excedente da burguesia em determinada conjuntura.


51

dimensão objetiva, na verdade, é funcional à burguesia reformista conservadora.44 Por


isso, essa lógica tanto pode ser apropriada por essa burguesia reformista conservadora
consciente quanto por uma fração reformista do tipo social-democrata,45 na medida em que
induzem, pela via pedagógica, aqueles que acessam tais serviços a acreditar numa “justiça
social” por vias que não coloquem em xeque a estrutura econômica capitalista (as
“causas”). Essa questão é debatida por Elaine Behring, que categoriza essa linha
superficialista como “redistributivista”. Para ela,

O redistributivismo vem à tona com a aposta na política social como via de solução da
desigualdade, desconsiderando a natureza do modo de produção capitalista, com sua
unidade indissolúvel entre a produção e reprodução sociais (2009, p. 21).

Essa ideologia redistributivista leva à centralização das lutas em torno da gestão do


ampliado Estado burguês, na esperança de redimensionar a distribuição dos recursos.

Assim, a ocupação de espaços no Estado, com pressão no âmbito da sociedade civil, por
uma vontade política redistributiva, humanista e democrática, pode [para eles]
universalizar o acesso aos direitos sociais, ampliando os padrões da cidadania (BEHRING,
2009, p. 24).

Fundamentalmente cética em relação ao reformismo redistributivista, Elaine


Behring alerta que as Políticas Sociais “levam, no máximo, a um conflito na ordem”,
configurando-se em sua realidade, como um projeto irrealizável em termos de erradicação
efetiva da desigualdade. Isso porque, para a autora, as políticas sociais “remetem apenas às
esferas da distribuição e do consumo, diga-se, da circulação, quando a chave do problema
está na produção” (BEHRING, 2009, p. 24). Baseados nesse argumento, podemos
concordar com Alejandra Pastorini quando afirma que :

Existe, portanto, um evidente divórcio, nessa perspectiva, entre a dimensão política e a


econômica, sendo que, desta forma, priorizando o aspecto econômico redistributivo
(„despolitizado‟) das políticas sociais, nunca se poderia chegar além da mera constatação
destas como mecanismos, corretivos e paliativos (apud MONTAÑO, 2007, p. 74).

A burguesia busca fazer incidir a ideologia redistributivista por meio dessas


políticas sociais, de maneira a tornar pertinente a afirmação de Cleier Marconsin e Santos,

44
O fato de possuir violentos impactos conservadores não elimina o fato de se tratar de uma perspectiva
frequentemente adotada por fracões equivocadas da esquerda, na forma de ecletismo. O que foi destacado por Elaine
Behring, quando afirma: “algumas abordagens incorrem no seguinte paradoxo: recorrem a categorias da tradição marxista
e, ao mesmo tempo, trabalham sob o enfoque distributivista-keynesiano, o que remete a um verdadeiro ecletismo”
(BEHRING, 2009, p. 22).
45
O debate a respeito da social-democracia será feito com um pouco mais de profundidade no tópico 2.4.
52

quando afirmam que

A combinação do conservadorismo com o reformismo integrador torna-se uma estratégia


necessária [do ponto de vista dos interesses do capital] para responder à questão social.
Dentre outras ações, tal combinação materializa-se na intervenção do Estado através das
políticas sociais (2010, p. 179).

No entanto, devemos destacar que apontar toda e qualquer política social (de
qualquer município do mundo em qualquer tempo) como instrumento fatalmente funcional
à emancipação ou à hegemonia burguesa seria de um simplismo mecanicista que não
pretendemos aderir. Pelo contrário, na medida em que é por meio das políticas sociais que
os serviços se configuram no cotidiano, recorro à linha de raciocínio que viemos seguindo
anteriormente para discutir o fenômeno das reformas. Nesse raciocínio, fizemos questão de
apontar que o processo de acesso aos serviços é permeado por impactos políticos que,
necessariamente, afetarão a concepção de mundo daqueles que os acessam. Destacamos,
também, que esses impactos políticos não são dados meramente ao acaso e que, dentre
outros determinantes na conformação dos impactos políticos dessas reformas, existem
interferências de fundo pedagógicas intencionadas a manipular esses impactos políticos de
acordo com os interesses de cada classe.
A política social, na medida em que surgiu como uma estratégia conservadora de
reprodução de sua hegemonia possui uma estrutura pedagógica voltada para esses fins.
Nesse sentido, o Estado burguês tenta cuidar para que a dimensão política das políticas
sociais cumpra em suas diversas oportunidades de materialização, uma função específica:
subalternizar os setores da classe trabalhadora beneficiados por seus serviços e, assim, no
campo da totalidade, contribuir para reproduzir sua hegemonia. Tal função configura-se
num projeto político amplo e minucioso.
Nele, pretende-se convencer o lado explorado de um suposto potencial “bem-
comum” entre antagônicos. Essa perspectiva, inspirada no funcionalismo, 46 busca
minimizar a existência de classes, tratando-as não como oponentes e antagônicas – como
percebe a perspectiva marxista –, mas como meras diferenças de função numa sociedade.
Para essa perspectiva, as diferenças entre burguês e trabalhador são dissolvidas numa

46
O funcionalismo é uma corrente sociológica marcada pela interpretação da sociedade como um grande órgão, onde,
nessa perspectiva, as partes determinam o todo. A crítica operada pela perspectiva marxista recai, principalmente, na
incapacidade da corrente funcionalista de articulação entre os diversos fenômenos existentes na sociedade e suas
respectivas tendências e determinações. Com isso, o funcionalismo se mostrou incapaz de garantir à ciência uma
interpretação radicalmente crítica em relação à realidade capitalista, promovendo limites em relação à possibilidade de
instrumentalizar uma transformação profunda da sociedade.
53

diferença entre organizador e executor (do mercado de trabalho), onde um depende do


outro para que o processo tenha sucesso. Ou seja, a necessidade recíproca requisitaria uma
espécie de solidariedade para que ambos, supostamente, possam sair ganhando. Assim,
elimina-se a oposição de classes em nome de uma união entre antagônicos, ignorando a
existência da exploração e dominação entre burguesia e trabalhadores. Lógica denunciada
por Vicente Faleiros nas seguintes palavras: “o princípio do consenso é ocultar e mascarar
a divergência de interesses” (2007a, p. 26).
Além dessa deturpação, essa perspectiva conservadora cuida de tratar os setores
mais pauperizados da classe trabalhadora como “excluídos”. Ou seja: compreende esses
trabalhadores como sujeitos acidentalmente “fora” da lógica dessa sociedade e se esforça
para que essa concepção se espraie para os próprios. O que entra em significativa
contradição em relação às conclusões marxistas, que os entende como sujeitos plenamente
incorporados pela lógica dessa forma de sociabilidade (a “inclusão perversa”), de tal
maneira que essa situação de precariedade, mais que inevitável, é necessária e funcional ao
capital.
Através dessa mitologia da exclusão, divulga-se, por parte da burguesia, uma
proposta de inclusão desses trabalhadores, em que as políticas sociais serviriam para
incorporar esses sujeitos ditos “excluídos” na então sociedade capitalista. Cientes da
inviabilidade dessa projeção numa sociedade em que a condição desses trabalhadores
pauperizados é também a condição de uma burguesia parasitária, trata-se, na verdade, de
iludir os sonhos desses trabalhadores, desviando-os da direção do projeto revolucionário e
assim, cumprindo seu papel de disciplinar a “superpopulação relativa”.
Além de forjarem ideologicamente esse horizonte, estruturam uma modalidade de
atendimento em que fragmentam “as populações-alvo por diversos critérios de idade ou de
normalidade/anormalidade, transformam esses mesmos grupos [ideologicamente
transformados em “excluídos”] em anormais, em fracassados, em desadaptados”
(FALEIROS, 2007, p. 63). Assim, buscam reforçar não apenas a imagem de benevolente
do Estado burguês e a perspectiva de tratá-los como “excluídos” (e não como
“instrumentos” de uma lógica muito mais complexa de produzir riqueza às custas da
pobreza), como também transferir às principais vítimas dessa escamoteada trama a culpa
por sua situação deprimente.
Além disso, é o Estado que confere não apenas as formas dessas políticas, mas
também os critérios que esses setores da classe trabalhadora terão de cumprir para
54

receberem seus serviços e benefícios – de maneira a explicitar seu caráter coercitivo e


reforçar a submissão dos trabalhadores. Características explicitadas por Faleiros, para
quem as políticas sociais

Se limitam ao problema em questão, com regras bem precisas, para que cada uma das partes
possa apresentar seus interesses imediatos, em vista de uma negociação e de uma
conciliação. O Estado força o consenso, força as partes a negociarem, e se necessário,
impõe uma „solução à força‟ para manter a forma mercantil global da sociedade (2007a, p.
51).

No entanto, viemos tomando o cuidado de destacar que essas estratégicas


pedagógicas vinculadas à conservação da hegemonia burguesa se constituem enquanto
projeto permanente, e não enquanto fatalidade intransponível. Justamente por esse
motivo, as políticas sociais não devem ser compreendidas como “medidas boas em si
mesmas, [...] [mas] não são, também, medidas más em si mesmas” (FALEIROS, 2007, p.
59-60), e sim medidas que podem contribuir ou prejudicar as estratégias de emancipação
da classe trabalhadora. Devemos considerar a possibilidade das políticas sociais
contribuírem para o destino da classe trabalhadora por dois motivos básicos. Primeiro
porque, apesar da força e da coerência, nada garante que projeto político pedagógico
reformista conservador obtenha sucesso em sua materialização. E, segundo, porque os
projetos político-pedagógicos pautados pelas perspectivas emancipatórias também
encontram espaços relativos para disputar a direção pedagógica nesse mesmo processo de
materialização das políticas sociais.
Podemos concluir que o debate acerca das políticas sociais pelo campo do
marxismo também não está livre de complicações profundas, recheadas de polêmicas, que
a todo tempo parecem puxar seus debatedores para os sedutores campos do simplismo.
Ora, costuma-se buscar conclusões unilaterais que defendem, de maneira convicta e sem
ponderações, as políticas sociais, ora tomam partido pelo boicote das mesmas. Ambas as
posições ganham tradicionalmente adeptos honestos e apaixonados exatamente por
partirem de muitas constatações reais e comprováveis. No entanto, todas possuirão em
comum um fatal e errôneo denominador comum: conceber as políticas sociais como boas
ou más em si mesmas – em detrimento da possibilidade de analisá-las como campo de
possibilidades. Portanto, partir da perspectiva histórica das políticas sociais significa
concebê-las como contraditórias em seu sentido real, ou seja: como algo que pode
contribuir ou dificultar a emancipação da classe trabalhadora – e não “contraditórias” no
sentido de que podem, ao mesmo tempo, dar um passo à frente e um passo atrás. Afinal, se
55

assim fossem, tomá-las como campos passíveis de estratégias seria inútil, já que de
qualquer forma significariam um passo atrás e um passo à frente. Trataria-se de uma forma
de fatalismo. Por isso, as políticas sociais serão aqui pensadas como campo de disputa de
classe, em que tanto podem servir como uma espécie de alquimia às avessas – que
transforma ouro bruto (“rebeldia” desorganizada) em chumbo – quanto podem servir de
“escola da vida”, na medida em que o trabalhador, percebendo-se como protagonista, parte
da conquista de tais políticas, possa seguir no processo de construção do sujeito
revolucionário.

1.3 Projeto institucional e suas requisições pedagógicas e assistenciais para o


assistente social

Como vimos anteriormente, essas políticas sociais carregam em si um projeto


político de corte classista especificamente comprometido com os interesses societários da
burguesia e necessariamente dissimulado. Isso, somado à complexidade das sociedades e,
consequentemente, às diversas formas e arenas da luta de classes nessas sociedades, exigiu
dos diversos Estados desse contexto monopolista uma nova rede de instituições sociais.
Por isso, pode-se dizer que essas “instituições se apresentam como micro-representações
do mesmo [Estado]” (SILVA, 2009, p. 115). Essas instituições são conceituadas por
Vicente de Paula Faleiros como:

Organizações específicas de política social, embora se apresentem como organismos


autônomos e estruturados em torno de normas e objetivos manifestos. Elas ocupam um
espaço político nos meandros das relações entre o Estado e a sociedade civil. Elas fazem
parte da rede, do tecido social lançado pelas classes dominantes para amealhar o conjunto
da sociedade. (2007b, p. 31).

Nesse sentido, tais instituições, aludidas na citação anterior por Faleiros, são
demandadas pelas necessidades de reprodução monopolistas que precedem a sua criação e,
exatamente por isso, são consideradas por Faleiros como “aparelhos da classe dominante
para desenvolver e consolidar o consenso social necessário à sua hegemonia e direção
sobre os processos sociais” (FALEIROS, 2007b, p. 31-32). Dessa forma, essas instituições
sociais, ao serem determinadas pelas necessidades de reprodução do capitalismo, são
eminentemente políticas.
Como “instrumentos de políticas sociais” (FALEIROS, 2007b, p. 34), visam
viabilizar em sua particularidade a necessidade, por parte do capital, de “despolitização” da
dimensão subjetiva da “questão social” – ou, nas palavras de Faleiros: “objetivam a
56

diminuição das tensões e conflitos sociais” (FALEIROS, 2007b, p. 35) –, ao “cooptar as


insatisfações geradas pela vivência dos problemas cotidianos” (FALEIROS, 2007b, p. 32).
Isso revela um forte objetivo político-pedagógico dessas instituições, que, seguindo a
lógica explicitada no tópico anterior, recorrerão à institucionalização e racionalização de
serviços como meios de seu sucesso.
Além dos serviços efetivados por essas instituições, no intuito de legitimarem sua
ideologia “despolitizante”, precisam forjar uma autoimagem e difundi-la, a fim de impor
com maior eficácia os conteúdos ideológicos necessários para a despolitização da
dimensão política da classe trabalhadora. Assim, pretendem se mostrar aos olhos da
sociedade em geral, “aparentemente preocupadas com o bem-estar da população, com uma
face humanista. Essa face é uma das condições de sua aceitação pelas classes dominadas”
(FALEIROS, 2007b, p.32). Dessa maneira, essas instituições ocultam não só as reais
determinações históricas, mas também as reais intenções de reprodução social e o
esvaziamento político do seu público-alvo.
Após ocultar sua identidade de classe – autopropagandeando-se como instituição
solidária à classe trabalhadora – e a existência da disputa de classes – reproduzindo a teoria
da neutralidade –, essas instituições encontram “chão” para enfraquecer a classe
trabalhadora via obscurecimento da identidade de classe (dos trabalhadores).
Um dos dispositivos relevantes nessa estratégia burguesa se manifesta na própria
variedade e heterogeneidade dessas instituições, que são divididas, especificando-se em
função das diversas formas em que se expressam a dimensão objetiva da “questão social”.
Ou seja, “as instituições setorizam o social, dando uma visão parcial dos problemas que
afetam a população” (SILVA, 2009, p. 121). Assim, “os problemas que afetam o conjunto
das classes dominadas são parcializados, abstraídos, analisados, separados, classificados
por categorias que fragmentam essas classes em setores [...]” (FALEIROS, 2007b, p. 34).
A intenção de fundo é, na verdade, construir na classe trabalhadora uma equivocada
convicção de que não se trata de uma “questão social”, mas sim de várias “questões
sociais”. Dessa forma, busca passar a ideia de que cada expressão objetiva possui uma
determinação diferente e, consequentemente, possui meios de superação diferentes. Assim,
ressalta-se a particularidade de cada expressão objetiva da “questão social”, ocultando
nessa estratégia o outro lado da moeda: a generalidade que permeia todas essas expressões,
provenientes de suas determinações econômicas (pelo fato de serem também históricas).
Essa configuração dificulta o processo de construção da consciência de classe, na
57

medida em que camufla a identidade desses setores da classe trabalhadora ao fragmentar


ilusoriamente não apenas a origem de suas necessidades, mas também o espaço que será
utilizado para supri-las. Assim, “esconde-se sua realidade profunda, isto é, sua pertinência
às classes dominadas: operários, camponeses, marginais e vastos setores dos trabalhadores
autônomos” (FALEIROS, 2007b, p. 34). Isto é, buscam minimizar suas amplas e gerais
coincidências de classe, na tentativa de convencer que são demandas específicas comuns
entre variados setores. Isso contribui para omitir duas questões fundamentais: o fato de que
tais expressões objetivas jamais serão eliminadas se a estrutura capitalista continuar
vigente; e que o que está colocado como objetivo efetivo dessas instituições não é impactar
a dimensão objetiva da “questão social”, e sim a manifestação de seus efeitos subjetivos na
realidade.
Estado também garante dissimuladamente a essas instituições defensoras de sua
hegemonia, um caráter coercitivo que se expressa nas normas institucionais, nos seus
critérios e abordagens de cunho social, moral e psicológico. Dessa maneira, os “usuários”,
ao serem atendidos de maneira segmentada e focalizada, são manipulados como objetos e
pressionados a configurar-se numa condição passiva, de simples receptores dos serviços
prestados e, se não aceitam ou não se adequam às normas institucionais, tendem a ser
excluídos dos benefícios possíveis.
Através dessa rede de instituições, que devem ser analisadas como um emaranhado
articulado e complementar, a ideologia burguesa consegue adentrar até mesmo na vida
pessoal dos setores das classes sociais que se relacionam com tais instituições, na
perspectiva de fortalecimento hegemônico para a legitimidade capitalista. A citada
penetração de maneira generalizada é destacada por Netto como sendo peculiar da idade
imperialista de organização monopólica do capital (NETTO, 2007, p. 38). Iamamoto
destaca, ainda, que tal fenômeno contribui “para o estabelecimento de meios de tutela e
normatização da vida do trabalhador, socializando-o de modo a adaptá-lo à disciplina e aos
métodos de trabalho requeridos pela organização industrial” (2007b, p. 74).
Essas instituições expressam, portanto, um projeto político47 que envolve a
reforma daquilo que é superficial (distribuição parcial das riquezas socialmente

47
Esse projeto político da instituição, que passaremos a chamar nessa dissertação de projeto institucional, certamente
ganhará formatos com particularidades diferentes em cada instituição. No entanto, no decorrer deste estudo, nos
referiremos ao mesmo no singular, não na tentativa de ignorar essa particularidade, mas sim para enfatizar seu eixo
norteador: a função de contribuir para a reprodução/fortalecimento da hegemonia burguesa.
58

produzidas) e a manutenção do que é essencial (apropriação privada dos meios de


produzir as riquezas sociais). Por meio dessa lógica busca-se reformar as concepções de
mundo do trabalhador, de tal maneira que “o problema é desaquecido e uma solução dentro
da ordem pode ser visualizada” (FALEIROS, 2007b, p. 36).
Obviamente, para que tais instituições possam enfim materializar tais políticas
sociais, um exército de profissionais precisa subordinar-se a esse projeto político,
previamente estabelecido pelos interesses basicamente hegemônicos da burguesia
monopolista. Assim, “a classe dominante precisou criar uma série de profissões que a
auxiliam na organização e reprodução das relações sociais que viabilizam a exploração dos
trabalhadores” (LESSA, 2007, p. 70), ampliando o número de assalariados, cuja função
volta-se para a viabilização de uma conjuntura propícia para a permanência e
potencialização da exploração do humano pelo humano. Dentre eles, o assistente social.
Esse profissional surgiu nessa conjuntura de reestruturação política e econômica do
capitalismo, desenvolvendo-se “[...] como profissão reconhecida na divisão social do
trabalho, tendo por pano de fundo o desenvolvimento capitalista industrial e a expansão
urbana” (IAMAMOTO; CARVALHO, 2008, p. 77). Contudo, isso ocorreu salvaguardando
diferentes particularidades funcionais em cada país, de acordo com as conjunturas
econômicas, políticas e culturais e as estratégias capitalistas de manutenção da soberania
burguesa.
De acordo com a análise da sociedade, os assistentes sociais pertencem à classe
trabalhadora, na medida em que são sujeitos estruturalmente separados dos meios de
produção, logo, da oportunidade autônoma de reprodução material. Assim, embora esteja
formalizado em países como o Brasil que o assistente social é um “profissional liberal”, há
a necessidade da mediação institucional para execução de sua prática profissional.
Em decorrência disso, assim como os demais representantes da classe trabalhadora,
os assistentes sociais precisam submeter-se a essas instituições,48 como condição de se
reproduzir socialmente.
[...] não se pode pensar a profissão no processo de reprodução das relações sociais
independente das organizações institucionais a que se vincula, como se a atividade
profissional se encerrasse em si mesma (IAMAMOTO; CARVALHO, 2008, p. 79).

48
Essa convocação explicita também o fato de que “a demanda de sua atuação não deriva daqueles que são o alvo de
seus serviços profissionais – os trabalhadores – mas do patronato” (IAMAMOTO; CARVALHO, 2008, p. 83). Por esse
motivo, o assistente social passa a ser estranho aos próprios trabalhadores,, já que não percebem esse profissional como
parte do resultado de sua própria luta. Muitas vezes, inclusive, chegam a vê-lo como uma espécie de filantropo
especializado, além de outras impressões distorcidas que encobrem suas determinações e implicações no âmbito da luta
de classe.
59

Os assistentes sociais inserem-se – mediante o contrato de trabalho – numa posição


hierarquicamente subordinada ao projeto institucional, que detêm poderes coercitivos
(inclusive de demissão), que podem ser usados contra estes profissionais para que estes
possam colaborar na viabilização desse projeto institucional. Dessa maneira, tais
profissionais são contratados para agirem conforme as necessidades e finalidades já
estipuladas pela instituição em seu projeto. Esse fato torna-se vital para o prosseguimento
deste estudo, pois ele explicita uma condição essencial, que marcará a atuação desse
profissional na sociedade capitalista: a condição de profissional assalariado subordinado a
uma estratégia político-institucional, que precede quaisquer outros tipos de convicções
profissionais sejam elas pessoais ou coletivas.
Isso impactará duramente sua autonomia 49 – que, na maioria das vezes, torna-se
mínima diante de sua relação de subordinado nos processos decisórios nessas instituições
provedoras de serviços sociais.
Destacar e reconhecer a condição eminentemente subalterna e compreender as
implicações que lhes são consequentes são condições centrais para escaparmos de uma
análise idealista, e, dessa forma, incapaz de elucidar as determinações e relações da prática
do assistente social. Tal incapacidade tende a moralizar as análises, como se o profissional
fosse onipotente nas instituições em que está inserido.50 Essa visão reducionista e moralista
do assistente social está em contraposição ao método dialético-materialista marxista,
fielmente levado em conta na seguinte afirmação de Marilda Vilela Iamamoto:

[...] a condição de trabalhador assalariado não só enquadra o Assistente Social na relação


de compra e venda da força de trabalho, mas molda a sua inserção socioinstitucional na
sociedade brasileira. (2007, p. 63).

Através desse mecanismo (o contrato de trabalho), o projeto institucional insere


subordinadamente a prática profissional nessa “tensão entre reprodução da desigualdade e
produção da „rebeldia‟ e da resistência […] os quais não são possíveis de eliminar, ou deles
fugir” (IAMAMOTO, 2008, p. 160), diante da necessidade – por parte do capital – de
“organização da cultura pelas classes sociais na luta pela hegemonia, face às exigências de

49
Essa questão da autonomia será tratada com o necessário cuidado no capítulo posterior. Isso não será tratado nesse
capítulo, na medida em que ainda estamos nos dedicando à configuração do projeto que a instituição espera que o
assistente social atenda.

50
Essa questão será aprofundada no tópico 2.3 dessa dissertação.
60

um padrão de produção e trabalho” (ABREU, 2002, p. 22).


Essa natureza profissional insere o assistente social na mediação direta entre essas
instituições e os segmentos subalternos que atende, como um agente institucional que
atuará predominantemente na “linha de frente” na perspectiva de viabilização de tais
determinações institucionais. Atuando de maneiras alternadas e flexíveis de planejamento,
operacionalização e viabilização desses serviços, exercendo “funções tanto de suporte à
racionalização do funcionamento dessas entidades, como funções técnicas propriamente
ditas” (IAMAMOTO; CARVALHO, 2008, p. 113).
A imensa variedade das formas de inserção, realidade institucional, público usuário
etc. contribui para ocultar algumas constantes que marcam essa profissão, causando,
inclusive, transtornos recorrentes à categoria, no sentido de buscar uma “identidade
profissional”. Em verdade, podemos estar seguros para afirmar que, independentemente do
espaço onde atua e da consciência dos profissionais:

O assistente social é um profissional qualificado que, numa mesma ação, articula duas
dimensões numa só unidade complexa:

– enfrenta, com recursos e capacidade técnica, a solução de problemas sociais;

– dialeticamente articulado a esta atividade material, o assistente social realiza a


educação social dos setores nela envolvidos;

Estas duas dimensões se definem reciprocamente; não se pode analisar concretamente


uma delas sem a referência à relação, concreta em cada caso, que a vincula à outra
(PALMA, 1993, p. 168, grifos nossos).

As dimensões citadas são reconhecidas também por outros autores do Serviço


Social brasileiro, ainda que utilizem terminologias diferentes. Dessa maneira, a título
ilustrativo, algumas serão destacadas a seguir:

Os assistentes sociais têm assumido essencialmente a função de prestador de serviços e


de educador-organizador (SILVA, 2009, p. 66, grifos nossos).

[...] parte-se do entendimento de que a ação profissional dos assistentes sociais se


configura como apresentando duas dimensões: prestação dos serviços assistenciais e
trabalho socioeducativo, não sendo esse último exterior ao primeiro, mas uma de suas
dimensões (SILVA 2009, p. 91)

O assistente social é o intermediador direto tanto no atendimento concreto às


necessidades apresentadas, como responde pelo componente socioeducativo que
permeia a produção dos serviços assistenciais (YAZBEK, 1993, p. 150, grifos nossos).

Essas duas dimensões são elementos que podemos nos referir como inerentes à
61

prática desse profissional51. Como podemos perceber, uma possui um caráter claramente
subjetivo (a dimensão pedagógica), outra um caráter objetivo (a dimensão assistencial). 52 A
partir dessa distinção, Diego Palma, chama nossa atenção para o fato de que

[...] há que distinguir entre os efeitos objetivos de determinada ação (o impacto que
provoca na estrutura das relações sociais) e os seus efeitos subjetivos (aqueles que tocam
aos atores sociais que se referem à ação) (1993, p. 172, grifos nossos).

A intensidade do impacto nas condições de vida dos usuários não dependerá apenas
do arsenal de recursos instrumentais, fornecido pela rede assistencial citada anteriormente,
já que a viabilização dos serviços mediados pelas instituições provedoras de políticas
sociais não se efetiva automaticamente. A efetivação desses serviços depende de sujeitos
capazes de colocar tais recursos em movimento. É no amparo para a viabilização dessa
mediação que as instituições necessitam da função assistencial, responsável por mobilizar
esse arsenal de recursos instrumentais para efetivar os serviços. Isso indica a necessidade
de um conhecimento profissional específico a respeito do arsenal de instrumentais, os
limites e possibilidades expressos em políticas, normas, direitos, entre outros. Enfim, de
um determinado embasamento técnico-operativo e teórico-metodológico mais amplo do
profissional para lidar com as requisições impostas aos profissionais.
Essa dimensão explicita-se no uso, por parte do profissional, de recursos
circunscritos não apenas aos limites de sua instituição, mas também em toda rede
assistencial disponível, responsabilizando-se pela viabilização de serviços capazes de
atender a determinadas necessidades materiais da classe trabalhadora. Trata-se de
expressões diretas das lutas passadas dos trabalhadores e da potencialidade de luta presente
nos trabalhadores de seu tempo. É relevante ressaltar ainda que. seus efeitos se voltam para
um impacto que visa à amenização da dimensão objetiva da “questão social” no cotidiano
desses trabalhadores – momentaneamente reduzidos a “usuários” – que recorrem à
instituição. Ou seja, que amenizem ou desacelerem a “nova dinâmica de pobreza” imposta
aos trabalhadores-usuários. Nesse sentido, a dimensão objetiva da intervenção desse

51
Apenas para efeitos didáticos, trataremos o debate dessas duas funções separadamente. Isso significa que não
concebemos a possibilidade de existência de que uma ação profissional cujos impactos apresentem somente uma
dimensão subjetiva ou vice-versa. Ambas dimensões, no plano da realidade, só existem em articulação – como o leitor
perceberá mais a frente.

52
É interessante notar que esse caráter objetivo torna a dimensão assistencial da prática profissional muito mais visível
aos profissionais e, principalmente, aos sujeitos que não possuem embasamento profundo sobre a prática profissional.
Essa característica parece se expressar nas variadas demandas encaminhadas ao Serviço Social.
62

profissional (a função assistencial) se focará diretamente na dimensão objetiva da “questão


social” (“nova dinâmica de pobreza”).

Os assistentes sociais, por meio da prestação de serviços socioassistenciais –


indissociáveis de uma dimensão educativa (ou político-pedagógica) – realizados nas
instituições públicas e organizações privadas, interferem nas relações sociais cotidianas,
no atendimento às variadas expressões da questão social (IAMAMOTO, 2008, p. 163).

Esse tipo de prática faz do Assistente Social um „profissional da Assistência‟, já que ele
opera com recursos institucionais para a prestação de serviços, racionalizando e
administrando sua distribuição, controlando o acesso ao uso desses serviços pela
„clientela‟. Ele intermedeia as relações entre instituição e „clientela‟, articula a população
aos órgãos em que trabalha. A prestação de serviços imediatos em que interfere o
Assistente Social contribui para que sejam atendidas as necessidades básicas e urgentes de
sobrevivência das classes trabalhadoras, especialmente de seus segmentos mais
pauperizados, contribuindo com sua reprodução material (IAMAMOTO, 2007b, p. 40-
41).

[A prática profissional é] caracterizada 1° pelo atendimento de demandas e


necessidades sociais de seus usuários, podendo produzir resultados concretos nas
condições materiais, sociais, políticas e culturais na vida da população com a qual
trabalha, viabilizando seu acesso a políticas sociais, programas, projetos, serviços,
recursos e bens de natureza diversa (YAZBEK, 2011b, p. 13-14)

[...] os assistentes sociais têm-se vinculado, sobretudo, às questões da pobreza para


atendimento de necessidades concretas imediatas e para intermediar a prestação de
serviços básicos (SILVA, 2009, p. 66).

No entanto, é preciso ressaltar que, a partir de sua função assistencial, o profissional


efetuará mudanças econômicas que se restringem especificamente ao plano de distribuição
da riqueza. Suas interferências objetivas estão limitadas a interferências nos efeitos
econômicos, não encontrando mediações diretas que interfiram nos determinantes
econômicos. Assim, podemos concluir que a configuração catastrófica da dimensão
objetiva da “questão social” não pode ser revertida somente por meio de uma
intensificação, qualificação e ampliação na cobertura das intervenções de cunho
assistencial dos assistentes sociais em prol dos trabalhadores usuários dessas instituições –
no combate à dimensão objetiva da “questão social”. Trata-se de evitar o equívoco
analítico proveniente dos reformistas que partem da concepção redistributivista, já
discutida no tópico anterior (1.2). Essa pode ser considerada a maior limitação dessa
dimensão profissional.

A assistência social, por um lado, constitui-se como possibilidade de acesso a bens e


serviços, atendendo, ainda que de forma prática, a interesses imediatos, principalmente
referidos a necessidades de subsistência física, sob o controle do capital, ou seja, à sua
reprodução na condição de explorada e dominada, não respondendo, portanto, às suas
necessidades de desenvolvimento humano e de emancipação (ABREU, 2002, p. 33).

Resta dizer que a função assistencial também cumpre o papel de dispositivo


responsável por ativar a dimensão subjetiva da prática profissional: a função pedagógica.
63

Isso fica exposto Quando Silva afirma que

(…) a prestação de serviços materiais é inerente e dá sentido e direção à ação sócio-


educativa, constituindo-se em mediação para a ação profissional intervir nas relações
sociais, ou seja, cumprir sua função político ideológica (SILVA, 2009, p. 92).

A simples amenização da desigualdade, todavia, não necessariamente direciona


automaticamente a convicção moral e intelectual da massa trabalhadora de acordo com os
interesses da burguesia. A função pedagógica é responsável por incidir sobre a consciência
deste “público-alvo”, na tentativa de moldar suas formas “de ver, de agir, de se comportar e
de sentir” (IAMAMOTO, 2007, p. 40). Neste sentido, podemos dizer que esse caráter
pedagógico da prática profissional

Define-se e consubstancia-se no terreno da elaboração e difusão de ideologia na


organização da cultura [...] constituindo formas de pensar e agir próprias de determinado
modo ou sistema de vida, em que a formação de subjetividades e normas de conduta são
elementos moleculares (ABREU, 2002, p. 30).

Isso indica que o potencial efetivo da função pedagógica do assistente social


dependerá diretamente não apenas da correlação de forças na luta de classes em cada
conjuntura e da disponibilidade de serviços e benefícios para viabilizar reformas (o que
requer competência científica de caráter assistencial), mas também da competência
profissional em assimilar e efetivar as demandas institucionais – também em termos
pedagógicos.
Em consequência disso, há uma conexão da função pedagógica da prática
profissional, portadora de seus impactos subjetivos, aos complexos confrontos políticos da
luta de classe na sociedade capitalista. Isso será feito na medida em que esse papel
pedagógico do assistente social, da maneira que é requisitado pelo projeto institucional,
deve servir fundamentalmente para desmobilizar e confundir suas referências de identidade
e fazer regredir as formas de consciência de classe dos setores da classe trabalhadora sobre
as quais intervém.
Em suma, trata-se de uma função-chave para viabilizar o projeto burguês, que,
ciente do fato de que esses serviços necessariamente impactarão sobre a subjetividade dos
trabalhadores usuários, buscará conduzir esses impactos subjetivos de acordo com seus
interesses de classe por meio (também) da função pedagógica do assistente social. Em
outras palavras, criar no trabalhador usuário dessas instituições contratantes de assistentes
sociais um sentimento de gratidão, satisfação e docilidade em relação ao Estado e,
consequentemente, à ordem burguesa ao garantir que as concessões de riquezas por meio
64

de serviços produzam consenso.


Assim, a função pedagógica do assistente social, quando efetivamente direcionada
pelo projeto institucional burguês,

[…] opera uma transubstanciação ideológica que visa apresentar como natural e universal
a ordem atual de dominação […] com objetivo, num primeiro momento, de conjurar as
ameaças decorrentes do movimento de organização nascente da classe operária – e, num
segundo momento, de tornar impossível qualquer questionamento direto da ordem
estabelecida, estendendo a dominação a todas as esferas da vida dos dominados
(VERDÉS-LEROUX, 1986, p. 45).

As estratégias pelas quais essa direção pedagógica requisitada pela instituição se


constitui são tão variadas, sofisticadas e submersas que, por conta da dificuldade de serem
detectadas, podem facilmente ser conduzidas acriticamente pelo assistente social. Jeanine
Verdés-Leroux identifica algumas técnicas pedagógicas que contribuem para essa
subalternização:

Elas se esforçam para fazê-lo aceitar a representação negativa de si mesmo – o que


legitima a intervenção e reconhecer que ele é, pessoalmente, responsável (culpado) pela
situação em que se encontra. Esse reconhecimento da própria indignidade, por parte do
sujeito, deve exercer sobre sua conduta um efeito duradouro, capaz de prolongar-se depois
de determinada intervenção (VERDÉS-LEROUX, 1986, p. 204).

Assim, segundo a autora francesa, a intervenção profissional, na realidade em que


ela observou,

[…] aciona, mais ou menos sistematicamente, um mecanismo de duplo efeito que produz,
exteriormente, uma estigmatização visível (tutela, medidas de assistência educativa...) e a
invalidação do sujeito, que interioriza sua desqualificação (VERDÉS-LEROUX, 1986, p.
204).

Em consequência disso,
Essa população sente-se desvalorizada a seus próprios olhos e pode ser levada a
modificar-se sob os efeitos das intervenções de que é alvo. […] As diferenciações reais
existentes no interior da classe operária são, assim, reforçadas e aguçadas pela ação social.
Seu sentido, inclusive, é modificado e as diferenças são transformadas em oposição, em
divisão. Com isso torna-se impossível a solidariedade dos que, com grandes dificuldades,
alcançaram algumas vantagens e certa estabilidade (VERDÉS-LEROUX, 1986, p. 205).

Dessa maneira, os assistentes sociais são potencialmente capazes de colaborar para


as pretensões burguesas, não apenas no sentido de retificar comportamentos, mas também
de promover a adesão passiva, harmônica e acrítica dos sujeitos (VERDÉS-LEROUX,
1986, p. 204).
Essa dissimulada função de “influir e orientar a consciência popular”, segundo
Diego Palma, “sempre foi componente da ação do Serviço Social – um influxo pedagógico
nem sempre explícito, mas presente” (PALMA, 1993, p. 165), e acrescenta que
65

historicamente esteve presente a todo o momento, em qualquer particularidade


profissional,

Até mesmo quando os setores populares são beneficiários passivos, quando o paternalismo
da instituição monopoliza a decisão e a execução da solução, transmite-se nesta relação uma
clara educação social cujo conteúdo está condicionado pela forma que a própria relação
assume (PALMA, 1993, p. 167).

Apesar da possibilidade, até aqui explorada, de analisar essas duas dimensões


inevitavelmente arraigadas ao Serviço Social, de absolutamente nada nos valeria se não
formos capazes de evidenciar como elas se articulam entre si, e como os impactos dessa
articulação se relacionam aos princípios voltados para a reprodução da hegemonia
burguesa que lhe conformam.
Nessa pretensão, devemos destacar que o projeto institucional burguês, a partir da
mediação do assistente social, expressa “duas pretensões extremas [necessariamente
implícitas] que interagem mutuamente” (PALMA, 1993, p. 162):
1) Atender às carências materiais imediatas impostas da classe.
2) Realizar uma reforma intelectual e moral junto à classe trabalhadora.
Na medida em que essas pretensões dependem mutuamente uma da outra, “o
elemento material e o componente espiritual (há que designá-lo de alguma maneira)
sempre vão unidos na prática do Serviço Social” (PALMA, 1993, p. 165). Por isso, Diego
Palma afirma que “o Serviço Social articula várias dimensões no seu exercício profissional
e todas elas serviram [historicamente] para embasar tentativas de definições parciais e,
consequentemente, insatisfatórias” (PALMA, 1993, p. 128), principalmente porque podem
(erroneamente) ser analisadas isoladamente. Esse isolamento pode trazer, portanto,
prejuízos trágicos à análise da profissão e de seus desdobramentos, subvertendo suas
funções históricas, seus limites e possibilidades para o futuro.
Para compreender como essas duas dimensões da prática profissional dos
assistentes sociais se conectam, foi necessário trazer todo o debate sobre a “questão social”
e explicitar que o objeto central das estratégias hegemônicas da fase monopolista é, ao
contrário do que tende parecer, a dimensão subjetiva da “questão social”. Isto é, a grande
essência do projeto burguês, quando forçado pela classe trabalhadora a implementar as
reformas – por meio de políticas sociais –, é fazer desse processo algo que conforme um
consenso entre antagônicos via desmobilização da classe trabalhadora no cenário da luta de
classes. Por isso, da mesma forma que a burguesia busca, através das políticas sociais,
atingir a dimensão subjetiva da “questão social” por meio de um relativo combate à
66

dimensão objetiva da “questão social”, o projeto burguês utiliza-se da função assistencial


do assistente social como meio de viabilizar sua função pedagógica.
Em consonância com essa direção, o autor chileno Diego Palma irá afirmar que “a
[dimensão] básica, a que impõe suas características às outras, é a do educador social”
(1993, p. 129), pois, para ele, “a administração de serviços sociais é a base material sobre a
qual se desenvolve o processo educativo” (PALMA, 1993, p. 129), ou seja: a dimensão
assistencial seria, na verdade, o meio necessário utilizado para que essa dimensão
pedagógica pudesse se processar.
Posição essa que pode ser percebida nas citações a seguir, por outros autores que
debatem a esse respeito:

Exerce suas funções intelectuais principalmente como educador, organizador da


hegemonia e da coerção das classes a que se vincula objetivamente. Essas funções são
exercidas através da mediação dos serviços sociais, previstos pelas instituições e
procurados pelos „clientes‟. Ao mesmo tempo, ele se torna um intermediário entre aquelas
organizações e a vida privada do trabalhador, invadindo e interferindo nas esferas
particulares da vida cotidiana deste último (IAMAMOTO, 2007, p. 53, grifos nossos).

O assistente Social é solicitado não tanto pelo caráter propriamente „técnico-especializado‟


de suas ações, mas, antes e basicamente, pelas funções de cunho „educativo‟,
„moralizador‟ e „disciplinador‟ que, mediante um suporte administrativo-
burocrático, exerce sobre as classes trabalhadoras (IAMAMOTO, 2007b, p. 42, grifos
nossos).

[...] trata-se da utilização da assistência como meio de regular o conflito social


(IAMAMOTO, 2007b, p. 83).

Seu objetivo é transformar a maneira de ver, de agir, de se comportar e de sentir dos


indivíduos em sua inserção na sociedade. Essa ação incide, portanto, sobre o modo de
viver e de pensar dos trabalhadores, a partir de situações vivenciadas em seu cotidiano,
embora se realize através da prestação dos serviços sociais (IAMAMOTO, 2007, p. 40,
grifos nossos)

[...] o Serviço Social deve ser considerado como uma prática político-ideológica,
inserida indiretamente no processo produtivo, através de prestação de serviços numa
ação educativa (SILVA, 2009, p. 207, grifos nossos).

Isso implica destacar a necessidade da compreensão da dimensão assistencial –


presente variadamente em todas as diversas formas de política social – a partir da dimensão
pedagógica do assistente social, uma vez que a primeira está subordinada a essa última.
Essa estrutura é incontornável, o que não significa demérito ou priorização de uma,
já que, na ausência de qualquer uma dessas dimensões, a outra não faria sentido.
É, então, nesse sentido que Marilda Vilela Iamamoto, após afirmar que o campo do
assistente Social é a “prestação de serviços sociais”, respalda essa direção ao afirmar que
“o Assistente social exerce uma função eminentemente „educativa‟, „organizativa‟, nas
classes trabalhadoras” (2007, p. 40).
67

Por isso, para Palma, apesar da dimensão assistencial ser indispensável em relação
à segunda, “não se pode procurar a compreensão dessa profissão como se a sua „essência‟
[...] fosse a assistência” (1993, p. 164). Isso indica que “a natureza da atuação profissional,
sob a aparência tecnificada, é de cunho mais político ideológico do que propriamente
econômico, e é eficaz entre a „clientela‟, principalmente nessa esfera” (IAMAMOTO,
2007b, p. 43). O status de “essência” dado à função pedagógica é contemplado de maneira
muito clara por outros autores relevantes que discutem o Serviço Social:

O Serviço Social muda as formas, mas segue com uma posição essencialmente
ideológica (SANTOS, 1983, p. 189).

O essencial, no entanto, é a exortação ao sobressalto moral, o apelo ao acréscimo de


coração, [...] propõe-se o silêncio, a amenidade [...]. Está longe, portanto, a ideia de
uma „guerra contra a pobreza‟, canalizando, através do Estado, importantes
transferências de renda – e, mais ainda, de atacar-se a causa fundamental desta situação, o
baixo nível de salários (VERDÉS-LEROUX, 1986, p. 198-199, grifos nossos).

O campo do trabalho social passa a ser organizado com vistas a esta ameaça [de
inquietação dos “dominados”] – e suas transformações [...] o essencial não consiste em
trazer remédio aos males sociais [...] e, sim, em detectar a tempo esses males. E em propor
medidas de enquadramento capazes de evitá-los (VERDÉS-LEROUX, 1986, p. 84).

É possível afirmar o caráter essencialmente político da prática profissional, uma vez que
ela se explica no âmbito das próprias relações de poder na sociedade (YAZBEK, 2011b, p.
5).

A análise das particularidades do trabalho do Serviço Social desenvolvido junto às classes


subalternas situa necessariamente este trabalho numa dimensão eminentemente política,
colocando em questão o significado e a direção social desta ação profissional (YAZBEK,
2011b, p. 15).

Essa tentativa de organização da cultura faz parte, portanto, de um arsenal de


“programas e agentes [...] mobilizados para detectar, preventivamente, as tensões sociais, e,
localizadamente, atenuá-las” (IAMAMOTO, 2007b, p. 42). Isso nos permite concluir que,
embora o trabalho instituído do assistente social não contribua diretamente para a
acumulação, este tende a reforçar a hegemonia e o poder social da burguesia, ao dar
suporte à ampliação e reprodução das condições de produção capitalista, ao disciplinar,
segmentar e normatizar a vida e o pertencimento social dos trabalhadores.
Tal investimento, apesar de aliviar as condições de vida dos trabalhadores, se não
for capaz de se articular a um redirecionamento qualitativo de sua dimensão pedagógica
que esteja subordinado a um projeto societário antagônico ao que o projeto institucional se
subordina, não fará mais do que aprofundar a legitimidade de um modo de produção
inevitavelmente reprodutor das mesmas desgraças. Isso porque condenará posteriormente a
68

massa trabalhadora a condições extremas de humilhação e pauperismo.


O que se coloca como desafio é, na verdade, a forma em que essas dimensões são
chamadas a se articular. Pensar numa prática profissional que intencione uma ruptura com
esse reformismo reiterativo proposto pelo projeto político institucional burguês supõe, não
apenas pensar em estratégias de utilização dos recursos institucionais para promover
assistência da melhor qualidade possível, mas também utilizar-se desses aparatos para
legitimar uma série de elementos pedagógicos. Elementos esses que deverão estar
voltados, não para a adequação, fatalismo, subordinação e individualismo, mas sim para a
coletivização, esperança, "rebeldia", senso crítico e historicidade. Isso implica, frente à
insuperável contradição de assalariado, pensar também estratégias para o emprego de sua
autonomia (por ser relativa) e em como ampliá-la (por ser também flexível).
69

2 CAMINHOS E “DESCAMINHOS” NA BUSCA DO ENFRENTAMENTO AO


PROJETO INSTITUCIONAL

O vosso bombardeiro, general é poderoso:


Voa mais depressa que a tempestade e transporta mais carga que um elefante.
Mas tem um defeito: precisa de um piloto.
O homem, meu general, é muito útil: sabe voar, e sabe matar...
Mas tem um defeito: sabe pensar!”
Bertold Brecht

No capítulo anterior, procuramos resgatar alguns elementos que permearam o


surgimento do Serviço Social, basicamente ligado ao contexto em que a burguesia
monopolista percebeu a necessidade/possibilidade de interferir ideologicamente no
processo de obtenção de consenso em relação à estrutura capitalista junto à classe
trabalhadora. Buscamos explicar essa necessidade/possibilidade de interferência a partir do
avanço da organização e consciência da classe trabalhadora, que forçava a burguesia a
conceder progressivas parcelas de riqueza a eles. Isso porque essa pressão dos
trabalhadores por reforma determinou uma crise de legitimidade da burguesia frente aos
trabalhadores que, de acordo com uma das lições de Maquiavel, deve ser evitada. Frente a
essa questão, vimos que a burguesia tentou sanar essas duas “demandas” por intermédio de
políticas sociais, materializadas por meio de um emaranhado de instituições – cujas
características gerais se expressam num projeto político institucional. Esse projeto
institucional traz em si o princípio de materializar reformas, por meio de serviços, tendo
em vista a obtenção de consenso (despolitizar a “rebeldia”), requisitou a apropriação de
uma série de profissionais e do surgimento de outros, dentre eles o assistente social. Esse
profissional, do ponto de vista desse projeto institucional, tomará a forma de peça
importante nessa “máquina institucional”. Dessa forma, o assistente social, será
caracterizado basicamente por duas funções: pedagógica (que expressa a dimensão
subjetiva de sua prática profissional) e assistencial (que expressa a dimensão objetiva de
sua prática profissional). A última terá basicamente a importância de melhorar
relativamente às condições de vida dos trabalhadores usuários dessa instituição, criando,
assim, um terreno-base para que a função pedagógica profissional possa se efetivar. Já a
função pedagógica, segundo os planejamentos do projeto político institucional, deverá ser
capaz de manipular o impacto subjetivo desses serviços na consciência do público para o
70

qual essa ação foi destinada, de maneira a produzir nestes o efeito mais aproximado
possível da satisfação, ou seja, o de despolitizar a dimensão subjetiva da “questão social”
nas particularidades dos atendimentos dos assistentes sociais na instituição. Essas ações,
ainda que sejam feitas de maneira mais ou menos individualizada, na medida em que
fazem parte de um projeto amplo e articulado, podem ser capazes de produzir um relevante
efeito no âmbito da totalidade social.
Entre tantas coisas, isso significa que precede à inserção do assistente social, uma
direção política essencialmente conservadora por parte dessa instituição que, em seu
sofisticado emaranhado estratégico, conta para seu sucesso com uma forma de adesão
profissional específica e já preestabelecida. Para que essa postura profissional planejada
pela instituição encontre meios concretos de adesão, o projeto institucional conta com um
mecanismo básico coercitivo capaz de pressionar os profissionais que ali irão atuar a
pactuar com essa direção. Essa pressão será feita, principalmente, ao garantir que essa
função de assistente social seja exercida na condição de trabalhador.

Durante o período em que trabalha [...] o sujeito que trabalha não tem o poder de
livremente estabelecer suas prioridades, seu modo de operar, acessar todos os recursos
necessários, direcionar o trabalho exclusivamente segundo suas intenções, o que é
comumente denunciado como o „peso do poder institucional‟ (IAMAMOTO, 2008, p.
422, grifos nossos).

Essa condição será formalizada pelo contrato de trabalho, que impõe ao assistente
social, aquilo que Marilda Iamamoto chama de “contradição do assalariamento”. Por meio
desse contrato,

Os empregadores [...] estabelecem critérios de prioridade e recortam as expressões da


questão social e os sujeitos que as portam como público alvo da prestação de serviços
profissionais. [...] interferem, ainda, na definição de cargos e salários, jornada, critérios de
produtividade a serem observados, que esbatem na dinâmica técnico-operativa do
trabalho, estabelecendo limites e possibilidades à efetivação de um projeto profissional
coletivo e agregando um conjunto de particularidades na forma de sua implementação
(IAMAMOTO, 2008, p. 282).

Os empregadores definem ainda a particularização de funções e atribuições consoante as


normas que regulam o trabalho coletivo. Oferecem, ainda, o background de recursos
materiais, financeiros, humanos e técnicos indispensáveis à objetivação do trabalho [...]
também materializam requisições, estabelecem funções e atribuições, impõem
regulamentações específicas ao trabalho a ser empreendido no âmbito do trabalho
coletivo, além de normas contratuais (IAMAMOTO, 2008, p. 218-219).

Fica claro que a instituição possui significativo poder coercitivo sobre os assistentes
sociais, na medida em que pode pressioná-lo a desenvolver uma série de ações que, muitas
vezes, podem colidir com suas convicções próprias. São trabalhadores assalariados que
colocam em risco seus meios de sobrevivência, caso não cumpram certas determinações
71

institucionais. Isso porque é evidente que o emprego em nossa sociedade é a principal


mediação para a sobrevivência dos trabalhadores.
Porém, assim como as políticas sociais que, por serem mediadas pelo Estado, são
tensionadas pela burguesia na tentativa de instrumentalizar sua estratégia hegemônica – e
as instituições são vias para a efetivação dessas mesmas políticas sociais –, os assistentes
sociais são requisitados para o alcance dos objetivos institucionais. Todavia, parafraseando
Brecht, nos cabe destacar que o assistente social é um “homem”, e isso trará uma
complicação a essa contra-estratégia53 burguesa: o homem tem um defeito: “sabe pensar...”
(Brecth). Ou seja, pode imprimir capacidade teleológica às suas ações, ter determinada
margem de manobra nesse processo, que Marilda Iamamoto vai chamar de “autonomia
profissional”. Trata-se da

Possibilidade relativa que o profissional, na condição de trabalhador assalariado, tem de


imprimir direção às suas ações, logicamente considerando limites impostos por condições
que independem da sua vontade, como os limites postos pelas instituições empregadoras
(FORTI, 2010, p. 175).

Essa categoria possui uma importância fundamental para o Serviço Social, na


medida em que “a consideração unilateral das imposições do mercado de trabalho
profissional conduz a uma mera adequação do trabalho profissional às exigências alheias”
(IAMAMOTO, 2008, p. 219). A esse respeito, Jeannine Verdes-leroux destaca que essa
autonomia tem como fonte a própria limitação institucional, que não possui condições de
ser totalitária. Para ela,

O dinamismo desse campo, enaltecido pelo meio, deve-se à natureza das tarefas que lhe
são atribuídas e ao mandato que lhe é conferido – os quais não podem ser inteiramente
definidos, nem codificados, e deixam, assim, aos profissionais, uma parte de autonomia e
de iniciativa na produção do que deles se espera. Tal dinamismo é produto de agentes
concretos e sua origem não se encontra na intervenção explicitamente organizadora da
instância de direção (os poderes públicos), mas sim, espontaneamente, nas vastas
possibilidades de reconversão que a própria imprecisão dos objetivos, o arbítrio dos
métodos e a ausência de sanções oferecem a certas frações de classe (VERDÉS-
LEROUX, 1986, p. 9).

Para a autora, isso proporciona uma “autonomia relativamente alta reservada aos
agentes, para definirem e realizarem missões [...] [na medida em que a] utilidade imediata

53
O termo “contra-estratégia”, aqui utilizado em detrimento da utilização do termo “estratégia”, busca enfatizar que
essa estratégia de manipulação com vistas à reprodução da hegemonia por parte da burguesia é, na verdade, uma resposta
a uma estratégia anterior, pertencente à classe trabalhadora, que havia indicado o socialismo como estratégia de
aniquilação do capitalismo.
72

nem sempre está aos olhos das instâncias” (VERDÉS-LEROUX, 1986, p. 96).
Três características importantes permeiam essa categoria (autonomia). A primeira é
que essa autonomia será sempre relativa. Nesta medida, se, por um lado, podemos afirmar
que a possibilidade de conduzir suas ações apenas de acordo com suas próprias
perspectivas não será possível – levando em consideração as direções institucionais –, por
outro, podemos afirmar que haverá sempre uma margem de manobra por parte dos
assistentes sociais em relação à instituição. Essa margem, que varia significativamente em
termos de proporção (em relação direta à coerção institucional) de acordo com cada
instituição, é permeada pela segunda característica inerente à autonomia profissional.
Trata-se de seu caráter flexível, na medida em que a autonomia profissional “será sempre
relativa ao contexto sociohistórico e à capacidade estratégica do profissional” (GUERRA,
2007b, p.6), podendo dilatar ou comprimir sua margem (o que realça a importância da
formação na tentativa de dar maior solidez à sua prática).
Por último, gostaríamos de assinalar que essa autonomia também é determinada por
um conjunto de múltiplos determinantes que impactam de maneira diferente na realidade
institucional de cada profissional, implicando singularidades à autonomia de cada
assistente social. Essa terceira característica indica que as atividades desenvolvidas por
determinado profissional não poderão ser necessariamente desenvolvidas por outro
profissional e, obviamente, o contrato de trabalho, como veremos com maiores detalhes no
tópico 3.1 dessa dissertação, não é o único determinante da autonomia profissional.
Nesse sentido, cientes de que “se a profissão dispõe de condicionantes sociais, que
ultrapassam a vontade e a consciência de seus agentes individuais, ela é também fruto dos
sujeitos que a constroem coletivamente, forjando respostas profissionais” (IAMAMOTO,
2008, p. 221), a autonomia profissional será o ponto de partida desse capítulo, que
abordará alguns de seus determinantes, características e sua relação com o surgimento do
chamado Movimento de Reconceituação do Serviço Social latino-americano. A tentativa,
aqui, será evidenciar o caráter propositivo desse movimento em sua fase inicial, uma vez
que foi um período em que a reflexão em torno da busca de caminhos para uma ação
profissional ressignificada mobilizou a categoria, o que avaliamos como necessário ao
debate que gira em torno da “crise de materialização” do marxismo no cotidiano
profissional atual.
73

2.1 Algumas considerações (essenciais) acerca da apropriação do marxismo pelo


Serviço Social brasileiro

A partir de meados da década de 1950, com o XX Congresso do Partido Comunista


da URSS, foram denunciadas uma série de crimes ocorridos sob o poder stalinista que
suscitou a configuração de um novo contexto que se espraia pelas nações mais importantes
daquele período. Trata-se de um novo caldo cultural, ou, como classifica Carlos Nelson
Coutinho (2006), uma “onda libertária“ que, ainda na década de 1960, culmina em
diferentes eventos, como o chamado “Maio de 1968” e a “Primavera de Praga”. Em
síntese, o autor afirma que:

Durante os anos 1968-1969, movimentos do mesmo tipo envolveram quase todas as


regiões do mundo, dos Estados Unidos ao Japão, do resto da Europa à nossa América
Latina. No início dos anos 1970, transições ao socialismo foram iniciadas, ainda que sem
sucesso, no Chile e em Portugal [...] além da renovação de alguns partidos comunistas
[...], surgiram por toda parte movimentos que, continuando a se opor ao capitalismo e ao
imperialismo, divergiam profundamente do modelo adotado nos países do chamado
„socialismo real‟ (2006, p. 68).

Evidentemente, nosso intuito, aqui, não poderia ser o estudo substancial do referido
período histórico, já que isso por si só determinaria a realização de outro estudo, haja vista
sua importância e complexidade. Contudo, consideramos necessário pontuar que a
denúncia dos crimes de Stálin “desbloqueou o estudo do marxismo e ampliou sua
influência em todo mundo” (COUTINHO, 2006, p. 73). Isso gerou uma crescente
expansão do que Coutinho chamou de “pluralismo marxista”. Com isso passou-se a reler
com novos olhos a totalidade da obra de Marx, entraram na bibliografia obrigatória dos
marxistas ocidentais todos aqueles autores “revisionistas” antes renegados pelos “pífios
manuais soviéticos”, ampliando o contato com a leitura de Lukács, Gramsci, Sartre,
Lefebvre, Lucien Goldmann, Kautsky, Luxemburgo, Adler, Karl Korsch, Adorno, Marcuse
e muitos outros (COUTINHO, 2006). Isso abriu margem para que as diversas esquerdas
pudessem repensar, de maneira mais criativa e viva, sua relação com as particularidades de
seu contexto histórico e geográfico.
Na América Latina, vivia-se na década de 1960 um contexto de fortes movimentos
e lutas sociais, marcado pela inserção na nova divisão internacional do trabalho que
emergia pelo colapso dos pactos políticos que vinham do pós-guerra; pelo surgimento de
novos sujeitos políticos; pelo impacto da revolução cubana; e pelo reformismo do tipo
“aliança para o progresso” (NETTO, 2005). Trata-se, segundo Netto, das expressões de
74

uma crise mundial da ordem capitalista, que se deu após o exaurimento do padrão de
acumulação de desenvolvimento capitalista, inaugurado no pós-guerra e finalizado no fim
dos anos 1960. Foi isso que gerou um quadro favorável para a “mobilização das classes
subalternas em defesa de seus interesses imediatos”, através de movimentos que, de
variadas formas “punham em questão a racionalidade do Estado burguês, suas instituições,
e no limite, negavam a ordem burguesa e sua racionalidade” (NETTO, 2005, p. 7).
Portanto, além da influência na região de um contexto em que havia a referência do
socialismo, e de um pluralismo crescente – onde se abria a possibilidade de pensar o
marxismo de acordo com suas particularidades regionais –, havia, particularmente na
América Latina, a maturação da “questão social”, com todas suas consequências em termos
de escassez, sofrimento e “rebeldia”.
Podemos dizer que quando tratamos dessas mobilizações, nos referimos ao
aprofundamento e amadurecimento do que chamamos no capítulo anterior de dimensão
subjetiva da “questão social”. Esta ganha força diante das novas manifestações objetivas da
“questão social” que afligiam o cotidiano da classe trabalhadora naquele momento. Essa
maturação da “questão social” – em ambas as dimensões – passou a se manifestar na
particularidade do cotidiano das instituições também de maneira mais profunda e madura,
o que exigiu novas formas de respostas institucionais. Esse descompasso provocou, por
parte das próprias instituições, uma pressão pela modernização da prática profissional, a
fim de atender às novas necessidades estabelecidas pela conjuntura. Ou melhor, as
instituições precisavam dar respostas mais eficazes à proliferação da pobreza no
continente, a fim de atender às crescentes necessidades de reprodução da hegemonia
burguesa, que necessitava evitar a proliferação descontrolada da miséria, posto que consigo
traria a possibilidade de uma insatisfação generalizada por parte da classe trabalhadora.
Essa ameaça de crise de legitimidade institucional em relação ao público usuário
acarretou uma crise de legitimidade do assistente social em relação à instituição. Essa
crítica por parte das instituições somou-se a uma autocrítica que passava a se formular por
parte de um setor interno à categoria profissional, influenciado por alguns fatores daquela
conjuntura. Quanto a esses fatores conjunturais, Netto (2005) aponta como principais: a
revisão crítica operada nas ciências sociais, o deslocamento crítico de caráter sociopolítico
que permeou significativos setores religiosos e o protagonismo ascendente do movimento
estudantil. De maneira geral, podemos dizer que essas influências foram determinantes
para que essa autocrítica – que foi conduzida por esses setores da categoria – denunciasse,
75

com maior rigor e propositividade, a ineficácia da prática tradicional, 54 diante do fato de


que a legitimidade do profissional frente ao público usuário estava progressivamente
ameaçada. Neste sentido, Faleiros registra que:

Acentuaram a insatisfação de muitos assistentes sociais que se viam como „bombeiros‟,


chamados a apagar pequenos incêndios, a atuar no efeito da miséria, a estabelecer
contatos sem contribuir efetivamente para a melhoria da vida cotidiana do povo
(FALEIROS, 1993, p. 117).

Por isso, Netto afirma que “a segunda metade dos anos 1960 marca (…) uma
conjuntura de profunda erosão das [suas] práticas tradicionais [da o Serviço Social]”
(2005, p. 6).
Sentindo que sua legitimação profissional estava ameaçada e que seus referenciais
teóricos se faziam notavelmente insuficientes para responderem às novas demandas que se
apresentavam (complexificação da “questão social”), os assistentes sociais tiveram de
buscar novas respostas interventivas, voltando-se para a reflexão da própria profissão e do
mundo no qual está inserida. Trata-se, dessa forma, do fator desencadeador daquilo que
ficou conhecido na história do Serviço Social latino-americano como “movimento da
reconceituação”.55
Esse movimento teve preponderância inicial no “Cone Sul” da América, para, em
seguida, espraiar-se por diversas partes do continente. As primeiras conclusões acabaram
servindo como uma forma de “denúncia da inadequação e inoperância do Serviço Social
Tradicional frente à realidade latino-americana e o reconhecimento da exigência de uma
redefinição profissional” (CARVALHO apud SILVA 2009, p. 72). A explícita insuficiência
dos seus referenciais bibliográficos foi explicada pela distância econômica, social, política
e cultural da realidade da qual provinha o debate importado (basicamente: Estados Unidos
da América e Europa). Isso deu ao movimento certa sede de independência, levando,
inclusive, a uma rejeição de caráter “anti-imperialista” em relação às produções teóricas
que procediam principalmente dos Estados Unidos da América e Europa.
No entanto, não podemos dizer que tenha se tratado de um movimento homogêneo.

54
Netto conceitua a prática tradicional por sua performance “empirista, reiterativa, paliativa e burocratizada, orientada
por uma ética liberal burguesa, que de um ponto de vista claramente funcionalista, visava enfrentar as incidências
psicossociais da 'questão social' sobre indivíduos e grupos, sempre pressuposta a ordenação capitalista da vida social
como um dado factual ineliminável” (2005, p. 6).

55
Esse movimento, segundo NETTO (2007), não se limitou ao Serviço Social, porém, para fins desse estudo, será a esta
categoria limitado em termos analíticos.
76

Netto explica que se tratou de “uma frente profissional que reunia um largo e heterogêneo
leque de assistentes sociais (e não só) interessados em promover efetivamente o
desenvolvimento econômico e social” (2005, p. 10). Segundo o autor, essa frente era
composta por dois grupos básicos: o primeiro trazia uma perspectiva de Serviço Social de
modernização “a ponto de torná-lo compatível com as demandas macrossocietárias,
vinculando-o aos projetos desenvolvimentistas de planejamento social” (NETTO, 2005, p.
10). O segundo grupo, formado basicamente por assistentes sociais jovens e radicalizados:
“jogava numa inteira ruptura com o passado profissional, de modo a sintonizar a profissão
com os projetos de ultrapassagem das estruturas sociais de exploração e dominação”
(NETTO, 2005, p. 10).
Netto indica que, essa frente, em pouco tempo “se fratura dividindo-se os
protagonistas em dois grandes blocos: os reformistas-democratas (rigorosamente
desenvolvimentistas) e os radical-democratas (para os quais o desenvolvimento supunha a
superação da exploração-dominação nativa e imperialista). Mas o autor afirma, ainda, que
essa diferença foi rigorosamente impedida de se aprofundar em decorrência das ditaduras
que atravancaram qualquer alternativa democrata, reformista e revolucionária.
Vale destacar que esse bloco que o referido autor chama de radical-democrata
favorecido por algumas particularidades contextuais – tais como o aprofundamento das
desigualdades sociais no continente latino-americano, o projeto socialista como alternativa
concreta de sociedade, a ascensão do pluralismo dentro do marxismo que lhes permitia
uma margem para pensar as particularidades latino-americanas com maior autonomia; a
crise de legitimidade da prática tradicional no Serviço Social diante do público usuário e da
instituição; dar respostas às questões que emergiam em seu cotidiano profissional – pôde
encontrar no marxismo uma fonte vigorosa para buscar as respostas dos dilemas
profissionais daquele momento. Nesta medida, podemos concluir que “é no marco da
reconceptualização que, pela primeira vez de forma aberta, a elaboração do Serviço Social
vai socorrer-se da tradição marxista” (NETTO, 2007, p. 148).56

56
Antes de prosseguir, devemos destacar que, enquanto “parte integrante do processo internacional de erosão do
Serviço Social „tradicional‟” (NETTO, 2007, p. 146), a reconceituação é marcada por certa heterogeneidade. Nesse
sentido, faz-se necessário afirmar que, embora esse estudo vá se focar primordialmente numa parcela profissional
baseada na “tradição marxista, que passa a inspirar a busca da renovação teórico-metodológica da ação profissional”
(SILVA, 2009, p. 83), há também uma segunda corrente interna dentro do movimento da reconceituação, em que “a
questão que originalmente a comanda é a funcionalidade profissional na superação do subdesenvolvimento” (NETTO,
2007, p. 146). Esta última corrente – de “base ainda estrutural funcionalista, representada pela vertente modernizadora,
cuja inquietação maior seria o aprimoramento técnico-metodológico dos profissionais, de modo a capacitá-los a
contribuir para o projeto desenvolvimentista” (SILVA, 2009, p. 83) – terá contribuição mais densa no debate brasileiro, ao
77

Na medida em “que a preocupação central dos autores [da reconceituação] é a


construção de novas alternativas para a prática profissional” (SILVA 2009, p. 84), é notável
que, no início do movimento de reconceituação, o marxismo terá sua utilidade basicamente
como recurso para pensar a dimensão interventiva profissional. 57 Neste sentido, Vicente de
Paula Faleiros destaca que

Ao contrário de se tecnocratizar, certos grupos passaram a colocar a atuação profissional


como uma ação política, tendo a problemática do PODER como o objetivo de trabalho na
relação de forças sociais. Nessa perspectiva, o método dialético passou a ser uma
dimensão fundamental para abrir novas perspectivas de ação e de análise (FALEIROS,
1993, p. 118).

Valendo-se do contato literário com o marxismo, a categoria recorreu à história, na


busca de compreender a função social da profissão, o que lhe permitiu enxergar os laços de
exploração e dominação existentes na sociedade capitalista e seus respectivos emaranhados
de interesses. Através dessa base, pôde-se avançar na compreensão do papel social da
profissão, o que expôs uma potente dimensão política contida na prática profissional dos
assistentes sociais. Dessa forma, o pressuposto de neutralidade da profissão 58 foi
questionado. Isso acarretou na percepção de que, na medida em que sua atuação
inevitavelmente possui uma dimensão política, 59 a ação profissional só poderia fortalecer
uma das classes antagônicas. É, portanto, neste ponto em que se configura o mérito central
do movimento da reconceituação: desmistificar a neutralidade da ação profissional via
estudo da ideologia (SILVA, 2009, p. 77-95).
Com isso, desencadeou-se um grande debate coletivo em torno do elemento político
contido na prática profissional, base “fundamental para a configuração de um projeto
profissional de ruptura” (SILVA, 2009, p. 95) com o conservadorismo no Serviço Social.
Segundo Silva e Silva,

passo em que a corrente que recorrerá insistentemente às leituras marxistas terá destaque (neste primeiro momento) nas
regiões da América Latina que haviam sido colonizadas pela Espanha.
57
Netto faz questão de destacar que essa fração mais radicalizada do Movimento de Reconceituação foi centralizado
basicamente pelos profissionais hispânicos. “la exigência científica mayor de la reconceptualización hispânica es la de
uma intervención concreta em la realidad social, de tal modo que el trabajo teórico mantenga vínculos simultáneamente
determinados y determinantes para com el ejercício práctico” (NETTO, 1975, p. 101).

58
Netto afirma que “um dos traços mais característicos do conservadorismo consiste na negação das dimensões
políticas e ideológicas” (NETTO, 2007b, p. 145).

59
Essa fatalidade está ligada ao raciocínio exposto por Braz e Teixeira, que sinalizam: “todo projeto e, logo, toda
prática, numa sociedade classista, têm uma dimensão política (…)” (2009, p. 188). Por isso, podemos dizer que os
projetos profissionais também têm inelimináveis dimensões políticas, seja no sentido amplo (no que se refere às suas
relações com os projetos societários), seja em sentido estrito (no que se refere às perspectivas particulares da profissão)
(NETTO, 2007b, p. 145).
78

O desvelamento da dimensão político-ideológica da profissão situa o Serviço Social no


contexto da correlação de forças antagônicas da sociedade e explicita a possibilidade do
que os autores denominam de vínculo político-ideológico da prática profissional com o
projeto de uma das classes que compõem a estrutura social capitalista. Isso supõe a
opção político-ideológica por um projeto de classe e a desmistificação da suposta
neutralidade que, historicamente, tem orientado o Serviço Social, enquanto exigência
imposta à ação profissional (2009, p. 87).

Aqueles assistentes sociais inseridos no Movimento de Reconceituação


referendados pela perspectiva marxista (o chamado “bloco radical-democrata”) investiram
neste debate sobre a intervenção profissional, na tentativa de deslocar sua base de
legitimação da burguesia (representada na particularidade institucional pelo projeto
institucional) para a classe trabalhadora (representado pelo público usuário).

O Serviço Social almeja em fins dos anos de 1970 e na década seguinte, de 1980, afirmar
sua legitimidade frente aos usuários de sua ação profissional – a classe trabalhadora
(ORTIZ, 2010, p. 129).

Essa nova tentativa de sustentação profissional coloca a “transformação social


como horizonte da prática profissional, o que implica uma prática coletiva, estruturada
pela aliança entre o profissional e a clientela” (SILVA, 2009, p. 88, grifos nossos) e a

Necessidade de questionamento das normas institucionais que, via de regra, orientam a


clientela para um processo de adaptação social, numa perspectiva de controle e
dominação, preconizando a ruptura com essa prática, tendo em vista os interesses dos
setores populares (SILVA, 2009, p. 87).

Fica em evidência, portanto, a

Necessidade de construção de uma nova proposta de ação profissional, tendo em vista as


demandas e os interesses dos setores populares que constituem, majoritariamente, a
clientela do Serviço Social. A construção dessa nova proposta supõe todo um processo de
discussão e revisão crítica, em nível teórico-metodológico, no sentido de fomentar uma
ação articulada com as lutas dos segmentos populares, tendo como perspectiva a
transformação social (SILVA, 2009, p. 72).

No entanto, esse amadurecimento do pensamento marxista no interior do Serviço


Social latino-americano sofreu um violento aborto nos principais países em que tal
movimento evoluía: as ditaduras militares e a consequente violência dos governos
autocráticos burgueses. Netto (2005) destaca que essas ditaduras, com sua postura violenta
de coagir qualquer manifestação crítica – com destaque para o marxismo – interromperam
a riqueza do processo, promovendo também, mesmo após sua saída de cena, uma relativa
“desmemória” acerca desse debate. No entanto, o autor destaca que, apesar de sua saída de
cena, na medida em que as ditaduras militares se aprofundaram, esse Movimento de
Reconceituação no Serviço Social deixou de herança para categoria, pelo menos, cinco
79

importantes conquistas:

1° Articulação de uma nova concepção de unidade latino-americana: “a


reconceituação se põe na ordem do dia um intercâmbio e uma interação profissional
diferentes, apoiados no explícito reconhecimento da urgência de fundar uma articulação
profissional continental que respondesse às problemáticas comuns da América Latina […]
construída autonomamente, sem as tutelas confessionais ou imperialistas [...]
2° Explicitação da dimensão política da ação profissional: “coube à reconceituação
trazer à luz do dia a dimensão política que é constitutiva de qualquer intervenção
profissional; e porque em geral o fez pela esquerda [...]
3° Interlocução crítica com as ciências sociais: “abrindo-se a novos influxos (inclusive
da tradição marxista) e sintonizando-se com tendências diversificadas do pensamento
social então contemporâneo [...]
4° Inauguração do pluralismo profissional: com ela, rompeu-se o viés segundo o qual a
profissionalidade implicaria uma homogeneidade [...]
5° Recusa do profissional de Serviço Social de situar-se como um agente técnico
puramente executivo: “reivindicando atividades de planejamento para além dos níveis de
intervenção microssocial, valorizando suas funções profissionais e o estatuto intelectual
do assistente social (rechaçando a subalternidade expressa até então (2005, p. 11-12).

2.2 Formação e consolidação do projeto ético-político do Serviço Social brasileiro.

Sei que há léguas a nos separar… Tanto mar, tanto mar...


Sei também como é preciso pá... Navegar, navegar...
Já murcharam tua festa pá, mas certamente esqueceram uma semente em algum canto do
jardim

Chico Buarque

Este tópico se voltará para um fenômeno histórico, que determinará vigorosamente


o destino do movimento reconceituador no Serviço Social. Trata-se das ditaduras
disseminadas na América Latina a partir da década de 1960. Para Netto, elas tiveram a
importância de provocar uma espécie de “inconclusividade” no movimento de
reconceituação, de maneira que, “quando tiveram que deixar a cena (as ditaduras), já
haviam produzido uma desmemória significativa” (NETTO, 2005, p. 14). Isso porque suas
características altamente repressivas foram atuantes na censura das mais diferentes formas
de manifestações críticas nas sociedades latinas, coagindo violentamente não apenas as
literaturas marxistas que vinham alimentando o movimento reconceituador, mas também
os próprios sujeitos que o conformavam.
No entanto, esta inconclusividade não fez do movimento algo intransitivo, que não
remeteria mais a si mesmo. Ao contrário, durante mais de dez anos, na sequência da década
de 1970, a parte mais significativa do espírito renovador da Reconceituação, processada
criticamente, alimentou o que houve de mais avançado no processo profissional latino-
americano. Trata-se de atividades desenvolvidas pelo CELATS – basicamente por meio de
80

investigações, seminários, colóquios, públicações e educação à distância (NETTO, 2005, p.


15)60 –, que foram capazes de expressar, ainda que com dificuldades, a continuidade desse
movimento latino.
Também devemos considerar que, se por um lado, o avanço desse movimento foi
murchado pelas ditaduras militares latinas, por outro, os mesmos repressores “certamente
esqueceram uma semente em algum canto do jardim” (Chico Buarque). Isso significa dizer
que a repressão militar não conseguiu eliminar a herança crítica do movimento da
reconceituação no Serviço Social. No entanto, este fato apenas pôde ser percebido
posteriormente e, neste sentido, devemos destacar o processo histórico particular do Brasil
– palco privilegiado do retorno ao debate iniciado pela reconceituação.
Neste sentido, a década-chave para o retorno a esse debate no país foi a década de
1980 – momento propagandeado pela burguesia nacional como a “década perdida”. No
entanto, para compreender minimamente este momento, devemos recorrer brevemente à
conjuntura que precedeu essa década.
O final da década de 1970 marcou o início da crise da ditadura militar que
gradualmente deixa de representar os interesses e as estratégias do capitalismo monopolista
nacional e internacional e perde o apoio das camadas médias – crescentemente
pauperizadas – e da Igreja Católica. Desta forma, embora as políticas sociais tenham sido
fortalecidas na tentativa de controle das insatisfações sociais, a classe trabalhadora, com
destaque para seus setores médios, entrou na ofensiva contra a ditadura ainda na década de
1970.
Um expressivo movimento popular, apoiado inclusive pela Igreja Católica, através
das Comunidades Eclesiais de Base, veio à tona, assim como uma notória rearticulação do
movimento sindical entre diversas categorias. Um movimento que culminou em greves
operárias a partir de 1978, deflagrou lutas no campo e engendrou o Partido dos
Trabalhadores (PT) no início da década de 1980. Tudo indicava uma retomada das lutas
dos trabalhadores, que reivindicavam bandeiras efetivamente aglomeradoras, como a das
“Diretas Já” e uma nova constituição mais “democrática”. 61

60
Netto destaca que o CELATS foi preponderante em duas ações básicas: com “um projeto de organização dos
assistentes sociais em escala continental (…) para indicar caminhos para o associacionismo profissional em muitos
países”; e “no fomento à investigação acerca da história do Serviço Social na América Latina” (NETTO, 2005, p. 15).

61
A palavra democrática está entre aspas para assinalar, que era uma transição para uma nova forma de conduzir o
Estado, que apenas apresentava alguns ganhos democráticos, mas não em sua integridade, já que para isto se faria
81

Entretanto, apesar do progresso das referidas lutas, o pacto liberal-conservador


consegue impor, em meados da década de 1980, sua perspectiva de transição lenta, gradual
e segura ao “esmagar a vontade de milhões de brasileiros, que clamavam por „diretas já‟
em 1984” (ABRAMIDES; CABRAL, 1995, p. 79), por meio de um Colégio Eleitoral – a
chamada “Nova república”, sob a gestão de Sarney.
Apesar de significar uma derrota, esse episódio não significou a retirada da classe
trabalhadora da ofensiva, no cenário da luta de classes no Brasil. Pelo contrário, o que
vimos foi a maturação da recém-fundada Central Única dos Trabalhadores (CUT) e uma
fase de fundação, diversificação e maturação de diversos movimentos populares – tanto na
cidade como no campo. Mas o maior destaque deste período foi a ascensão no PT naquele
cenário, que

[...] se coloca claramente a favor das massas populares, reafirmando que as diretas-já são
o caminho imediato de ruptura com a ditadura militar, eliminando as estruturas montadas
daí advindas, forjando nessa trajetória práticas políticas na perspectiva das classes
trabalhadoras (ABRAMIDES; CABRAL, 1995, p. 80).

Embora o liberalismo burguês possuísse a hegemonia do processo de transição, o


aprofundamento das lutas por parte da classe trabalhadora indicava que as formas
explicitamente ditatoriais da autocracia burguesa perdiam seu poder e, com isso, sua
legitimidade para controlar os movimentos críticos dentro das categorias profissionais da
classe trabalhadora.
Embora o Serviço Social tenha nascido sob determinações socioeconômicas
relativamente parecidas aos demais países capitalistas, a particularidade dessa conjuntura
histórica no Brasil – marcada por uma herança recente do Movimento de Reconceituação e
pela reação da classe trabalhadora brasileira nos anos 1980 – possibilitou aos sujeitos que
conformam essa categoria um rumo significativamente diferente da maioria dos países
onde a profissão existe. Favorecida por estas particularidades, a vertente mais radical do
movimento da reconceituação encontrou no Brasil condições de retomar a perspectiva de
ruptura com o conservadorismo sob um viés crítico embasado pela teoria marxista. Desta
forma, se antes os setores da categoria dos assistentes sociais mais simpatizantes com o
bloco chamado por Netto de “radical-democrata” do Movimento de Reconceituação se
restringia a uma vanguarda acuada e ocultada na academia, com esta conjuntura de lutas
abre-se, a partir desse momento, a possibilidade de disseminação das produções, a fim de

necessário o fim da exploração e da dominação do humano pelo humano.


82

chegarem ao meio profissional. Por isto, é apenas com a crise do regime ditatorial que suas
repercussões extrapolam os muros da academia e começam a rebater com visibilidade nos
foros e organismos da categoria profissional (NETTO, 2007, p. 247).62
Essa tendência, chamada pelo autor referido de radical-democrata, também passou
a se expressar de início no campo político-organizacional da categoria profissional dos
assistentes sociais, como podemos perceber a partir de uma leitura do estudo de Silva
(2009). Nesse estudo, ela afirma que o III Congresso Brasileiro dos Assistentes Sociais (de
1979) foi marcado pela expressão massiva dos profissionais presentes, no sentido de
questionarem a direção conservadora, substituindo os convidados especiais (representantes
do poder ditatorial) por dirigentes de organizações populares. Este marco foi uma
expressão contestatória importante para impulsionar várias outras lutas dos assistentes
sociais na década seguinte (1980), em que profissionais influenciados pelo dito bloco
radical-democrata do Movimento de Reconceituação investiram exaustivamente no
fortalecimento das suas entidades profissionais e dos seus sindicatos. Assim, buscaram
articulações com as lutas políticas mais amplas dos trabalhadores e dos movimentos sociais
populares.
Com isso, ganha destaque na categoria dos assistentes sociais sua dimensão
político-organizativa da profissão.

Revitalização profunda nos organismos básicos do Serviço Social brasileiro, provocando


contradições, divergências e lutas no interior das entidades nacionais ABESS e CFAS;
efetiva-se a reativação das entidades sindicais e pré-sindicais em todo país, culminando
com a criação da ANAS, em 1983, registrando-se, também, a reativação do movimento
dos estudantes de Serviço Social no interior dos movimentos e lutas estudantis
universitários em geral. Nesse âmbito, verifica-se o despertar de grupos de assistentes
sociais para maior participação na política partidária (SILVA, 2009, p. 42).

Barroco (2007) também colabora com o debate, destacando a clara opção política
dessa vanguarda profissional do período, que se posicionou na defesa da classe
trabalhadora. A autora também aponta para as influências desse bloco mais crítico, que
Netto denomina de radical-democrata, no que tange às produções literárias, que passam a
resgatar as questões e debates críticos, iniciados nos períodos do Movimento de
Reconceituação, voltando-se para a compreensão de seu próprio significado frente à

62
Esta experiência com a teoria marxista tem raízes tanto do contexto entre o fim da década de 1950 e meados de 1960
quanto do movimento da reconceituação, ambos abafados (mas não esquecidos) pela violência da fase de maior ascensão
da ditadura militar, calando a teoria na categoria quase que completamente até meados da década de setenta.
83

sociedade e buscando superar seus equívocos históricos, através de críticas sistemáticas ao


tradicionalismo profissional.
Esse conjunto de mudanças de postura trouxe rebatimentos concretos para o campo
da ética profissional já na década de 1980. Segundo Forti, surgiram, nesse período,

Elaborações teórico-práticas que se desdobraram e romperam a hegemonia do


conservadorismo na profissão, possibilitando, inclusive, a construção de um referencial
ético que não mais preconizou valores assentados em interesses individuais ou de grupos
sociais particulares (2010, p. 112, grifos nossos).

A construção de tal referencial ético, enquanto expressão de uma “nova” postura


política da categoria naquele período teve como eixo o compromisso com a classe
trabalhadora, que “objetivou-se com a elaboração do Código de Ética profissional de
1986” (FORTI, 2010, p. 112). Nesse código, buscou-se “superar a concepção universal
abstrata dada aos conceitos de pessoa humana e bem comum” (BARROCO, 2007, p. 176)
colocando, em seu lugar, a perspectiva de “uma prática voltada às necessidades dos
usuários, tratados historicamente, em sua inserção de classe” (BARROCO, 2007, p.176).
No entanto, a concepção de ética presente no código profissional de determinada
categoria deve ser compreendida como força orientadora da prática profissional e não
como mera declaração de posicionamentos políticos.

Temos a responsabilidade cívica e política de nos somarmos [...] de maneira que o


anúncio de valores éticos que regem a prática profissional não se transforme apenas em
declaração de belas intenções. Sendo aqueles valores fundamentais, eles devem se
traduzir em propostas e ações acadêmico-profissionais e políticas voltadas para o
conhecimento e enfrentamento da 'questão social' (IAMAMOTO apud BONETTI, 2010,
p. 104).

Na medida em que a importância da ética está na sua capacidade de reflexão crítica


e consequente, podemos dizer que a materialização dessa concepção ética no código
profissional de 1986 colocou para esses profissionais a questão de posicionar-se contra as
funções a eles requisitadas pelo projeto político institucional, cuja finalidade está no limite
das meras reformas, sem crítica substancial à ordem social, ou seja, um projeto que
podemos chamar de reformista. Consequentemente, isso exigiu mais do que uma negação e
denúncia à essência burguesa do projeto institucional; exigiu a necessidade de se pensar
mediações para este novo compromisso. Ou melhor, exigiu a necessidade de construção de
um eixo operacional capaz de subsidiar uma intervenção profissional essencialmente
diferente do projeto político institucional.
Nesse sentido, os assistentes sociais em destaque no cenário daquele momento,
ligados ao chamado bloco radical democrata do Movimento de Reconceituação, ao
84

buscarem “reorientar o potencial da prática profissional no horizonte dos interesses


daqueles que participam da sociedade através do seu trabalho” (IAMAMOTO, 2007b, p.
123), passam a almejar um aprofundamento sobre algumas concepções teóricas básicas a
respeito da prática profissional. Isso gerou uma série de campos de debate entre diferentes
tendências circunscritas a esse mesmo (bloco radical-democrata), intencionando romper
com o conservadorismo no Serviço Social.

No curso dos anos oitenta, a tradição marxista se colocou no centro da agenda intelectual
da profissão: todas as polêmicas relevantes [...] foram decisivamente marcadas pelo
pensamento marxista (NETTO, 1996, p. 113)

Dentre os variados debates nesse contexto, gostaríamos de destacar a categoria


autonomia profissional, na medida em que será motivo de uma polêmica essencial para a
concepção de intervenção profissional e envolverá três tendências básicas influenciadas
pelo marxismo.63 Isso significa dizer que as diferentes concepções a respeito da autonomia
profissional serão responsáveis por um fecundo debate interno, cuja relevância extrapola
aquele contexto para se tornar uma questão sempre atual na reflexão em torno da prática
profissional.
Em que pesem os variados elementos que determinam a autonomia profissional, 64
as interpretações acerca de seu elemento estrutural tiveram um peso especial para a
conformação de diferentes concepções dentro da ampla parcela de assistentes sociais que
formavam a vertente mais crítica do movimento de reconceituação. Trata-se do elemento
referente ao contrato de trabalho profissional.
A primeira tendência parece estar profundamente relacionada a um importante
elemento impulsionador do “retorno” do marxismo no Serviço Social daquele momento de
abertura política: a existência de assistentes sociais ligados à militância política. 65 Esse
elemento, em grande parte, trouxe para o debate profissional alguns autores progressistas

63
É necessário destacar, aqui, que não será descartada a hipótese de ecletismo entre as três diferentes posições e que
muitas vezes essa polêmica não se colocava de maneira explícita e contrastante.

64
Tratamos, aqui, de determinantes tais como o prestígio profissional por parte da instituição contratante e dos
usuários, a clareza para os mesmos sobre “o que é” e “o que faz” o assistente social, o contexto sociopolítico em que está
inserido, os recursos socioassistenciais disponíveis na instituição, a infra-estrutura institucional etc.
65
É importante destacar que essa tendência não é particular à realidade brasileira. Essa vertente é, na verdade, oriunda
do próprio movimento de reconceituação, presente de maneira bastante explícita em alguns de seus clássicos como, por
exemplo, Bóris Alexis Lima e Kisnerman. No entanto, essa herança teórica reconceituadora é retomada na realidade
brasileira nesse período, ainda que com particularidades, intensidades e expressões diferenciadas.
85

críticos, relevantes para o pensamento marxista e de outras perspectivas críticas ao


capitalismo como, por exemplo, Ernesto Guevara, Mao Tsé-Tung e Paulo Freire – que,
como se sabe, não se situa no campo marxista. 66 Essa aproximação colaborou com o
efetivo avanço do debate ocorrido no Serviço Social na década de 1980 que, enfatizando a
unidade entre ética, educação e política, ajuda a incorporar na categoria profissional um
ethos socialista (BARROCO, 2007).
Barroco salienta que “no entanto, muitas vezes, os valores são tomados de forma
mecânica, dando origem a inúmeros equívocos” (BARROCO, 2007, p. 150). Isso porque
abstrai basicamente duas questões essenciais sobre a realidade daqueles sujeitos, fazendo-
os cair num duplo mecanicismo: o primeiro referente ao contexto sociohistórico e o
segundo referente à relação com o projeto político institucional.
O primeiro é mais claro e refere-se ao fato de que vivíamos no Brasil um contexto
político recheado de particularidades consideravelmente diferentes daquelas em que muitos
daqueles autores requisitados por esses assistentes sociais viviam. Com isso, não apenas as
forças potencialmente revolucionárias de nosso país são diferentes, mas também as forças
oponentes, levando-nos a concluir que as estratégias revolucionárias a serem seguidas no
Brasil naquele momento não poderiam seguir mecanicamente os passos que foram dados
na China e em Cuba, por exemplo. Fato muitas vezes ignorado por esses setores
profissionais, que recorriam a alguns autores.
O segundo equívoco mecanicista dessa vertente interna refere-se ao fato de que as
estratégias operacionais propostas por essa tendência pareciam não levar em consideração
o fato de que estavam propondo estratégias a serem tocadas por profissionais (com suas
respectivas restrições particulares inerentes ao contrato de trabalho), e não por militantes
políticos.

Quando os valores e concepções instituídos em contextos revolucionários são


transportados mecanicamente para outros contextos, perdem seu significado histórico [...].
Se trazidos para o interior de uma profissão, tornam-se ainda mais problemáticos.

A concepção de militância – como dever profissional [...] abre caminho para a


„desprofissionalização‟, [...] na medida em que a atividade profissional se transforma em
militância, ela adquire um sentido voluntário, abnegado, de sacrifício, entre outros
(BARROCO, 2007, p. 51).

66
Netto registra que a precocidade desse primeiro contato do Serviço Social com algumas dessas obras foi marcada por
um “confusionismo ideológico, que procurava 'sintetizar' as inquietudes da esquerda cristã e das novas gerações
revolucionárias „não ortodoxas‟ e „não tradicionais‟ […] [que,] acabou por engendrar a eclética mistura de Camilo Torres,
Guevara e Paulo Freire com Louis Althusser e Mao Tsé-Tung”. Destaca ainda que “a tradição marxista recolheu desta,
quase sempre, o que nela havia de menos vivo e criativo” (2005, p. 13).
86

Podemos dizer que essa concepção, embora busque amparo em literaturas


marxistas, reproduz, na verdade, o método idealista de análise da realidade. O idealismo é
identificado neste estudo como vertente de pensamento, que tem como expoentes Kant e
Hegel, e é caracterizado pela prevalência da vontade e da subjetividade em relação às
determinantes econômicas e objetivas de modo geral. Apesar de reconhecer os avanços
históricos dessa corrente, a crítica do materialismo dialético, presente em Engels e Marx,
se dá, principalmente, por sua incapacidade de medir os limites que a estrutura econômica
impõe aos sujeitos. Para estes autores,

O processo de vida material condiciona o processo de vida social, política e individual em


geral. Não é a consciência dos homens que lhes determina o ser, mas pelo contrário, é o
seu ser social que lhes determina a consciência (2009, p. 51-52).

Essa maneira idealista de conceber a realidade acaba dando a essa primeira


subcorrente um discurso prepotente, extremista, aparentemente radicalizado caracterizado
por propostas de ação tão otimistas que mais pareciam objetivos partidários. Nelas, os
assistentes sociais pareciam ocupar uma posição de liderança no processo revolucionário,
ao se verem autossuficientemente capazes de, enquanto desempenham suas funções
profissionais, conduzir o público usuário para a revolução.
Essa concepção profissional foi denominada por Iamamoto de “messianismo
utópico”, na medida em que

Privilegia as intenções, os propósitos do sujeito profissional individual, num voluntarismo


marcante, que não dá conta do desvendamento do movimento social e das determinações
que a prática profissional incorpora nesse mesmo movimento. O messianismo traduz-se
numa visão 'heróica', ingênua, das possibilidades revolucionárias da prática profissional, a
partir de uma visão mágica da transformação social (2007b, p. 115-116).

As maneiras que a tendência interna se expressa possuem relativa variedade. No


entanto, podemos dizer que, de maneira geral, o que particulariza essa perspectiva é a
superestimação da autonomia do profissional em relação à instituição – como se indicasse
uma autonomia de caráter positivamente absoluto. Ou seja, em vez de compreender a
autonomia profissional como algo relativo, sob direta determinação do contrato de
trabalho, essa subcorrente superdimensiona a capacidade do assistente social, cobrando
desse profissional uma série de posturas que, além de incabíveis, expõe os profissionais à
87

coerção institucional, ameaçando, assim, sua permanência no emprego e,


consequentemente, as possibilidades de reprodução autônoma desses assistentes sociais. 67
No entanto, é necessário destacar que não podemos considerar como adeptos dessa
concepção apenas os assistentes sociais que não reconhecem as múltiplas determinações
inerentes à prática profissional. Isso porque as constatações científicas a respeito da
realidade não bastam em si mesmas, requisitando-se que sejam acompanhadas por
mediações capazes de inferir sobre a realidade. Assim, ainda que durante a prática
profissional os profissionais estejam conscientes de que a autonomia profissional não é
absoluta, se não forem capazes de fazer uma análise da realidade institucionalizada
rigorosamente crítica, correrão o risco de partir do pressuposto de que possuem
possibilidades superiores às que efetivamente possuem, e assim, cair no messianismo. Esse
erro de “cálculo” pode levá-los a violentos e desnecessários embates com outros setores
institucionais (sejam eles superiores hierarquicamente ou não). Em consequência, o
profissional tende a ter sucessivos fracassos e desgastes relacionais, levando não apenas à
inviabilização de algumas estratégias, como também a comprimir sua relativa autonomia
na medida em que pode desprestigiar o profissional frente à hierarquia institucional e às
outras categorias passíveis de futuras alianças estratégicas. Esse desgaste, além de causar
estresses emocionais desnecessários, pode ameaçar até mesmo sua permanência na
instituição.
Em suma, podemos concluir que o messianismo pode decorrer tanto da
equivocada convicção que ignora as limitações inerentes ao seu contexto sociopolítico
e às particularidades da inserção profissional quanto da incapacidade de vigorar uma
análise sólida das particularidades das correlações de forças institucionais. A
consequência dessa apropriação do idealismo por essa vertente no Serviço Social é,
portanto, a ignorância em relação às possibilidades reais desses sujeitos (assistentes
sociais). Isso abriu margem para uma série de críticas consistentes, freando não apenas o
aprofundamento aberto dessa concepção operacional que se desenvolvia, mas também a
adesão massiva e duradoura dos assistentes sociais a essa concepção estratégica.
A origem da segunda posição a respeito de como conceber a autonomia profissional
está diretamente ligada ao fato de que, além da militância política, a presença de redutos
críticos na universidade pública configurou-se num importantíssimo canal de reinserção do

67
Nossa crítica a essa concepção não significa a desresponsabilização do sujeito/profissional.
88

marxismo no Serviço Social desse período. Barroco destaca que, no período de transição
democrática, o estudo de Althusser representava uma forte resistência dentro da
universidade (2007, p. 153). A categoria “aparelho ideológico”, extraída de Althusser, teve
uma adesão destacada na utilização do autor no Serviço Social daquele momento. Esse
debate mostrou utilidade no sentido de subsidiar a correta denúncia da função ideológica
(de reprodução da dominação burguesa) do Estado exercida por meio da ampla, complexa
e sofisticada rede de instituições sociais circunscritas em seu território. A utilidade dessa
denúncia tem importância para o Serviço Social na medida em que a maior parte desses
profissionais é contratada exatamente por essa rede de instituições. Esse contato trouxe aos
adeptos dessa tendência um discurso extremista e aparentemente radicalizado.
No entanto, essa análise, apesar de também se fazer utilizando-se de pressupostos,
análises e finalidades de origem marxista, acaba por distorcer essa origem ao fazê-la partir
da ótica estruturalista a que pertence o pensamento de Althusser. Podemos compreender o
estruturalismo como vertente do pensamento que influi em certo segmento da tradição
marxista, promovendo fortes distorções do marxismo na medida em que parte do método
positivista de análise. Esse método é caracterizado pela prevalência absoluta dos
determinantes objetivos em relação às determinantes da vontade e da subjetividade. A
crítica do materialismo dialético se dá, principalmente, por sua incapacidade de reconhecer
o protagonismo dos sujeitos na construção da história, o que leva a uma análise
supervalorizada da estrutura econômica, incapacitando-a de reconhecer a dialética
potencialidade da força da vontade dos sujeitos em incidir sobre a estrutura. O impacto
dessa racionalidade é a despolitização dos sujeitos e a naturalização da estrutura capitalista.
Em termos de influência no Serviço Social, essa influência prejudicará a analise da
realidade basicamente em dois sentidos.
Primeiramente porque para essa corrente o Estado é interpretado a partir de uma
análise restrita. Ou seja, o autor desconsidera uma série de mudanças ocorridas na
configuração das sociedades capitalistas no século XX que determinaram mudanças na
configuração do Estado burguês. Trata-se basicamente da ampliação do Estado, percebida e
expressa em parte por autores clássicos do marxismo como Rosa Luxemburgo e Engels,
mas que terá “em Gramsci [...] um tratamento mais sistemático” (SIMIONATTO, 2004, p.
64). Essa concepção ampliada de Estado destaca a ampliação de funções do Estado
burguês, que passa a se expressar como um mecanismo relativamente permeável a algumas
conquistas da classe trabalhadora. Esse fato traz impactos às estratégias revolucionárias, na
89

medida em que aponta a possibilidade de disputas nos mais diversos “aparelhos privados
de hegemonia”, capazes de corroer a legitimidade do sistema capitalista e, assim, preparar
um contexto mais propício à derrubada da burguesia. Portanto, essa tese aponta para a
possibilidade/relevância da “conquista paulatina de espaços no interior da „sociedade civil‟
e, através e a partir dela, no próprio seio do Estado” (COUTINHO, 2008, p. 40), o que para
Althusser é mecanicamente impensável. 68
A herança gramsciana – que passa a adentrar no Serviço Social nesse período – nos
permite compreender que, apesar de serem “aparelhos”, possuírem uma dimensão
“ideológica” e fazerem parte de uma rede determinada pelo Estado, as instituições públicas
que contratam os assistentes sociais não podem ser classificadas como meros “aparelhos
ideológicos do Estado” no sentido que Althusser indica. Isso porque há uma relativa
autonomia dessas instituições em relação à essência burguesa que dá a direção do Estado
burguês. Isso permite que a classe trabalhadora consiga permear esse espaço de maneira a
imprimir algumas conquistas importantes capazes de facilitar (ou amenizar as dificuldades)
a organização trabalhadora na construção do comunismo.
O segundo sentido refere-se a outro tipo de mecanicismo induzido pelo método de
análise positivista que o faz seguir uma lógica muito próxima à anterior. No entanto, se
antes apontava como impossível imprimir qualquer tipo de conquista dos trabalhadores
dentro de uma organização burguesa (já que era determinado naquele espaço pela direção
burguesa), agora se sugere que, dentro de uma instituição determinada pelo Estado
burguês, os profissionais submetidos a essa instituição não possuem nenhuma margem de
manobra capaz de contribuir com os interesses políticos da classe trabalhadora.
Assim, se a tendência anterior, denominada por Iamamoto de “messiânica”,
conduzia a uma desprofissionalização por descaracterizar o assistente social enquanto
profissional assalariado, essa segunda tendência aponta como única alternativa para
defender efetivamente os interesses da classe trabalhadora uma desprofissionalização por
reeditar uma propaganda em prol de um “voluntarismo”. Ou seja, essa linha de raciocínio
indicava basicamente apenas duas alternativas àqueles que realmente pretendam estar do

68
Apesar de apontarmos e defendermos a possibilidade de luta por dentro dos organismos burgueses tais como o
Estado, não estamos defendendo uma prioridade de luta por dentro desses mecanismos em detrimento das lutas a partir
dos aparelhos próprios da classe trabalhadora contra os aparelhos burgueses. No entanto, na medida em que o assistente
social não possui autonomia para priorizar a instituição onde deseja atuar (se pertencente dos projetos da classe
trabalhadora ou burguesa), mas insere-se em instituições que oferecem (involuntariamente) a possibilidade de se lutar em
seu interior sem que isso signifique fatalmente numa cooptação, essa tese se mostra extremamente útil para pensar a
realidade profissional.
90

lado dos interesses da classe trabalhadora: abandonar seu contrato de trabalho e ir para
espaços organizativos de militância da classe trabalhadora (tais como partidos, sindicatos e
movimentos sociais de esquerda) ou trabalhar para instituições da própria classe
trabalhadora.
Essa concepção foi denominada por Iamamoto de “fatalismo”, caracterizada da
seguinte forma:

Inspirado em análises que naturalizam a vida social, traduzindo numa visão “perversa” da
profissão. Como a ordem do capital é tida como natural e perene, […] o Serviço Social
encontrar-se-ia atrelado às malhas de um poder tido como monolítico, nada lhes restando
a fazer. No máximo, caberia a ele aperfeiçoar formal e burocraticamente as tarefas que são
atribuídas aos quadros profissionais pelos demandantes da profissão ( 2007b, p. 115)

As maneiras pelas quais essa subcorrente se expressa apresentam relativa


variedade. No entanto, podemos dizer que o que particulariza essa perspectiva é a
subestimação da autonomia do profissional em relação à instituição – como se indicasse
uma autonomia de caráter nulo. Essa pobreza analítica esfacela tanto a dialeticidade da
realidade institucional – ao não conceber que a instituição, apesar de determinar a classe
trabalhadora, também pode sofrer determinação da mesma – como também a historicidade
dos sujeitos envolvidos – ao tratar os sujeitos envolvidos como simples produtos das
direções dadas pela classe dominante via instituição. Ou seja, em vez de compreender a
autonomia profissional como algo relativo, essa subcorrente parece colocar os assistentes
sociais numa posição em que somente lhes resta ser mero instrumento em parte do
processo de desorganização da "rebeldia" dos trabalhadores.
Assim como a tendência messiânica, o fatalismo também pode não ser adotado por
profissionais da área, mas também “adotar” profissionais. Ou seja, não é apenas por optar
por essa tendência que o profissional se enquadra nela, pois para romper com essa
tendência e identificar estratégias para concretizar interesses da classe trabalhadora a partir
de sua inserção profissional é necessário ainda que o profissional seja capaz de extrair de
seu cotidiano as reais oportunidades que possui. Para não ser membro dessa tendência
imobilista, é necessário, ainda, que, além de conceber que a realidade não é natural e ter
competência para identificar as “brechas” deixadas ao profissional para reorientar sua ação
numa outra lógica, se tenha coragem para carregar o fardo da solidariedade de classes na
sociedade capitalista. Trata-se da “coragem cívica”, a quem José Paulo Netto se refere ao
atentar para a necessidade de “não ter nenhum medo de estar absolutamente contra a
corrente política do nosso tempo” (ANDERSON apud NETTO, 1996, p. 119), assim como
91

não temer a série de dificuldades inerentes a essa opção por estar nessa contracorrente,
nem se deixar seduzir pelas comodidades de quem se deixa arrastar pelas tortuosas
correntezas poluídas do projeto burguês. Trata-se de lutar para evitar a desmotivação, o
comodismo, a subserviência e os consensos inconvenientes. Posturas profissionais
atravessadas talvez por questões morais, mas que podem ser covardemente acobertadas por
explicações (e não justificativas) de base teórica, apontando dificuldades que ameaçam a
autonomia profissional como se fossem grandes o suficiente para não agir de maneira mais
ousada quando, na verdade, ações mais críticas e propositivas poderiam avançar mesmo
numa realidade atravessada pela contradição do assalariamento. Nesse sentido, Sales e
Paiva afirmam que “a coragem aqui é uma virtude e uma aliada imprescindível, pois o
conhecimento em si não é dissipador dos medos, ao contrário” (2010, p. 186), citando, em
seguida, André Comte-Sponville, que afirma que

A coragem nada mais é que a vontade mais determinada e, diante do perigo ou do


sofrimento, mais necessária […] mas a coragem está no desejo, não na razão; no esforço,
não no ditame. Trata-se sempre de perseverar em seu ser, e toda a coragem é feita de
vontade […] um começo sempre recomeçado, apesar do cansaço, apesar do medo, e por
isso sempre necessário e sempre difícil […]. Como toda virtude, a coragem só existe no
presente […], se trata de ser corajoso, não amanhã ou daqui a pouco, mas “no ato” (apud
SALES; PAIVA, 2010, p. 186).

Em oposição a essas duas tendências, há uma terceira, também relacionada à


herança do movimento da reconceituação, à ascensão da classe trabalhadora no Brasil e
impulsionada por assistentes sociais ligados à militância e/ou à universidade pública.
Assim como as outras duas vertentes brevemente discutidas anteriormente, essa também se
orienta pelo marxismo. No entanto, diferencia-se das anteriores na medida em que se
mostra efetivamente comprometida com a ortodoxia do materialismo dialético de Marx.
Podemos dizer que esse diferencial apenas foi possível a partir de

Uma crítica marxista ao próprio marxismo tal como esse foi incorporado pela literatura
especializada, notadamente pelo movimento da reconceituação latino-americano da
década de 1970, transformando-se em autocrítica da história das formulações teóricas
oriundas das primeiras aproximações de Serviço Social ao marxismo (IAMAMOTO,
2007a, p. 205).

Essa tendência é fruto da maturação do debate interno na categoria, possibilitada


graças ao contato com literaturas que se mostraram essenciais para os debates que o
Serviço Social vinha travando naquele momento – com destaque para as requisições de
Gramsci, Lukács, Heller, Goldman e Lefèvre (BARROCO, 2007).
Essa tendência ortodoxa trouxe ao debate a respeito da autonomia profissional um
viés que reconhece que uma direção política essencialmente conservadora por parte da
92

instituição precede a inserção do assistente social. Reconhece, ainda, que essa postura
profissional planejada pela instituição possui um mecanismo básico coercitivo capaz de
pressionar os profissionais que ali irão atuar a pactuar com essa direção e indica que essa
pressão será feita, principalmente ao garantir que essa função de assistente social seja
exercida por meio de um contrato de trabalho que o subordine hierarquicamente à
instituição.
Porém, essa tendência ortodoxa do bloco radical democrata, consciente dos
diversos elementos que cerceiam a autonomia profissional, é capaz de compreender ainda
o movimento dialético que permite que o “determinado” também seja capaz de determinar
o “determinante”; o elemento “subjetivo” seja também capaz de determinar o elemento
“objetivo”; o elemento “micro” também seja capaz de determinar o elemento “macro” etc.
Dessa forma, essa tendência ortodoxa não aceita as leituras que indicam a autonomia
profissional como categoria inflexível, de potencial nulo ou absoluto. Essa tendência
destaca-se por se mostrar capaz de compreender a autonomia profissional em seu caráter
relativo e flexível, determinada, sim, por elementos de ordem estruturais e externos à
profissão, mas capaz de obedecer à lógica da realidade, que envolve a possibilidade dos
sujeitos influírem por esse conjunto de incidências externas ao indivíduo. Compreender a
autonomia profissional em sua forma relativa é reconhecer

Possibilidade relativa que o profissional, na condição de trabalhador assalariado, tem de


imprimir direção às suas ações, logicamente considerando limites impostos por condições
que independem da sua vontade, como os limites postos pelas instituições empregadoras
(FORTI, 2010, p. 175).

Resta ainda relembrar que o debate destacado nesse estudo até aqui entre essas
tendências a respeito da categoria “autonomia profissional” é apenas a expressão de uma
heterogeneidade presente no bloco radical democrata, que se expressa nessas formas no
debate acerca da autonomia profissional – base da prática profissional. Ou seja, essas
diferentes tendências não se resumem a esse debate, da mesma maneira que o triunfo da
tendência ortodoxa no debate a respeito da autonomia profissional configurou-se apenas
como mais um espaço em que essa tendência se mostrou capaz de se sobrepor às demais no
cenário mais amplo do Serviço Social. Isso indica que

O amadurecimento intelectual se objetiva através da superação dos equívocos do


marxismo vulgar, evidenciados na leituras mecanicistas que marcaram a negação inicial
da prática tradicional; entre elas, a ideologização do marxismo e o determinismo
explicitado no voluntarismo ético-político (BARROCO, 2007, p. 169).
93

Esse amadurecimento intelectual durante a década de 1980 é muito bem sintetizado


na descrição a seguir de Barroco:

A militância político profissional alcança a sua maturidade evidenciada na organização


sindical nacional dos assistentes sociais, na articulação com as lutas gerais dos
trabalhadores e na inserção junto às demais entidades representativas da profissão; os
eventos nacionais, gradativamente, revelam um contorno crítico e politizado. A produção
marxista supera os equívocos das primeiras aproximações, o ethos profissional é auto-
representado pela inserção do assistente social na divisão sócio-técnica do trabalho, como
trabalhador assalariado e cidadão. A formação profissional recebe novos direcionamentos,
passando a contar como um currículo explicitamente orientado para uma formação crítica
e comprometida com as classes subalternas (2007, p. 168).

Esse panorama aponta uma maturidade do Serviço Social diretamente ligada à


hegemonia que a tendência ortodoxa do bloco radical democrata aos poucos foi
configurando no debate interno do Serviço Social naquele momento. É interessante
destacar que, apesar dos avanços dessa tendência já no período em que o Código de Ética
profissional de 1986 foi regulamentado, muitas distorções ainda estavam presentes no
mesmo como reflexo da ainda presente repercussão das demais tendências.

2.3 O campo de intervenção e a questão da “crise de materialização” do projeto


ético-político.

Como vimos no último tópico, houve uma relevante mudança de postura política do
Serviço Social brasileiro quando a categoria, a partir da década de 1970, “numa atitude de
„rebeldia‟ política declara sua organicidade aos interesses e projetos da classe trabalhadora,
afirmando a dimensão política da profissão” (MOTA; AMARAL, 2007, p. 49). Essa nova
atitude, auxiliada pela literatura marxista, “veio a se constituir, ao longo dos anos 80 e 90,
num forte movimento organizativo e político-acadêmico do Serviço Social brasileiro,
configurando o que hoje se concebe como o seu projeto profissional” (MOTA; AMARAL,
2007, p.49).
Nesse tópico trataremos algumas questões que permeiam exatamente esse projeto
profissional (acima referido) a partir da década de 1990 – marcada pelo fato do Serviço
Social ter conquistado maior consolidação no cenário brasileiro. Nossa preocupação
central está em buscar compreender no que essa consolidação da profissão no cenário
brasileiro e do marxismo no cenário interno da categoria pôde contribuir para pensar uma
ação profissional oposta à ação proposta pelo projeto institucional.
94

Para isso, precisamos dizer que os projetos profissionais serão compreendidos,


aqui, como um conjunto de intenções voltadas para o âmbito profissional, resultante de
princípios e valores por um setor específico de sujeitos que compõem determinada
categoria profissional. Eles envolvem flexíveis aspectos de ordem teórica, política,
organizativa e legais para sua concretização (BRAZ, 2007, p. 6).
Os projetos profissionais são heterogêneos dentro de qualquer profissão, mas
apenas um desses projetos se torna hegemônico e, neste caso, buscam-se bases materiais
para que seus princípios sejam concretizados como normas a serem seguidas pelo conjunto
da categoria. Estes projetos também são dinâmicos e, embora signifiquem uma
autoimagem de determinada profissão, por não serem homogêneos, são permeados por
constantes disputas no plano ideológico dentro da mesma categoria profissional. Mas isto
não significa que seus princípios não devem ser respeitados por aqueles que não
compactuam das mesmas ideias. Esta heterogeneidade já se expressava no caso do Serviço
Social desde a década de 1960, quando o Movimento de Reconceituação conseguiu
quebrar a homogeneidade imposta pela perspectiva tradicional de Serviço Social – que,
mesmo com a vitória hegemônica da perspectiva de ruptura, persistiu na profissão até hoje,
porém sob uma superficialidade diferenciada. Segundo Netto:

Os projetos profissionais apresentam a autoimagem de uma profissão, elegem os valores


que a legitimam socialmente, delimitam e priorizam seus objetivos e funções, formulam
os requisitos (teóricos, práticos, e institucionais) para o seu exercício, prescrevem normas
para o comportamento dos profissionais e estabelecem as bases das suas relações com os
usuários de seus serviços, com as outras profissões e com as organizações e instituições
sociais privadas e públicas (2007c, p. 144).

Esses projetos também trazem em si uma concepção de sociedade, seja de maneira


explícita – como é no caso do projeto dos assistentes sociais hoje –, seja de maneira
implícita – como ocorria antes na mesma profissão e ainda está presente na maioria das
profissões. Tratam-se de “projetos que apresentam uma imagem de sociedade a ser
construída, que reclamam valores para justificá-la e que privilegiam certos meios
(materiais e culturais) para concretizá-la” (NETTO, 2007c, p. 142). O autor afirma ainda
que tais projetos caracterizam-se por serem coletivos, socialmente macroscópicos,
necessariamente classistas69 – por possuírem em si uma ineliminável dimensão política,

69
É necessário destacar que, embora sejam projetos de classe, eles não defendem necessariamente um projeto
societário que favoreça a classe que pertence, pelo contrário, a maioria destes projetos tende a favorecer (mesmo que por
abstenção) a classe burguesa.
95

além de serem estruturas eminentemente flexíveis e cambiantes.


Nesse sentido, a partir do debate que viemos travando durante esse capítulo,
podemos dizer que, particularmente na categoria dos assistentes sociais, com as mudanças
ressaltadas por essa dissertação desde a década de 1970 de crítica ao antigo projeto
profissional, passou-se a defender outro projeto societário. Esse projeto societário adotado
e difundido pelos intelectuais mais expressivos da categoria, a partir do período
supracitado, também é estimulado pela visão marxista, que visa à emancipação da classe
trabalhadora, o que, na nossa concepção, apenas pode ser conquistado através de um
processo revolucionário que ponha fim ao modo de produção capitalista. Esse novo projeto
profissional de ruptura com o conservadorismo passou a ser chamado de projeto ético-
político do Serviço Social brasileiro, e foi sintetizado por Braz e Teixeira em quatro
componentes que o materializam no processo sociohistórico da profissão:

a) o primeiro se relaciona com a explicitação de princípios e valores ético-políticos;


b) o segundo se refere à matriz teórico-metodológica em que se ancora;
c) o terceiro emana da crítica radical à ordem social vigente – a da sociedade do capital –
que produz e reproduz miséria ao mesmo tempo em que exibe uma produção monumental
de riquezas;
d) o quarto se manifesta nas lutas e posicionamentos políticos acumulados pela categoria
através de suas formas coletivas de organização política em aliança com os setores mais
progressistas da sociedade brasileira (BRAZ; TEIXEIRA, 2009, p. 190)

Forti comenta a relevância histórica desse projeto ético-político profissional da


seguinte maneira:
Mesmo que não possamos avaliá-lo – Projeto ético-Político – como direção social
majoritária no Serviço Social, é um Projeto que norteia parcela importante de seus
profissionais no campo acadêmico (o que é mais perceptível nas instituições públicas
de ensino) e dá direção sociopolítica para as Entidades representativas da profissão
(2010b, p. 22, grifos nossos).

Esse projeto profissional, antes mesmo de ser referenciado por essa nomenclatura,
já tinha seu movimento estratégico como alvo de reflexão na realidade profissional. De
maneira geral, as reflexões a respeito de seus passos na direção da construção de um
projeto societário vinculado à classe trabalhadora foi pensado, de maneira mais ou menos
consensual, a partir de quatro campos que comporiam sua estrutura fundamental:
O primeiro campo diz respeito à sua dimensão teórica, que trata das produções
teóricas voltadas não só para a categoria como objeto de análise, mas também para
produções competentes que tratem de assuntos gerais capazes de subsidiar os profissionais
na busca de um exercício profissional capaz de honrar os princípios deste projeto ético-
político. Este elemento foi favorecido pela aquisição das produções intelectuais marxistas,
96

efetuadas, principalmente, pela parcela profissional situada nas universidades públicas.


Cabe, neste momento, fazer menção às considerações de Sérgio Lessa, que afirma existir
uma decadência das produções intelectuais marxistas no país sobre a realidade social,
acabando por incentivar a substituição destas produções clássicas por autores do Serviço
Social e, assim, preencher esta carência da conjuntura teórica brasileira. Isto colaborou
para que o Serviço Social saísse “de uma posição de „subalternidade‟ teórica em relação
aos outros ramos das Ciências Humanas [...] inserindo o Serviço Social como produtor de
„teoria de ponta‟ no interior do conjunto das ciências sociais” (LESSA, 2007, p. 11).
Outro elemento apontado por Braz é o que ele chama de dimensão político-
organizativa, que abrange as estruturas das entidades representativas do Serviço Social.
Estas entidades ganharam um peso importante no amadurecimento da categoria, com
significativos avanços, principalmente entre as décadas de 1980 e 1990, fazendo com que o
país seja referência para muitos outros países latino-americanos. Tais transformações
permitiram, na década de 1990, que as entidades, como a Executiva Nacional dos
Estudantes de Serviço Social (ENESSO), a Associação Nacional de Ensino e Pesquisa em
Serviço Social (ABEPSS) e os Conselhos Federais e Estaduais de Serviço Social
(CFESS/CRESS) confluíssem na consolidação da perspectiva de ruptura, tendo estas
instituições uma postura crítica diante do movimento do capital com uma efetiva
articulação política e teórica destas organizações.
O terceiro elemento constitutivo deste projeto ético-político é a dimensão jurídico-
política construída no âmbito dos construtos legais da profissão (tanto as leis estritamente
profissionais quanto a legislação social mais ampla). Esta ruptura engendrada contra o
conservadorismo e o tradicionalismo forçou uma reformulação também das bases ético-
normativas e jurídico-legais profissionais. Sob esta necessidade, a categoria se mobilizou
também nesta preocupação, concretizando o que se chamou de três eixos materializados
pelo projeto ético-político da categoria: o Código de Ética (1993)70, a Regulamentação

70
Vasconcelos (2007) destaca a relevância desse Código de Ética profissional na garantia de uma maior margem de
autonomia do profissional frente à instituição. Ela argumenta que o assistente social, “é um dos profissionais que, ao
contrário dos outros que já encontram nas unidades a maioria de suas atividades predeterminadas e a serem cumpridas
[…], têm a possibilidade de criar e organizar suas ações, invocando os direitos que os usuários possuem assegurados por
lei e a partir do próprio Código de Ética do assistente social”. Cita alguns pontos relevantes do Código de Ética neste
sentido: “direito ao livre acesso à população usuária”; o “direito a integrar comissões interdisciplinares de ética no que se
refere à avaliação da conduta profissional e às decisões quanto às decisões quanto às políticas sociais”; “dever de
programar, administrar, executar e repassar os serviços sociais assegurados institucionalmente”; “dever de denunciar
falhas nos regulamentos, normas e programas da instituição”; “dever de contribuir para a alteração da correlação de
forças institucionais, apoiando as legitimas demandas de interesses da população usuária” (VASCONCELOS, 2007, p.
245).
97

profissional (Lei 8.662/93) e as diretrizes curriculares da ABEPSS. Esta materialidade


concede ao Serviço Social as diretrizes, competências, funções e normas, que direcionam a
formação e o exercício profissional e expressam um conjunto de expectativas sobre a
profissão, já renovada.
Finalmente, um quarto campo de importância imprescindível deve ser levado em
conta na composição do projeto ético-político profissional: a intervenção profissional –
exatamente ao campo que essa dissertação se propôs a pensar. Esse quarto elemento possui
relevância tamanha que, se recorrermos ao debate que travamos a respeito do início das
reflexões por parte do Movimento de Reconceituação, veremos que o debate que
desencadeou toda essa intenção de ruptura com o conservadorismo decorreu exatamente da
necessidade de repensar a intervenção profissional.
Analisar como vem procedendo a materialização desse projeto ético-político
profissional, na atual conjuntura, é um desafio extremamente complexo, e talvez
impossível de ser analisado em apenas uma dissertação (menos ainda se esse não for o
objetivo da dissertação como é o caso). Por isso, devemos alertar que minha intenção não é
tirar uma conclusão rígida quanto a isso. Pretendemos apenas situar duas relevantes teses
de doutorado – publicadas em livros –, que se propuseram, a partir de pesquisas empíricas
com assistentes sociais, pensar a questão da materialização desse projeto profissional nas
últimas décadas. Isso, apesar de não nos permitir generalizar essas considerações para todo
o universo profissional, nos auxiliará em termos de indicar uma provável tendência da
realidade.
Baseada numa série de entrevistas concretizadas em sua tese de doutorado, Ana
Maria Vasconcelos (2007) constata uma baixa proporção de assistentes sociais que
participam dos órgãos da categoria (VASCONCELOS, 2007, p. 322), assim como aqueles
que realizam cursos de especialização, aperfeiçoamento, pós-graduação ou outros
(VASCONCELOS, 2007, p. 338). A autora também destaca o baixo índice de leitura entre
os profissionais entrevistados (VASCONCELOS, 2007, p. 342) e o desprezo pela teoria
(VASCONCELOS, 2007, p. 349).71 Essa precária relação com a teoria explica a
constatação de que apenas 29,7% dos entrevistados conseguiram fazer críticas consistentes
à conjuntura pela qual o país estava atravessando (VASCONCELOS, 2007, p. 357), o fato
de que a “maioria dos assistentes sociais, ainda que tenha, em inúmeros momentos da

71
Para 39 % dos assistentes sociais, a teoria não tem lugar na prática profissional.
98

entrevista, apontado dificuldades no seu trabalho profissional, não está questionando este
trabalho” (VASCONCELOS, 2007, p. 361).
Essa fragilidade em termos de relacionamento com a teoria também se expressa no
baixo conhecimento sobre leis – que poderiam instrumentalizar os assistentes sociais para a
materialização de uma prática profissional antagônica às finalidades do projeto
institucional –, tais quais a Constituição de 1988, a Lei de Regulamentação da profissão, a
Lei Orgânica do Município, a Lei Orgânica da Saúde, da Lei Orgânica da Assistência
Social; de uma discussão mais aprofundada sobre Políticas Sociais e, especificamente,
Política de Saúde. Isso, segundo a autora, aponta para o fato de que esses assistentes
sociais contam com “pouco ou quase nenhum recurso para pensar/encaminhar alternativas
ao trabalho profissional que realizam” (VASCONCELOS, 2007, p. 404).
Isso tudo, no pensamento da autora, contribui para o reforço da tradição
subalternizada da profissão, verificado por Vasconcelos, inclusive na frequência de
profissionais que buscam sustentações de suas práticas em valores e crenças pessoais
(VASCONCELOS, 2007, p. 426). Isso se relaciona, de maneira intrínseca, com o
retrocesso analítico recorrente entre aqueles que percebem as expressões da “questão
social” como algo acidental e espontâneo, em detrimento de uma visão mais crítica, e
consequentemente, os segmentos populacionais usuários da instituição como
“desadaptados” (VASCONCELOS, 2007, p. 445).
Além disso, a autora constata uma fragilidade em termos estratégicos, quando, em
contexto de alta demanda, os profissionais voltam-se, constantemente, para demandas
fragmentadas, periféricas, individuais e espontâneas, muitas vezes de caráter psicológico,
burocráticas e administrativas, além de darem privilégio, quase que absoluto, a demandas
internas da unidade, ao passo que desconhecem as demandas externas.
Vasconcelos também destaca a ausência de acesso e informações sobre domínios
dos instrumentos necessários ao trabalho social; de um mínimo de coordenação do
trabalho; de chefias de Serviço Social na unidade; e da articulação com assistentes sociais
de outras unidades e planos sistemáticos de trabalho (VASCONCELOS, 2007, p. 434).
Também predomina, entre os entrevistados, uma ausência de controle sobre o que fazem,
contribuindo, mesmo que involuntariamente, para ocultar a realidade (VASCONCELOS,
2007, p. 445).
Esses assistentes sociais também “não realizam estudos sobre as demandas dos
usuários nem as institucionais, realizando ações a partir de demandas espontâneas ou
99

selecionadas e dirigidas ao Serviço Social” (VASCONCELOS, 2007b, p. 248), assim como


não consideram a importância da ocupação nos espaços de conselhos e de outros
mecanismos de controle social por parte de profissionais e usuários como necessidade
(VASCONCELOS, 2007b, p. 252). No que toca ao potencial protagonista dos usuários,
esses assistentes sociais também “não priorizam a realização de reuniões com usuários”
(VASCONCELOS, 2007b, p. 266).
A autora conclui que

As ações de saúde realizadas nesta direção contribuem para imobilizar/impedir a


reivindicação e/ou luta pelos direitos, ao mesmo tempo que desarmam as possíveis reações
geradas pela insatisfação dos usuários, que, assim, não vão 'dar problema para as unidades
de saúde' , não vão enfrentar o poder institucional, e quando o fazem, de forma
pontual/individual, tornam-se cada vez mais fáceis de serem controlados, contidos pelos
próprios serviços. Em nome de 'relações democráticas e horizontais', acaba-se por
contribuir para o esvaziamento democrático (VASCONCELOS, 2007b, p. 247).

Com base neste estudo, podemos perceber que no universo particular analisado pela
autora, pouquíssimo se conseguiu avançar no que tange à materialização do projeto ético-
político profissional. Neste sentido a autora destaca a necessidade de

Apropriação de uma perspectiva teórico-metodológica que, […] possibilite a reconstrução


permanente do movimento da realidade objeto da ação profissional, (…) gerando
condições para um exercício profissional consciente, crítico, criativo e politizante, que só
pode ser empreendido na relação de unidade entre teoria e prática (VASCONCELOS,
2007b, p. 253, grifos do autor).

Mesmo em realidade consideravelmente diferente, Forti identifica uma série de


elementos presentes na rotina institucional de assistentes sociais entrevistados por ela, que
conduzem a conclusões bastante parecidas acerca da materialização desse projeto ético-
político no âmbito da intervenção profissional.
Analisando a atuação de assistentes sociais nos Hospitais de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico no Estado do Rio de Janeiro, Valéria Forti destaca a “falta de recursos
mínimos necessários para a realização das atividades profissionais, tais como: material de
escritório, telefone, viatura, pessoal de segurança capacitado, material de higiene,
tratamento clínico e medicamentoso” (2010, p. 187). Essa escassez de recursos certamente
reduz a margem de autonomia do profissional e, consequentemente, dificulta as
possibilidades de materialização de uma prática orientada pelo marxismo, na contramão do
projeto institucional conservador. Além disso, a autora aponta que os profissionais foram
inseridos na instituição sem que houvesse o mínimo de preparo técnico para intervir, tanto
em nível de conhecimento da instituição quanto em termos de “recepção, treinamento,
100

acompanhamento, ou supervisão” (FORTI, 2010, p. 165).72


Em termos de formação, a autora destaca uma grave dessintonia do discurso da
maioria dos assistentes sociais entrevistados em relação à produção acadêmica marxista
supostamente hegemônica no Serviço Social. Isso se expressa no fato de que, entre os nove
assistentes sociais entrevistados, apenas dois indicaram o marxismo como corrente teórico
metodológica orientadora de sua prática (FORTI, 2010, p. 158).
Disso decorre uma série de debilidades analíticas por parte desses profissionais. A
mais importante talvez esteja na incapacidade desses profissionais de elaborar uma crítica
concreta ao cerne da questão, ou seja: ao modo de produção capitalista. Segundo Forti, “o
profissional explica seu objetivo de promover e reintegrar o paciente da instituição,
assumindo finalidades psicossociais e parâmetros funcionais, sem questionamentos da
ordem vigente” (FORTI, 2010, p. 205).
Essa debilidade em nível macro-social passa a contaminar algumas outras
concepções desses profissionais. Na leitura da autora, os serviços prestados pelo Serviço
Social, correspondem a “ações limitadas que não captam criticamente a realidade com suas
determinações e suas mediações, e que são produtos e produzem práticas correspondentes”
(FORTI, 2010, p. 197). Em consequência disso, esses profissionais demonstram um efetivo
desconhecimento de seu objeto de trabalho e não percebem o papel de controle que a
profissão exerce no sistema penitenciário (FORTI, 2010, p. 182), numa profunda limitação
de seu foco de análise na unidade onde trabalha e na sua relação com a direção da unidade,
perdendo de vista, com isso, a análise da totalidade (FORTI, 2010, p. 188). A deficiência
em termos de conhecimento, segundo a autora, prossegue em relação a leis passíveis de
serem utilizadas como forma de resguardar sua autonomia (como fora debatido
anteriormente), tais como a Lei de Regulamentação da profissão (FORTI, 2010, p. 211) e o
Código de Ética profissional (FORTI, 2010, p. 220).
A precariedade analítica por parte desses profissionais pode ser alimentada em
partes pela “ausência de devida orientação no momento da lotação profissional na
instituição e a falta de reuniões sistemáticas de estudo que se discutam as questões
específicas da profissão” (FORTI, 2010, p. 171). O resultado disso tudo é a “dificuldade na

72
Ainda que seja difícil mensurar, podemos aceitar que, na verdade, tanto a escassez de instrumentais de atuação
profissional quanto o despreparo técnico específico em relação à instituição podem, muitas vezes, comprometer até
mesmo a efetividade do projeto reformista conservador da própria instituição, impedindo a legitimação por parte da
instituição em relação à classe trabalhadora (seja ela usuária ou não dos serviços prestados) e a mudança de
comportamento dos sujeitos que se pretende.
101

formulação de respostas, de apreensão e definição dos mesmos (objeto e objetivo do


Serviço Social na área investigada), especialmente do objeto de estudo/intervenção”
(FORTI, 2010, p. 171); a inexistência de uma discussão acerca de um programa
institucional que contenha finalidade e objetivos específicos da equipe de Serviço Social (I
FORTI, 2010, p. 178). O que, segundo Forti, “impossibilita o acompanhamento sistemático
do trabalho profissional por meio de avaliações permanentes” (FORTI, 2010, p. 203).
Neste sentido, para a autora “trata-se de uma profissão que evidentemente teve
significativos avanços, mas que ainda guarda ou „retoma‟, como grande parte das outras
áreas profissionais, elementos originais e conservadores” (FORTI, 2010, p. 230). Neste
sentido, chega a uma conclusão muito próxima em relação a Vasconcelos:

Não obstante a maior parte dos profissionais afirmar que põe em prática os Princípios do
Código no seu cotidiano profissional, não houve discussão abalizada sobre o Projeto
Ético-Político e, por conseguinte, sobre o significado histórico do atual Código e seus
princípios fundamentais. Esse fato, consequentemente, gera insuficiência da efetivação
desse documento como instrumento norteador da ação (FORTI, 2010, p. 241).

Neste sentido, podemos concluir que tudo indica que a suposta hegemonia marxista
no Serviço Social pouco vem contribuindo na perspectiva de ressignificação interventiva
do assistente social, ou seja, na tentativa “de construção de uma nova identidade
profissional” (SILVA, 2009, p. 96), onde

O vínculo político é deslocado da classe dominante para uma prática vinculada aos
interesses das classes dominadas, o que significa uma proposta de ação que considere as
relações de exploração e de poder, no sentido da transformação social (FORTI, 2010, p.
77).

No entanto, apesar de se tratarem de pesquisas empíricas recentes (Vasconcelos na


década de 1990 e Forti na década de 2000), essa problemática já era sensivelmente
percebida há mais tempo. Leila Lima Santos, grande expoente marxista do Movimento de
Reconceituação na América Latina, ainda no início da década de 1980, já havia sinalizado
esse impasse em relação à materialização da herança marxista no Serviço Social nos países
onde essa perspectiva atingiu. Para ela, apesar da adesão de frações relevantes dos
assistentes sociais, a dificuldade circunstancial volta-se para a mediação dessas convicções
ético-políticas no espaço institucional a partir da margem de autonomia resguardada ao
profissional.

Muchos profissionales desvinculados de las actividades acadêmicas fueran tocados por


él. Pero sin sombra de duda, fue um movimiento que no consiguió transponer los
limites de uma elite más intelectualizada. De ahí que tuviera grandes limitaciones em el
campo práctico (SANTOS, 1975, p. 79, grifos nossos).
102

Nessa medida,

[...] a Reconceituação não excedeu os limites de batalha „puramente ideológica‟,


restringindo-se a opor à ideologia assistencialista outra concepção ideológica que,
segundo seu critério, devia fundamentar uma prática profissional radicalmente diferente.
Ou seja, a Reconceituação reduz-se a um movimento de negação ideológica do
Serviço Social, sem maiores conseqüências práticas (SANTOS, 1983, p. 189, grifos
nossos).

Isso, na opinião da autora, se configurou num fracasso, na medida em que, para


Santos, não se tratava de elaborar alternativas para uma “vanguarda minoritária de
assistentes sociais”, mas “para o movimento em seu conjunto” (SANTOS, 1983, p. 172).
Esse fracasso específico do movimento da reconceituação que, com base nos
estudos de campo podemos afirmar que, de certa forma, se estende até os dias atuais,
parece voltar à tona no âmbito da produção literária da categoria nos últimos anos. Nesse
sentido, uma série de autores marxistas, de peso no debate nacional, vem, durante as
décadas que procederam a essas afirmativas de Santos, reconhecendo esse limite.
Observemos alguns momentos em que esse reconhecimento se expressa:

Os maiores obstáculos à constituição desse projeto encontram-se na prática concreta de


intervenção nos espaços concretos de exercício da profissão (LOPES, 1998, p. 104).

No nível da dimensão interventiva da profissão, o rebatimento da perspectiva de ruptura


parece ser mais limitado (SILVA, 2009, p. 102).

O Serviço Social cresceu na busca de uma fundamentação e consolidação teórica, poucas


mudanças conseguem apresentar na intervenção. [...] E a intervenção é a prioridade”
(BRAVO; MATTOS apud MOTA et al., p. 204).

No entanto, parece-nos que o reconhecimento desse verdadeiro “nó”, na trajetória


histórica do desenvolvimento do marxismo dentro do Serviço Social, não se limita apenas
a forma brasileira com que essa vertente radical democrata do movimento da
reconceituação se desenvolveu no Brasil, e se estende também aos demais países latino-
americanos por onde o marxismo busca seu espaço. Carlos Montaño, por exemplo,
analisando os impasses da reconceituação, destaca “sua incapacidade, até agora, de
penetrar solidamente nas dimensões da prática profissional de campo” (2008, p. 143).
Molina, pensando o que chamou de “trabajo social crítico”, afirma: “hay um gran limite
em la implementacion de uma metodologia” (MOLINA, 2008, p. 155). E, finalmente,
Acosta afirma que “existe, também, entre os protagonistas, a percepção de que as
mudanças nos currículos e a ampliação do debate teórico não se refletiram na prática
realizada nas instituições” (ACOSTA, 2008, p. 20). O que o leva a concluir que “a
103

„ruptura‟ com o Seviço Social tradicional foi, na verdade, uma busca da ruptura”
(ACOSTA, 2008, p. 20). Assim, “se amadureceu, no campo profissional, um vetor de
ruptura com o conservadorismo, ele ainda não consolidou uma „nova legitimidade‟ para o
Serviço Social junto às classes subalternas” (NETTO, 1996, p. 108).
Algumas análises levantadas por autores contemporâneos remanescentes desse
projeto ético-político profissional debatem essa “crise de materialidade” no campo da
intervenção profissional com muita preocupação e lucidez. Sobre essas análises, podemos
concluir que, de maneira geral, elas atribuem esse impasse ao problema da formação
profissional (tanto em nível de graduação quanto de formação continuada). No entanto, é
importante não deixarmos de reconhecer que tal situação também pode estar ligada à
insuficiência do avanço literário da categoria em termos de “proposta de ação”, ou seja, em
termos de “formulações que expressam indicações referentes ao que fazer profissional”
(SILVA, 2009, p. 172-173).73 Silva, também partícipe ativa e estudiosa desse projeto
profissional, declara:

Essa crise [de materialização dos preceitos reconceituadores no cotidiano de trabalho


do assistente social] advém de um impasse que se configura nas dificuldades da
reconceituação em delimitar as alternativas mais adequadas e pertinentes para a
ação profissional, verificando-se já não ser possível conter o processo nos limites de
procedimentos teórico críticos, nem tampouco ser possível o exercício concreto de um
Serviço Social reconceituado nos termos propostos. Assim, a reconceituação atinge uma
etapa em que seu desenvolvimento e implicações assumem um elevado nível de
complexidade, exigindo uma redefinição de sua proposta (CARVALHO, 1986, p. 15-
16, grifos nossos).

Os efeitos dessa “crise de materialização” do projeto ético-político profissional no


campo específico da intervenção profissional devem ser pensados em sua profunda
articulação com o período neoliberal, cujas consequências passam a atingir o Brasil,
principalmente a partir da década de 1990 – trazendo novos desafios gerais para a classe
trabalhadora no cenário da luta de classes. Netto afirma que a década de 1980 significou
para o Serviço Social brasileiro a maioridade de seu domínio da elaboração teórica. Essa
maioridade está ligada ao fato da tradição marxista se colocar no centro da agenda
intelectual da profissão, à valorização da elaboração teórica e ao aprofundamento de
interlocução com seus protagonistas com outras áreas de conhecimento. No entanto, com
a virada da década – onde destaca a queda do “socialismo real”, a ofensiva neoliberal,

73
Essa questão será destacada por alguns profissionais entrevistados nesse estudo e discutida com um pouco mais de
profundidade mais à frente (principalmente no tópico 3.2).
104

reconversão política de muitos intelectuais antes de esquerda e as mudanças no processo


político brasileiro –, o cenário tornou-se mais adverso para a manutenção desse perfil de
projeto profissional.
Em consequência desse novo cenário sociopolítico, o autor identifica também o
surgimento de novas competências impostas pela instituição a serem executadas pelo
Serviço Social. Essas “novas competências remetem, direta, mas não exclusivamente, à
pesquisa, à produção de conhecimentos, e às alternativas de sua instrumentalização – e, no
caso do Serviço Social, isso quer dizer conhecimento sobre a realidade social” (NETTO,
1996, p. 109). O autor também afirma que nessa conjuntura,

As novas demandas [...] são enfrentadas pelos profissionais em condições frequentemente


desfavoráveis: inseguros pelas fragilidades da sua formação [...] desmotivados pelas
baixas remunerações, pressionados pela concorrência de outros profissionais [...],
condicionados ainda por um lastro conservador em relação aos seus papeis e atribuições
(NETTO, 1996, p. 111).

Essas novas demandas terão uma importância preponderante para Netto,


principalmente por significarem também o palco onde esse projeto ético-político – a partir
da segunda metade da década de 1990 – travará duas competições: uma de ordem interna e
outra de ordem externa. Essa competição de ordem externa refere-se à possível convocação
– por parte da instituição – de profissionais de outras áreas para exercerem funções
anteriormente executadas pelo assistente social. Vejamos:

Em áreas de intervenção em que tradicionalmente o Serviço Social aparecia legitimado


para os representantes do capital e do Estado, surgem outros profissionais que disputam
papéis e tarefas com os assistentes sociais, pondo em xeque a legitimidade anteriormente
alcançada (NETTO, 1996, p. 108-109).

Quanto à disputa interna, referimo-nos à tendência apontada por Netto, de que se


desencadeiem disputas da perspectiva marxista com outras correntes de pensamento
conservador, capazes de interferir na suposta hegemonia conquistada por esse projeto
profissional – já que apesar das mudanças ocorridas em termos de hegemonia, essas
correntes ainda existem no interior da categoria. A esse respeito, ele destaca:

A década de oitenta consolidou, no plano ideo-politico, a ruptura com o histórico


conservadorismo do Serviço Social. Entendamo-nos: essa ruptura não significa que o
conservadorismo [...] foi superado no interior da categoria profissional (NETTO, 1996, p.
111).

Em consequência disso, o autor destaca que


O conservadorismo nos meios profissionais tem raízes profundas e se engana quem o
supuser residual. A legitimidade alcançada para a diversidade de posições está longe de
equivaler a emergência de uma maioria político-profissional radicalmente democrática e
105

progressista que, para ser construída, demanda trabalho de largo prazo e conjuntura sócio-
histórica favorável (NETTO, 1996, p. 112).

O autor destaca que essas duas ameaças colocam maiores desafios à manutenção e
aprofundamento desse projeto ético-político, exigindo de seus defensores um
imprescindível esforço no sentido de um aprimoramento profissional, que seja capaz de dar
respostas às demandas de maneira mais competente e eficiente (sem deixar de ser crítica) –
tanto em relação a outras categorias quanto em relação às demais correntes conservadoras
internas do Serviço Social.

As exigências imediatas do mercado de trabalho parece-me, vão referenciar a curto prazo


o debate profissional por três razões principais: 1) as prioridades dos empregadores [...] de
assistentes sociais tenderão, em função das transformações societárias em curso, a
enfatizar ainda mais as resultantes prático-operativas do trabalho dos profissionais; 2) aos
olhos dos assistentes sociais, [...] as respostas a elas se apresentam como via preferencial
para solucionar os impasses da legitimação social da profissão; e 3) os próprios avanços
profissionais dos anos oitenta impõem o enfrentamento das “questões da prática”, senão
ao preço de se esgotarem. [...] O confronto imediato ao campo profissional haverá de
condicionar os desenvolvimentos do Serviço Social e a médio prazo o que vier a
suceder na segunda metade desta década, se realmente rebater na cultura e nas práticas
profissionais dos assistentes sociais, afetando sua inserção socioocupacional, assentará
balizas para o evolver das linhas-de-força da profissão nos próximos dez ou quinze anos
(NETTO, 1996, p. 121, grifos nossos).

Essas considerações de Netto nos expõe que essa distância entre o campo de
intervenção e o campo de formação profissional – ao deixar de discutir propostas de ação –
pode estar contribuindo não apenas para dificultar ações mais criativas diante da
realidade que vivem esses assistentes sociais, mas também para fragilizar as conquistas
que o projeto ético-político profissional materializou nos outros campos que
destacamos anteriormente.
Para esclarecermos essa hipótese, podemos nos remeter a uma das polêmicas
internas na categoria nos últimos anos: a hegemonia desse projeto ético-político
profissional está ameaçada? Adiantamos que responder essa questão não será um dos
objetivos dessa dissertação. No entanto, resta-nos levantar algumas indicações a respeito
das ofensivas que as demais correntes internas imprimem ao projeto ético-político
profissional. Dentre as questões discutidas a respeito dos embates entre as distintas
correntes dentro do Serviço Social, uma deve ser evidenciada nessa dissertação, pois diz
respeito exatamente à importância do campo da intervenção profissional e sua relação com
a hegemonia desse projeto ético-político profissional. Trata-se do reconhecimento, por uma
parcela de autores relevantes na construção e reprodução do projeto ético-político
profissional, de que, a partir exatamente do campo onde a perspectiva marxista no Serviço
106

Social se mostrou mais frágil em termos de materialização de seu projeto (o campo da


intervenção profissional), as correntes conservadoras vêm investindo na tentativa de
disputar essa hegemonia na categoria. Vejamos algumas passagens que tratam dessa
questão:

A crítica, todavia, não se apresenta como antimarxista; antes, ela se realiza sob duas
formas principais, aliás complementares: 1) uma crítica à ortodoxia (que, para os críticos
é sinônimo de dogmatismo) dos marxistas brasileiros no Serviço Social; 2) uma crítica às
lacunas (e não aos equívocos) existentes nos seus trabalhos (NETTO, 1996, p. 114).

A crítica à tendência da intenção de ruptura não se apresenta como antimarxista, mas sim
afirmando que o marxismo não apresenta respostas para o conjunto dos desafios postos à
profissão pela contemporaneidade (BRAVO; MATTOS, 2007, p. 211).

Há uma crítica explicita ou velada, de cunho conservador, que afirma que a vertente
chamada por Netto (1991) de intenção de ruptura não forneceu os instrumentais
operativos capazes de colocar a “teoria em ação” (GUERRA; BRAGA, 2011, p. 2).

A partir dessas considerações, sentimo-nos à vontade para concordar com alguns


autores que colocam a questão da emergência por parte da academia em elaborar/divulgar
estudos que possam contribuir com propostas de ação orientadas por esse projeto ético-
político e voltadas para o campo da intervenção profissional. Vejamos algumas das
referências que alertam para essa necessidade estratégica de investimento de pesquisas
voltadas para o campo da intervenção profissional:

A intervenção é uma prioridade pois poucas alteração trouxeram os ventos da vertente de


intenção de ruptura para o cotidiano dos assistentes sociais na intervenção
socioprofissional (MATOS, 2003, p. 89).

O desafio maior para a efetivação desse projeto na atualidade é torná-lo um guia efetivo
para o exercício profissional […] o que exige um radical esforço de integrar o dever ser
com sua implementação prática, sob o risco de se deslizar para uma proposta ideal,
abstraída da realidade histórica (IAMAMOTO, 2007c, p. 186).

O maior desafio, a necessidade de avanço na construção teórico-metodológica do projeto


de prática profissional que se vem desenvolvendo a partir do final da década de 70 e
durante a década de 80 (SILVA, 2009, p. 70).

É uma tarefa urgente que se coloca como desafio para os trabalhadores sociais, sob
ameaça de retrocesso (CARVALHO, 1986, p. 16)

Temos que construir estratégias que visem dar certa homogeneidade aos valores e
posturas profissionais por meio da construção de projetos que nos indique: o que fazer?;
com que meios e estratégias; quando: para onde e com quem avançar? (mas também, se
necessário, quando recuar?), e quais medidas podem ser desenvolvidas no interior da
profissão visando uma atuação mais crítica, qualificada e vinculada aos movimentos
sociais em busca de alianças na construção das condições capazes de instituir uma cultura
democrática e de respeito aos direitos historicamente conquistados pelas classes excluídas
do acesso à riqueza socialmente produzida (GUERRA, 2007b, p. 9-10).

O Serviço Social, ao assumir o marxismo como referencial analítico, ressente-se da falta


de um trabalho teórico a partir das categorias básicas, no sentido de construir mediações,
na relação abstrato/concreto (SILVA, 2009, p. 248)

A questão central a enfrentar no debate e na analise sobre o processo de construção de um


107

projeto alternativo de Serviço Social […] é detectar, para além do possível aparente, as
condições objetivas e subjetivas do atual momento […] em relação ao processo global de
construção de uma sociedade nova, também através do exercício de sua prática
concreta (LOPES, 1998, p. 125-126, grifos nossos).

Os elementos expostos nesse tópico nos levam a concluir que refletir em torno da
materialização desse projeto ético-político em termos de intervenção profissional é
uma tarefa urgente que se coloca como desafio para os assistentes sociais, sob ameaça
de retrocesso em relação às nossas conquistas históricas. Esse desafio de reflexão não
diz respeito estritamente aos “teóricos” (como Lessa se referiu ao setor da categoria que
atua na academia), mas também aos assistentes sociais que, em atuação, também busquem
produzir conhecimento para o meio profissional.
Trata-se obviamente de se pensar uma ação profissional que não retroaja
teoricamente, abstraindo-se da existência do caráter relativo da autonomia profissional – e
todas suas consequências –, ou seja, essa conjuntura traz a requisição de refletir em torno
de uma intervenção profissional “consoante os limites e possibilidades de um fazer
profissional que, embora denso de conteúdo político, distingue-se da arena da militância
política” (IAMAMOTO, 2008, p. 328).
Nesse sentido, buscaremos, no último tópico desse capítulo 2, encontrar elementos
disponíveis no debate teórico compatíveis com o projeto ético-político profissional a
respeito das estratégias de atuação profissional. Esse debate servirá de base para que
possamos, no capítulo 3, adentrar com maior consistência na realidade profissional vivida
pelos assistentes sociais e, assim, captar dilemas gerais e possibilidades estratégias
plausivelmente coerentes com o projeto ético-político profissional.

2.4 Duas concepções acerca da dimensão assistencial e pedagógica da prática


profissional.
O corpo quer a alma, entende?
Essa é a terra-de-ninguém.
Sei que devo resistir, eu quero a espada em minhas mãos”

Legião Urbana

Como havíamos discutido no tópico 1.3 dessa dissertação, a instituição pressiona o


Serviço Social para que desempenhe uma atuação basicamente voltada para uma
108

intervenção junto ao público usuário. Isso significa sem interferência na estrutura decisória
da instituição. Vale lembrar que essa relação entre ambos já possui um projeto de fundo
político muito particular, que é independente da inserção do assistente social na instituição.
Nessa relação, a instituição tenta fazer com que os serviços conquistados pela classe
trabalhadora sejam viabilizados por meio da função socioassistencial do assistente social.
Porém, esse projeto institucional pretende que, nesse mesmo processo, a função
pedagógica conduza os (inevitáveis) impactos políticos dessa relação de acordo com sua
pretensão reiteradora de fortalecer a hegemonia capitalista.
Ora, se o projeto ético-político profissional dos assistentes sociais brasileiros é
orientado fundamentalmente pela corrente marxista; se essa corrente compreende a
necessidade da classe trabalhadora se unir pela derrubada da hegemonia capitalista; e se
esses usuários são membros da classe trabalhadora, esse projeto ético-político profissional
precisa apresentar uma contraproposta prática mínima ao projeto institucional.
A base de legitimidade desse projeto operativo de intervenção profissional está no
reconhecimento de uma margem de identidade, que perpassa a realidade dos diversos
assistentes sociais brasileiros. 74 A ignorância em relação a tais “elementos gerais” pode
levar a literatura a ausentar-se de debates propositivos em relação à prática profissional e,
consequentemente, a um abandono, por parte dos assistentes sociais, da literatura
profissional, alimentando a distância entre ambos. Entendemos que da mesma maneira que
um bom professor não deve ensinar alguém a nadar simplesmente jogando-o na piscina, na
expectativa que “aprenda na prática”, também não podemos colaborar para que a literatura
abandone o assistente social ao “empirismo”.
Nesse sentido, entendemos que a construção de um projeto de intervenção
profissional efetivamente orientado pela perspectiva marxista, deve mergulhar nessa tensa
relação entre generalidades e especificidades profundamente sintonizado tanto com as

74
Trata-se dos elementos mais gerais que buscamos abordar com maior ênfase nos capítulos 1 e 2, tais como a “questão
social” como objeto da intervenção profissional, a essência política do projeto institucional, as dimensões (pedagógica e
assistencial) da intervenção profissional, a condição de trabalhador, a contradição do assalariamento, o caráter relativo da
autonomia profissional etc. O elemento “geral” contido na realidade nos ensina que, quanto mais recortarmos os sujeitos
analisados, mais elementos gerais tenderemos a encontrar e menos elementos específicos tenderemos a encontrar. Os
elementos gerais trazem à pesquisa a vantagem de caber numa quantidade maior de realidades. Por outro lado, quanto
menor o universo pesquisado (e menos elementos gerais), maior a proximidade dos elementos ressaltados que perpassam
o cotidiano dos sujeitos contemplados em relação ao estudo. Por isso, gostaríamos de reafirmar que, ao ressaltarmos a
prática dos assistentes sociais, desde o capítulo 1, estamos tratando basicamente dos elementos gerais que perpassam a
ação dos profissionais vinculados ao Estado – ainda que reconheçamos que grande parte das considerações extrapole esse
âmbito de atuação, sendo assim passíveis de identificação por assistentes sociais contratados por empresas e ONGs por
exemplo.
109

relações específicas de sua inserção institucional quanto com as proposições literárias


gerais pertinentes ao debate marxista no Serviço Social. Essa afirmação nos coloca a
necessidade de buscar, antes de iniciar a análise das entrevistas, alguns elementos centrais
na literatura profissional que esbocem um consenso interventivo mínimo, de maneira a
respeitar não apenas o caráter variável da autonomia profissional, mas também as demais
especificidades institucionais.
Também devemos destacar que um projeto mínimo de intervenção profissional não
pode trazer em si uma postura mecanicista, no sentido de ser rigidamente preestabelecido,
com a finalidade de ser implementado em qualquer realidade profissional – como um mero
manual etapista. Isso porque cada realidade institucional possui generalidades, mas
também possui especificidades – pois, além do projeto institucional se expressar de
maneira significativamente diferente em cada especificidade institucional, tornando as
instituições impossíveis de serem igualadas, se comparadas à realidade de outros
assistentes sociais, a autonomia de cada profissional também é variante. Ou seja, devemos
considerar que, além de outros múltiplos determinantes inerentes à realidade profissional, o
projeto institucional, as demandas do perfil dos usuários e a autonomia profissional se
apresentarão de maneiras particulares a cada profissional, requisitando uma interpretação –
recheada de senso crítico – a respeito das indicações postas pelo debate científico acerca
das propostas interventivas mais gerais indicadas pelo debate científico da categoria.
Assim, exige-se de cada assistente social a capacidade de recolher elementos gerais a
respeito do projeto ético-político postos pela literatura, para pensá-los em sua
particularidade profissional.
Certamente, esse projeto não poderá retroceder ao acúmulo construído até aqui no
sentido de subestimar suas limitações ou suas possibilidades frente aos embates com o
projeto institucional. Tampouco, deve retroceder ainda mais ao negar a relação antagônica
entre o projeto institucional e os interesses emancipatórios que a perspectiva marxista
defende, ainda que as alianças e negociações conciliatórias entre ambos os projetos
pareçam cativantes. Nesse sentido, queremos apontar que, se esse projeto profissional é
mesmo orientado pelo marxismo e antagônico ao projeto institucional, as conquistas, ainda
que parciais e significativamente inferiores em relação às derrotas, devem ser cortejadas e
os consensos – em relação ao projeto institucional – evitados.
Feitas essas considerações, esse tópico se voltará exatamente para a busca de
alguns elementos gerais indicados pela herança marxista no debate do Serviço Social
110

latino-americano a respeito da intervenção profissional. Para tanto, priorizaremos a relação


entre os assistentes sociais e os usuários, dando ênfase à função pedagógica e à função
assistencial dos profissionais. O percurso que o leitor acompanhará busca, a partir de um
breve resgate de fundamento a respeito dessas duas funções, eixos de ação básicos para um
projeto profissional comprometido com as premissas propostas pelo projeto ético-político
profissional, para que possamos contrastá-lo ao projeto institucional. Assim, poderemos
demarcar com maior clareza suas diferenças antes de adentrar no capítulo 3.
Muito se falou até o momento do Projeto Institucional, que conduz serviços com a
finalidade de que, ao amenizar a dimensão objetiva da “questão social”, se promova, nesse
mesmo processo, a despolitização da dimensão subjetiva da “questão social”, ou seja: a
aceitação passiva do status quo. Também citamos, e estamos nos propondo a aprofundar, o
projeto ético-político profissional, que, mesmo cientes de seus limites, se propõe a trazer
em si o germe da contestação da ordem, em defesa de uma concepção de liberdade que não
se limita às fronteiras da lógica liberal, pois pressupõe a emancipação humana.
Entretanto, vale destacar que, para esboçar alguns dos principais eixos interventivos
básicos que permitam a construção de uma mediação entre projeto ético-político
profissional e sua materialização, há de se considerar outro conjunto de intenções que
perpassará significativamente a particularidade dessa disputa: as demandas dos usuários.
Trata-se do conjunto de aspirações que cercam o usuário do Serviço Social na instituição,
ora de maneira explícita, ora ocultando-se na forma de “demandas reprimidas”. Essas
demandas costumam ser dispersas, caóticas, espontâneas, imediatistas e individualistas.
Esse conjunto de características faz com que essas demandas tomem formas
significativamente heterogêneas de usuário para usuário dentro da mesma instituição e,
principalmente, de instituição para instituição. No entanto, devemos destacar que, apesar
das demandas de cada usuário serem singulares e tenderem a grandes incompatibilidades
em relação ao projeto de outros usuários, na medida em que possuem o mesmo
determinante central (a estrutura capitalista), poderão se conformar em torno de questões
centrais gerais, constituindo um projeto comum entre os usuários. Nesse sentido, a
possibilidade de construção de um projeto contemplador dos interesses gerais dos usuários,
a partir dessas demandas, costuma existir apenas no plano da possibilidade. Por isso, essas
demandas dos usuários tendem a não se evidenciar de maneira politizada.
Porém, na medida em que “o político pode tecer e penetrar a vida cotidiana”
(PALMA, 1993, p. 105), as demandas dos usuários perpassam, essencialmente, a disputa
111

entre o projeto profissional e o projeto institucional. Podemos dizer, inclusive, que os


impactos causados pela intervenção dos assistentes sociais em nível mais amplo do projeto
desses usuários podem nos oferecer um parâmetro decisivo sobre o resultado da disputa
antagônica entre projeto profissional e projeto institucional.
Diego Palma assinala que

[...] nas práticas populares há uma dinâmica para a mudança social; em cada demanda ou
pressão há um questionamento (às vezes embrionário) da „ordem‟ estrutural que gera e se
expressa nesta situação particular. Mas todos sabemos, por experiência, que essas
demandas e pressões também contêm um potencial de conservação [...]. As duas
dinâmicas mencionadas estão presentes na organização popular (1993, p. 106).

Essas duas polaridades (da “mudança social” e da “conservação”), contidas nas


demandas dos usuários, o autor vai chamar, respectivamente, de “signo positivo” e
“negativo” que, segundo ele, são regidas por um caráter contraditório que, se apreendido
corretamente, nos informa que a evolução de ambos os “signos” não está dada fatalmente
desde o início. Dessa maneira,

O signo positivo ou negativo não está metafisicamente inscrito nas ações do povo; a sua
evolução não está garantida – ela se define no processo, é produto da luta de classes e das
opções (políticas) que decidem o curso desta luta. Define-se na história, não na estrutura
(PALMA, 1993, p. 106).

Considerando que a participação popular na rotina institucional como usuária (ou


“beneficiária” de seus serviços) pode se desenvolver na direção de reforçar a reprodução
do sistema capitalista, mas também se desenvolver, num outro sentido (“no de questionar o
sistema”), podemos dizer que tal participação possui um relevante elemento político
(PALMA, 1993, p. 106). Por isso, Palma afirma que é esse elemento político “que define
por qual lado – o positivo ou o negativo – evolui uma mobilização de base” (PALMA,
1993, p. 107).
A definição referente à potencialização de um polo ou outro dos “signos” contidos
no conjunto de demandas dos usuários também não se desenvolverá acidentalmente. Para
sua conformação, uma série de determinantes influenciará esse processo. No entanto, para
fins desse estudo, um determinante particular deve ser destacado: a interferência
pedagógica do assistente social junto às aspirações dos usuários, pois é

Pelo exercício da dimensão socioeducativa que [a interferência profissional] tanto pode


assumir um caráter de enquadramento disciplinador destinado a moldar o “cliente” em sua
inserção institucional e na vida social como pode direcionar-se ao fortalecimento dos
projetos e lutas das classes subalternizadas na sociedade (YAZBEK, 2011b, p. 15).

Isso nos permite dizer que


112

O caráter político da prática profissional se evidencia a partir da função educativa que


essa prática assume na sua inserção no contexto das relações sociais […], enquanto
profissão, se expressa na sua atuação como prática inibidora ou estimuladora da luta
política das classes (SILVA, 2009, p. 246).

Nesse sentido podemos afirmar que o elemento político é o grande responsável por
inserir o conjunto de demandas dos usuários em direta ligação com a disputa entre o
projeto profissional e o projeto institucional. Isso porque o projeto institucional requisita
do assistente social uma interferência política que desenvolva o “signo negativo” contido
nas aspirações dos usuários. A mediação essencial que contempla esse projeto de fundo
político é a função pedagógica do assistente social – ainda que essa somente se viabilize
por meio da função assistencial. Compreendendo o foco do projeto político institucional e
levando em conta sua natureza antagônica em relação à perspectiva marxista, podemos
chegar à dedução lógica de que um projeto profissional comprometido com o que
chamamos de projeto ético-político dos assistentes sociais brasileiros deve buscar
vincular sua função pedagógica no sentido de desenvolver o “signo positivo” contido
nas demandas dos usuários.
Nesse sentido, a atividade de um profissional progressista – ou seja, que “apoia,
reforça ou estimula o esforço transformador daqueles que são os atores básicos da
mudança social” (PALMA, 1993, p. 27) – “exerce uma tarefa importante, apoiando a
ruptura da dominação onde ela se torna mais internalizada – no disciplinamento social”
(PALMA, 1993, p. 141). Ou melhor, num dos campos de tentativa institucional para
promover o disciplinamento de parcelas específicas de trabalhadores.
A existência desse elemento político na prática profissional que, resguardado pela
relativa autonomia profissional, põe como possibilidade a potencialização do “signo
positivo” contido nas demandas dos usuários por meio da função pedagógica, também
conecta esse projeto profissional à disputa entre projetos societários. Isso coloca ao projeto
profissional a questão de subordinar os aspectos projetados de sua intervenção
profissional a projetos macrossocietários de conservação ou revolução da ordem
societária vigente.
Na medida em que o projeto ético-político profissional se orienta pela perspectiva
marxista e se materializa nos princípios do nosso Código de Ética – no qual, dentre seus
princípios, podemos identificar a defesa de “uma nova ordem societária, sem dominação-
exploração de classe, etnia e gênero” –, podemos afirmar que uma intervenção
comprometida com o mesmo, exige do assistente social uma postura crítica em relação aos
113

alicerces e manifestações referentes à ordem capitalista.


Isso significa que a revolução deve ser parte dos objetivos interventivos
profissionais? Seguramente não. Confundir princípios com objetivos seria uma contradição
grosseira em relação a todo trajeto argumentativo que tentamos construir nessa dissertação.
No entanto, a realização do socialismo constitui a tarefa “cuja luz deve guiar todas as
medidas, todas as tomadas de posição de nossa parte” (LUXEMBURGO, 2004, p. 432,
grifos nossos). Dessa forma, a “micro-política”, inerente a cada intervenção profissional,
não pode ser pensada de maneira isolada em relação ao seu impacto (certamente pequeno,
mas não insignificante) no plano da macro-política. Esse caráter constante do projeto
interventivo profissional implica na necessidade de subordinar os objetivos desse projeto
interventivo ao projeto societário e aos princípios inerentes a ele pertinentes.
Essa necessidade de submissão ao projeto societário vinculado à construção do
socialismo requisita a compreensão de que o espaço onde o assistente social está inserido,
assim como suas funções, não está vinculado diretamente à estrutura econômica, mas sim a
algumas de suas consequências (“questão social”). Seu fazer profissional, portanto, não
está vinculado à questão da tomada de poder, mas sim à materialização das reformas por
meio dos serviços. No entanto, na medida em que o poder não se concentra apenas no
aparelho estatal, “a construção da nova sociedade começa hoje, não com a tomada de poder
total, mas com a criação das condições, objetivas e subjetivas, para poder operar o próximo
passo” (PALMA, 1993, p. 98). E, nesse sentido, abre-se margem para buscar mediações
capazes de atingir essa estrutura.
Em busca da necessidade de mediações para atingir a estrutura, partindo da questão
das reformas, podemos dizer que Rosa Luxemburgo nos parece uma autora imprescindível
e coerente para avançarmos nessa questão criticamente. Sua importância peculiar em
relação a esse estudo tem sua raiz ligada por sua concepção da relação entre a “luta
política” e “luta econômica”.75 Para ela, “na revolução as lutas política e econômica estão
unidas pelas mais estreitas relações internas” (LUXEMBURGO, 2010, p. 293, grifos
nossos). Isso não indica que ambas estão necessariamente alinhadas, mas sim que, em
determinado processo político (naqueles em que se direcionam para a revolução), essas
lutas podem estar alinhadas de maneira harmoniosa e dependente. Isso abre margem para o

75
A luta política se refere exatamente aos objetivos macroscópicos de revolucionar a estrutura econômica capitalista e
a luta econômica diz respeito às lutas pontuais por melhores condições imediatas e objetivas de vida.
114

consenso em relação ao debate que viemos travando a respeito do papel decisivo da


dimensão pedagógica em relação à possibilidade de potencializar o “signo positivo”
inerente a cada demanda.

A luta cotidiana pelas reformas, pela melhoria da situação do povo trabalhador no próprio
quadro do regime existente, pelas instituições democráticas, constitui, mesmo para a
socialdemocracia, o único meio de travar a luta de classe proletária e trabalhar no sentido
da sua finalidade, isto é, a luta pela conquista do poder político e supressão do assalariado.
[…] sendo a luta pelas reformas o meio, mas a revolução social o fim (LUXEMBURGO,
2012).

Como vemos, ainda que as reformas estejam localizadas, a princípio, no âmbito das
“consequências” da estrutura – e não da estrutura que os determina –, Luxemburgo as
compreende como mediações capazes de atingir essa estrutura determinante. Para isso,
devemos assinalar que a relevância de sua obra concentra-se na admirável noção de
totalidade da autora, que a faz debater a questão das reformas com um notável enfoque
político, capaz não apenas de não descolar as ações imediatas 76 das pretensões de longo
prazo no âmbito macro-societário,77 mas também de levar em conta a profunda conexão
entre os aspectos objetivos e subjetivos78 presentes no processo de conquista das reformas.
Loureiro, uma das maiores estudiosas da obra de Rosa Luxemburgo do Brasil,
assinala que

76
Podemos lembrar, a esse respeito, de HO CHI-MINH, que afirma: “'um erro do tamanho de uma polegada pode
provocar o desvio de uma légua'” (2006, p. 186).

77
Michel Lowy aponta, por exemplo, que é graças ao seu “ponto de vista da totalidade que Rosa Luxemburgo rejeita
categoricamente as empreitadas suspeitas com o governo do Kaiser, propostas pelos revisionistas Heine e Schippel: voto
pelos créditos militares em troca de concessões no terreno da política social, apoio ao militarismo como fonte de novos
empregos para os operários, etc. – pseudo-vantagens parciais que não podem ser julgadas “em si”, isoladamente, mas em
relação ao movimento total, e que revelam dessa forma seu verdadeiro caráter: reforço da força militar reacionária que
será oposta aos operários sem sua luta revolucionária” (1978, p. 98). Esse posicionamento particular de Rosa – mas
também de seu companheiro de militância Liebcknecht – contra a inserção da Alemanha na guerra foi, certamente, um
dos maiores exemplos de como a conquista de reformas podem entrar em contradição com o próprio destino da classe
trabalhadora. Pois, apesar da inserção na guerra possibilitar futuramente o aumento futuro das condições do Estado
alemão ampliar ainda mais os direitos sociais e salários do proletariado alemão, essa mesma inserção significaria não
apenas a morte de milhares de trabalhadores em nome, fundamentalmente, dos lucros de suas respectivas burguesias
nacionais, mas também um negativo impacto na Revolução Russa – que, para Luxemburgo, estava em eminência. Por
isso, assim “como para Marx, a totalidade é para ela concreta e estruturada; estruturada nesse sentido preciso que as
relações ocultas e invisíveis entre os elementos do todo constituem leis de totalidade distintas das propriedades dos
elementos” (LOWY, 1978, p. 98, grifos nossos).

78
É interessante notar como essa conexão entre objetividade e subjetividade também se faz presentes em outros
clássicos do marxismo. Por exemplo, em “Che Guevara”, que indica Marx como influência essencial em relação a essa
convicção. Guevara afirma que “o socialismo econômico sem a moral comunista não me interessa. Lutamos contra a
miséria, mas ao mesmo tempo contra a alienação. Um dos objetivos fundamentais do marxismo é fazer desaparecer o
interesse, o fator „interesse individual‟, e o progresso das motivações psicológicas. Marx se preocupava tanto com os
fatos econômicos quanto com a sua tradução no espírito. Chamava-lhe „um fato de consciência'” (GUEVARA apud
LOWY, 1999, p. 93).
115

[...] em toda formação social e econômica há unidade entre fator material e fator espiritual
[...]. Rosa salienta constantemente que o socialismo precisa ao mesmo tempo de um solo
objetivo – as contradições do capitalismo – e da tomada de consciência da classe operária
quanto à necessidade da revolução. Em torno desse eixo, organiza-se o seu pensamento
político (2004, p. 70, grifos nossos).

Essa perspectiva de totalidade traz à tona, em Luxemburgo, a questão da


“consciência”, eximindo-a de visões meramente empiristas e, consequentemente,
imediatistas – na medida em que melhorias empíricas sem maturação política tendem a
esvair-se. Esse elemento subjetivo contido no processo de acesso à melhoria das condições
de vida – ressaltado por Rosa Luxemburgo – mostra uma importância decisiva também em
sua polêmica com a corrente social-democrata,79 que, no momento em que escrevia
“Reforma ou revolução” começava a se maturar .
A corrente social-democrata possui diferenças substanciais tanto em relação à
corrente revolucionária (de Rosa Luxemburgo) quanto em relação à corrente
explicitamente conservadora. A diferença básica entre o projeto reformista conservador
(que, por exemplo, as instituições contratantes do assistente social representam) e o projeto
social-democrata está situada no plano do projeto societário, pois, ao contrário do projeto
conservador, o projeto reformista da social-democracia também se declara em defesa do
socialismo. No entanto, apesar de haver um relativo consenso em termos de projeto
societário entre o projeto revolucionário dos radicais-democratas80 e a social-democracia –
já que ambos, pelo menos a princípio, defendem o socialismo – há entre eles diferenças
substanciais. Dentre elas, para fins desse estudo, gostaríamos de destacar aquelas
relacionadas à concepção estratégica, ou seja, no que tange às mediações necessárias no
cotidiano para se chegar ao socialismo. A crítica de Rosa Luxemburgo no livro Reforma ou
Revolução? se fez exatamente na perspectiva de expor os contrastes entre a concepção
política de reformistas (social-democratas ou “revisionistas”) e de revolucionários (radical-
democratas), para provar que o projeto operacional que defendem os reformistas não
coincide com seu respectivo projeto societário discursado. Eis o motivo de sua defesa

79
É importante ressaltar que o termo social-democrata não era usado ainda naquele momento por Rosa Luxemburgo
para identificar essa corrente. Ela referia-se a ela como “revisionista”, apontando sua proposta de rever algumas
concepções do acúmulo marxista a fim de excluir dela determinados aspectos. Naquele momento, Rosa ainda fazia parte
do Partido social-democrata e, por conta disso, utilizava o termo social-democrata para indicar a concepção
revolucionária, em oposição à concepção reformista adotada por uma parcela, ainda inferior, de revisionistas presentes no
interior do partido social-democrata. No entanto, com a tomada hegemônica dos revisionistas dentro do partido social-
democrata, essa concepção reformista ficou consagradamente vinculada ao termo social-democrata.

80
Estaremos chamando de radical democratas aqueles setores que, assim como Luxemburgo, defendem a construção do
socialismo ancorados em concepções metodológicas radicalmente coerentes em relação à visão de totalidade presente em
Marx.
116

incessante pela perspectiva revolucionária. A grande preocupação de Rosa Luxemburgo em


relação ao bloco social-democrata consiste, portanto, justamente na camuflagem
“socialista”, que, ainda que inconscientemente, esconde a essência conservadora das
atitudes dos adeptos dessa concepção.
Dentre os elementos que perpassam o debate entre a perspectiva social-democrata e
a radical democrata (que na Alemanha do período de Rosa resultou na fundação do Partido
Spartakista), a questão da luta pelas melhorias das condições de vida da classe trabalhadora
possui uma relevância singular para o debate da prática do assistente social. A oposição
entre as duas perspectivas, no que se refere às reformas, não se centra exatamente num
plano “quantitativo” (embora não possamos dizer que exclua diferenças também nesse
campo), mas sim em divergências qualitativas presentes nas reformas. Essa diferença
qualitativa entre Luxemburgo e Bernstein tem, na verdade, sua raiz vinculada à oposição
entre os métodos analíticos de cada pensador. Por isso, Loureiro afirma que “a noção de
totalidade é o conceito fundamental da dialética que Luxemburgo ergue contra o
empirismo de Bernstein81” (2004, p. 127). A esse respeito, Loureiro afirma ainda que:

O que chama a atenção e a distingue [Rosa Luxemburgo] de um Kautsky, mesmo na


época em que ambos estavam juntos contra o revisionismo, é o peso atribuído à
consciência, elemento desprezado pelo marxismo da II Internacional (2004, p. 68).

A noção de totalidade em Rosa está no fato de que, no mesmo processo de reforma


– em que no plano objetivo redimensiona-se a distribuição das riquezas produzidas
(exatamente como defendem também os social-democratas) –, a autora destaca o caráter
político que pode ser desenvolvido como importante mediador para a revolução. Bernstein
praticamente não nega nem confirma esse elemento, simplesmente desconsidera a reflexão
em torno da relação entre dimensão objetiva e subjetiva no processo de acesso às melhorias
nas condições de vida da classe trabalhadora. Nessa medida, exacerba-se uma oposição
(relativamente obscura) entre Luxemburgo e Bernstein: em cada espaço particular em que
se processam as lutas, em que se defendem basicamente proporções maiores no plano das
“riquezas já produzidas” para a classe trabalhadora, Rosa aponta também a possibilidade
de interferir no plano dos “meios de produzir essas riquezas”.
A mediação preconizada pela referida autora talvez não apareça tão claramente aos
nossos olhos, pois não está no plano objetivo, mas sim subjetivo. Para ela, a grande

81
Bernstein é o representante social-democrata a quem Luxemburgo debate naquele momento. Como ambos ainda
estavam no Partido social-democrata alemão, Luxemburgo identifica sua linha de pensamento pelo termo “revisionista”.
117

importância da luta dos trabalhadores está em seu potencial pedagógico de socializar o


conhecimento e assim organizar o trabalhador como classe. Trata-se de um consenso
explícito com conclusões do próprio Marx – em quem Rosa Luxemburgo se inspira –, que
afirma: “o verdadeiro resultado das suas lutas [dos trabalhadores] não é o êxito imediato,
mas a união cada vez mais ampla dos trabalhadores” (MARX; ENGELS apud
MONTAÑO; DURIGUETO, 2010, p. 121).
Em suma, Rosa Luxemburgo, em relação à Bernstein, tem como elemento
específico de suas estratégias a preocupação em relação ao aspecto pedagógico,
necessariamente existente e em disputa no processo de acesso às reformas. O que se torna
claro quando afirma:

No atual estado de coisas, consideram-se a luta sindical e a luta parlamentar como meios
de dirigir e educar pouco a pouco o proletariado, tendo em vista a conquista do poder.
Segundo a teoria revisionista, dadas à impossibilidade e inutilidade dessa conquista do
poder, devem a luta sindical e a luta parlamentar ter em vista exclusivamente resultados
imediatos, isto é, a melhoria da situação material dos operários, além da redução por
etapas da explosão capitalista e extensão do controle social. Deixando de lado a
melhoria imediata da situação dos operários, porque o objetivo é comum às duas
concepções, a do partido até hoje e a do revisionismo [proposto por Bernstein], é esta
até hoje, em poucas palavras, a diferença entre as duas concepções: segundo a
concepção comum consiste a importância socialista em preparar o proletariado, isto
é, o fator subjetivo da transformação socialista para realização desta, ao passo que,
segundo Bernstein, a importância está em dever a luta sindical e política reduzir por
etapas a própria exploração capitalista [...]. Ao examinar mais de perto essa questão,
percebe-se que são diametralmente opostas estas duas concepções (2012, grifos nossos).

É interessante notar que a premissa luxemburguista se mostra também, de certa


forma, na teoria revolucionária de Antonio Gramsci. Segundo o comunista italiano,

Uma reforma intelectual e moral não pode deixar de estar ligada a um programa de
reforma econômica; mais precisamente, o programa de reforma econômica é exatamente o
modo concreto através do qual se apresenta toda reforma intelectual e moral (2007, p. 19).

Dessa maneira, concordamos com Corrêa, que identifica um caráter pedagógico na


luta pelo acesso às reformas. O autor afirma que

Essa luta pelos objetivos, a curto prazo, criaria nos trabalhadores os sentimentos de
solidariedade e de responsabilidade moral para com suas próprias ações. Ou seja, talvez a
questão não deva estar somente nos resultados, nos ganhos, mas sim no processo, que é
pedagógico por si mesmo. É na luta de ação direta que as pessoas adquirem consciência
da problemática social e, assim, do seu poder de resistência (2006, p. 49).

Assim, devemos assinalar que o avanço ou retrocesso em relação à construção do


socialismo não pode ser avaliado apenas a partir dos impactos objetivos estabelecidos pelas
reformas em si. As duas correntes referidas (social-democrata e radical-democrata) só
podem ser analisadas seguramente a partir de uma cuidadosa apreensão de seu caráter
estratégico. Isto significa dizer que uma determinada conquista em termos de condições de
118

vida pela classe trabalhadora em si mesma, antes de ser avaliada definitivamente (como
conquista ou retrocesso em relação à sua libertação), também deve ter seus impactos
políticos analisados, pois futuramente podem significar mais um “grilhão”, por mais que
tenham “forma de asas” e prometam o “céu”.
Por isso, quantidade e extensão não são, necessariamente, critérios para distinguir
se as reformas, e seus consequentes serviços, serão funcionais aos projetos societários
conservadores ou aos emancipatórios. Nesse sentido, uma ampla política governamental,
obedecendo a determinadas reformas, pode possuir um espetacular impacto na
materialidade de determinada população, mesmo cumprindo o essencial papel de contribuir
para a manutenção da hegemonia excludente do capital. Assim como a postura
revolucionária não equivale necessariamente a uma ação quantitativamente ampla e
fluorescente, mas sim, qualitativamente contra-hegemônica em prol do florescimento de
outra sociabilidade – desde que esta tenha no horizonte a estrutura determinante e não os
diversos efeitos produzidos por esta estrutura, já que avaliamos ser mais importante um
passo nas curvas da emancipação que mil na rampa escorregadia da escravidão.
Nesse sentido, a concretização dos direitos dos trabalhadores pode sim ser
funcional à acumulação capitalista, desde que o protagonismo dos sujeitos que
conquistaram esses direitos seja apagado – no plano da concepção de mundo daqueles que
usufruem de tais direitos – e substituído, por exemplo, por uma sensação de “favor” por
parte do Estado burguês. Isso está em consenso com Iamamoto e Faleiros, por exemplo, no
sentido que “a mediação dos benefícios é um processo de relações de forças, podendo
assumir a forma autoritária de „outorga‟ ou de „conquista‟” (FALEIROS apud
IAMAMOTO, 2008, p. 298).
Essa questão justifica o cuidado para que a defesa por interesses empíricos postos
no plano do imediato não se canalize para um imediatismo revisionista, numa disputa para
que a satisfação dos setores beneficiados pelos serviços socioassistenciais prestados seja
submetida a um projeto societário transgressor da ordem desigual burguesa.
Na medida em que compreendemos que a inserção do Serviço Social na
particularidade institucional é requisitada para fins de intervenção junto à “questão social”,
basicamente por meio da prestação de serviços criados em consequência de reformas, essa
polêmica luxemburguista com a social-democracia se mostra também, uma fonte de estudo
que pode iluminar o debate do projeto-ético político profissional brasileiro.
Como vimos, esse projeto, além de conceber fundamentalmente o marxismo como
119

fonte teórico-metodologica inspiradora de suas análises, também possui o mérito de


estabelecer um importantíssimo consenso em termos de um norte societário – que se opõe
a alguns fundamentos inelimináveis do capitalismo. No entanto, a inspiração crítica, que
faz recurso do marxismo e a defesa desse norte societário de emancipação, pode coincidir,
não apenas com a perspectiva radical democrata, mas também com a perspectiva social-
democrata. Além disso, a escassez de produção teórica a respeito da temática da
“intervenção profissional” e da questão do “reformismo” (o revisionismo social-
democrata) no Serviço Social, torna muito difícil (senão impossível) enquadrar com
precisão o perfil do chamado projeto ético-político profissional a uma dessas perspectivas
(social-democrata e radical democrata). Principalmente, se buscarmos esse
“enquadramento” a partir da dimensão interventiva do projeto supracitado. No entanto, na
medida em que há um elemento político inerente à intervenção profissional e uma relativa
autonomia, caminharemos para o final desse tópico pontuando alguns elementos capazes
de supor algumas distinções entre intervenções profissionais, cujas perspectivas
metodológicas coincidam com a visão de totalidade inerente à corrente radical democrata e
a visão restrita presente na perspectiva social-democrata
Nessa medida, podemos dizer que estamos diante do vulnerável desafio de buscar,
na literatura do Serviço Social, elementos presentes no debate a respeito do revisionismo
social-democrata que82 se mostrem capazes de perpassar não apenas o plano macro-
político (de onde Luxemburgo concentrou a maior parte de suas análises), mas também no
plano da intervenção profissional do assistente social. Diante dessa necessidade, devemos
destacar Leila Lima Santos, que nos trouxe uma exposição muito interessante no sentido de
pensar com destreza e evidência a necessária articulação entre a função pedagógica e a
função assistencial presentes na prática do assistente social.
É importante ressaltar que o debate da referida autora está de acordo com o que
discutimos até aqui a respeito de que o “caráter político da prática profissional se evidencia
a partir da função educativa” (SILVA, 2009, p. 246), ao ter a capacidade de influenciar nos

82
Esse desafio não busca supor a inexistência ou negar as significativas particularidades temporais, geográficas e
relativas ao espaço em que o elemento político se expõe – já que o debate que situamos há pouco entre Luxemburgo e
Bernstein se trava no âmbito do partido e nossa discussão, no âmbito da prática profissional do assistente social. Em
relação a esse último aspecto, podemos considerar, por exemplo, que o assistente social, como já indicamos, não intervém
diretamente junto às reformas, mas sim com algumas de suas expressões, destacadamente com os serviços
socioassistenciais.
120

impactos políticos que os serviços vão promover no cotidiano de seus usuários por meio
dos serviços. Esse aspecto político em disputa pela função pedagógica do profissional
coloca-se como o critério central de Santos para distinguir os profissionais que chama
de “reformistas” (correspondente ao que viemos chamando até aqui de social-
democratas) dos profissionais metodologicamente “revolucionários” (que viemos
chamando de radical-democratas).
Para a autora, quando a função pedagógica rege-se por princípios e práticas
“politizantes”, o potencial da dimensão assistencial ganha um perfil por ela chamado de
“trabalho assistencial” em detrimento de sua forma “assistencialista”.

Devemos valorizar os benefícios – limitados e parciais, é verdade – que as pessoas obtêm


através dos nossos serviços; e, de outro, chamar a atenção sobre a necessidade de fazer
um esforço criativo para procurar converter o oferecimento de nossos serviços em um
elemento catalisador de uma consciência popular mais real, em termos de sua própria
situação e de sua posição na sociedade. […] Uma ação não é reformista e/ou
assistencial apenas em função das tarefas ou atividades que a formam, nem de seus
objetivos concebidos isoladamente. A natureza das ações e sua finalidade só podem
ser compreendidas, plenamente, se forem consideradas em relação aos elementos
políticos, econômicos e culturais, que os determinam e as condições conjunturais em
que se desenvolvem. Assim, uma atividade pode ser revolucionária ou reformista,
segundo as condições concretas que acompanham sua implementação e, neste caso, a
prestação dos serviços assistenciais concretos numa sociedade não implica,
necessariamente, um caráter reformista (SANTOS, 1983, p.193, grifos nossos).

Entendemos que o caráter assistencial de um trabalho não está, portanto, definido em


função das tarefas ou atividades que os assistentes sociais desempenham, mas na direção
que imprimam às mesmas. São estas, no nosso entender, as diferenças que poderiam
existir entre um trabalho assistencial e o Assistencialismo […] Cada ação assistencial [...]
tem um caráter potencial que é preciso recuperar, superando-se assim esta concepção pura
de „atividade provisória‟, ou um „mal necessário‟, com pouca ou nenhuma validez em si
mesma. (SANTOS, 1983, p. 194).

Como podemos perceber nas citações acima, salvaguardadas as devidas diferenças,


em decorrência das posições sociais e espaços temporais ocupados por cada uma, a autora
aproxima-se da linha de pensamento de Rosa Luxemburgo. Isso porque Rosa encaminha
sua crítica àqueles que se mostram incapazes de se preocupar também com os impactos
políticos produzidos na relação entre dimensão subjetiva e dimensão objetiva presentes nos
processos de materialização da reforma. Ou seja, para Luxemburgo, os reformistas são
aqueles que se abstêm da necessidade de disputar – por meio da função educadora dos
intelectuais em presença – a direção política que, necessariamente, contribuirá para
determinada visão de mundo dos sujeitos envolvidos no processo de reforma.
No sentido de pensar um perfil pedagógico que permita ao assistente social
“facilitar e ser coadjuvante desse processo de conscientização e organização” (SILVA,
2009, p. 240, grifos nossos), Vasconcelos afirma que é necessário que o profissional exerça
121

uma prática de caráter reflexivo. Ou seja, “uma prática educativa, crítica, criativa,
politizante, que aponte para a ruptura com o instituído, colocando permanentemente dois
sujeitos: usuário e profissional” (VASCONCELOS, 1997, p. 133). Trata-se de uma
concepção de função pedagógica profissional, em que o usuário seja convocado “não só a
dar informações, mas a questionar, avaliar, correlacionar, analisar, interpretar, investigar,
decidir sobre seu cotidiano – suas experiências vividas e presentes -, assumindo o papel de
investigador” (VASCONCELOS, 1997, p. 146). A autora destaca que, para isso, é
necessária uma postura profissional, em que o assistente social “não substitua a
população, ainda que possa ocupar um espaço na sua organização, o que é diferente de
fazer a organização ou organizar o povo” (VASCONCELOS, 1997, p. 138, grifos nossos).
Assim, estabelece consenso com Palma, que entende que “não é o assistente social que
engendra a mudança: é a base” (PALMA, 1993, p. 131). Partindo disso, podemos inferir
que o assistente social voltado para a mudança deve apoiar os usuários, às manifestações
críticas/organizativas e reivindicativas dos usuários.
Essa perspectiva não apenas busca explorar a potencialidade política de cada
sujeito no âmbito das relações sociais que estabelece em seu histórico de vida, como
também centraliza o usuário como protagonista privilegiado da disputa de classe na
particularidade institucional. Sob essa lógica, mais importante que os enfrentamentos
classistas dos assistentes sociais na realidade institucional (na luta pelo usuário) é a
maturação política dos usuários a partir daquela realidade. Pois estes, além de
apresentarem um caráter massivo na realidade institucional, possuem maior autonomia
para desempenharem os embates necessários, justamente por não estarem inseridos nessa
dinâmica sob a condição hierarquicamente subalternizada pelo projeto institucional de
“assalariado” (como o assistente social).
Além disso, a proposta de “tomar para si” uma luta que pertence também – e
principalmente – aos usuários, pode representar ainda uma irresponsabilidade pedagógica,
principalmente no que se refere à abstenção de buscar demonstrar que “só a luta muda a
vida”. 83 Ou seja, ainda que uma determinada demanda seja conquistada pelos usuários por
meio de enfrentamentos de determinado profissional em seu nome, essa conquista não terá
o mesmo valor pedagógico do que se ela fosse alcançada pelos “próprios punhos” dos
usuários. Principalmente porque, frente à “tutela política” do assistente social, o usuário

83
Trata-se de um lema do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado.
122

teria perdido uma boa oportunidade de desnaturalizar seu cotidiano. Nesse sentido, Palma
afirma que

O perigo [de o profissional tomar para si a postura que deve ser do usuário] [...] é que o
profissional comprometido, que assume ou representa este protesto, objetivamente
confisca o poder que o povo está adquirindo. Desta maneira, os assistentes sociais podem
ser perfeitamente reformistas na sua ação, apesar de sustentarem uma vontade e um
discurso revolucionários (1993, p. 126).

Essa posição de mero “receptor” que as citações referentes à Vasconcelos e Palma –


a respeito do assistente social não substituir o protagonismo potencial dos usuários –
corresponde a uma proposta pedagógica que se assemelha aos princípios de intelectuais
expostos por Rosa Luxemburgo. Percebemos a partir dos estudos da referida autora que,
por serem minoria, aqueles que detêm o conhecimento mais aprofundado a respeito da
dimensão política das temáticas em debate devem reconhecer naqueles de consciência mais
dispersa e “despolitizada” (principalmente por seu caráter massivo) a verdadeira força
motriz que encaminhará a revolução em detrimento da postura de compreender a si
mesmos como a peça central no “jogo” da revolução.

Essa ditadura [do proletariado] precisa ser obra da classe, não de uma pequena minoria
que dirige em nome dela. Ela deve, a cada passo, resultar da participação ativa das
massas, ser imediatamente influenciada por elas, ser submetida ao controle público no seu
conjunto e emanar a formação política crescente das massas populares (LUXEMBURGO,
p. 128).

Assim, podemos concluir que, no interior desse projeto ético-político profissional,


podem estar convivendo, de maneira eclética e/ou silenciosa, duas concepções
metodológicas, funcionais tanto à perspectiva radical-democrata quanto à social-
democrata. Diante dessa possibilidade, cabe observarmos a função histórica cumprida pela
social-democracia, cooptando a “rebeldia” potencialmente revolucionária dos
trabalhadores para “caminhos circulares”, até que essa energia se dissolvesse em alianças
transclassistas.
Na particularidade da intervenção profissional, podemos analogamente dizer que o
núcleo de choque entre as concepções referidas pode ser captado, de maneira mais
expressiva, no momento em que os profissionais precisam interferir junto ao conjunto de
demandas dos usuários. Nesse momento, é comum que a perspectiva social-democrata
expresse-se pela ênfase desenfreada na dimensão objetiva da prática profissional (função
assistencial), ignorando que “o essencial é invisível para os olhos” (SAINT-EXÚPERY).
Em prol do nosso entendimento a respeito da relevância e a busca pelo refinamento da
crítica marxista dentro do Serviço Social, consideramos necessário defender o recurso não
123

apenas de reflexões que ponham em prática a dimensão objetiva da intervenção


profissional, mas também sua articulação com a dimensão subjetiva. Dessa forma, “a
crítica ao psicologismo com a qual concordamos não pode descartar por completo toda a
dimensão subjetiva do trabalho profissional” (DUARTE, 2012). Sobre isso destacamos o
pensamento de Silveira:

A concepção de subjetividade com a qual o marxismo vai romper [...] é a que supõe o
indivíduo na qualidade de ente abstrato e idealizado, por conseguinte, exterior às efetivas
relações sociais capitalistas. Por consequência, nessa abstração, ele pode ser „modelado‟
(SILVEIRA apud DUARTE, 2012).
124

3 REFLEXÕES ACERCA DE ESTRATÉGIAS DE MATERIALIZAÇÃO DO


PROJETO ÉTICO-POLÍTICO NO ÂMBITO DA POLÍTICA DE
SAÚDE

Como vimos no capítulo 1, o assistente social carrega em si um “fardo


institucional”, oficializado por meio do contrato de trabalho, cuja natureza representa o
eixo central de coação da liberdade profissional. Esse determinante não deve ser ignorado
por um profissional que se pretenda consciente da realidade que lhe comporta, assim como
não pode ser superado por quem pretenda desempenhar a função de assistente social numa
sociedade capitalista. Este fardo, por sua concreticidade, simboliza as determinantes que
influenciam e delimitam o leque de escolhas dadas pela realidade a que o assistente social
pode recorrer durante seu exercício profissional.
No entanto, como vimos no capítulo anterior, este fardo também possui limites
dados pela realidade. Esse conjunto de limites garante ao profissional determinada
autonomia, caracterizada por sua natureza relativa (por não ser nem total nem nula),
flexível (por ser historicamente passível de ampliação ou diminuição) e variável (por
atingir diferentemente cada assistente social). O capítulo referido também buscou pontuar
minimamente o percurso histórico da categoria profissional no Brasil nas últimas décadas.
O fez buscando destacar o processo de consciência a respeito dessa relativa autonomia do
assistente social, e a construção do projeto ético-político profissional – enquanto elemento
politizante, capaz de impulsionar as possibilidades de ampliação dessa autonomia flexível
e materialização de intervenções radicalmente críticas autonomamente possíveis. O estudo
mostra que muito se avançou no debate da categoria até o contexto atual, onde muitos
entraves ainda precisam ser derrubados. Diante desses entraves, chegamos numa etapa em
que uma questão precisa ser estrategicamente alvo de inflexão dos intelectuais
representantes do projeto ético-político profissional: o investimento em bases operacionais
que levem em conta uma articulação entre a dimensão pedagógica e assistencial funcional
aos princípios emancipatórios. Por três motivos: evitar uma adesão acrítica dos marxistas
pela tendência social-democrata; colocar em prática o coadjuvante potencial do assistente
social na construção de uma nova ordem societária “sem dominação/exploração de classe,
etnia e gênero”; fortalecer o marxismo e seus preceitos na categoria profissional.
No entanto, essas possibilidades permanecem incipientes no que se refere ao campo
da intervenção profissional, expondo uma insistente debilidade no debate da categoria: a
125

abstenção por parte daqueles que participam desse debate, no que tange à mediação desse o
conjunto de análises e projeções anticapitalistas às estratégias efetivamente compatíveis
com a autonomia que a categoria possui.
Com base nesses elementos, este capítulo recairá sobre o desafio de detectar e
discutir, na ação de determinados assistentes sociais, estratégias profissionais que, além de
viáveis e comprometidas com o projeto ético-político do Serviço Social brasileiro, se
mostrem efetivamente funcionais ao projeto societário de emancipação da classe
trabalhadora. Também buscaremos criar bases para relacionar tais estratégias a suas
principais influências no campo teórico e verificar em que medida a literatura orientada
pelo projeto ético-político dos assistentes sociais brasileiros vem sendo capaz de referendar
esses profissionais, levando em conta a necessidade de partir das efetivas condições de
trabalho e, consequentemente, da real autonomia que o cotidiano profissional proporciona
aos assistentes sociais entrevistados.
Consideramos esse esforço relevante, principalmente na medida em que esse
levantamento possibilita uma compreensão maior a respeito dos limites e possibilidades
dos assistentes sociais em seu cotidiano de trabalho, para amparar futuras pesquisas que se
proponham pensar alternativas práticas aos assistentes sociais.
Esses objetivos requisitaram a delimitação de um público-alvo e de um roteiro
investigativo. Na medida em que se trata de um tema que exige um mínimo de
aprofundamento, busquei extrair os dados centrais por meio de entrevistas
semiestruturadas, que buscassem provocar discussões pertinentes a esses aspectos. Porém,
tendo em vista que a entrevista possui óbvios limites de ordem objetivas (tempo, espaço
etc.) que lhe impossibilitam detectar a totalidade das ações profissionais embutidas nas
intervenções profissionais, a amostra não pôde ser demasiadamente extensa. Por isso, tive
de ser cuidadoso com os critérios de elegibilidade dos profissionais a serem entrevistados.
Nesse sentido, o recorte dos assistentes sociais entrevistados requisitou uma série
de cuidados capazes de obedecerem às particularidades desse estudo. Em primeiro lugar,
precisei entrevistar assistentes sociais cujos cotidianos expressem realidades mais ou
menos parecidas entre si, evitando, assim, grandes disparidades ocorridas por
determinantes peculiares e facilitando a categorização das respostas (uma área de política
social e uma forma de contratação). Em segundo lugar, na medida em que minha intenção
era recolher um leque mais variado possível de táticas e estratégias, optei por escolher
profissionais que apresentem um perfil cujos determinantes lhe indiquem maiores
126

possibilidades de autonomia profissional. Além disso, também consideramos


imprescindível que os princípios pessoais dos profissionais entrevistados estivessem
alinhados às diretrizes do projeto ético-político profissional, pois, não consideramos
prudente analisar os “meios” para atingir “fins” de ruptura a partir de sujeitos
comprometidos com outros “fins”.
Optamos, então, por pesquisar profissionais da saúde, na medida em que esta se
constitui uma das áreas que, tradicionalmente, vêm contratando assistentes sociais com
maior intensidade. Articulando essa necessidade a de entrevistar profissionais, cujos
determinantes indicassem maior possibilidade de autonomia, optei por assistentes sociais
que, além da saúde, estivessem inseridos no âmbito governamental, ou seja, contratados
pelo Estado. Além disso, para colaborar nessa necessidade de entrevistar assistentes
sociais com “maior autonomia”, também coloquei como critério indicativo a escolha de
assistentes sociais em processo de formação continuada, na medida em que essa é
permanentemente posta pela literatura profissional como condição para atuar de maneira
comprometida com os preceitos desse projeto ético-político profissional e base
potencializadora/inspiradora para desempenhar estratégias críticas e viáveis. E, por último,
busquei restringir as entrevistas a profissionais que, ao menos, declarem a intenção de
materializar o projeto ético-político em seu cotidiano profissional.
Antes de avançar, gostaríamos de ressaltar que: não faz parte da nossa perspectiva
dizer que apenas profissionais da saúde, contratados pelo Estado, em processo de formação
continuada e que declarem a intenção de materializar o projeto ético-político em seu
cotidiano profissional, são capazes de indicar estratégias de atuação para a materialização
do projeto ético-político. Nem tampouco afirmar que profissionais com esse perfil
fatalmente materializarão esse projeto. Isso indica que consideramos os mesmos como
facilitadores e enriquecedores para a extração e análise dos dados empíricos e não como
requisitos mínimos para que se possa materializar ações funcionais ao referido projeto
ético-político profissional.
Na busca de contemplar esses indicativos, nos chamou a atenção o Curso de Pós-
Graduação em Saúde da Faculdade de Serviço Social da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ), que além de ser referência no campo de atuação eleito (saúde), supre ainda
o critério referente à formação continuada. Para contemplar os demais critérios, utilizamos
para essa turma de especialização (que naquele momento se encontrava há poucos dias de
finalizar suas aulas) um breve formulário, que desempenhou uma tripla função:
127

1° Indicar dados capazes de adiantar informações para a entrevista (como nome,


universidade em que se graduou, ano de formação, instrumentos/técnicas que utilizam na
instituição de saúde em que atuam etc.).
2° Enriquecer alguns dados de análise, principalmente em relação aos principais
determinantes da relativa autonomia de cada profissional. Neste sentido, devemos ressaltar
que para fins de tabulação, alguns questionários tiveram de ser desconsiderados.
Eliminamos aqueles que não atuam na saúde; que atuam como voluntários (na medida em
que não se colocam sob a “contradição de assalariado”); e que não atuam como assistente
social. No entanto, consideramos enriquecedor manter alguns questionários que não
puderam ser considerados para fins de entrevista.
3° Estabelecer dados para triagem, no sentido de filtrar os outros critérios
indicativos necessários para selecionar os entrevistados. Pois, a partir desse
questionário, foi possível observar quais desses assistentes sociais que responderam o
questionário cumpririam o perfil necessário para nossa entrevista. Vale condensar que, em
suma, os critérios para serem entrevistados foram:
1) ser assistente social ;
2) estar atuando na área da saúde;
3) ser empregado pelo Estado;
4) estar em processo de formação continuada (mais especificamente: numa etapa
final de um curso de especialização em Serviço Social na saúde);
5) estar disponível para conceder uma entrevista;
6) declarar claramente a intenção de materializar o projeto ético-político
profissional em seu cotidiano de trabalho.
Feita a tabulação obtive resposta de 17 assistentes sociais (todas mulheres). No
entanto, dentre elas:
2 foram descartadas por não serem da área da saúde;
1 não se colocou à disposição de conceder uma entrevista;
1 atuava em ONG;
3 atuavam em empresas;
2 quando perguntadas se intencionam materializar o atual projeto na instituição
onde atuam, não declararam claramente a intenção de materializá-lo em seu cotidiano de
trabalho;
1 delas atua em Ouvidoria, o que não é considerado pela secretaria de saúde do
128

estado do Rio de Janeiro – órgão contratante – como assistente social. Além disso, as
funções do “ouvidor” possuem características de atuação extremamente diferentes – o que
é expresso no questionário, quando afirma que a única técnica interventiva/instrumento de
atuação que se utiliza é a “entrevista”, enquanto os outros utilizam frequentemente mais de
4 instrumentos/técnicas interventivas.
Por estes motivos, apenas 7 assistentes sociais cumpriam o perfil compatível com
as necessidades do estudo e, por isso, foram convidadas para a concessão de entrevistas.
No entanto, 2 delas desistiram e apenas 5 delas de fato concederam a entrevista.
Sabemos que, antes de qualquer salto, é preciso ter o conhecimento necessário
sobre o chão em que se impulsiona. Por uma lógica muito parecida, esse capítulo será
dividido basicamente em duas partes. A primeira parte corresponderá ao tópico 3.1, em que
o leitor acompanhará um mergulho acerca da autonomia profissional. Esta categoria de
análise será exaltada nesse momento como base pela qual o assistente social comprometido
com o chamado “projeto ético-político” precisará levar em conta a cada escolha nesse
verdadeiro labirinto que é a atuação profissional. Nesse sentido, podemos dizer que nosso
percurso se pautará na perspectiva de abordar, problematizar e contextualizar alguns dos
diversos elementos que interferem na autonomia profissional, a fim de compreender
algumas tendências de sua manifestação no cotidiano profissional. Neste primeiro
momento, os leitores perceberão que os dados empíricos obtidos por meio da entrevista e
do questionário serão utilizados no debate como recursos ilustrativos acerca de uma
análise ainda centrada na discussão literária da profissão – para uma posterior aproximação
à análise dos dados empíricos.
Na segunda parte – que corresponde aos tópicos 3.2, 3.3, 3.4 e 3.5 –, o eixo de
análise se inverte: o conjunto de elementos extraídos pela entrevista transformar-se-á no
centro da análise e o conjunto de conhecimentos obtidos basicamente por meio dos debates
construídos por toda literatura transformar-se-á em bases para discutir esses elementos
empíricos. Esses quatro últimos tópicos representam, portanto, o momento primordial para
os objetivos dessa dissertação, pois trarão o debate a respeito do “que fazer?” do assistente
social. Devemos, desde já, esclarecer que essa indagação não contempla a pretensão de
formular um guia prático universal a ser rigorosamente seguido nos mais diferentes
campos de atuação profissional. Até porque estaríamos caindo em contradição com nosso
trajeto teórico caminhado até aqui e, principalmente, com a própria compreensão em
relação ao caráter variável da autonomia profissional – que discutiremos no tópico 3.1.
129

Nesse sentido, resta dizer que o objetivo dessa última parte (tópicos 3.2, 3.3, 3.4 e 3.5) será
captar elementos presentes no cotidiano desses assistentes sociais entrevistados, que
sirvam de inspiração estratégica aos leitores que intencionem materializar ações
profissionais efetivamente funcionais ao princípio de emancipação da classe
trabalhadora. Para isso, buscaremos focalizar nosso debate nas tentativas por parte dos
assistentes sociais de:
1° explorar o caráter flexível da autonomia profissional para ampliá-la.
2° aproveitar a autonomia que possuem, a fim de materializar ações funcionais ao
princípio de emancipação da classe trabalhadora.
As entrevistas ser o centro da proposta de construção dos demais tópicos do
capítulo 3. A partir delas, buscamos perceber num primeiro momento a relação entre essas
assistentes sociais entrevistados e a teoria produzida pelo Serviço Social – reflexão que
constituirá o tópico 3.2. Num segundo momento, buscamos enfocar a relação de aliança e
conflito entre os objetivos desses profissionais (comprometidos com o projeto ético-
político profissional), projeto político institucional e usuários. Partindo desse panorama de
interesses potencialmente em conflito, buscamos entender, para a construção do tópico 3.3,
os elementos básicos que conformam a realidade em que o assistente social está inserido e
a apreensão a esse respeito por parte dos assistentes sociais, para que possamos,
finalmente, detectar estratégias capazes de ampliar e explorar a autonomia profissional, de
acordo com o projeto ético-político profissional. Essas estratégias serão analisadas em dois
momentos básicos: no 3.4, no qual analisaremos os momentos em que a ação desses
profissionais se voltarão para a relação direta com os usuários, e no 3.5, em que
problematizaremos alguns momentos em que as estratégias profissionais se voltam, de
alguma maneira, diretamente contra algumas medidas do projeto institucional.
Antes de prosseguirmos, cabe dizer que, por uma questão de respeito ao movimento
da realidade, buscaremos tomar o cuidado em não analisar os dados de maneira inflexível,
no sentido de categorizar o grupo de respostas a partir das perguntas, mas sim a partir do
conteúdo de informações obtidos nas respostas. Em razão disso, o leitor pode estranhar a
problematização de alguns elementos presentes no debate acerca da entrevistas, pois
muitos elementos emergiram nas entrevistas sem que tivéssemos perguntado. Da mesma
forma, o conteúdo das respostas permitiram que algumas análises se fizessem a partir da
fusão da resposta de algumas perguntas.
130

3.1 Alguns elementos acerca da autonomia profissional

Nesse momento, retomaremos a questão da autonomia profissional, no entanto com


o objetivo de abordar, problematizar e contextualizar alguns dos diversos elementos que
interferem na mesma. Esse percurso terá a importância não apenas de dar visibilidade a
detalhes de alguns elementos particulares presentes na questão da autonomia, mas também
clarear algumas tendências que permeiam o cotidiano dos profissionais entrevistadas. Ou
seja, o debate que iniciaremos nesse tópico realizará uma aproximação mais apurada da
realidade profissional, a fim de introduzir a análise das entrevistas – que se iniciará de fato
apenas no tópico 3.2. Para realizar esse objetivo, os leitores perceberão que alguns dados
empíricos obtidos por meio da entrevista e do questionário serão utilizados já nesse
momento, no entanto apenas como recursos ilustrativos acerca de uma análise ainda
centrada na discussão literária da profissão. Sobre os recursos empíricos, cabe ainda
relembrar que, dentre os 17 questionários respondidos, apenas 12 foram tabulados e, dentre
eles, apenas 5 assistentes sociais foram entrevistadas.
Como já apontamos, a instituição em que o assistente social – e outros
profissionais – se insere não é neutra e já apresenta uma direção social estrategicamente
conservadora, basicamente fortalecida por aquilo que Iamamoto chama de “contradição do
assalariamento”. Vimos ainda que, apesar dessa condição, o assistente social possui uma
autonomia que é sempre relativa, flexível e variante e coloca em evidência exatamente

A tensão entre projeto profissional e condição assalariada [que] condensa os clássicos


dilemas entre teleologia e alienação, liberdade e necessidade, ação do sujeito e
constrangimentos estruturais, dimensões indissolúveis do exercício profissional na
sociedade capitalista, o que se radicaliza na era das finanças. Essa tensão se refrata nos
diversos espaços ocupacionais e nas condições e relações em que se realiza esse trabalho
(IAMAMOTO, 2008, p. 41).

Essas características abrem margem para que possamos nos esforçar no sentido de
refletir sobre múltiplos fatores que, muitas vezes, estão diretamente relacionados entre si e
sujeitos a serem potencializados na expectativa de fornecer ao assistente social uma
ampliação de sua margem de autonomia. A seguir, vamos apontar alguns desses fatores que
interferem nessa autonomia, e que nos parecem centrais no exercício profissional.
No contexto sociopolítico, em que a classe trabalhadora se coloca de maneira
explícita, organizada e combativa no cenário da luta de classes, atingindo níveis mais
profundos e universais de consciência, posicionar-se criticamente em relação às normas
131

institucionais, a favor dos setores da classe trabalhadora, usuários na particularidade


institucional, tende a ser mais propício. Isso ocorre, basicamente, porque o receio da
insatisfação destes sujeitos-usuários, ou mesmo a contestação direta destas normas
institucionais se torna eminente, o que pressiona relativamente a instituição. O oposto
ocorre quando o cenário é de “recuo” da classe trabalhadora no campo da disputa de classe,
fragilizando-a no geral, coagindo, consequentemente, o próprio assistente social enquanto
parte da classe trabalhadora. Desse modo, isso tende a propiciar maiores condições a uma
hierarquia institucional mais vertical e autoritária, diminuindo as possibilidades de
intervenção dos usuários no destino das instituições. Vale a pena também ressaltar que esse
elemento determina diretamente vários outros condicionantes da autonomia profissional
(que trataremos mais à frente), na medida em que o contexto sociopolítico interfere, por
exemplo, na organização da categoria profissional, nos tipos e proporções de contrato de
trabalho que os assistentes sociais possuem, no arsenal de serviços e benefícios sociais
disponíveis na instituição etc.

Aquela autonomia é condicionada pelas lutas hegemônicas presentes na sociedade que


alargam ou retraem as bases sociais que sustentam a direção social projetada pelo
assistente social ao seu exercício, permeada por interesses de classes e grupos sociais, que
incidem nas condições que circunscrevem o trabalho voltado ao atendimento de
necessidades de segmentos majoritários das classes trabalhadoras (IAMAMOTO, 2008, p.
415).

Esses condicionamentos [as relações de trabalho/assalariamento] são permeados por lutas


que fazem avançar ou recuar seus limites e possibilidades, na medida da correlação de
forças em seu enfrentamento, com o consequente fortalecimento ou fragilização dos
sujeitos em suas trajetórias, em diferentes dimensões (FALEIROS, 2007, p. 47).

Vale destacar que vivemos hoje (2012) um contexto de extraordinária ofensiva


burguesa contra a classe trabalhadora, cujas maiores expressões são a força da correnteza
de neoliberalismo, reestruturação produtiva, pós-modernismo e financeirização da
economia (mundialização da economia). Fatores que tenderão a afetar negativamente a
autonomia dos assistentes sociais brasileiros.84
Esta tendência se expressa de maneira muito clara a partir dos questionários
respondidos na pesquisa. Para aqueles assistentes sociais predomina a sensação de

84
É necessário esclarecer que esse recuo não é absoluto, na medida em que nunca deixaram de existir, na sociedade
brasileira, formas de resistência coletiva. Além disso, podemos dizer que essas resistências apesar de serem insuficientes,
parecem tomar proporções crescentes nesse início de década. Fato que deve ser relacionado ao contexto internacional de
crise estrutural do capitalismo a partir de eventos como a “Primavera Árabe”, as insurreições do Movimento Estudantil
chileno em 2008 e 2012 , os diversos movimentos na Europa e, até mesmo, em menor escala, nos Estados Unidos da
América.
132

estarmos vivendo um contexto extremamente adverso para materializar o projeto ético-


político profissional. Isto fica evidente no gráfico 1, em que 11 assistentes sociais
consideram que este contexto determina negativamente sua autonomia profissional.

Gráfico 1

A relevância expressa no questionário a respeito desse elemento (contexto social)


se repetiu constantemente no momento das entrevistas, dificultando até mesmo categorizá-
lo, tamanha a profundidade com que se imbrica a outros elementos da realidade em que
esses profissionais estão situados. Um trecho de uma das entrevistadas representa bem esse
aspecto amplo e violento com que o contexto sociopolítico interfere no cotidiano desses
assistentes sociais:

Com incidência do neoliberalismo e com a intensificação do sucateamento das políticas


sociais, a privatização, a precarização e a falta de incentivos para as questões sociais, e
olhando o assistente social como um profissional que trabalha mais com as políticas
sociais, essa conjuntura vai afetar diretamente o trabalho do assistente social, uma vez que
nós ficamos muito limitados nas nossas ações profissionais (Entrevistada n° 3).

Já não chega a questão dessa unidade em específico, da unidade, de problemas mesmo de


estrutura interna, da falta de investimento do governo, é um hospital que a população do
bairro cresceu cinco vezes e o hospital permanece do mesmo tamanho, atendendo muito
mais demandas, então não há um investimento, a precariedade da saúde no geral, no
município do Estado (Entrevistada n° 4).
133

Esse contexto sociopolítico traz em si particularidades estratégicas ao projeto


político institucional, de maneira que o mesmo investe não apenas no sentido de atingir
seus objetivos, mas também de comprimir a autonomia relativa flexível dos profissionais
contratados. Um mecanismo simples, direto e eficiente de fazê-lo é a clássica estratégia de
“roubar o tempo do trabalhador”. Ou melhor, a intensificação da atuação desses
profissionais por meio do enxugamento dos profissionais contratados sem a devida
diminuição proporcional de demandas a eles. Vejamos os próximos depoimentos:

Eles sabem que precisamos de mais profissionais. Vários setores do hospital estão
descobertos de atenção do Serviço Social. Abriu um trabalho de acompanhamento das
famílias de renais crônicos. Tinha uma assistente social que acompanhava na enfermaria.
Tinha assistente social fixo para ficar acompanhando as famílias. Com esse grupo que nós
temos aqui na unidade, esses acompanhamentos de unidade deixaram de existir. Qual é a
prioridade deles? […] Eu tenho uma enfermaria de 80 leitos de clínica médica no segundo
andar e tenho uma enfermaria de clínica médica cirúrgica ortopédica no 3° andar. Tenho
dois CTIs de adultos, uma unidade neonatal. Esses serviços estão descobertos e, hoje, só
funcionam pontualmente. [...] Eu tinha uma lógica de acompanhar os pacientes nos leitos,
identificar se eles estavam acompanhados ou não e, na hora do horário das visitas, fazer
uma orientação geral num acolhimento das famílias na emergência. Agora eu não consigo
mais fazer isso. Há superlotação na sala vermelha e na sala amarela (Entrevistada n° 5).

Eu sou plantonista de 24 horas no domingo. Eu só tenho uma colega que revezará comigo.
Éramos três assistentes sociais no domingo, agora fico eu de estatutária e uma contratada
que faz revezamento (Entrevistada n° 5).

Ao contrário do que podem discursar os defensores desse modelo de capitalismo


hegemônico no atual contexto sociopolítico, não ocorre apenas uma simples eliminação do
tempo ocioso do trabalhador por meio dessa intensificação do exercício profissional. A
diminuição relativa de absorção de profissionais para a ocupação dos cargos implica não
apenas a intensificação do exercício desses profissionais/precarização das condições de
trabalho, mas, também, a precarização na qualidade dos serviços prestados. Vejamos como
isso se expressa em alguns comentários dos entrevistados:

Às vezes na abordagem que tem no leito surgem algumas dúvidas... Algumas coisas, às
vezes, também provocamos... O certo seria estarmos sempre provocando o usuário na
nossa ida ao leito para ir [...] tentando descobrir as possíveis demandas sociais. Mas às
vezes, na rotina agitada, […] não temos possibilidades de ficar “perturbando”,
perguntando, tentando entender ao máximo a história daquela pessoa para ir colaborando
ao máximo ali (Entrevistada n° 2).

Quando eu paro para refletir sobre a prática, sempre me lembro da Iamamoto, quando ela
fala que o assistente social tem que ser propositivo, não meramente executivo, tem que
investigar a realidade, decifrar e, para mim, tanto é o que eu procuro refletir para poder
cumprir, quanto é o que eu sei que não se materializa na prática. Porque na correria do
cotidiano, na prática, para você tentar ser propositivo e não [meramente] executivo. Com
uma porta que bate e que você atende um com dez esperando, entendeu? Com uma
emergência que você não consegue nem fazer uma abordagem ao paciente porque,
enquanto você está falando com um, está o alto-falante, lá “assistente social compareça ao
acolhimento”. Como você vai tentar ser propositivo numa realidade dessa? Diante dessa
realidade? (Entrevistada n° 4).
134

Na prática do Serviço Social aqui no hospital, devido à superlotação, devido ao caos que
está instaurado nessa unidade, o Serviço Social não tem feito mais abordagem leito a leito
(Entrevistada n° 4).

Uma das profissionais entrevistadas apontou claramente como a referida


intensificação desse trabalho extrapola a nossa categoria profissional e espraia-se pelos
demais profissionais da unidade em que trabalha. Cabe observarmos:

Eu tenho me sentido a “assistente social do óbito”... […] Eles falam: “Não, mas vocês não
vão comunicar, mas aqui está dizendo que vocês têm que estar juntos com o médico na
hora da comunicação do óbito!”. Mas o médico comunica o óbito e os assistentes sociais
fazem as orientações referentes ao sepultamento, verificam se tem assistência funerária e
se não tem condições à gratuidade. Só que, [...] com a entrada da OSCIP [Organização da
Sociedade Civil de Interesse Público], eu posso dizer claramente: na emergência, a
qualidade do atendimento caiu, porque, assim como caiu a qualidade do atendimento, a
qualificação técnica do Serviço Social caiu – por conta da transferência compulsória das
assistentes sociais estatutárias para outras unidades –, e também caiu em relação aos
outros profissionais. Isso não é um problema que está acontecendo só com o assistente
social. Está acontecendo também com as demais categorias. Então, os melhores médicos
da emergência, que eram estatutários: caíram; os melhores enfermeiros: caíram. Quem
está lá? Os contratados. E vou dizer: morre muita gente. O que significa morrer muita
gente? Na hora de comunicar o óbito, eu acompanho dez óbitos por dia! […] Como está
tendo muito óbito, estou me sentindo a assistente social do óbito, porque, na medida em
que a comunicação do óbito à família demanda a presença do Serviço Social. Às vezes,
chega ao ponto em que o nosso apoio emocional não está sendo “apoio emocional ao
familiar” não; está sendo apoio emocional de um profissional para o outro, porque
sobrecarrega emocionalmente tanto a ele, que é profissional, quanto a mim. Foram muitos
óbitos. […] Está complicado não só para o Serviço Social, mas também para as outras
categorias. É uma realidade que a saúde pública está vivendo. Não vamos dizer: “Só esta
acontecendo com o Serviço Social”. Está acontecendo com todas as outras categorias
(Entrevistada n° 5).

No momento que você está atendendo, não consegue imprimir a mesma qualidade nesse
atendimento, porque você tem […] um número reduzido de profissionais. Que
“camuflagem” é essa? [...] Meu hospital aumentou, o número de infecções aumentou, e eu
fico procurando com meus “parceiros” de domingo, [...] eu vou à sala da ortopedia e fico
falando assim: “E aí, como está o atendimento?”. Eles respondem: “O pessoal está
revoltado!” [...]. Então, eu vou tendo uma leitura do que está acontecendo no meu plantão
de domingo. [...] isso tem implicações na qualidade do atendimento. Outro dia eu soube
que fizeram 20 cirurgias de ortopedia e liberaram, [...] no outro dia reinternou todo mundo
com infecção. Entendeu? Então que lógica é essa? (Entrevistada n° 5)

Essa assistente social acabou apontando outro mecanismo que vem interferindo na
autonomia de alguns assistentes sociais na saúde do estado do Rio de Janeiro: novos
modelos de gestão das políticas sociais. São as Fundações de Saúde, Organizações Sociais
e Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). A partir dos comentários
de uma das entrevistadas, podemos ter maior noção de como esses processos se
manifestam na particularidade do cotidiano de trabalho dos assistentes sociais que a ele
estão submetidos. O primeiro ponto que chama a atenção está ligado ao próprio caráter
mercantilista, que busca promover uma mudança de paradigma na saúde, subvertendo
circunstancialmente sua natureza enquanto direito de todo cidadão, garantido pelo Estado.
No trecho a seguir, podemos identificar como noções básicas como a de “trabalhador” são
135

subvertidas com fins ideológicos explícitos:

Veio um oficio para o Serviço Social (mas também veio para as outras categorias). Eu
conversei com o psiquiatra da saúde mental, […] falei: “vocês sabiam que nós não somos
mais trabalhadores da saúde, somos colaboradores da saúde?”, e no oficio vinha dizendo
que vamos passar pelo treinamento informatizado. E no documento diz que somos
colaboradores e precisamos ser “calibrados”... Ele usou a palavra “calibrados”. […]
Penso que estamos vivendo um momento de tremendo retrocesso (Entrevistada n° 5,
grifos nossos).

Em outro momento da entrevista, essa assistente social também expõe o


autoritarismo exorbitante dessa nova forma de gestão, lembrando-nos, aliás, as formas
tradicionais de gestão empresarial.

Tínhamos um diretor técnico que sentava e conversava sobre os fluxos, o Serviço Social
participava disso. Eu acho que tinham algumas coisas que caminharam. […] avançamos e
depois retrocedemos. Estamos vivendo um momento de tremendo retrocesso, sem
perspectiva de discussão, que num momento recente ainda havia um embate de ganhos e
perdas. Tínhamos algumas conquistas. Nesse momento, perdemos nossas conquistas e
retrocedemos cada vez mais. Porque a lógica agora, nessa nova gestão, é outra. E ela não
favorece. […] O diretor chegou para equipe e falou assim: “Nós somos os donos da casa,
somos nós que temos que administrar a casa” (Entrevistada n° 5, grifos nossos)

Por fim, gostaríamos de destacar a potencialização que essas novas formas de


gestão promovem no que tange ao processo de precarização das formas de contrato de
trabalho. O que, a partir do relato dessa assistente social, pode estar contribuindo também
para dificultar a construção de uma articulação estratégica, mais concreta, entre os
assistentes sociais das equipes.

Fragmentou o grupo, quebrou politicamente grupo. Mas isso foi uma estratégia da OSCIP,
porque ela [...] fez isso com as outras categorias, [...] Diminui o grupo forte que você
tinha. Você fica com outro, que vai fazer o que você quer que faça, vai fazer mesmo. A
direção falou: “Se você não quiser entrar na partilha sai fora! Sai fora... Entendeu?” […]
enquanto profissional está isolado (Entrevistada n° 5)

Outro elemento relevante, diretamente influenciado por esse contexto neoliberal, é


a infraestrutura institucional (as condições de trabalho). Isso diz respeito à existência (ou
não) de recursos básicos de trabalho, como, por exemplo: telefone, papel, impressora,
computador, internet, salubridade, sala de atendimento, sala para reuniões em grupo,
fôlders etc. São recursos que, quando ausentes, tendem a prejudicar a autonomia do
profissional, atando, e/ou freando suas ações. Da mesma forma, o acesso a esses recursos
básicos de trabalho viabiliza e agiliza a intervenção profissional, facilitando, inclusive, o
fornecimento aos sujeitos usuários do atendimento de suas necessidades em outras
136

instituições.85

Os Assistentes Sociais têm relativa autonomia na execução do seu trabalho nos limites
impostos pela conjuntura social e as instituições empregadoras […] Isto significa chance
de escolha, de imprimir sentido, direção valorativa às suas ações, mas para isso são
necessárias condições básicas de trabalho e preparo profissional contínuo (FORTI, 2010,
p. 234, grifos nossos).

De acordo com o gráfico 2, que será apresentada logo a seguir, a realidade


investigada indica que apenas 4 dentre as 12 assistentes sociais que responderam tiveram o
questionário analisado alegaram que a infraestrutura da instituição em que atuam colabora
para uma maior autonomia. É interessante que nenhum dos assistentes que atuam em
instituições particulares respondeu que a infraestrutura fragiliza seu fazer profissional. Por
outro lado, a maior parte dos assistentes sociais que atua no setor público afirma que a
realidade infraestrutural da instituição em que atua interfere negativamente em sua
autonomia profissional. Isso, além de ser expressão da marginalização das políticas sociais
nesse contexto em prol dos interesses da burguesia, expressa a estratégia neoliberal de
precarizar as instituições públicas de atendimento aos usuários-trabalhadores, deixando de
oferecer aos funcionários instrumentos eficientes de trabalho. Isso porque a própria não
legitimação das políticas sociais na atual conjuntura de recuo da classe trabalhadora na
arena da luta de classes, em vez de incendiar a “rebeldia” desses trabalhadores, vem se
mostrando funcional ao aumento da adesão da classe trabalhadora ao setor privado, além
de facilitar o processo de privatização interna das políticas sociais (como na questão dos
novos modelos de gestão). Portanto, se de fato esses dados nos permitem constatar uma
preponderância do setor privado em relação ao setor público, no que diz respeito
especificamente à infraestrutura institucional, devemos ressaltar que essa não é uma
realidade imutável.
No entanto, esses dados mostram que a infraestrutura institucional deve ser muito
bem explorada pelos profissionais que atuam na área privada. Da mesma forma,
reconhecendo o caráter flexível da autonomia profissional, esse elemento deve ser
transformado em “bandeira” de conquista pelos profissionais lotados em instituições

85
Segundo Forti, esse determinante é explicitamente notável na realidade brasileira nos últimos anos (décadas de 1990,
2000 e início da década de 2011) marcados pelo neoliberalismo. Para ela, “O Serviço Social, que lida com a „questão
social‟, vem sofrendo sérias repercussões em seu âmbito de ação. Seus agentes profissionais, além de vulneráveis como
os demais trabalhadores assalariados, têm que trabalhar em condições particularmente adversas, uma vez que trabalham
nas políticas sociais num período em que as propostas de ação, fundamentalmente, não ultrapassam perspectivas
assistencialistas, que articulam focalização e repressão e reforçam a face repressiva da segurança pública” (2010b, p. 26).
137

públicas e para a luta política pela saúde de modo geral.

Gráfico 2

Outro elemento historicamente central para a autonomia profissional é o arsenal de


serviços e benefícios disponíveis ao assistente social na instituição. Esse arsenal
corresponde a uma das marcas mais características da história dos assistentes sociais. O
Bolsa Família, o vale-transporte, as cestas básicas e o Benefício de Prestação Continuada
são alguns dos recursos que, com maior constância, os assistentes sociais costumam
viabilizar aos usuários, seja diretamente – apenas por sua intervenção – ou indiretamente –
por meio de encaminhamentos/orientações dos usuários a instituições responsáveis pela
concessão desses serviços e benefícios. A existência desse arsenal pode ser um dispositivo
muito relevante para os assistentes sociais atraírem os usuários à instituição, na medida em
que são atrativos notáveis no que concerne à busca, por parte dos trabalhadores-usuários,
de melhorias em suas respectivas condições de vida. 86 Por isso, podemos dizer que
permitem ao profissional a oportunidade de ter maior contato com o público que atende.

86
Vale a pena afirmar que, como veremos no próximo item, esses arsenais costumam ser atribuídos diretamente à
figura do assistente social. Ou seja, tais dispositivos são elementos importantes para pensar a compreensão do que é e o
que faz o Serviço Social e de sua respectiva legitimidade.
138

Isto, por sua vez, lhe oportuniza trabalhar de maneira mais contínua, previsível, e com
ações menos imediatistas, assim como também potencializa a possibilidade do profissional
explorar a dimensão pedagógica de sua prática profissional, tanto no sentido de orientá-los
para que consigam acessar outros serviços/benefícios sociais disponíveis na rede
socioassistencial quanto para contribuir na formação de uma consciência mais crítica e
coletiva por parte deles.
Por outro lado, a falta de serviços e benefícios oferecidos na instituição,
condizentes com as necessidades materiais do público usuário da instituição onde os
assistentes sociais atuam (como a que se costuma presenciar em tempos neoliberais), tende
a imobilizar os profissionais e a própria instituição, na medida em que distanciam o
público usuário daquele espaço. Essa limitação, em termos de efeitos assistenciais, acaba
por dificultar até mesmo a adesão por parte dos usuários às iniciativas profissionais de
caráter fundamentalmente educativas.
A respeito desse determinante e sua dimensão flexível, Faleiros destaca que “a
autonomia desse profissional na atribuição de recursos e na prestação de serviços é
limitada” (FALEIROS apud MONTAÑO, 2007, p. 105). Ou seja, na concepção do autor,
ainda que esse elemento que determina a autonomia profissional também seja flexível, no
sentido de ser ampliado, os assistentes sociais costumam não ter muita autonomia a
respeito da quantidade e qualidade desses recursos.
No quesito “arsenal de serviços e benefícios disponíveis”, como podemos ver mais
adiante no gráfico 3, as assistentes sociais que tiveram seus questionários considerados por
esse estudo se mostraram bastante divididos. 7 assistentes sociais afirmaram que a
disponibilidade dos serviços e benefícios sociais, como estão disponibilizados pela
instituição hoje, afetam positivamente sua autonomia, com intensidade predominantemente
classificada como “regular”. Outras 3 profissionais afirmaram que esse fator vem coagindo
sua autonomia, indicando uma possível escassez destes meios de atuação, sob direta
influência do período de enxugamento neoliberal das políticas sociais.
139

Gráfico 3

Apesar de 7 das assistentes sociais analisadas por meio do questionário sinalizarem


que esse elemento vem interferindo positivamente no que tange à autonomia profissional, o
que se destaca nos argumentos colhidos são exatamente os momentos de ausência desse
arsenal de serviços e benefícios sociais. Nesse sentido, cabe detalhar algumas das formas
como essa situação se materializa no cotidiano:

Por exemplo, o usuário chega na saúde e não tem acesso às leis, ao exame, a uma
internação, a uma consulta e, quando tem, não tem acesso ao medicamento, [...] às vezes,
a pessoa está desempregada e a previdência, cada vez com os “mínimos sociais” para o
acesso dos benefícios, ao BPC [Benefício de Prestação Continuada], ao Bolsa Família...E
não tem emprego, a educação não funciona... Tudo isso diminui nosso leque de
possibilidades de intervenção (Entrevistada n° 3).

Uma questão que causa impacto muito grande no nosso cotidiano de trabalho é a questão
da falta de rede (da intersetorialidade). Não existem políticas sociais funcionando, a partir
do momento que você acessa política de assistência procurando CRAS, CREAS, centrais,
centrais de “repouso”, instituições públicas de abrigamento (seja de população de rua, seja
de idoso)... Não tem! É uma questão que me causa maior inquietação aqui no cotidiano de
trabalho (Entrevistada n° 4).

[…] [Por exemplo, o usuário] está em situação de alta [...]. Nessas situações, informamos
ao usuário que vamos procurar uma instituição, que vamos dar um retorno assim que
possível […]. Primeiro elaboramos um ofício, informando qual é a história do morador de
rua [...] ou do idoso, para ver se existe a possibilidade de reinserção dele na sua família ou
amigos etc. Enfim, para verificar se existe algum vínculo, ainda seja com um amigo ou
família. Esgotada essa possibilidade: […] começamos a busca. Elabora oficio e envia para
140

as centrais de recepção do Estado e do município respectivamente. Depois de duas


semanas, vem uma resposta, que 99% das vezes respondem: “Não, não temos vagas. Por
conta disso, começamos a procurar instituições filantrópicas ou ONGs da região em busca
de vaga. E, temos encontrado vagas em instituições religiosas. (…) quando conseguimos
vagas [para transferência], normalmente (…) [são as] instituições religiosas […], que têm
conseguido vaga para podermos encaminhar (Entrevistada n° 4).

Esse último trecho de entrevista deixa transparecer um elemento muito importante


de nossa conjuntura neoliberal: o fato de que a retirada do Estado no trato dos serviços
sociais se faz concomitantemente ao protagonismo do ”terceiro setor” no trato das mesmas.
Ainda que tal substituição não seja proporcional, nem em nível de quantidade nem de
qualidade.
Outro elemento central para pensar a autonomia profissional refere-se à relação
profissional com o mercado de trabalho profissional. Este será analiticamente dividido em
duas questões de fundo: a disputa de cada assistente social pela inserção/permanência no
mercado de trabalho e a forma de vínculo do profissional com este mercado de trabalho
(tipo de contrato de trabalho).
O primeiro possui basicamente duas dimensões – interna e externa –, que se
reproduzem com intensidades e formas bem diferentes entre si (ainda que nem sempre
ambas sejam notadas pelos assistentes sociais). Além disso, ambas as dimensões obedecem
a uma lógica diretamente relacionada àquela explicitada por Marx e chamada de
“superpopulação relativa”. Trata-se da massa de trabalhadores qualificados e disponíveis
para determinada atividade laboral, mas que não conseguem ser inseridos no mercado em
decorrência da não disponibilização de vagas por conta dos empregadores. Marx adverte
que, na medida em que essa massa aumenta, a despolitização por parte dos trabalhadores
inseridos no mercado de trabalho também tende a aumentar, despotencializando, por parte
dos trabalhadores, atividades mais ousadas, como a adesão aos sindicatos, por exemplo.
No entanto, no caso da atuação profissional, essa “pressão” exercida pela
“superpopulação relativa” será analisada a partir de particularidades específicas de uma
atividade cuja essência é eminentemente política, como a do assistente social. 87 Isso indica
que suas oportunidades de investimentos políticos, diferentemente do operário – cujas
atribuições são central/diretamente voltadas para a produção econômica –, não se resumem
ao período extra profissional. Ou seja, os posicionamentos de caráter político dos

87
Não queremos, com isso, entrar em qualquer tipo de polêmica no sentido de afirmar ou negar que sua atividade
produza (direta ou indiretamente) riqueza ou não. Queremos apenas destacar que o Serviço Social foi criado e se
reproduz sob a central atribuição de criar condições políticas e culturais para a reprodução do capitalismo, diferentemente
do operário de uma fábrica, cujas atribuições se voltam, centralmente, para a produção de riqueza.
141

assistentes sociais, passíveis de pressão pela “superpopulação relativa”, não se limitam à


organização política extra tempo de serviço, sendo inevitavelmente exercidos durante sua
própria atividade profissional. Neste sentido, em conjunturas em que cresce abruptamente
o número de assistentes sociais formados sem que, com isso, haja um crescimento
proporcional do mercado de trabalho profissional, a autonomia profissional (em relação ao
projeto institucional) diminui, e vice-versa. De acordo com Iamamoto, o atual contexto
sociopolítico parece incidir desfavoravelmente também nesse quesito. Vejamos:

O crescimento exponencial do contingente profissional no curto prazo traz sérias


implicações para o exercício e para as relações de trabalho por meio das quais ele se
realiza. Dificilmente a oferta de postos de trabalho poderá acompanhar, no mesmo ritmo,
o crescimento do contingente profissional, pressionando o piso salarial, a precarização das
condições de trabalho, aumentando a insegurança do trabalho e o desemprego
(IAMAMOTO, 2008c, p. 134).

Assim, podemos compreender que o assistente social inserido no mercado de


trabalho sente-se pressionado por essa massa de desempregados e subempregados, sente-se
menos potente, no sentido de realizar ações mais críticas em relação às direções
institucionais. Essa disputa pelo cargo de assistente social entre os próprios profissionais
equivale ao que chamei de dimensão interna da disputa pela inserção/permanência no
mercado de trabalho.
A dimensão externa equivale à existência dessa pressão em relação a outras
profissões que podem substituir a posição de um assistente social.

O Serviço Social sofre impactos da disputa de outras especializações correlatas, o que


requer, para além de regulamentações formais, o cultivo de novas competências
sociopolíticas e instrumentais necessárias ao alargamento dos espaços ocupacionais e das
bases sociais de legitimação da profissão (IAMAMOTO, 2008, p. 276).

Essa dimensão externa costuma ser muito mais complicada de ser apreendida.
Podemos dizer que pode se manifestar basicamente de duas maneiras: primeiramente, pela
substituição de uma categoria profissional por outra no trato de determinadas demandas.
Trata-se da preocupação exposta por Netto em meados da década de 1990, quando
contextualiza:

Em áreas de intervenção em que tradicionalmente o Serviço Social aparecia legitimado


para os representantes do capital e do Estado, surgem outros profissionais que disputam
papéis e tarefas com os assistentes sociais, pondo em xeque a legitimidade anteriormente
alcançada (1996, p. 108-109).

A segunda maneira de pressionar a autonomia do assistente social utilizando-se da


concorrência com outras categorias profissionais é por meio da homogeneização de suas
atribuições com as de outra categoria no mesmo espaço de intervenção profissional. Isso
142

ocorre quando profissionais de diferentes formações recebem abertamente, por parte da


hierarquia institucional, atribuições iguais ou quase iguais a serem desenvolvidas em seu
exercício profissional. Existem casos em que, além das particularidades de atribuições,
suprimem-se também as particularidades formais em termos de denominação profissional.
Não simplesmente pela formalidade dessa denominação, mas também de todo aparato que
está por trás de tal denominação. Por exemplo: é recorrente, principalmente fora do âmbito
do Estado, a existência de profissionais formados em Serviço Social, que lidam com a
“questão social”, empregados como “educadores sociais”, assim como os assistentes
sociais que atuam no campo empresarial contratados como “analistas de benefícios”. Esses
termos não só camuflam a deliberada disputa entre formações de diferentes campos,
descaracterizam o profissional, e tendem a baixar o salário, como também retiram desses
profissionais elementos que podem significar relevantes recursos no que tange à autonomia
profissional. Como por exemplo: sindicatos, conselhos regionais e federais, Código de
Ética, Lei de Regulamentação etc. Este recurso também tende a pressionar, de maneira
ainda mais violenta, o assistente social a intervir de acordo com os interesses do projeto
institucional, na medida em se torna evidente que a outra categoria ameaça potencialmente
seu cargo.
A segunda questão a respeito do mercado de trabalho profissional (tipo de contrato
de trabalho) refere-se às diversas formas de inserção institucional, que se configuram
basicamente em torno do tipo de contrato que oficializa o assistente social. Os contratos
estabelecem um grau extremamente variado de vínculos institucionais, fragilizando ou
consolidando (relativamente) o profissional na instituição. Quanto maior a fragilidade do
contrato, mais submisso à hierarquia institucional e mais sujeito a abusos de autoridade o
trabalhador estará, diminuindo significativamente sua capacidade de ousar criticamente.
Na pesquisa que realizamos, as assistentes sociais se mostraram divididas a respeito
desse tema. O gráfico 4, a seguir, nos expõe que 5 assistentes sociais analisadas por meio
do questionário declararam que o tipo de contrato de trabalho que possuem colabora para
sua autonomia profissional e outras 7 afirmaram que este influencia negativamente em sua
relativa autonomia profissional.
143

Gráfico 4

No entanto, devemos destacar a natureza eclética de tipos de contratos, que, como


poderemos visualizar no próximo gráfico (nº 5), conta apenas duas que se declararam
estatutárias; duas, cujos vínculos remetem a uma atuação com viés de formação
(“treinamento Profissional” e “bolsa residente”), uma que declararou ter o vínculo de CLT
e, honrando a marca dessa era de reestruturação produtiva, uma lastimável predominância
dos vínculos temporários: 7 profissionais.

Gráfico 5.
144

O mais interessante é que, dentre as 5 que declararam que o tipo de contrato de


trabalho colabora para sua autonomia profissional, nenhum é “temporário”, dividem-se
entre treinamento profissional/bolsa residência, estatutários e celetistas. Dentre os 7
restantes que afirmaram que o tipo de contrato influencia negativamente em sua relativa
autonomia profissional, uma possui contrato vinculado à formação e as outras 6 são
exatamente aquelas cujos contratos são temporários. Além disso, um número muito
significativo dos assistentes sociais (4) qualificaram essa influência negativa do contrato de
trabalho como “intensa”.
A influência do tipo de contrato de trabalho do profissional em sua rotina
institucional se mostrou muito clara também durante as entrevistas. Vejamos,
primeiramente, o relato de duas assistentes sociais vinculadas por meio de contrato
“temporário”:

Estou num vinculo precário. Atualmente, é superprecário. Eu não sei como vai ser o dia
de amanhã. Ou melhor: eu não sei nem […] o que vai ser de mim em março.88 Eu não sei
se eu vou estar lá, se não vou estar... [...] Tudo interfere na nossa motivação, nosso
interesse e na resolução... (Entrevistada n°2)

Porque dizer que a função do assistente social, segundo aquela “cartilha” amarela que
pegamos no CRESS, [que diz que a função do assistente social] é “garantir os direitos dos
usuários”... Quem vai garantir? Eu vou garantir? Nós dependemos desse emprego, desse
salário! Como você vai criar um embate? Pegar o usuário na mão e levar lá em cima,
sabendo que isso vai te prejudicar? Ainda mais nesse vínculo precário que temos
(“FESP”),89 eles diriam: “Opa, você está fazendo isso? Você está errada! Amanhã você
não vem mais trabalhar aqui, você vai trabalhar numa instituição lá em Vassouras. Você
vai querer ir?” (Entrevistada n° 4).

A seguir, veremos a análise de duas assistentes sociais, cujos vínculos na instituição


são mais “sólidos”. A primeira ilustra esse contraste dos tipos de vínculo a partir das duas
formas de inserção que fazem parte de sua realidade:

Acho isso fundamental. Por exemplo, tenho dois vínculos: num vínculo, eu sou bolsista, e
no outro sou terceirizada. Isso faz uma diferença extrema para a relação onde eu trabalho.
[…] Mas acho que, mesmo assim, o contrato de trabalho se diferencia ali. Assim, por
exemplo, na hora de falar: “Olha, eu não estou concordando com essa situação de
trabalho. Quero que mude”. […] [ou] “Não, eu não estou concordando essa situação de

88
No período da entrevista (dezembro de 2011), havia um forte boato, reproduzido inclusive por funcionários do
“Recursos Humanos” de algumas unidades da saúde do estado do Rio de Janeiro – onde essa e outras assistentes sociais
entrevistadas são contratadas temporariamente – de que a Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro (SES)
dispensaria todos contratados. O que significaria a quebra do tempo previsto pelo contrato para serem substituídos pela
Fundação. Esse fato não ocorreu até o presente instante (2012).
89
“FESP” é a sigla da banca organizadora referente ao concurso para profissionais da saúde da SES. Apesar de ser
apenas uma banca, que, a propósito, nem existe mais, os profissionais contratados temporariamente por esse concurso são
conhecidos dentro das instituições como “FESPs”.
145

trabalho, vamos pensar num outro” ... É lógico que também influencia (Entrevistada n° 3).

A segunda é estatutária, numa instituição em que a equipe de Serviço Social está


passando por um processo de implementação da OSCIP. Em consequência disso, segundo
ela, a maioria dos profissionais estatutários foi autoritariamente transferida de instituição,90
ao passo em que houve a chegada de outras profissionais, porém sob o vínculo precarizado.
Ela destaca como essa questão dos vínculos precarizados acaba por se imbricar com outros
dois elementos que interferem decisivamente na autonomia profissional. O primeiro refere-
se à “politicagem clientelista”, que ainda perpassa com força as políticas sociais
brasileiras:

Esse grupo que entrou [os contratados pela OSCIP] passou na ponta dos dedos: fulano foi
indicação de fulano; fulano porque o marido é amigo de prefeitura do [nome do prefeito];
a outra porque foi indicada [...] entendeu? Então, é um grupo que depende politicamente
daquele emprego, tem uma dependência da instituição frente aos desmandos, porque, se
eu não obedeço, eu perco meu emprego (Entrevistada n° 5).

Outro elemento central já supracitado é a formação profissional. Na medida em que


o conhecimento das determinações e conexões sociais é base para viabilizar a concreta
liberdade de ação na realidade (NETTO, 1998, p. 24), um conhecimento coerente, voltado
para as particularidades da ação profissional, também é base para a efetivação e a
ampliação dessa margem de autonomia do assistente social. Por isso, a densidade teórica e,
obviamente, a capacidade de mediá-la em seu cotidiano são determinantes centrais no grau
de autonomia, visto que, quanto maior o domínio teórico do assistente social, menores
tendem a ser as possibilidades de manipulação por outros sujeitos no exercício profissional
e maior será o leque de alternativas visualizadas pelo assistente social.

Para decifrar as relações sociais e qualificar o desempenho profissional, são requeridas


mediações na análise das particularidades dessa especialização do trabalho, que carecem
de visibilidade no universo da produção científica do Serviço Social (IAMAMOTO, 2008,
p. 463).

Esse atributo garante também ao profissional uma maior capacidade criativa,


potencializando embates e táticas que lhe permitam contornar situações desfavoráveis,
promover alianças estratégicas etc. Nesse sentido, Montaño destaca que

Para beneficiar a relativa liberdade de que dispõe [o assistente social], para privilegiar sua
estratégia de ação e seu poder de barganha, este ator depende basicamente de quatro

90
A respeito dessa transferência, a referida entrevistada descreve: “foram colocadas para fora da unidade, como eu te
falei, as outras estatutárias foram ao ponto no mês de novembro e receberam um comunicado de que seria devolvida para
a secretaria de saúde, foram alocadas para outros locais, diferente dos horários que elas trabalhavam, distantes, ou seja,
não foram colocadas à sua escolha” (Entrevistada n°5).
146

recursos: 1) o saber e a perícia, 2) a informação conjuntural, 3) o domínio da regra


institucional e 4) o controle do entorno institucional (2007, p. 109).

A formação inclui, obviamente, a própria necessidade de o profissional ter clareza


quanto à sua própria autonomia em cada contexto institucional. Neste sentido, estar ciente
do caráter relativo e flexível dessa autonomia profissional é condição básica para que os
assistentes sociais possam conduzir ações de acordo com suas respectivas convicções.
Sobre isso, encontramos embasamento nas palavras de Leila Lima Santos, que afirma:

As possibilidades reais dos assistentes sociais na América Latina dependem de sua


capacidade para compreender tanto as condições materiais que definem sua ação social
concreta como o fato que as mencionadas condições materiais não constituem laços
inflexíveis e absolutos. A capacidade para manejar estes elementos objetivos ao lado das
genuínas aspirações profissionais e das condições do exercício profissional são os
elementos que, no nosso entender, permeiam o que poderia ser chamado as possibilidades
e os alcances da ação dos assistentes sociais na América Latina (1983, p. 176).

Gráfico 6

Como podemos perceber no gráfico 6, quanto ao acúmulo teórico adquirido na


formação de maneira geral, 11 das assistentes sociais que responderam ao questionário
disseram que esse fator interfere positivamente no que diz respeito à sua autonomia
profissional. Nenhum afirmou que esse elemento interfere negativamente em sua
autonomia, e apenas uma alegou não haver interferência desse elemento no que diz
respeito à “autonomia profissional”. Esse elemento destacou-se pela unanimidade em
termos de dados obtidos no questionário, mas também emergiu espontaneamente em
147

alguns momentos da entrevista. Vejamos um deles:

Precisamos conseguir ter uma análise da realidade, um respaldo teórico, mesmo na


questão das leis também. Temos que estar sempre nos atualizando, lendo, buscando outras
alternativas. Acho que a teoria contribui bastante (Entrevistada n° 3).

Outro elemento que gostaríamos de ressaltar refere-se à organização das entidades


da nossa categoria profissional no Brasil. Esse elemento diz respeito ao fato de que, a
postura política da categoria dos assistentes sociais deve ser analisada também em suas
particularidades. Isso não quer dizer que devemos analisar ambos os elementos
paralelamente, mas sim que, apesar de estarem profundamente articulados, precisamos
levar em conta a particularidade do movimento dos assistentes sociais para não cairmos no
perigo das conclusões falsas. Há momentos em que estas posturas simplesmente não
coincidem.
Isso significa compreender como, e em que medida, a categoria se encontra
organizada no cenário social por meio de entidades representativas. Isso será relevante
principalmente no que tange aos impactos em relação às melhores condições de trabalho,
na medida em que estas instrumentalizam, concretamente, os profissionais frente ao
projeto institucional.

O Serviço Social, [...] na medida em que dirige seu processo de formação não meramente
para o atendimento direto das demandas institucionais, mas, formando um profissional
crítico e competente, que organize o coletivo em entidades fortes e representativas e que
consolide o seu Código de Ética claramente orientado em certos valores definidos
coletivamente, o assistente social pode ver reforçada sua margem de manobra
(MONTAÑO, 2008, p. 138).

A esse respeito, o contexto nacional é basicamente formado pelo conjunto


CFESS/CRESS, ABEPSS e ENESSO. No entanto, o mais relevante a esse respeito já fora
levantado no capítulo anterior. Nesse momento basta recordar que “desde os anos [19]80
[essas entidades] exercitam sua capacidade de resistência e formulação, organicamente
articulada aos interesses históricos das classes trabalhadoras” (AMARAL; MOTA, 2007, p.
53), conseguindo, inclusive, colaborar determinantemente para conquistas da categoria
profissional, mesmo em tempos difíceis como esses referentes às duas primeiras décadas
que abriram o segundo milênio.
O reconhecimento dessa luta e da consequência dela, no que tange à autonomia
profissional, também se expressou nos dados colhidos. Neles, podemos perceber que o
papel dessas entidades vem contribuindo para a autonomia profissional desses assistentes
sociais, já que 8 das assistentes sociais que responderam o questionário afirmaram que
148

essas entidades interferem positivamente em sua autonomia e nenhum alegou se sentir


coagido por conta das mesmas. As 4 profissionais restantes se mostraram indiferentes,
indicando que consideram que o papel que essas entidades vêm desempenhando no atual
momento não chegam a interferir no cotidiano profissional nesse sentido. Os detalhes
desses dados podem ser observados no gráfico a seguir:

Gráfico 7

No entanto, não passou despercebida uma das grandes polêmicas na categoria a


respeito desse tema: a questão do sindicato dos assistentes sociais. Durante o
amadurecimento político da categoria na década de 1980, os militantes decidiram transitar
do sindicato por profissão (dos assistentes sociais) para o chamado “sindicato por ramo”.
Assim, por exemplo, os assistentes sociais da saúde voltaram seus investimentos no
sindicato dos profissionais da saúde. O grande problema é que, com o recuo e
despolitização da classe trabalhadora e de suas principais centrais sindicais, a força desses
sindicatos deixou de satisfazer às necessidades da categoria profissional.
Consequentemente, muitas demandas que competem a sindicatos são demandadas ao
conjunto CFESS/CRESS. O resultado desse “nó histórico” é um impasse, que foi, assim,
problematizado pela assistente social entrevistada a seguir:
149

O nosso conselho mesmo, [...] muitas vezes, é falho em alguns pontos que poderia ser
mais atuante. E ficamos naquela: “Como vou denunciar se eles não vão fazer nada?”.
Então nesse ponto, o professor estava até falando, acho também que temos que entender o
papel do sindicato e do conselho... Deveríamos ter um sindicato, contar com um sindicato,
só que não temos! Esse caso, por exemplo, deveríamos contar com um sindicato, […] mas
só temos conselho, e o conselho fica de mãos atadas... (Entrevistada n° 2),

A luta e a organização da classe trabalhadora, de maneira geral, e da categoria dos


assistentes sociais, especificamente, têm influência direta sobre outros fatores de extrema
importância no que tange à autonomia profissional dos assistentes sociais. E é a partir
dessa compreensão que passamos ao próximo elemento que gostaríamos de destacar nesse
estudo: as legislações. Trata-se do conjunto de elementos clássicos no percurso histórico da
profissão, que tanto vem servindo para flexionar a autonomia profissional quanto para
utilizá-la em prol das estratégias profissionais. Esse elemento é destacado por Iamamoto,
quando aponta que “a possibilidade de imprimir uma direção social ao exercício
profissional do assistente social [...] decorre da relativa autonomia de que ele dispõe,
resguardada pela legislação profissional e passível de reclamação judicial” (2008, p. 220).
De fato, antes de prosseguirmos, cabe lembrar que, embora devamos admitir a
inquestionável incidência de outras leis que interferem na autonomia profissional, 91 duas
leis se destacam em termos de incidência na prática profissional (se levarmos em
consideração suas variadas áreas de atuação): o Código de Ética profissional e a Lei de
Regulamentação profissional. Preponderância que ficou clara no argumento de uma das
entrevistadas:

Não podemos deixar de mencionar o que eu chamo de “a bíblia do Serviço Social”: o


Código de Ética, que é […] primordial para poder pautar a nossa prática, seja em qual for
a área. Seja na saúde, seja na assistência , seja na educação: o fundamental é a leitura do
Código de Ética e a Lei de Regulamentação – para você poder pautar a sua prática, saber
o que pode o que não pode, o que é contribuição, o que é competência, o que é atribuição
privativa... (Entrevistada n° 4).

Em consonância com esse ponto de vista, o questionário buscou contemplar apenas


o Código de Ética Profissional e a Lei de Regulamentação da Profissão, por perpassarem
com maior intensidade qualquer campo de atuação profissional.
Através da Lei de Regulamentação da profissão, “na defesa de sua relativa

91
Talvez os dois exemplos mais notáveis a esse respeito sejam a “lei das 30 horas semanais”, por se tratar de uma lei
capaz de garantir aos profissionais “melhores condições de trabalho”, na medida em que ameniza a exploração dos
assistentes sociais e a própria “concorrência interna” no mercado de trabalho profissional e a Lei de Diretrizes e Bases da
ABEPSS. Essa lei garante à categoria um instrumento sólido de reivindicação e combate para uma formação crítica e de
qualidade, capaz de orientar o assistente social na utilização de sua “relativa autonomia” num caminho efetivamente
diferente daquele indicado e pressionado pela instituição.
150

autonomia [...] o assistente social conta [...] com a regulamentação de funções privativas e
competências” (IAMAMOTO, 2008, p. 422), que lhe garantem maior autonomia,
principalmente frente a outras categorias e à instituição contratante. A partir dessas funções
privativas e competências, os assistentes sociais são menos pressionados por outras
categorias em termos de concorrência de emprego. Esses fatores podem, portanto,
beneficiar a autonomia profissional ao determinar positivamente outros fatores já
destacados acima (por exemplo: a questão da “concorrência interna” e o “prestígio
profissional”).
Para Forti, o Código de Ética dos assistentes sociais representa

Um „instrumento‟ que dá respaldo ao conhecimento, às decisões e às atitudes


profissionais, uma vez que assegura referências ético-políticas (também teótico-
metodológica) e normas para o exercício profissional. […] neste instrumento estão
fundamentos teórico-filosóficos, valores e diretrizes que se alinham aos compromissos
democráticos em face dos direitos humanos e sociais e são consoantes com os avanços
possibilitados pela Constituição brasileira de 1988 e com a ideia de que os valores
emergem com a vida social […] na sua forma privilegiada – o trabalho (2010, p. 146).

Podemos, portanto, considerar o Código de Ética e a Lei de Regulamentação da


profissão como aliados na perspectiva de ampliar a autonomia profissional frente à
instituição. Isso indica não apenas a potencialidade desses instrumentos, mas também uma
possível maturidade da categoria profissional no sentido de já conseguir extrair proveitos
dessas duas leis. Vale sinalizar que não é possível estabelecer entre as duas leis uma
hierarquia de importância mas, com base nos gráficos 8 e 9 (a seguir), podemos afirmar
que, em ambos os casos, 11 das assistentes sociais que responderam ao questionário
alegaram que a lei referente interfere positivamente em sua autonomia profissional,
enquanto apenas uma afirmou que elas são indiferentes.
151

Gráfico 8

Gráfico 9

Apesar de possuirmos, em nível de categoria, um segmento evidentemente


intelectualizado, crítico, atuante, estruturado e relativamente articulado em torno do
chamado projeto ético-político profissional, sabemos que não podemos transportar
mecanicamente essas características para as equipes profissionais na particularidade de
152

atuação. Por isso, também devemos levar em consideração algumas características a


respeito da interferência que a equipe de Serviço Social exerce sobre a autonomia dos
assistentes sociais. Isso nos permite lançar mão da discussão em torno do tipo de
relacionamento desses assistentes sociais com a própria equipe, para avaliar algumas
características recorrentes dessa relação de aliança e embates dentro da própria equipe, já
que, há décadas, o Serviço Social rompeu com a homogeneidade e isso, de alguma forma,
também reflete no campo interventivo. Isso nos aponta a possibilidade concreta de relações
de disputas e alianças veladas e/ou abertas internas à própria categoria, que se manifestam
de maneiras variadas e complexas, recheadas de negociações, disputas, consensos,
concessões, embates e mesmo coerções em cada particularidade de equipe de Serviço
Social. Em um dos depoimentos, essa possibilidade de divergência entre projetos
profissionais se mostra de maneira muito evidente:

Tem duas profissionais na unidade que eu percebo que elas jogam o ”jogo” da instituição,
ou melhor: se tiverem que jogar o “jogo”, elas jogam o ”jogo” da instituição, não jogam o
nosso. […] Eu sei que naquele meio vai ter gente [...] que não está afim, que não está
seguindo conosco o mesmo projeto. Eu vou colocar a minha cara a tapa [...]? As sete
juntas colocando a cara a tapa é uma coisa... […] Realmente é difícil, entendeu?
(Entrevistada n° 2)

No entanto, devemos ressaltar que, mesmo dentro de determinados projetos


políticos, existem recorrentes divergências entre os sujeitos históricos. Esse fator, ao
mesmo tempo em que é indispensável para a construção de qualquer projeto efetivamente
democrático, abre margem para a existência de dificuldades de avanços do projeto comum.
Isso quer dizer que, mesmo dentro de uma equipe que partilhem de um mesmo projeto
profissional, é concretamente possível o surgimento de dificuldades que limitem a
autonomia profissional.
Em relação aos dados tabulados, a partir do gráfico 10, pudemos perceber que a
maioria esmagadora (10) das assistentes sociais que responderam o questionário
consideram que a relação que mantêm com sua equipe de Serviço Social configura-se
como um elemento fortalecedor de sua autonomia. Na medida em que todas as 12
profissionais se disseram orientadas pela matriz marxista e que 10 se disseram
comprometidos com o projeto ético-político profissional, 92 esse dado parece expressar que

92
É interessante assinalar que, dentre as duas profissionais que não se disseram intencionadas em materializar o projeto
ético-político profissional na instituição onde atuam, nenhuma respondeu não estar intencionada. Ambas marcaram a
opção “outro”. Um argumentou que essa questão não fazia sentido e outra respondeu que “não mais”, na medida em que
seu contrato estava chegando ao fim.
153

grande parte dos profissionais com quem atuam, ainda que não compactuem com tal
projeto, se comporta numa perspectiva de aliança institucional – consciente ou não – com
esse projeto. Chama atenção, ainda, a relevância com que esse elemento favorece grande
parte dessas respostas: 6 das assistentes sociais, além de perceberem um impacto positivo
no que tange à autonomia profissional na sua relação com os outros assistentes sociais,
ainda indicaram o peso máximo a esse respeito, em termos de intensidade.

Gráfico 10

É interessante notar que, a partir das entrevistas, percebemos que, salvo no


depoimento anterior, se essa relação não é melhor, isso não parece ocorrer por conta de
divergências entre projetos entre a equipe profissional. Quando essa questão permeou os
debates das entrevistas, o que se pôde notar é que as dificuldades inerentes à relação com
os demais assistentes sociais estavam basicamente ligadas a dois fatores:
1° Fragilidade, em termos de formação, de alguns assistentes sociais da equipe.
Devemos ressaltar que, do ponto de vista das entrevistadas, essa fragilidade não determina
uma diferença em termos de “direção social” desses profissionais, mas sim a densidade
dessa direção e, consequentemente, a capacidade de mediação deles. Por exemplo, ao
comentar a respeito de um grupo específico de assistentes sociais recentemente contratados
154

pela unidade em que atua, a Entrevistada n° 5 afirma que

São meninas que vieram com um viés de “faculdades particulares” […]. Todas são de
faculdades particulares, […] elas até fazem capacitação. Por exemplo, agora quando
recebemos o comunicado da inscrição da pós [graduação da UERJ], eu avisei [que
estavam abertas as inscrições], mas ninguém fez inscrição, quando eu fiz a inscrição no
ano passado eu também divulguei. Ninguém fez a inscrição. Aí elas procuram cursos de
pós-graduação particulares, que as vezes nem estão atreladas ao assistente social. Por
exemplo: área da família... Então, elas não procuram uma universidade pública, vão
procurar aquelas pós-graduações que sejam mais fáceis e, além disso, têm também um
diferencial teórico em termos de formação. Por exemplo, quando estamos falando de
alguma experiência, alguma coisa conceitual, eu falo: “Olha, não pode falar isso não,
porque isso tem a ver com isso, isso e isso”. Aí elas falam assim: “Então, você podia nos
assessorar”. A partir disso, você percebe que tem a questão política envolvida com o
vínculo empregatício delas, mas, para além disso, tem também essa fragilidade teórica de
formação. […] Elas até trabalham com autores do Serviço Social com que nós estamos
acostumados a trabalhar [...], mas, quando vamos fazer uma comentário sobre a visão
daquele autor, elas apresentam essa fragilidade (Entrevistada n° 5).

2° Questões estruturais da organização do projeto institucional. Essas questões


dizem respeito à própria forma de organização da instituição que as equipes de Serviço
Social não vêm conseguindo encontrar formas de contornar ou modificar. Um dos
exemplos extraídos da argumentação de uma assistente social refere-se à divisão de
equipes de Serviço Social por setor da instituição, sem que haja um vínculo estrutural entre
estas equipes:

Com outra categoria, eu acho a relação ruim porque não existe um trabalho “multi”, e é
ruim também porque o Serviço Social é muito grande dentro do hospital, e acabou que se
formaram „ilhas‟ de equipes (Entrevistada n° 3).

Outra profissional ressalta a dificuldade que a questão dos plantões impõe ao


Serviço Social. Na unidade onde ela atua, são apenas 7 assistentes sociais, que se revezam
em plantões semanais de 24 horas por semana. Isto, além de trazer dificuldades relativas ao
cansaço devido à intensa carga de trabalho, mostra um relativo isolamento entre os
assistentes sociais da equipe, dificultando, circunstancialmente, a possibilidade de diálogo.

Então, é uma equipe que não faz reuniões... Esse ano […] tivemos apenas uma reunião, no
início do ano. O que é muito pouco numa equipe que não se encontra, que só se encontra
na hora da troca de plantão, onde um está supercansado depois de 24 horas e o outro ainda
está chegando ali. […]. Então, tudo isso rebate no nosso atendimento (Entrevistada n° 2).

Outro elemento relevante que deve ser refletido diz respeito à relação do Serviço
Social com outras categorias profissionais que a profissão atua institucionalmente. As
diferentes profissões inseridas na rotina institucional possuem características diferenciadas
em termos de inserção, função, hierarquia, status, projeto profissional, legitimidade etc.
Dessas diferenças e da dependência entre essas profissões surgem conflitos e/ou alianças
entre elas. Essas duas possibilidades, por sua vez, influenciam diretamente a autonomia
155

profissional na medida em que, quanto maior o grau de afinidade das demais categorias em
relação às perspectivas do assistente social, maior tende a ser a autonomia do profissional
frente ao projeto institucional. Nessa medida, Iamamoto explicita que “na defesa de sua
relativa autonomia [...] o assistente social conta com [...] a articulação com outros agentes
institucionais que participam do mesmo trabalho cooperativo” (2008, p. 422).
A esse respeito podemos perceber que, os dados tabulados correspondentes às
informações expostas no gráfico 11, assim como no gráfico 10 – referente à relação deles
com os demais assistentes sociais da própria equipe –, a maioria (10) das assistentes sociais
que respondeu ao questionário afirma que o tipo de relação que estabelece com os demais
profissionais com quem atuam contribui para sua autonomia, e apenas duas daquelas que
responderam a esse questionário disseram que a forma como a relação com as demais
categorias se estabelece hoje interfere negativamente em sua autonomia. No entanto, há
uma diferença sutil. Se, para com as demais assistentes sociais o resultado predominante (6
dentre as 12) foi o que classificou essa contribuição de maneira “intensa”, quando
perguntadas a respeito do relacionamento com outras categorias, predominou (também
com 6 respostas) a opção “regular”.

Gráfico 11

Para prosseguirmos a respeito desse elemento, gostaríamos de pontuar alguns


determinantes relevantes quanto a essa articulação. Primeiro, destacamos que, na atual
156

conjuntura, essa possibilidade de articulação por parte de um profissional comprometido


com o projeto ético-político encontra grandes dificuldades para ser posta em prática.
Lembremos Lessa, que destaca o isolamento político do Serviço Social brasileiro nos
últimos anos: “as correntes teóricas dominantes nas Ciências Humanas percorreram o
caminho inverso” (2007, p. 9) daquele percorrido pelo Serviço Social brasileiro.
Essa dificuldade se aprofunda quando pensamos as particularidades da inserção dos
assistentes sociais na saúde. Pois, se Lessa pode dizer que nas “Ciências Humanas” as
correntes teóricas percorreram, a partir da década de 1990, o “caminho inverso”, no campo
das “Ciências Naturais”, também houve significativo recuo das correntes mais
progressistas, o que fica evidente a partir da análise histórica do Movimento Sanitarista no
Brasil a partir da década de 1990. Dessa forma, na atual conjuntura (2012), a base
científica da maioria das formações na saúde tende a marginalizar as reflexões a respeito
do “social”, especialmente as reflexões críticas. O resultado é a predominância de uma
visão biologista na saúde, que coloca em segundo plano a dimensão social dos serviços
prestados na instituição e, consequentemente, das profissões que atuam com essa
dimensão. No entanto, inevitavelmente, isso não abstém essas profissões de lançar mão de
concepções sociais de mundo, o que lhes impulsiona em intervenções que dizem respeito
ao “social”; entretanto, é feito a partir de concepções baseadas no senso comum, que
tendem a ser conservadoras. Vejamos, nos dois depoimentos, a seguir, de uma mesma
assistente social que atua uma instituição de saúde mental:

Temos esse debate de colocar em prática e fortalecer o projeto ético-político da profissão,


[…] eu me considero na linha teórica do marxismo [...]. Eu vejo muita dificuldade disso
na saúde mental. [...] Nós temos uma maior autonomia para trabalhar com o usuário.
Conseguimos trabalhar a interdisciplinariedade porque existe uma abertura dos médicos
psiquiatras, existe a questão da reforma psiquiátrica, uma abertura para se trabalhar. Mas,
apesar disso, é muito difícil trabalhar uma perspectiva mais crítica e dar essa direção mais
crítica para a prática profissional. É muito difícil na saúde mental, eu vejo que a coisa é
muito psicologizante. Não que você não tenha que trabalhar a subjetividade também, mas
fica só a subjetividade. Tudo é muito do sujeito, é muito do indivíduo, é o indivíduo que é
“safo” demais e às vezes tem que trabalhar isso ou é o indivíduo que é manipulador. Tem
muito esse discurso. A partir disso, desse discurso, passamos a ser considerados pelos
demais como se fôssemos assistencialistas. Como temos uma perspectiva mais de
totalidade, entendendo quais são os determinantes sociais daquele sujeito, de não
culpabilizar esse sujeito por estar nessa situação que está […] nosso trabalho acaba sendo
questionado como se fôssemos assistencialistas. Assim, a minha prática fica dificultada,
porque parece que estou sempre sozinha. Você tem que ficar sempre mediando com um ou
com outro. Eu me sinto mal às vezes, como se você tivesse o tempo inteiro brigando com
alguém (Entrevistada n° 1).

Acaba que essa precarização não é questionada, porque é tudo subjetivo. É muito
subjetivo “Não, mas ele vem de Caxias para cá, o cara tem problema motor, não sei o quê,
mas o cara é muito safo!”; “Não, mas você tem que entender que ele é assim mesmo, é
autonomia dele” (Entrevistada n° 1).
157

Esse predomínio biologista no campo da saúde entra em contradição, por exemplo,


com a própria visão ampliada de saúde preconizada pelo SUS, que entende saúde como
condições socioeconômicas de reprodução humana. Ou melhor: saúde é a resultante das
condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte,
emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde. Isso
parece ter sido bem assimilado por uma das assistentes sociais entrevistadas durante sua
crítica à ainda hegemônica concepção biologista de saúde:

[…] Não só a hegemonia médica, mas pelo menos assim: acho que os outros profissionais
no campo da saúde ainda não conseguem ter uma visão ampliada do conceito de saúde, e
é através desse conceito ampliado da saúde que o Serviço Social entra nessa área, na
atuação dentro dos hospitais que vai justificar aquela ação mais para depois da década de
80 e de 90. E como não tem essa compreensão de que a saúde não é só a parte biológica,
que perpassa a questão da formação dos médicos, dos enfermeiros, dos profissionais de
saúde, acho que às vezes as coisas se misturam um pouco (Entrevistada n° 3).

Esse aprofundamento do isolamento do projeto profissional dos assistentes sociais


que ocorre na área da saúde se manifestou, principalmente, diante da questão da
hegemonia médica na saúde. Vejamos:

Porque a prática na saúde é complicada. Nos sentimos impotentes diante de diversas


situações. Por mais que tentemos trabalhar com instrumentais, com instrumentos com
encaminhamentos, fazer contato com a instituição, tem situações com que você se depara,
questões que você tenta dar um retorno ao usuário, mas que não depende de você, e sim
do médico dizer se realmente ele vai ter condições (Entrevistada n° 4)

Podemos perceber, no relato a seguir (da mesma assistente social), como, apesar
das conquistas históricas no âmbito formal de concepções progressistas – tais como o
conceito ampliado de saúde e a interdisciplinariedade –, a hegemonia médica, diante do
tradicionalismo na área, ainda encontra refúgio no autoritarismo:

Eu queria muito falar dessa médica. Ela atrapalha totalmente o Serviço Social. Não vou
nem falar “atrapalha”: ela desrespeita, passa por cima da nossa atuação. É uma médica
[…] ela está aqui três vezes por semana (o que é pior), […] e a gestão ama essa médica
porque ela é a médica “resolutiva” e chega para resolver. O dia em que o plantão tá
lotado, se no outro dia é o plantão dessa médica, ela chega aqui e vai “limpar” o hospital.
A enfermagem também agradece, porque muito paciente significa muita demanda para
enfermagem. Então, beleza: “Olha, doutora fulana, ela chega para limpar o hospital”, e ela
desrespeita totalmente a nossa prática. Ela tem o aval da gestão, da direção do hospital.
Desrespeita nosso trabalho, por mais que você evolua no prontuário: “Estamos em busca
de vagas, estamos tentando localizar a família...”, “paciente possui família, no entanto
estamos conseguindo contato”, isso não quer dizer nada para ela. Ela passa por cima, e no
outro dia, se você pergunta: “Cadê o usuário?”, respondem: “Fulana deu alta e ele foi
embora”. Ou então, “Dra. fulana deu alta, levou até a porta e deu o dinheiro para
passagem” (Entrevistada n° 4).

Nós, assistentes sociais, trabalhamos pautados no Código de Ética, na Lei de


Regulamentação, cientes das atribuições, das competências, dos direitos, deveres,
inclusive na relação com a instituição, mas você entender que a instituição ou os demais
profissionais não respeitam tais atribuições, que desconhecem tais atribuições, que
ignoram, mesmo quando você tenta expor quais seriam essas atribuições e competências,
158

enfim... Trabalhar diante dessa situação, tentar materializar tudo que prega no Código de
Ética, diante desse contexto em que vivemos, é complicado (Entrevistada n° 4).

Outra questão a respeito da relação com as outras categorias profissionais que


gostaríamos de evidenciar é a existência de posições hierárquicas diferentes neste
organograma institucional. Neste sentido, quanto mais privilegiado for o posicionamento
do assistente social na instituição, maior tenderá a ser sua margem de autonomia. Trata-se
de uma via passível de investimento por parte dos assistentes sociais na tentativa de
flexibilizar sua margem de autonomia. Tal estratégia já fora explicitada por Santos, como
poderemos observar a seguir:

Serviço Social também pode projetar para si mesmo uma estratégia de uma luta por
maiores níveis de participação no poder das instituições em que trabalha, e resistir com
isso à instrumentalização burocrática de que é objeto (1983, p.176-177).

No entanto, pensar nessa estratégia de alcance de níveis hierárquicos mais


importantes na instituição parece ser um grande entrave diante das características
supracitadas ainda presentes nas instituições da saúde no Brasil hoje.

O Serviço Social tem um conhecimento, por dentro da instituição, [mas] você não vê
diretor de unidade hospitalar que seja assistente social. Mas ele, às vezes, sabe muito mais
do que o seu próprio diretor. […] Eu trabalhei no antigo hospital [nome do hospital], em
que o diretor era dono de locadora e só tinha ensino fundamental. Então, a dinâmica do
hospital todo quem dominava éramos nós. Ele não dava um “ai” sem que ele não nos
solicitasse. Então, por que a assistente social não pode ser diretora de uma unidade
hospitalar? Nós conhecemos a unidade hospitalar como ninguém. Podemos não ter
discernimento de outros espaços técnicos. Mas temos o conhecimento [...] daquele
espaço... Claro que tem o domínio médico, bem ou mal, tem uma lógica sobre o poder
médico, o saber médico dentro da unidade, mas temos muito conhecimento (Entrevistada
n° 5).

O último aspecto que perpassa a conformação da autonomia profissional, no que


tange à sua relação com outras profissões da mesma instituição, diz respeito à questão da
interdisciplinariedade através da qual o profissional consegue estabelecer na instituição
uma relação de troca e complementariedade na relação com as outras áreas. Ou melhor: na
medida em que as dimensões técnico-operativas, teórico-metodológicas e ético-políticas do
profissional entram em consenso com as outras categorias, o profissional adquire maior
autonomia frente ao projeto político institucional. A esse respeito, duas assistentes sociais
(dentre as 5 entrevistadas) reclamam da ausência dessa articulação entre as profissões na
instituição.

Até o que tentamos fazer [...] nos deparamos com a interferência de outros profissionais,
ou ainda, quando solicitamos, precisamos da ajuda. Não a temos, porque não existe um
trabalho interdisciplinar, ainda mais numa emergência com plantões com profissionais
diferentes, que têm visões diferentes, divergências, inclusive, principalmente, para dar alta
(Entrevistada n° 4).
159

[o relacionamento] com outras categorias, eu acho ruim, porque não existe um trabalho
“multi”[disciplinar] (Entrevistada n° 3).

Então, o assistente social chega oito horas, mas o médico chega às 7.[...] Ninguém senta,
ninguém projeta, pelo menos nas clínicas (Entrevistada n° 3).

Em seguida, podemos perceber, na expressão de outra assistente social, uma boa


relação interdisciplinar na instituição. No entanto, antes de expor seu comentário,
gostaríamos de ressaltar que se trata exatamente da única assistente social dentre as
entrevistadas que atua na área de saúde mental, em que a relação interdisciplinar parece-
nos relativamente melhor:

Conseguimos trabalhar a interdisciplinariedade, porque existe uma abertura dos médicos


psiquiatras. Existe a questão da reforma psiquiátrica, mas também há uma abertura para se
trabalhar (Entrevistada n° 1).

Outro elemento que gostaríamos de levantar é a própria clareza a respeito do que é


e o que faz o assistente social na instituição, ou melhor, a respeito das atribuições
profissionais. Esse elemento está absolutamente intrincado com a questão da formação
profissional problematizada anteriormente. Isso porque partimos do pressuposto de que é a
formação profissional que distinguirá aquilo que o assistente social tem competência 93 para
desempenhar e aquilo que não tem. Nessa distinção, cuja síntese mais relevante está
formalizada na Lei de Regulamentação profissional, consiste o eixo da influência da
(in)compreensão do que é ou o que faz o assistente social na instituição. Pois, na medida
em que o assistente social recebe atribuições que não lhe cabem, sua capacidade de
imprimir uma direção ético-política diferente daquela que a instituição determina tende a
ser rigorosamente dificultada. Além disso, ao desempenhar funções para as quais não
possui especialidade científica, o assistente social – por uma questão mesmo de tempo –
pode estar deixando de desempenhar funções que, de acordo com sua formação, seriam
efetivamente prioritárias.
Essa relação de clareza ou falta de clareza a respeito do exercício profissional do
assistente social, como veremos nos tópicos posteriores dessa dissertação, perpassará com
força as mais variadas questões expostas pelos entrevistados. Grande parte dessas questões
está ligada, de alguma forma, a diversos fatores históricos da categoria (até mesmo a nível
internacional) que, por não terem sido rompidos até o presente momento histórico da

93
Competência não apenas técnico-operativa e teórico-metodológica, mas também ético-política, o que implica levar
em conta não apenas a capacidade de sua ação, mas, também, as implicações que sua atuação desempenhará no cotidiano
dos usuários-trabalhadores do Serviço Social.
160

trajetória do Serviço Social brasileiro, conformam uma determinada imagem social da


profissão.
Essa imagem social da profissão está ligada a alguns aspectos históricos do Serviço
Social, que foram construídos na cultura da sociedade em que o Serviço Social se insere,
mas não está, efetivamente, alinhado ao que corresponde, de fato, à nossa ação
profissional. Um desses fatores, ainda atribuídos à profissão, refere-se à questão da visão
do assistente social como profissional meramente executivo, sendo sua dimensão
intelectual menosprezada e desacreditada. Apesar do fato de que, no Brasil, os assistentes
sociais terem rompido, de fato, com essa tradição, ainda hoje

O Serviço Social é em geral identificado, [...] como uma profissão que executa as decisões
dos outros (os „políticos‟), que conhece a realidade social por meio dos olhares dos outros
(os „cientistas sociais‟) e que assiste às populações carentes, mas como auxiliar de outros
profissionais (MONTAÑO, 2007, p. 101).

Além disso, por conta de nossa origem assistencialista, a qual é recorrentemente


resgatada pelo senso comum, atribuindo-nos expectativas de ações caritativas e
voluntaristas, o assistente social é visto como um profissional cujas dimensões técnica-
operativa, teórico-metodológica e ético-política são desnecessárias. Tratam-se das
chamadas “marcas de origem” que o Serviço Social possui no Brasil, cujo sujeito
profissional é representado pela “moça boazinha que ajuda”. Essa visão atribuída
relaciona-se, em grande parte, ao menos na particularidade latino-americana, à origem
atrelada à Igreja Católica, reforçando a imagem de “moça boazinha” que perpassa toda a
sociedade. O que, por sinal, se atrela à predominância feminina na profissão, que, nos
marcos de uma sociedade machista como a brasileira, acaba por atingir a profissão,
fortalecendo as visões de uma profissão subalterna e meramente complementadora da
prática de outros profissionais.
Esses, e muitos outros elementos, conformam uma imagem social da profissão
incompatível com as suas reais atribuições. A essa incompatibilidade, somam-se problemas
de apreensão dos próprios assistentes sociais, incapacitando-os de reconhecer e
materializar suas próprias atribuições e elementos da própria “natureza” profissional, tais
como: a extrema variedade de campos de intervenção do assistente social, as constantes
mudanças na forma em que a “questão social” se manifesta e é tratada pelas instituições
contratantes, o fato de não ser o único profissional que atua frente à “questão social”, a
dinamicidade histórica da categoria no país, que ocasiona diferentes trajetórias na
formação profissional de acordo com o debate profissional etc. A generalização dessa
161

complexidade se expressou muito bem no trecho dessa entrevista:

O que sempre me chama a atenção é essa questão da clareza dos usuários e, em especial,
da instituição e profissionais sobre o que é o Serviço Social, sobre o que faz o Serviço
Social. E, muitas vezes, por falta de clareza, acabamos negando tudo ou fazendo tudo. São
dois polos que eu vejo em geral nos profissionais. E o tempo todo tem que ficar
explicando, inclusive para assistentes sociais. As duas [assistentes sociais da instituição]
têm a dificuldade de entender o que é o Serviço Social e, em especial, qual é o caráter
socioeducativo da profissão (Entrevistada n° 1).

Apesar de essa clareza atingir a sociedade em geral, por fidelidade aos objetivos
dessa dissertação, priorizaremos, aqui, a interferência dessa “(in)compreensão” em duas
direções: por parte do usuário e por parte da instituição.
No que tange ao ponto de vista da instituição, podemos nos remeter ao debate
lançado há pouco (a respeito da hierarquia institucional), cujas atribuições do assistente
social ganham um agravante hierárquico, ancorado, obviamente, na condição de
assalariado do profissional. Na saúde por exemplo, é comum que a instituição demande ao
Serviço Social todo “imprevisto” que extrapole o campo do “biológico”. É como se, além
das atribuições efetivas, coubesse ao assistente social tudo aquilo que não cabe a mais
ninguém na unidade de saúde.

A instituição vê o Serviço Social como “apagador de incêndio”, aquele que ninguém


consegue resolver o problema vai no Serviço Social para resolver, sabe? Mas, em geral,
eu acho que a instituição quer apagar incêndio por meio do Serviço Social, só procurar o
Serviço Social para isso... [...] Para aquilo que as outras categorias não conseguem
responder, ou que a instituição não consegue resolver, o Serviço Social é chamado
(Entrevistada n° 1).

Outro eixo de distorção muito comum é a demanda por ações meramente


burocráticas, que poderiam ser efetivadas por outros profissionais sem qualificação técnica
(me refiro, aqui, aos “administrativos”, “secretários” etc.). Essas duas visões (do assistente
social visto como profissional burocrático e como “apagador de incêndio”) se entrelaçam
no exemplo a seguir

[a mentalidade da instituição pensa que:] “O que não é biológico, o que não conseguimos
resolver o Serviço Social faz”... E, às vezes, se mistura a parte administrativa, parte que
qualquer profissional de nível técnico poderia fazer, por conta dessa confusão, dessa
incompreensão.(Entrevistada n° 3)

A princípio, podemos pensar que o único problema em executar essas ações está no
consumo de tempo e energia do assistente social em ações que não lhe cabem. No entanto,
devemos ressaltar que a execução dessas ações tende a significar também a compressão do
tempo do profissional dedicado a ações pelas quais possui efetivamente formação
suficiente para imprimir práticas mais sólidas, conscientes, profundas e coerentes.
162

A tabulação do questionário nos indica, a partir do gráfico 12, que as considerações


a respeito da clareza para a instituição de “o que é” e “o que faz” o Serviço Social na
instituição apresentaram resultados bastante divididos. Apenas dois daqueles questionários
tabulados indicaram que há essa compreensão por parte da instituição,94 3 delas afirmaram
que não há essa compreensão, e 5 classificaram que há “razoavelmente” essa compreensão.
Duas assistentes sociais não responderam essa questão. Ou seja, o que marca essa
estatística é um impasse entre as atribuições profissionais demandadas pela instituição e
aquelas que esses assistentes sociais compreendem como sendo suas reais atribuições.
Entretanto, em relação aos outros elementos, este não parece ter tanta relevância no que
tange à autonomia profissional, na medida em que temos um número expressivo de
assistentes sociais que disseram que essa questão vem sendo indiferente no que tange à sua
autonomia. Além disso, apenas uma do total afirmou que esse elemento influencia
intensamente.

94
Uma dessas assistentes sociais que declararam perceber a existência dessa compreensão atua numa unidade que, além
de prestar assistência à saúde, também é de ensino. Declara o seguinte a esse respeito:“Eu acho que por eu estar dentro de
um hospital universitário, que fica um pouco mais claro do que o Serviço Social é, quais são as atribuições, qual é a
função. Por exemplo: entrei em 2009, fui estagiária, aí formei em 2010 e voltei agora em 2011 e parece que foi
construindo ao longo do tempo algumas coisas, alguns limites que em outros hospitais não existem” (Entrevistada n°3).
163

Gráfico 12

No entanto, essa própria incompreensão a respeito da identidade profissional, na


medida em que costuma atingir também as próprias chefias imediatas a quem os assistentes
sociais estão subordinados, pode, por isso mesmo, abrir uma interessante margem de
manobra para iniciativas não demandadas pela própria instituição. Como apontam
Iamamoto e Carvalho:

[A] indefinição ou fluidez do „que é‟ ou do „que faz‟ o Serviço Social, abrindo ao


Assistente Social a possibilidade de apresentar propostas de trabalho que ultrapassem
meramente a demanda institucional (IAMAMOTO e CARVALHO, 2008, p. 80).

Essa incompreensão também pode prejudicar a autonomia profissional, na medida


em que os próprios usuários, com a distorcida imagem social da profissão arraigada em
suas concepções, costumam pressionar a tomada de ações profissionais meramente
pontuais, assistencialistas, emergenciais e subalternizantes. Essa linha de raciocínio se
relaciona ao depoimento a seguir:

Em quem já passou por algum atendimento do Serviço Social, eu acho que o impacto [da
compreensão a respeito do que é e o que faz o Serviço Social] é positivo, mas os usuários
que não conhecem o Serviço Social às vezes não conseguem compreender, fica um pouco
naquela noção da ajuda, da caridade (Entrevistada n° 3).

Dessa forma, os usuários costumam requisitar dos profissionais demandas que


164

muitas vezes não podem ser solucionadas pelo assistente social ou que deveriam ser
demandadas e solucionadas por outros profissionais – de maneira muito parecida com a
que acabamos de assinalar por parte da instituição. Por exemplo:

Porque também tem isso, tem muita coisa que vem bater na minha porta que não é do
Serviço Social (Entrevistada n° 2).

Ele acha que deveríamos resolver determinadas demandas que realmente não são
competências nossas. E que, até por questão de hierarquia, não competem ao Serviço
Social resolver (Entrevistada n° 4).

Dessa maneira, abre-se margem para criar um efeito “bola de neve” na medida em
que se costuma trazer uma insatisfação – e até mesmo embates – dos usuários em relação
ao Serviço Social, contribuindo para a não legitimação (ou desprestígio) profissional,
vulnerabilizando-o frente ao projeto institucional. Vejam como essa questão é observada
por uma das assistentes sociais entrevistadas:

[…] tem um momento em que a impressão é que o outro é quem diz o que você faz, você
rebate que não é você quem faz. Fica aquele embate prejudicial para a população: „Ah,
mas se não é o Serviço Social, então quem é que vai fazer?‟ (Entrevistada n° 5).

Essa cobrança superdimensionada muitas vezes é acompanhada ou alternada


também por um forte costume dos usuários em ocultar demandas que, na verdade, o
assistente social poderia/deveria atender, mas que, por não serem espontaneamente
expostas, tendem a passar despercebidas por ele. A esse ocultamento chamaremos de
demanda reprimida. Ele costuma resultar numa compressão da autonomia profissional, na
medida em que as demandas reprimidas camuflam determinadas alternativas de ação.

O usuário me enxerga como a responsável por resolver os problemas individuais dele. E


às vezes quando você sai daquela demanda [...] ele tem outra demanda, […] mas ele vem
com uma clássica, especifica. Ele quer aquela imediata. Mas, quando você para para ouvir
aquela imediata, ela tem outras questões (Entrevistada n° 5).

O que eu percebo também é: se ele tivesse um domínio maior do que o Serviço Social faz,
muitas vezes existem demandas sociais, mas que estão escondidas e a pessoa não fala. Às
vezes, a própria pessoa que está ali na minha frente precisa de uma Bolsa família, mas não
fala (Entrevistada n° 2).

A esse respeito, os dados empíricos referentes a essa clareza para os usuários do “o


que é” e “o que faz” o Serviço Social na instituição, como poderemos ver a seguir no
gráfico 13, o resultado indicou que, assim como a clareza sobre as atribuições do Serviço
Social por parte da instituição, a clareza (ou não) para os usuários parece não ter tanta
relevância no que tange à autonomia profissional. Isso porque, apesar de apenas um dos
questionários analisados apontou a alegação de que esse fator é indiferente para sua
165

autonomia, apenas duas dessas mesmas profissionais afirmaram que esse elemento
influencia intensamente. Também se repete, aqui, o equilíbrio entre aqueles que
consideram que a realidade interfere em seu cotidiano positivamente, e aqueles que
consideram que a interferência é negativa, respectivamente: 7 e 4. No entanto, notamos
que, no caso dos usuários, a realidade ainda se mostra mais propícia do que convicções da
instituição a respeito do Serviço Social. Isso porque, no caso da compreensão por parte da
instituição, apenas 4 dessas assistentes sociais afirmaram contribuir para a autonomia
profissional, 95 enquanto 5 interpretam essa interferência de maneira negativa.

Gráfico 13

A questão do prestígio/desprestígio relaciona-se diretamente ao elemento que


acabamos de discutir, ou seja, à questão da compreensão (ou não) das atribuições
profissionais do assistente social. Portanto, apesar de reconhecermos a interferência desse
elemento pelos mais variados sujeitos da sociedade em que vivemos, pela mesma lógica
explicitada na discussão anterior, nos focalizaremos prioritariamente na interferência do

95
Vale destacar que, dentre essas 4 profissionais que consideram que as convicções por parte da instituição a respeito
das atribuições profissionais interferem positivamente na autonomia profissional, duas possuem o contrato de trabalho
vinculado de alguma forma à formação (“treinamento Profissional” e “bolsa residente”).
166

ponto de vista dos usuários do assistente social e da instituição.96 Essa determinante é tão
relevante que

Este profissional só pode desempenhar o papel para o qual é contratado desde que seja
aceito e legitimado pela população assistida. [...] Assim seu executor [das Políticas
Sociais] deve possuir certo grau de legitimidade perante a população assistida
(MONTAÑO, 2007, p. 62).

Isso coloca o Assistente Social numa posição efetivamente tensa, na medida em


que, apesar das demandas dos usuários e os direcionamentos das instituições serem por
vezes colidentes,97 o assistente social precisa manter-se legítimo para ambos. O que temos
de admitir ser muito complicado, na medida em que “o que se espera dos meios oficiais (e
da classe hegemônica), é a legitimação e a consolidação do sistema; o que o usuário espera
é a solução de suas carências” (MONTAÑO, 2007, p. 63).
Cabe ressaltar que, no caso do Serviço Social brasileiro, essa questão do prestígio
teve como maiores marcos sua inserção e ampliação no âmbito universitário; sua superação
em relação à sua posição de profissional meramente executor, passando a ocupar funções
de cunho mais intelectual, como assessorias, consultorias, planejamento de políticas
públicas etc; a expansão de seus cursos de pós-graduação por todo país; o fato de tornar-se
referência em debates científicos dentro das ciências sociais (como, por exemplo, estudos
sobre a “questão social” e as políticas sociais); as diversas leis referentes à categoria
profissional etc. (NETTO, 1996; 2007).
Além desses elementos, a origem de classe dos assistentes sociais também cumpre
um papel nessa questão, na medida em que, quando os profissionais que atuam como
assistentes sociais são provenientes de setores mais próximos daqueles com quem trabalha
tendem a assimilar qualificadamente com maior facilidade a realidade daqueles com quem
lidam cotidianamente (VERDÉS-LEROUX, 1986, p. 173). Isso, além de mantê-los mais
distanciados das possibilidades de moralização do público usuário, “facilita imensamente
sua capacidade de empatia, contribui também para conformar a autoimagem de identidade
entre este profissional e os estratos mais empobrecidos” (MONTAÑO, 2007, p. 104).

96
É preciso explicitar que, assim como no caso da questão da compreensão das atribuições do assistente social, os
dados empíricos analisados não foram extraídos a partir do contato com os usuários e a instituição, e sim a partir da
impressão que os assistentes sociais têm a esse respeito.
97
Essa situação se torna ainda mais tensa na medida em que os interesses efetivos da classe trabalhadora são
antagônicos aos interesses hegemônicos das instituições que o contratam, e exatamente por isso o Serviço Social pode
fortalecer apenas um dos lados. Nessa medida, podemos concluir que um dos lados será iludido e outro contemplado, ou
haverá um desprestígio do profissional por um dos dois lados.
167

Levando em conta que, no caso brasileiro, houve essa aproximação histórica entre a
origem de classe dos assistentes sociais e dos usuários, é possível que esse fator também
venha interferindo favoravelmente em relação a essa legitimidade. Essas foram algumas
medidas que contribuíram para o aumento do prestígio; no entanto, estão longe de serem os
únicos determinantes dessa legitimidade.

Gráfico 14
168

Gráfico 15

Os dados empíricos expressos no gráfico 14 nos indicam que, do ponto de vista


dessas assistentes sociais, parece existir certo prestígio por parte dos usuários em relação à
profissão. Em termos de prestígio por parte da instituição, os dados expostos pelo gráfico
15 são mais moderados, pois, apesar de 7 profissionais indicarem respostas que indiquem a
percepção de prestígio por parte da instituição, predominou as respostas que classificaram
esse prestígio como "razoável” e 3 indicaram não haver prestígio por parte da instituição
(duas não responderam). É interessante notar que, apesar de poucas respostas do
questionário indicarem a existência de um desprestígio por parte da instituição, quando
essa questão se evidenciou durante as entrevistas, ressaltaram-se as manifestações de
desprestígio por parte da instituição. Uma passagem simbólica foi a seguinte:

Por exemplo: Maio é o mês de comemoração de vários profissionais. Na portaria do


hospital, eles colocaram um adesivo de outro profissional. Passaram pelo Serviço Social e
colocaram um evento ou alguma coisa. E isso não estimula. Não é por uma questão de
status, mas pelo menos pensaríamos: “Legal, nosso trabalho está sendo reconhecido”. Não
contribui para nossa autoestima, para valorização do nosso trabalho, porém não vai fazer
com que trabalhemos menos (Entrevistada n° 3).

No que tange ao prestígio das assistentes sociais em relação aos usuários, os


números são mais positivos: 8 afirmaram haver esse prestígio (predominando as respostas
que classificaram esse prestígio de maneira intensa) e apenas uma alegou se sentir
desprestigiada pelos usuários (duas não responderam). Esse dado nos parece
169

importantíssimo, caso queiramos relacionar essa realidade aos determinantes históricos do


Serviço Social brasileiro. Deste modo, remetendo-nos à proposta inicial levantada no início
do Movimento de Reconceituação no Serviço Social latino-americano, que defendia uma
transferência do eixo de legitimação da instituição para o público usuário, esses números
expressam relativo sucesso nesse sentido, no que tange aos profissionais entrevistados.
Também devemos fazer uma ressalva muito importante: são dados extraídos a partir da
impressão desses assistentes sociais, e não de dados extraídos dos usuários e da própria
instituição. No entanto, esses dados não deixam de serem dignos de relevância.
Ainda a esse respeito, devemos destacar que, apesar da maior intensidade do
contato dos assistentes sociais com os usuários e da grande aprovação destes a respeito da
atuação profissional, no que tange aos impactos disso na autonomia profissional, os
resultados, apesar de positivos, não parecem proporcionais ao sucesso de sua legitimação
com eles. Isso porque, apesar da aprovação por parte dos usuários ser proporcionalmente
superior à por parte da instituição, os números relativos à interferência desse quesito na
autonomia profissional se equilibram. Isso revela uma aparente preponderância em termos
de interferência na autonomia profissional por parte da avaliação da instituição em relação
à avaliação dos usuários. Ou seja, ainda que haja importância da legitimação do
profissional frente aos usuários, o peso da legitimação frente à instituição se mostra muito
maior no que tange à autonomia profissional.
Esse ponto nos encaminha a uma importante consideração. Se a vertente marxista,
nascida nos berços latinos do Movimento de Reconceituação, se propõe a transferir o eixo
básico de legitimação da prática profissional da instituição para o usuário, deve estar ciente
de alguns fardos que impactarão sua ação profissional. Em primeiro lugar, cabe destacar
que, ao menos em contextos de retrocessos da organização da classe trabalhadora, como o
que vivemos atualmente (2012) no Brasil, isso reside na escolha pela aliança com um
bloco rigorosamente mais frágil da disputa de classes que se particulariza nessa realidade.
Essa escolha, consequentemente, significará escolher como aliado o lado que menos pode
contribuir para sua autonomia profissional. Também significa que, mais do que lutar pelos
usuários, é importante que o assistente social se concentre em prepará-los para a luta, de
maneira que, posteriormente, possa contar com eles nos momentos em que não tiver
condições para enfrentar a instituição. Podemos concluir, então, que, se um assistente
social se propõe a defender os interesses da classe trabalhadora/usuários, não deve fazer
parte de suas pretensões primordiais a obtenção do prestígio por parte de uma instituição
170

que carrega em si os princípios políticos reformistas da ordem, nem da sociedade de


maneira geral enquanto ela for hegemonizada por projetos conservadores como ocorre hoje
no Brasil. Isso, obviamente, não quer dizer que o assistente social tenha que desejar ser
desprestigiado (até porque sua autonomia se compromete nestes casos). No entanto, o
prestígio frente à instituição não deve ser prioridade aos anseios profissionais de maneira a
comprometer a raiz de seus princípios centrais.
Podemos, inclusive, afirmar que em determinadas situações o prestígio por parte
da instituição pode sinalizar exatamente uma cooptação (ativa ou passiva) do assistente
social ao projeto político institucional. Trata-se de uma espécie de prestígio às avessas. Tal
fenômeno, de certa forma, permeia determinadas falas dos assistentes sociais entrevistados:

Mas também há um prestígio torto. Eu percebo o seguinte: […] se você “dança” como
“eu” [a instituição] “danço”: ótimo, todo mundo muito bem, assim caminha a
humanidade. Se você não “dança” como eu “danço”, se você não faz o que eu quero fazer,
então não vai ficar tão legal assim, não vai ficar tão bom assim. A relação não vai ficar tão
bacana [...] Então o que eu percebo: quando fazemos algo útil à unidade, seguimos as
demandas da unidade, seguimos as demandas da instituição, temos uma serventia ali
dentro, mas, quando não fazemos, não [temos esse prestígio] (Entrevistada n° 2).

Aqui nessa instituição em específico, não temos uma boa relação com a gestão. Porque o
Serviço Social aqui, vive no enfrentamento de negar a informação do óbito e efetuar
transferências. Aqui, enfrentamos a gestão, negando que essas funções sejam atribuições
do Serviço Social. Então, devido a isso, não temos uma boa relação com a gestão. O
Serviço Social não é bem visto pela gestão por conta desse enfrentamento (Entrevistada
n° 4).

A partir da análise das entrevistas e dos questionários, pudemos observar que o


acúmulo teórico produzido pela vertente de orientação marxista no Serviço Social se
mostra plenamente coerente à realidade institucional dos assistentes sociais. Há, sim, uma
autonomia (variável, relativa e flexível) profissional, que deve ser levada em conta a partir
do conjunto de múltiplos determinantes, para que estes sejam desvendados e observados
em suas respectivas generalidades e particularidades, a fim de serem potencializados e
explorados durante a atuação profissional. Dois objetivos que serão observados no tópico
a seguir (3.2).
Todos os assistentes sociais que participaram da pesquisa empírica, além de
expressarem possuir uma relativa autonomia profissional, também demonstraram
consciência a respeito do caráter relativo da autonomia profissional. Essa compreensão
equaliza-os em relação aos avanços científicos que o debate profissional nas últimas
décadas lhes proporcionou, permitindo-lhes uma base conceitual de ruptura com as
perspectivas fatalista e messiânica, que permearam com força o Serviço Social até a década
de 1980.
171

Embora haja, por parte dos assistentes sociais pesquisados, consciência do caráter
relativo de sua autonomia profissional, devemos destacar que isso não lhes exime de que
possam, involuntariamente, cometer práticas pontuais características das orientações
messiânicas e fatalistas. É justamente para auxiliar aqueles que pretendem evitá-las que
esse tópico (3.1) buscou levantar alguns dos múltiplos elementos determinantes da
autonomia profissional que perpassam a prática do assistente social. Pois acreditamos que,
destacando tais elementos e problematizando-os com base na teoria profissional produzida
e na realidade de alguns profissionais, poderemos contribuir para que assistentes sociais
possam imprimir reflexões sobre outros cotidianos profissionais de maneira a aprimorar a
consciência a respeito de sua real autonomia profissional e, assim, distanciar-se ao máximo
de práticas messiânicas e fatalistas.
Os instrumentos de coleta de dados utilizados também se mostraram úteis para
confirmarmos o caráter variável da autonomia profissional, apresentando-nos realidades
tão diversas que, quando perguntadas “quanto você quantificaria sua autonomia dentro da
instituição onde atua?”, houve uma significativa variação entre 5% a 80% das respostas
fornecidas pelas profissionais.
Quanto ao caráter flexível da autonomia profissional, podemos dizer que ele
também se evidenciou no questionário por meio da confirmação das assistentes sociais
quanto à interferência em sua autonomia profissional de alguns elementos construídos
historicamente. Por exemplo: o Código de Ética e a Lei de Regulamentação, que são
exemplos de flexibilização histórica positiva para a autonomia profissional.
A respeito desse caráter flexível da autonomia profissional gostaríamos de
comentar mais uma questão acerca desse debate. Trata-se da possibilidade estratégica de
utilizar essa autonomia para ampliar ainda mais sua autonomia profissional, na medida em
que “resguardar a relativa autonomia na condução do exercício profissional supõe
potenciá-la” (IAMAMOTO, 2008, p. 219).

3.2 Referências teóricas das assistentes sociais entrevistadas.

Como já anunciamos na introdução do presente capítulo, nessa seção da


dissertação, os dados extraídos pela entrevista passarão a ser o eixo central na condução do
172

debate a ser travado. Nele, após uma breve caracterização do perfil das entrevistadas,
buscaremos enfocar aspectos a respeito das referências teóricas dessas entrevistadas. Isso
porque partimos do pressuposto de que essa relação atravessará profundamente a atuação
daqueles profissionais que se dizem comprometidos com os preceitos do projeto ético-
político profissional, ao servirem de base potencializadora/inspiradora para desempenhar
estratégias críticas e viáveis.
Como dissemos, /assistentes sociais que participaram do questionário participaram
também da entrevista. Pois, como também já havíamos informado, 2 profissionais tiveram
que ser desconsideradas por não serem da área da saúde; 3 por não se colocarem à
98
disposição para conceder uma entrevista; 1 por atuar em ONG; 3 por atuarem em
empresas; 2 quando perguntadas se intencionam materializar o atual projeto na instituição
onde atuam, não declararam claramente a intenção de materializá-lo em seu cotidiano de
trabalho; e 1 delas por não atuar especificamente como assistente social. Dessa maneira,
entrevistamos 5 profissionais, todas atuando como assistentes sociais na saúde, contratadas
pelo Estado, em processo de formação continuada no Curso de Pós-Graduação em Saúde
da Faculdade de Serviço Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e que, no
questionário, declararam explicitamente ter intenção de materializar o projeto ético-político
em seu cotidiano profissional e de colaborar com esse estudo. Também chama a atenção o
fato de que todas as 5 assistentes sociais entrevistadas se considerem orientadas pela
perspectiva marxista. Observa-se que a faixa etária dessas profissionais entrevistadas varia
entre 25 e 52 anos, tendo uma média de 31,8 anos. A maioria das entrevistadas (4) se
formou também em universidades públicas, sendo 2 pela Universidade Federal
Fluminense, 1 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1 na Universidade Estadual do
Rio de Janeiro – sendo a única graduada em universidade particular ex-estudante da
UNISUAM. 99 Outro dado extremamente importante é a predominância das formas
precarizadas de vínculo empregatício, pois, dentre as assistentes sociais entrevistadas,
apenas uma declarou estar vinculada à instituição sob a condição de estatutária, ao passo
que 3 declararam estarem em contrato temporário e a restante em treinamento

98
Sendo que dessas três, apenas uma havia declarado, já no momento do questionário, que não estava disposta a
conceder uma entrevista. As outras duas se disseram dispostas para conceder a entrevista, mas, após o convite, não
concederam.
99
Essa predominância também pôde ser notada pelos dados extraídos pelo questionário, onde 10 das assistentes sociais
que responderam ao questionário declararam ter se formado em graduações públicas, sendo 5 da UFF; 3 da UFRJ; 2 da
UERJ; e 2 da UNISUAM.
173

profissional. 100
Em síntese, podemos dizer que, predominantemente, essas entrevistadas são
bastante jovens, todas estão formadas há menos de 15 anos e comprometidas com a
demanda ética pela formação continuada. Além disso, chamou a atenção que todas
assistentes sociais entrevistadas declararam se orientar pelo pensamento social marxista e
estar comprometidas com o chamado projeto ético-político dos assistentes sociais
brasileiros. Todos esses elementos parecem favoráveis à materialização de algumas ações
condizentes ao projeto ético-político profissional em seu cotidiano de atuação. No entanto,
o último dado exposto no parágrafo anterior adensa a tensionada posição dessas
profissionais: a predominância de formas precarizadas de contrato de trabalho.
Antes de iniciar a análise proposta, é necessário destacar que, tendo em vista a
necessidade de resguardar o sigilo das profissionais entrevistadas e a relativa exposição das
mesmas devido à entrega e recolhimento dos questionários à turma de especialização da
pós-graduação em questão, buscaremos alternar a numeração de cada assistente social a
cada bloco de temas postos em debate. Isso porque a identificação de um número fixo para
cada entrevistada para o debate de todos os dados poderia, por meio da relação de algumas
respostas, expor a identidade de algumas entrevistadas. Nesse sentido, a cada bloco de
temas para debate, a numeração correspondente a cada entrevistada será alterada. No
entanto, tomaremos o cuidado de identificar os momentos em que haverá essa mudança. O
que será feito a partir da letra entre parênteses. Assim, por exemplo, o entrevistado
correspondente ao código “A1” no primeiro bloco de análise, no bloco seguinte, poderá
corresponder ao entrevistado “B3”.
Na primeira pergunta da segunda parte da pesquisa empírica, buscamos observar
algumas das fontes teóricas que as profissionais selecionadas para a entrevista julgam
contribuir mais para seu exercício profissional, a fim de observar se há incompatibilidades
recorrentes e acentuadas entre essas referências teóricas e o chamado projeto ético-político
profissional (pelo qual as 5 entrevistadas se disseram orientadas). Além disso, buscamos,
com essa pergunta, levantar autores que, ao menos para o perfil específico eleito para essa
entrevista, apresentem maior influência.

100
É interessante destacar que essa proporção é relativamente parecida com aquela exposta pelo total das profissionais
que responderam ao questionário, em que 7 se vinculam por meio de contratos temporários, 2 por contratos de
estatutários, 2 como bolsistas de treinamento e 1 declarou estar vinculada por meio de “CLT”.
174

Tabela 1
Iamamoto 4 80%
Ana Vasconcelos 4 80%
José Paulo Netto 3 60%
Bravo 3 60%
Maria Dalva da Costa 2 40%
Mattos 2 40%
Mioto 2 40%
Nogueira 1 20%
Berenice Couto 1 20%
Ana Elizabeth Mota 1 20%
101
Behring 1 20%
Código de Ética 1 20%
Lei de Regulamentação 1 20%
Rosângela Barbosa 1 20%
Mourão Vasconcelos. 1 20%
Faleiros 1 20%
Sposati 1 20%
Foucalt 1 20%

Como podemos ver na tabela 1, na medida em que foram citados pela maioria das
profissionais entrevistadas, podemos classificar como autores de maior influência: Marilda
Vilela Iamamoto, Ana Maria Vasconcelos, José Paulo Netto e Maria Inês de S. Bravo.
Devemos destacar que todos são intelectuais que, além de estarem em consenso com o
atual projeto ético-político profissional, foram também influências determinantes na
construção desse projeto, participando do debate brasileiro desde a década de 1980. Além
disso, a influência marxista em suas respectivas obras se faz presente como base
orientadora desde a década supracitada. Também devemos mencionar que os quatro
possuem graduação em Serviço Social, lecionaram em Escolas de Serviço Social e tiveram
essa profissão como um dos temas principais de suas respectivas trajetórias intelectuais.
Esse perfil, marcado pela influência do marxismo, pela graduação em Serviço
Social, pela vinculação ao projeto ético-político profissional e pela produção literária

101
A autora Behring, apesar de não ter sido citada nessa resposta, aparecerá no depoimento dessa assistente social como
inspiração direta para seu exercício profissional. Justificando: “eu fiz um projeto de intervenção de orientação sobre as
politicas públicas com os usuários e familiares e técnicos do serviço. Ai eu utilizei muito a Behring, a questão da politica
social numa perspectiva de totalidade” (A1). No entanto, não inclui essa autora nessa lista resguardando a possibilidade
dessa utilização ter sido pontual.
175

voltada para o público de Serviço Social, ainda que de maneira menos rígida, predomina
também entre os demais autores citados pelas entrevistadas com menor intensidade. 102
A partir das entrevistas, podemos dizer que o número de autores citados por cada
profissional variou entre 4 e 8, tendo maior dificuldade para referenciá-los exatamente a
única profissional situada na área de saúde mental, enquanto as demais entrevistadas
apresentaram uma média de sete referências. A explicação para esse dado parece vir em
outro momento da entrevista desta profissional que atua na área da saúde mental, quando
deixa transparecer uma carência da produção intelectual do Serviço Social nessa área:

Nós também fizemos um projeto de intervenção (que está sendo colocado em prática).
Somos eu, outra assistente social e uma psicóloga. Coordenamos um grupo de álcool e
outras drogas com usuários de drogas que são psicóticos graves […] com comorbidade.
Ou seja, além de serem psicóticos, fazem uso abusivo de drogas ou tematizam esse uso.
Às vezes não fazem uso abusivo, mas tem uma questão com a droga e trabalhamos isso
com eles. Usamos, na verdade, não uma literatura do Serviço Social, porque eu a achei
deficiente (A1).

Além dessa exposição, a única bibliografia do Serviço Social que essa assistente
social apontou na área de saúde mental foi seguida de ressalvas: “tem algumas coisas que
eu acho complicadas, mas são referências na saúde mental, que não podemos deixar de ler”
(A1). Esses fatos podem apontar uma carência por parte da produção intelectual no campo
específico da saúde mental.
Após citar suas principais referências, as assistentes sociais sentiram a necessidade
de justificar algumas respostas. Vejam o que elas disseram sobre as referências que eles
buscaram justificar:

 Netto e Iamamoto: “você consegue trabalhar de forma critica, tendo uma visão

mais de totalidade. É importante não abandonar isso. No meu exercício profissional eu


tenho muito...” (A1)

 Iamamoto: “para nortear a prática do assistente social é fundamental” (A1).

 Iamamoto: “porque eu já cheguei num período de fazer concurso e lemos

bastante” (A5).

102
Antes de avançar, gostaríamos de destacar que há, sem dúvidas, exceções e heterogeneidades importantes dentre as
fontes teóricas destacadas pelos profissionais, mas que não cabe aprofundamento nesse estudo por não apresentarem
alterações na trajetória estipulada pelos objetivos dessa dissertação. No entanto, na medida em que se mostra como uma
grande dissonância em relação ao perfil geral assinalado até aqui, uma referência merece ser destacada: Foucault, que
além de não ser referência marxista, não é assistente social, não tem o Serviço Social como uma de suas principais
temáticas de produções intelectuais e é o único autor internacional citado pelos assistentes sociais.
176

 Behring, Iamamoto e Netto: “o Serviço Social tem que ter a visão do todo para

poder interferir no micro” (A 3)

 Barbosa: “há uma questão muito forte de trabalho e geração de renda, eu tenho

lido muita coisa sobre „Serviço Social e trabalho‟” (A 1).

 Mourão Vasconcelos: “tem algumas coisas que eu acho complicadas, mas é

referência na saúde mental que não podemos deixar de ler” (A 1).

 Costa: “[...] ela aborda varias questões que [são] muito fortes mesmo para o

cotidiano” (A 2).

 Mota: “Os textos em que ela trabalha um pouco essa coisa mais „macro‟ trazer

para o Serviço Social também” (A 3).

 Ana Maria Vasconcelos: “A „Prática Reflexiva‟, outro da tese de doutorado dela


também na saúde que ela fez a pesquisa, aquele livro grande, eu acho que contribuiu
bastante” ( A 3).

 Ana Maria Vasconcelos: “por conta da „prática reflexiva”... Aquele lá, se você

faz seu trabalho burocratizado. Peguei por um viés que aquele material que você escreve
todo dia [...] e a própria dinâmica da instituição em relação às suas intervenções nos
grupos, principalmente nos grupos (A5).

 Couto: “os projetos de intervenção, da importância de você ter um projeto de

intervenção profissional até para contribuir para a autonomia mesmo, dentro da instituição
enquanto categoria enquanto organização em nível de trabalho”103(A2).

 Matos: “A questão da prática na saúde, especificamente na saúde” (A4).

 Bravo: “por conta da reforma sanitária, do projeto da reforma sanitária. A

própria discussão dos conselhos, vemos pelas […] dificuldades de participação nos
conselho como instrumento de emancipação do sujeito. Como um meio. Vemos muita
dificuldade. Há unidade de saúde que não tem conselho de gestor, nem participação dos

103
Apesar de ela apontar esse marco geral entre os três autores, a assistente social, em seguida, enfocou um tema referente em
particular em cada um deles: Behring: “a política social”; Iamamoto: “o histórico do Serviço Social”; e Netto: “a questão da história do
impacto econômico e tudo isso aí”.
177

usuários no conselho gestor. Em Caxias, estamos vivendo isso (A 5).

 Faleiros... “Porque eu trabalho numa instituição em que [há] essa relação de

poder. Gosto de ler o „Estratégias‟, até devido a essa questão da correlação de forças. Acho
importante ler Faleiros, porque ele trabalha com essa questão da correlação, do poder
institucional, eu acho que Faleiros, para quem está na saúde, nesse nível é importante”
(A5).

 Sposati: “eu sei que, de alguma forma, trabalhamos na saúde, na saúde entendida

num nível mais ampliado para dar conta da leitura da assistência” (Entrevistada 5)

 Foucalt: “a medicalização da saúde, a medicalização do social, medicalização do

atendimento à saúde, uns textos muito bons que me fizeram repensar mesmo as nossas
ações e esse modelo antigo que está vindo com uma nova roupagem” (A 5).

 Código de Ética: “é primordial para poder pautar a nossa prática, seja qual for a

área, seja na saúde, seja na assistência , seja na educação” (A 4).

 Lei de Regulamentação: “para você poder pautar a sua prática, saber o que pode

e o que não pode, o que é atribuição, o que é competência, o que é atribuição privativa” (A
4).

A partir dessas justificativas, pudemos perceber nas referências feitas pelos


profissionais alguns temas específicos que, por terem sido verbalizados, parecem ter mais
importância para esses autores. São eles: visão da totalidade; trabalho e renda; e saúde
mental (A1); cotidiano profissional (A 2); estudos socioeconômicos, projetos de
intervenção profissional, visão de totalidade, política social, história, história do Serviço
Social, “impactos econômicos” (A 3); prática profissional na saúde, delimitação das
atribuições profissionais (A 4); Serviço Social na contemporaneidade, medicalização da
saúde, medicalização do social, medicalização do atendimento à saúde, “prática reflexiva”,
trabalho burocratizado, dinâmica da instituição, grupos, assistência social, reforma
sanitária, conselhos, emancipação do sujeito, correlação de forças, relação de poder e poder
institucional (A 5). Isso demonstra que há certo equilíbrio entre o reconhecimento da
importância, tanto de temáticas específicas das instituições em que atuam como de
temáticas gerais.
Embora não tenhamos perguntado, foi interessante notar que as respostas revelaram
178

que, além da leitura com vistas ao aperfeiçoamento de sua intervenção profissional, outros
propósitos também levaram essas assistentes sociais a procurar as referências citadas. Os
propósitos destacados foram: construção da monografia, estudar para concurso público,
assim como para a especialização que estão cursando.
Em seguida, pedimos que esses profissionais citassem algumas propostas de ação
indicadas nessas literaturas que eles conseguissem colocar em prática, com certa
constância em seu cotidiano, e propostas que eles não conseguissem colocar em prática. O
objetivo dessa pergunta foi o de perceber em que pontos essa literatura do Serviço Social
se mostra instrumento real para a atuação dos profissionais interessados em materializar
seu projeto profissional e, em que pontos ela não vêm conseguindo serem postas em
prática. Vejamos os discursos de cada assistente social a esse respeito.
A “A1” destacou como propostas de intervenção indicadas pela literatura do
Serviço Social aos assistentes sociais, que, de fato, julga conseguir materializar, em sua
respectiva realidade institucional, a realização e implementação de “projeto de
intervenção” e de “grupo de estudos”.

Por exemplo, [...] eu fiz um projeto de intervenção, até para o pessoal conhecer o que é o
Serviço Social, conhecer o caráter socioeducativo da profissão. Eu fiz um projeto de
intervenção e orientação sobre as políticas públicas com os usuários e familiares e
técnicos do serviço.[...] Nós também fizemos um projeto de intervenção (que está sendo
colocado em prática). Somos eu, outra assistente social e uma psicóloga. Coordenamos
um grupo de álcool e outras drogas com usuários de drogas que são psicóticos graves […].
Fazemos ainda um grupo de estudos (A 1).

Quanto às propostas indicadas pela literatura que a profissional alega não conseguir
materializar no cotidiano do trabalho profissional, como veremos a seguir, a entrevistada
afirmou que a dificuldade está em dar melhores respostas às demandas, por se tratar de
uma instituição da área de saúde mental e pela precariedade da rede socioassistencial
oferecida pelas políticas sociais nessa conjuntura.

O José Paulo [...] coloca que existe […] um questionamento do marxismo (das ideias pós-
modernas e tudo mais) e que a direção do profissional vai ser dada através das demandas
que ele coloca e quem der melhor resposta a essas demandas vai dar o horizonte da ação
profissional. Eu vejo muita dificuldade disso na saúde mental, […] é muito difícil
trabalhar uma perspectiva mais crítica e dar essa direção mais crítica para a prática
profissional. Fica dificultado na saúde mental, eu percebo que é muito psicologizante […].
E, então, para aquilo que não temos autonomia, também por conta da insuficiência do
serviço da rede, o que também prejudica muito, não tem autonomia. Às vezes, você não
consegue fazer nada, não consegue fazer nada! Por causa dessa questão da insuficiência
desses serviços, da precarização das políticas sociais. E, acaba que essa precarização não é
questionada, porque é tudo levado limitadamente para o lado do subjetivo, do sujeito (A 1)
.

A assistente social “A2”, após ser indagada sobre as propostas interventivas


179

indicadas pela literatura que consegue materializar em seu campo de atuação, não
formulou uma resposta diretamente compatível em relação à pergunta. No entanto, buscou
ressaltar uma questão que, a seu ver, está muito presente em seu cotidiano de trabalho,
causando-lhe a seguinte reflexão:

Tem coisas que ela [Maria Dalva Costa] coloca que, para uma pessoa que já conhece a
área da saúde, pode ser uma coisa tão simples, mas para mim é bem interessante. Uma
delas é que você nunca vai ver a concretização do resultado. […] Você não consegue ver
os resultados esperados. Por exemplo […], numa fábrica, o trabalhador [...] da fábrica ele
vai ver o celular montadinho. Nós [assistentes sociais da saúde] não vamos ver o resultado
do nosso trabalho, porque a pessoa vai embora. Vamos fazer o nosso trabalho, vamos
fazer a nossa orientação... […] não vamos ver a concretização dos resultados...[...]
Recebemos problemas, mas as coisas progredirem […], não vemos (A 2).

No que se refere às indicações literárias que não conseguem materializar no


cotidiano de atuação, ela também não aponta. No entanto, chama a atenção para essa
questão no que tange ao espaço de sala de aula. Segundo ela, os professores que passam os
conteúdos teóricos costumam formular propostas de atuação que ela não consegue
materializar em seu cotidiano de atuação profissional, na medida em que, segundo ela,
essas propostas são profundamente incompatíveis com a possibilidade de autonomia
profissional que, de fato, ela possui. Vale dizer que essas incompatibilidades se concentram
no que tange às proposta de “embates” diretos com a hierarquia institucional. Ela comenta:

Na literatura nem tanto. Mas, às vezes, eu percebo muito, por exemplo, na sala de aula, na
fala, até de professores conceituados, temos percebido (não só eu) [...] às vezes,
mostramos uma situação, uma inquietação de uma coisa que conseguimos implementar,
que é uma coisa muito difícil. E chega o [...] doutor: “Ah porque você não conseguiu,
você não está com boa vontade para fazer isso, você tem que ser um profissional criativo
para procurar ...” […] Entende? (A 3).

A assistente social “A 3” destacou, como indicações presentes na literatura, que ela


vem conseguindo materializar onde a “socialização de informações”, a promoção da
“reflexão” e a realização de “estudos socioeconômicos” capazes de “ampliar” sua
intervenção profissional.

Eu gosto muito desse texto da prática reflexiva da Ana Maria de Vasconcelos que trata da
socialização das informações, da questão da reflexão (A 2).

Os “estudos socioeconômicos” que a Mioto discute, em que ela conta como pode
contribuir, isso é algo que fazemos, com que trabalhamos [...]. Elaborando um estudo que
pudesse ampliar a sua intervenção, que pudesse sair das inserções imediatas de demandas
que estão ali implícitas, então acho que esse estudo ele realça, materializa (A2).

A respeito do que analisa da literatura profissional mas não consegue colocar em


prática, a assistente social levanta dois pontos. O primeiro refere-se à inexistência de um
180

projeto de atuação próprio do Serviço Social no setor em que trabalha. E o segundo, à


inexistência de uma metodologia que use uma abordagem em grupo como dispositivo.

Eu acho importante na minha inserção no trabalho com grupos, a minha atuação é mais
necessariamente na abordagem individual e o máximo que eu faço é com a família, mas
nunca tive uma experiência de grupo. Mas outros profissionais dentro do mesmo espaço
fazem (A 2).

Algo que não se materializa é a questão da elaboração de um projeto profissional na


instituição, dentro do setor e assim lá na [instituição em que trabalha] temos sete setores.
No que eu trabalho não existe nenhum projeto do setor (A 2).

A assistente social “A4” não apontou nenhuma proposta de ação profissional que
consiga efetivamente materializar durante sua ação profissional. Limitou-se apenas em
indicar propostas que se esforça para seguir, justificando, em seguida, alguns motivos do
insucesso. No discurso a seguir, notamos que, apesar da consciência e adesão dessa
profissional em relação a alguns objetivos propostos pela literatura (no que diz respeito ao
horizonte profissional), percebe-se que tais objetivos não são compatíveis para aquela
realidade institucional104 ou os conteúdos assimilados pela profissional não foram
suficientes para encontrar mediações em seu cotidiano de trabalho para que se atinja tais
objetivos. Observemos:

Quando eu paro para refletir sobre a prática eu sempre lembro da Iamamoto que fala [...]
dos adjetivos do assistente social. Que tem que ser propositivo (não meramente executivo)
tem que investigar e decifrar a realidade. Para mim, tanto é o que eu procuro refletir para
poder cumprir quanto é o que eu sei que não se materializa na prática por conta da
correria cotidiana. Ao mesmo tempo em que é o positivo, que é o que eu deveria me
basear, eu sei que é o que não se materializa. É o que eu vejo de negativo na minha
prática (A4).

A assistente social “A5” concentrou-se em vislumbrar apontamentos presentes na


literatura que ela poderia vir a materializar, ao mesmo tempo em que apontava alguns
entraves presentes no atual contexto institucional. No entanto, sua resposta, apesar de
aprofundada e detalhada, não foi muito direta em relação à pergunta, transparecendo
apenas a frustração em relação à não materialização da abordagem grupal (a exemplo da
“A 3”) e à não sistematização da sua prática profissional. Ela, no entanto, atribui esses
motivos à falta de autonomia, devido à fragmentação da equipe e à falta de adesão ativa da
chefia em relação a estas questões que julga estratégicas.

104
Vale destacar que, dentre as assistentes sociais entrevistadas, essa foi a 2° colocada no que diz respeito ao nível de
autonomia que julgou ter. Avaliou-se com 50% de autonomia frente à instituição. No entanto, devemos destacar que,
dentre as cinco profissionais entrevistadas, a realidade em que o embate da equipe de Serviço Social com a hierarquia
institucional se coloca em pauta com maior força parece ser a dessa profissional. O que parece ser consensual é que,
dentre as duras realidades expostas por essas profissionais, a sua é uma das mais difíceis.
181

Eu penso que esse trabalho com famílias, para quem está trabalhando com emergência,
[…] para que eu consiga isso, não adianta que eu consiga sozinha, isoladamente, tem que
ser um trabalho todo dia. Para que isso se materialize, eu vejo que a equipe precisaria
sentar e parar para pensar o que estamos fazendo, o que está sendo a atuação do Serviço
Social. Que propostas temos que tentar. Como antes nós tentávamos. […] Cada um está
fazendo uma coisa diferente. No Rio, eu consigo, numa sistematização da prática,
apresentar alguma coisa do trabalho que eu faço. No Rio, eu consigo fazer isso dentro da
unidade. Por que em Caxias eu não consigo elaborar nada? Não há trabalho sistematizado
do Serviço Social. Então como é que vamos racionalizar o que fazemos? […] não tem
apoio, temos uma chefia que precisaria pedir. Quando começamos, eu estou lá no plantão
de domingo com uma […] outra colega no outro domingo, porque o revezamento vai ser
com outra, e esse grupo é fragilizado (A 5).

No geral, apesar de buscarmos o foco nas “finalidades” profissionais diretamente


inspiradas pela literatura profissional, a questão dos limites impostos pela autonomia
profissional, obviamente, insistiu em retornar ao debate. Os principais elementos que
agiram como empecilhos a essas metas inspiradas pela literatura profissional foram: a
rotina desgastante de trabalho, fragmentação da equipe, falta de apoio da equipe e da chefia
do Serviço Social, a fragilidade profissional perante a hierarquia institucional
(principalmente quando o vínculo é temporário), insuficiência da rede de serviços de
política pública, isolamento da “perspectiva de totalidade” numa instituição onde há uma
perspectiva “psicologizante” – como no caso da saúde mental.
Coagidos diante dessas ofensivas à autonomia profissional, pudemos contrapor as
propostas de intervenção profissional indicadas na literatura do Serviço Social que as
assistentes sociais entrevistadas julgam conseguir materializar no cotidiano de intervenção
dessas profissionais, às que essas profissionais não vêm conseguindo materializar em seu
universo institucional. Estas últimas foram: abordagem sistemática com grupos,
sistematização da prática profissional, enfrentamentos abertos à hierarquia institucional,
dar respostas melhores às demandas numa perspectiva marxista e a capacidade de ser
propositivo, decifrador e investigativo frente à realidade. E, quanto às propostas literárias
bem sucedidas, pudemos identificar, nas exposições dessas assistentes sociais: a realização
e implementação de “projeto de intervenção” e de grupo de estudos, a socialização de
informações, a promoção da “reflexão” e a realização de estudos socioeconômicos. A
síntese desse resultado geral nos traz duas visualizações importantes:
1° Observando o segundo agrupamento podemos chamar a atenção dos assistentes
sociais em atividade para as propostas de ação, indicadas na literatura profissional, que
vêm se mostrando mais viáveis em determinados campos profissionais. 105

105
Não estamos buscando afirmar nem que as propostas realizadas por esses profissionais sejam as únicas realizáveis
em outros campos de atuação. Nem estamos orientando que o leitor absorva essas propostas que não foram bem
182

2° Observando a síntese das “propostas frustradas” com “olhos estratégicos”,


poderemos vê-las como “pontos fracos” a serem potencializados. Essas propostas que os
assistentes sociais disseram não conseguirem materializar no seu cotidiano de trabalho não
as fazem desimportantes nem impossíveis. Por isso, devemos alarmar aos “produtores de
conhecimento” para a necessidade de recair com maior cuidado a respeito dessas questões,
a fim de exercer orientações mais compatíveis às reais estruturas e particularidades que
conformam a autonomia profissional hoje.
Essa síntese aponta ainda para outra observação: foram sete apontamentos que os
profissionais não conseguiram materializar e apenas cinco que os profissionais disseram
conseguir materializar. Ou seja, chamam mais a atenção desses profissionais os objetivos
frustrados. Essa hipótese parece bem representada nas seguintes respostas:

É tão difícil conseguir alguma coisa aqui... (A4).

[…] não é comum que consigamos uma vitória diante de certos embates. Principalmente a
questão da alta social. Na maioria das vezes, não temos êxito. [...] Na maioria das vezes,
não é comum. O mais comum é que não seja respeitada a nossa situação... (A 4).

No entanto, o que mais chamou a atenção com as perguntas que fizemos para
chegar a tal conclusão foi o fato de que, apesar de termos feito perguntas curtas e diretas, a
maior parte das respostas foi longa e suas respectivas objetividades não foram condizentes
com os objetivos das perguntas. Além disso, o que se destacou foi a abstenção de respostas,
pois, ainda que em outras partes das entrevistas os profissionais tivessem constantemente
exposto uma série de experiências a respeito de seus procedimentos e frustrações, nos
momentos em que pedimos para relacionar esses procedimentos ao debate profissional, os
profissionais não conseguiram se lembrar de muitos exemplos. Ou seja, houve uma
evidente dificuldade, por parte das entrevistadas no que diz respeito a indicar propostas de
ação por parte desta literatura do Serviço Social.
Essa questão se relaciona à última que procuramos analisar a respeito da relação
dessas assistentes sociais com a teoria produzida. Primeiramente, vamos analisar os
méritos da literatura profissional na opinião desses assistentes sociais. Em seguida,
analisaremos os limites apontados pelos profissionais.

sucedidas por esses assistentes sociais como as “impossíveis”. Sabemos (e viemos destacando isso até aqui) que a
realidade e autonomia profissional em cada campo variam e, por isso, é possível que tentativas frustradas nesses campos
analisados sejam possíveis em outros e vice versa. No entanto, estamos apontando que o fato de essas propostas terem
sido materializadas em seus respectivos cotidianos pode contribuir para indicar caminhos mais viáveis a outros
profissionais do que aquelas que não conseguiram ser materializadas.
183

A assistente social “C1” demonstrou certa satisfação com os avanços da literatura


do Serviço Social nas últimas décadas. Para a entrevistada, o grande problema está nos
profissionais que não se atualizam (como poderá ser observado na próxima citação). Na
segunda citação abaixo, ela deixa transparecer essa satisfação, enfatizando a competência
desta literatura no papel de traduzir a realidade.

Acho que o mérito está aí. A literatura tem ajudado o profissional, mas [...] ela é
extremamente importante na atualização, porque há quem não faça isso [leitura]... (C1)

Então, você vê, a literatura está toda certa: “redução do Estado”, “contenção dos gastos
públicos”... Está tudo lá, a literatura está mostrando para nós o tempo todo. E estamos
nessa... nunca participa. Você está vendo que nada está fora (C1).

As entrevistadas “C2” e a “C3” focaram-se na maturidade intelectual da categoria,


enfatizando elementos marcantes trazidos pela hegemonia marxista no que tange à
literatura profissional, tais como a perspectiva de totalidade, a relação do Serviço Social
com as contradições existentes no mundo do trabalho, a estrutura social capitalista etc:

O maior mérito eu entendo que seja o da perspectiva de totalidade, de que a Marilda


[Iamamoto] fala o tempo inteiro, de você entender o Serviço Social como um trabalho
inserido na divisão social e técnica do trabalho.... Essa perspectiva de totalidade é muito
presente (C2).

Méritos: eu penso que seja o compromisso com essa análise “macro”. Acho que o Serviço
Social avançou bastante. Pesquisas... Dá para termos uma análise da estrutura [...] alguns
conhecidos falam “Ah ,você é a pessoa mais crítica que eu conheço” [...] (C 3).

A profissional “C4”, embora na primeira questão analisada desse tópico tenha


ressaltado algumas literaturas que amparassem sua prática profissional, não apontou
méritos dessa literatura. A assistente social C5 abordou a questão dos “méritos”, no entanto
de maneira vaga e rápida, tomando como critério aparente a relação de afinidade da
literatura com os assistentes sociais. Ela afirmou:

Alguns conseguem traduzir o que expressamos, mas ainda não está 100%. Alguns
conseguem... (C5).

Quanto aos limites, as assistentes sociais responderam de maneira bem mais


extensa. Duas profissionais se ocuparam basicamente em apontar temáticas que vêm se
mostrando objetos de estudo urgentes de serem pesquisados devido à insuficiência do que
se tem produzido no momento e/ou à intensificação com que elas vêm atravessando o
cotidiano de atuação na contemporaneidade.

Alta social... Eu não estou encontrando nada a respeito. Na verdade, ainda não busquei
tese de mestrado, doutorado, mas no que há de literatura divulgada não tem. Não tem nada
que fale a respeito de como lidar com a questão da alta social. A questão da
184

intersetorialidade também é muito pouco divulgada, integralidade... (C4).

[...] precisará de pessoas, assim, um estudo [...] das Fundações na saúde, não temos ainda
isso concreto, está muito incipiente. No Rio de Janeiro está andando aos poucos e tal, mas
não temos material sobre isso. Vejo também que pouco se escreve sobre a prática
profissional. Acho que ainda é pouco, que alguns temas nós não vemos na discussão do
Serviço Social. Você vê em nível de literatura algumas coisas. Quando você vai ver na
prática, eu percebo que ainda estamos escrevendo pouco (C1).

Além do que acabamos de observar, levando em conta também a carência por parte
da produção intelectual marxista exaltada anteriormente pela “A1”, a respeito do debate
sobre saúde mental, podemos destacar como temas de pesquisa mais urgentes do ponto de
vista dessas assistentes sociais: “alta social”, a intersetorialidade, a saúde mental, os novos
modelos de gestão dentro da saúde e a prática profissional.
Esse último ponto assinalado servirá para introduzir os outros três discursos a
respeito dos atuais limites da literatura profissional. Cabe assinalarmos que as três
profissionais que problematizaremos a seguir possuem críticas que extrapolam a simples
ausência de pesquisa, colocando em pauta críticas mais duras, no entanto, sem sair do
campo da perspectiva de ruptura.
A assistente social C3 inicia seu discurso como se estivesse aprofundando o que a
“C 1” citou: ausência de debate sobre a prática profissional.

Limites, muitos... Eu acho que a Ana Maria [Vasconcelos] até nos deu uma aula na
especialização e ela estava iniciando uma estudo para identificar o que o assistente social,
o que o Serviço Social pesquisa. Ela falou que são 70 pesquisadores de alto nível da
CNPQ [...] e, desses, ninguém pesquisa Serviço Social. Então isso é um problema muito
grande para mim, é um problema muito, muito grande... Porque as pessoas vão falar o
efeito […], mas não vão falar do Serviço Social e isso estabelece um limite muito grande:
as pessoas que estão vinculadas ao Serviço Social – e são as mesmas pessoas que estão
representando a categoria profissional: ABEPSS, CFESS, nos CRESS – não estão falando
do Serviço Social, não estão pesquisando Serviço Social e, portanto, não produzem para o
Serviço Social. E depois as pessoas falam: “Ah, teoria não é diferente da prática”. E quem
está pesquisando a prática? Entendeu? É muito complicado. Eu acho isso um grande
limite. E outras coisas, por exemplo: pouco vemos doutores na prática de assistente social.
A pessoa fez mestrado e passou para o doutorado: larga o trabalho no campo de
intervenção. [...] Diferente dos outros profissionais da saúde, você vai ver doutor
psicólogo, doutor médico, doutor fisioterapeuta... Nutricionista trabalhando no hospital...
Doutor assistente social? Talvez numa ENSP, talvez num INCA sabe? Só (C3).

Na tentativa de fugir da frieza que uma transcrição pode trazer, é importante


destacar o tom de desabafo que acompanhou toda a explanação dessa profissional a
respeito da questão da ausência de pesquisas sobre a prática profissional. Questão essa que
deve ser compreendida com igual relevância para fins desse estudo. Devemos ressaltar que
essa resposta da profissional nos trouxe duas questões primordiais para o debate a respeito
da intervenção profissional: a “crise de materialização” do projeto profissional na sua
dimensão prática e o distanciamento entre os “acadêmicos” e os assistentes sociais.
185

A primeira questão já foi destacada no tópico 2.3 do capítulo 2 dessa mesma


dissertação, no qual relatamos que o sucesso da materialização do projeto ético-político
profissional, no que tange ao elemento literário, não consegue se repetir no cotidiano de
atuação profissional. Quanto à segunda questão, é necessário reconhecer que há na
categoria uma relativa106 divisão entre os assistentes sociais e os “teóricos”, não havendo, a
princípio, problema algum nisso. O que deve ser problematizado é o tipo de relação entre
ambos. Por exemplo, no trecho acima destacado da entrevista, a noção que a assistente
social C 3 transpareceu foi de certa oposição, enquanto o que devemos prezar é pela
garantia de que essa relação seja de troca. Principalmente numa profissão interventiva
como a nossa, parece-nos descabida essa fragmentação entre teoria e ação profissional. O
elemento que talvez se relacione com maior força na reprodução dessa noção de
“oposição” é a questão da distância entre a teoria produzida e a ação profissional dos
assistentes sociais. 107

Na categoria, aprofunda-se a distância entre os teóricos (cuja base social tem seu centro
na academia) e o conjunto dos profissionais cujo universo é a prática. Não é mero acaso
que nossos congressos vão se tornando tão caros que apenas a parcela mais rica da
profissão pode participar (LESSA, 2011, p. 295).

Retomando a resposta da assistente social C3, podemos perceber que ela destaca,
ainda, uma preocupação com o fato de que os mesmos autores, que não se mostram
preocupados com a prática profissional, representam politicamente a categoria. No entanto,
se seu destaque a respeito da relação desses “teóricos” com a prática profissional foi
explicitado, sua crítica a respeito desses serem também os representantes das entidades
profissionais ficou apenas no esboço, sem que pudéssemos compreender exatamente essa
segunda questão.
Além disso, a entrevistada C3 também chama a atenção a respeito de uma possível
particularidade do Serviço Social: a de que os profissionais com maiores titulações tendem
a migrar seu campo de atuação para a academia. Essa questão nos parece plausível e pode
estar relacionada a uma série de fatores, mas um deles nos parece mais sólido assegurar: os
salários de assistente social tendem a ser bem inferiores aos disponíveis na academia. Uma

106
É necessário assinalar que essa divisão não pode ser tomada de maneira rígida e mecânica, pois em nossa categoria
há assistentes sociais que dão aula, produzem textos científicos, apresentam trabalhos em congressos etc.
107
Não nos cabe, aqui, defender uma dissolução entre “teóricos” e “práticos” (para usar os termos de Lessa), mas sim
ressaltar que a necessária existência entre ambos deve se exercer da maneira mais próxima e harmônica possível, de
maneira tal que os teóricos contribuam ao máximo para subsidiar a intervenção dos “práticos” e vice-versa.
186

forma de possível amenização deste problema, se levarmos em conta a onda de formas de


precarizações que esmagam o funcionarismo público, seria termos uma efetiva
universalização e qualificação dos chamados “Planos de Cargo, Carreira e Salários”. Esse
incômodo a respeito da ausência desses agentes de formação profissional no campo de
atuação também aparece no discurso da assistente social C5:

[...] muitas vezes, essas pessoas estão fora de seu espaço de trabalho, não são “autores
terminais das politicas públicas”, não são! Estão aqui dentro [dentro da academia]
imersas... É muito fácil... (C5).

Acho que, se você ver os nomes que temos, os grandes nomes de assistentes sociais,
de autores, eles não estão na prática. A Vasconcelos não está trabalhando como
assistente social, nem a Bravo... Acho que o Maurílio ainda está [...] é o único que ainda
escapa. Pelo menos os do Rio de Janeiro, a própria Iamamoto, o próprio José Paulo, o
Montaño, são pessoas que estão ali na academia. Eles vivem de escrever, vivem da
academia, vivem dela. Uma coisa é estar entre essas quatro paredes aqui da UERJ, outra é
você viver dentro do cotidiano do trabalho, dentro do cotidiano de uma UPA, você sendo
comprimido de várias formas. [...] Poderia estar muito mais avançado. Eles poderiam
estar muito mais em consonância com o que vivemos se estivessem ligadas com a
prática (C5, grifos nossos).

Frente à questão do incômodo a respeito da ausência desses agentes de formação


profissional no campo de atuação, essa profissional esboça uma reflexão que parece conter
também sua proposta para alterar essa condição. Para ela, seria enriquecedora a ampliação
de pesquisas elaboradas por assistentes sociais em atuação.

Por exemplo, se vocês escreverem, quando forem parar para escrever, vocês [que estão
pesquisando, mas também estão atuando como assistentes sociais] não vão ter o mesmo
prestígio que Bravo e Matos têm. […] Espero que consigamos modificar isso. Que
sejamos os profissionais na prática, mas que consigamos também produzir conhecimento
(C 5).

Essa entrevistada (C5) também destaca outro ponto extremamente relevante, que,
de certa forma, entra em consenso com a argumentação da assistente social recém-
abordada (C 5). Trata-se de uma noção de autonomia profissional por parte da academia
que, de maneira geral, se mostra consideravelmente incompatível com a realidade que
esses profissionais dizem viver. Segundo essas duas profissionais, existe, por parte dos
“teóricos”, uma cobrança de postura que, ao exigir ações que eles não encontram meios
possíveis de realizar, se mostra relativamente compatível com o “messianismo”.

[…] se não falarmos dos embates, muitas vezes nós falamos, vem outra pessoa e fala
como se você chegasse e batesse de frente, batesse peito e depois tudo certo, tudo ok.
Você não tem nenhum tipo de retaliação, você é um mártir! Então, você vai ser feliz, vai
ser um mártir do Serviço Social e, no final, tudo vai ser lindo. E não é assim. É muito
difícil […] Às vezes, eu tenho a sensação também de que, quando você está na sala com
187

colegas e um professor,, às vezes você fica até meio constrangido de falar da prática e o
cara achar que você está fazendo algo conservador (C5)108

Eu acho que o limite é que às vezes a literatura acaba sendo muito voluntarista. Parece
que se o assistente social for crítico e conseguir entender as coisas de uma forma mais
ampla, nessa sociedade, ele vai conseguir colocar o trabalho em prática. Pelo menos, eu
percebo isso na literatura em relação à saúde. Tudo você pode mudar de alguma forma e
não é bem assim (C 2).

Como pudemos perceber, as críticas desses últimos quatro profissionais debatidos


se concentram em três acusações sérias àqueles que produzem essa literatura profissional.
A partir das respostas expostas pelos entrevistados C1, C2, C4 e C5, parece-nos que, na
visão deles, os profissionais comprometidos com a pesquisa no Serviço Social
raramente atuam como assistentes sociais; não pesquisam a prática profissional; e,
quando propõem ações profissionais, não o fazem considerando os limites da
autonomia profissional que essas assistentes sociais julgam possuir.
É necessário, aproveitar esses indícios apontados acima para promover uma breve
relação entre os elementos criticados pelas entrevistadas. A partir das explanações delas,
podemos perceber que há um certo eixo de consequências entre os três elementos críticos
percebidos por elas, que acabam conformando uma hipótese a respeito da forma com que a
relação entre a academia e os assistentes sociais dos serviços vem se dando na atualidade.
Segundo as entrevistadas, a maior parte dos produtores de conhecimento a respeito do
Serviço Social não é a mesma que atua profissionalmente como assistentes sociais. Essa
condição, embora não impeça esses produtores de conhecimento de construir análises
pertinentes e necessárias a respeito da atuação profissional, na opinião das assistentes
sociais entrevistadas, vem dificultando, significativamente, a missão deles em corresponder
às reais necessidades científicas que os assistentes sociais possuem. Dessa maneira, esses
produtores de conhecimento demoram demasiadamente a perceber a pertinência de estudos
a respeito de determinados temas em cada contexto e, principalmente, de abordar tema
clássicos que ainda se mostram urgentes – como a própria “crise de materialização” do
projeto ético-político profissional no campo da intervenção do assistente social. Essa
situação, evidentemente, lhes retira possibilidades de encarar a temática da prática
profissional e, consequentemente, se conecta à hipótese anteriormente levantada de que

108
É importante destacar que, para essa assistente social, esses recalques messiânicos se concentram no nível da
formação em sala de aula, embora não desconsidere a ocorrência disso na literatura: “Ah, mais na academia, porque o
cara não fala tão fortemente no texto, pelo menos não estou lembrado que tenha lido na literatura no momento... Mas isso
é mais na formação que isso é muito forte” (C 5).
188

grande parte da literatura lida por esses profissionais não cumpre em si mesma a função de
expor (ao menos didaticamente) mediações propositivas entre as questões abordadas e suas
respectivas realidades profissionais. Ainda assim, quando essas propostas são feitas,
parecem tender a análises equivocadas sobre a real autonomia profissional e,
consequentemente, indicar propostas de atuação profissional de maneira muito próxima ao
messianismo.
Isso dá sentido também às análises feitas pela assistente social C5, de que na sala de
aula é que ocorrem as maiores incompatibilidades entre a proposta acadêmica e a realidade
da autonomia profissional. Afinal, os alunos e assistentes sociais possuem muito mais
possibilidades de cobrar respostas do professor do que do “escritor”. Com isso, o professor
tende a ser mais exigido no papel de “arriscar” em termos de indicações práticas de
materialização do projeto ético-político profissional nesse cotidiano de atuação.
Esse conjunto de opiniões das assistentes sociais entrevistadas, como podemos
perceber, ainda que não se coloquem de maneira muito organizada e alinhada, conformam
uma hipótese relevante que diz respeito ao distanciamento entre os “teóricos” e os
“acadêmicos”. Trata-se de uma hipótese que não nos cabe verificar sua validade para fins
desse estudo, mas que, no entanto, deve ser destacada para colaborarmos com pesquisas
posteriores a respeito da prática profissional.

3.3 Particularidades dos projetos institucional e profissional e as demandas dos


usuários

Antes de prosseguirmos com o debate, devemos dizer que esse tópico que se inicia
pretende resgatar alguns elementos básicos que conformam a realidade em que o assistente
social está inserido e a apreensão disso pelos assistentes sociais, para que possamos,
finalmente, nos dois últimos tópicos, detectar estratégias plausíveis e criativas que sejam
capazes de materializar o projeto profissional em relação ao projeto burguês.
Ao longo do estudo, lançamos mão de reflexões a respeito do antagonismo entre o
projeto institucional e o projeto ético-político profissional. Indicamos, ainda, a necessidade
de se considerar o conjunto de aspirações que cercam o usuário do Serviço Social na
instituição. Destacamos que esse conjunto de aspirações se expressam numa série de
demandas que possuem o potencial de uniformizar-se relativamente em torno de questões
189

centrais gerais, conformando, assim, um projeto comum entre os usuários. Na medida em


que essas aspirações presentes nos usuários demandantes são passíveis de se aliançar tanto
com o projeto ético-político profissional quanto com o projeto institucional, podemos dizer
que a instituição transforma-se num complexo palco de disputas que devem ser levadas em
consideração nesse estudo. Nesse sentido, estruturamos a parte final da entrevista levando
em conta a complexa relação de embates, alianças e omissões entre profissional, instituição
e usuário, a partir do ponto de vista do assistente social em suas estratégias de
materialização do atual projeto ético-político.
Quanto aos usuários, gostaríamos de começar trazendo alguns elementos a respeito
do que há de relativamente comum entre eles em cada instituição, a fim de esboçar
estruturas e manifestações que perpassam os usuários de cada instituição e das instituições
de maneira geral. Ou seja, a fim de pensarmos como se configuram o conjunto de
aspirações dos usuários na realidade institucional desses profissionais. Para isso, traremos
trechos das entrevistas:

São todos membros da classe trabalhadora. Então, todos ali estão num nível próximo de
classe social... [...] Classe média, classe baixa, estão todos mais ou menos num mesmo
nível. Então, esses rebatimentos que a classe trabalhadora sofre acabam sendo refletidos
na vida deles e, consequentemente vão gerando essas situações (D1).

A classe trabalhadora em geral, [...] Eu acho que o que perpassa é a questão da classe
mesmo. A questão de classe social mesmo (D5).

Uma primeira questão que podemos identificar, de maneira mais ou menos clara,
nas respostas desses assistentes sociais que acabamos de citar é a origem de classe desses
usuários. Embora apenas as entrevistadas D1 e D5 tenham deixado clara a identidade de
classe deles, as entrevistada D2, D3 e D4 também expressaram dados que nos remetem
facilmente à identidade de classe, como poderemos verificar a seguir:

É uma população extremamente empobrecida, extrema pobreza. É adoecedor você andar


por ali. Então, é um público extremamente empobrecido [...]. Relacionando com a
literatura, vemos a “mundialização do capital” de que a Marilda fala e no que isso
repercute para o trabalhador, pro mundo do trabalho (D2).

O que é comum é a falta de políticas básicas, de políticas de educação, de assistência, de


saúde, que deixa chegar ao ponto em que a pessoa chega aqui (D3).

Poder aquisitivo também muito baixo (D4).

O fato de o público usuário do Serviço Social ser formado por trabalhadores é uma
consequência clara de tudo que debatemos até aqui a respeito do projeto institucional e da
“questão social”. Por um lado, porque a prática profissional contém uma dimensão objetiva
190

marcada basicamente pelo processo de prestação de serviços sociais demandados por


segmentos da classe trabalhadora. Por outro lado, porque esse mesmo segmento será
também requisitado pelo projeto institucional como alvo da intervenção pedagógica do
profissional, no sentido de adaptar sua consciência à reprodução social (e não a burguesia).
Além dessa origem estrutural de classe, que nos indica que esses usuários
pertencem à classe trabalhadora, uma posição muito específica entre eles nessa relação do
mundo do trabalho também esboça certa clareza a partir de algumas argumentações dos
entrevistados. Trata-se do fato de que, mesmo nas instituições em que os usuários dos
serviços gerais da instituição pertencem às mais variadas camadas da classe trabalhadora,
os usuários que chegam ao Serviço Social tendem a ser exatamente a parcela da classe
trabalhadora mais pauperizada e, possivelmente, a chamada “superpopulação relativa”.
Vejamos algumas passagens que parecem evidenciar isso:

É uma população extremamente empobrecida, de extrema pobreza. É adoecedor você


andar por ali. Então, é um público extremamente empobrecido. São usuários que têm uma
dependência muito grande da família e que, portanto, não conseguem se inserir no
mercado de trabalho e por isso tentam acessar os benefícios da previdência ou da
assistência social (D2).

Poder aquisitivo desses usuários também é muito baixo (D4).

O que perpassa é a questão da classe mesmo. [...] Porque [o hospital em que trabalho], por
ser especializado, de referência, de alta complexidade, não é só para a população mais
pauperizada. Há outro público também, mas o público que chega ao Serviço Social para
essas demandas, que no item anterior eu citei, geralmente são as pessoas mais
pauperizadas. [...] o que chega ao Serviço Social com mais intensidade sempre foi:
auxílio-doença de pessoas que talvez, alguns empregados, alguns que já perderam há um
ano, um ano e meio e temos que ver se tem carência ou não, uma quantidade da população
trabalhava informalmente e às vezes parou de trabalhar por causa da doença (…) Acesso a
transporte... “Ah, não vou ter dinheiro para pagar a passagem, eu vou ter dinheiro para
alimentação”. Porque para quem tem dinheiro, não vale apena requisitar um cartão que
demora três meses para chegar (D5).

A relação dos assistentes sociais com a superpopulação relativa não é inédita; ela
também perpassa a história do Serviço Social. Além disso, não possuímos dispositivos
nessa pesquisa que nos dêem uma visualização segura no sentido de verificar se há uma
transição relativa do público alvo dos assistentes sociais da parcela inserida no mercado de
trabalho para a parcela componente da superpopulação relativa. No entanto, diante de uma
conjuntura como a nossa, onde vemos o retrocesso dos direitos da classe trabalhadora
regredirem e serem negados na prática, é possível levantar a hipótese de que a intervenção
profissional na contemporaneidade venha recaindo cada vez mais para o atendimento da
superpopulação relativa. Isso porque, concomitantemente à perda de direitos gerais da
classe trabalhadora, promove-se uma conjuntura de focalização na pobreza. Por exemplo,
191

podemos dizer que o Estado vem precarizando significativamente a Saúde e a Previdência


e, com isso, encorajando a transição dos setores médios da classe trabalhadora (aqueles
inseridos mais concretamente no mundo do trabalho) para os serviços privados de saúde e
previdência. Dessa maneira, o setor que mais contrata assistentes sociais (o Estado) passa a
atender uma proporção cada vez maior de usuários advindos dos setores mais pauperizados
da classe trabalhadora. Concomitante a esse processo, vivemos hoje um processo de
“assistencialização das políticas sociais”, na qual chama a atenção o espaço que a
assistência social vem ganhando em relação às outras políticas sociais (exatamente o setor
de maior tradição em relação ao trato com a superpopulação relativa). Também devemos
destacar o grande boom contemporâneo das políticas de transferência de renda por vários
países no continente, no qual o Brasil vem se destacando internacionalmente com o modelo
do Programa Bolsa Família, voltado exatamente para os mais pauperizados.
A assistente social D3 focou sua problematização em torno do histórico desses
sujeitos, que, para essa profissional, está marcado principalmente pela ausência de políticas
sociais básicas. Ela entende que, no geral, a presença desses usuários nessa instituição é
resultado de uma ausência de determinados serviços que deveriam ter sido prestados pelas
políticas sociais (em suas diversas áreas) num momento anterior.

A ausência de políticas, políticas básicas, política de saúde em primeiro lugar, porque se o


usuário tivesse acesso ao posto de saúde para poder tratar, [muitas vezes não estaria ali
naquela situação][…] Então, começa pela falta da política de saúde, da política de
assistência para poder prover para essa pessoa, para esse usuário, recursos mínimos
necessários para que ele pudesse chegar aqui. Acho que é o principal. O que é comum: a
falta de políticas básicas, de políticas de educação, de assistência, de saúde, que deixa
chegar ao ponto em que a pessoa chega aqui (D3).

A entrevistada D4 também aborda essa questão, chegando a uma conclusão


parecida a respeito do fato de que a presença desses usuários naquela instituição poderia ter
sido evitada se houvesse uma cultura de prevenção mais arraigada na cultura popular. No
entanto ela se aprofunda numa outra direção, não oposta, mas diferente e passível de
complementação com a direção exposta pela entrevistada 3. Ela diz:

Uma dificuldade muito grande que eu percebo é que eles não têm conhecimento da rede.
Ainda que a rede seja precária, eles não têm conhecimento da rede. Outra coisa que
percebemos: eles entendem que: “Eu vim aqui para me curar”, a lógica que o hospital é o
lugar de curar as doenças. Antes da cura, é preciso trabalhar a prevenção. Então, para os
pacientes têm uma lógica equivocada que eles procuram o hospital para curar a doença, só
que, quando eles vão pro hospital para curar a doença, já estão com a doença aguda ou
muitas vezes crônica. Então, você vê muito exemplo de doenças crônicas, que não foram
tratadas anteriormente (D4).

Escuto muito isso: “Eu vim aqui para me curar, eu vim aqui para me tratar”. Esse é o
grande unificador, mas quando você vê isso no hospital, não percebe que essas questões
192

poderiam ter sido trabalhadas na atenção básica. Num outro momento na saúde, já está
embutido na fala deles, essa é uma identidade que atrapalha (D4).

Como pudemos perceber, essa profissional entrevistada buscou recair sua


percepção a partir do campo das concepções de mundo deles, o que nos parece muito
positivo, na medida em que essa compreensão cria bases importantes no que tange à
dimensão pedagógica da prática profissional. Nesse momento, a entrevistada ressalta duas
questões a respeito desses usuários, que nos parecem válidas: primeiro, que, além da
precariedade da rede, ressaltada pela entrevistada D3, essa assistente social ressalta o
desconhecimento por parte dos usuários da rede que já existe; segundo, que a própria
concepção de saúde que a profissional identifica como hegemonicamente aceita pelos
usuários é extremamente restrita, limitando-se à compreensão da saúde apenas como
“ausência de doenças”. É interessante notar como essas duas percepções se
complementam, ou seja, o ato de ignorar a rede é alimentado pela concepção de que parte
da rede (por exemplo, a que se focaliza na prevenção) não possui tanta importância. Essa
impressão sobre a visão restrita de saúde por parte dos usuários também se faz presente na
afirmação seguinte da entrevistada D5:

usuários também não têm consciência do conceito ampliado de saúde, compreensão da


saúde como um todo. Então, quando eles vão ao hospital, querem cuidado do médico
(D5).

Essa questão da concepção restrita de saúde talvez esteja ligada exatamente ao


caldo miserável da cultura contemporânea, marcada pelo comodismo, pela resignação, pelo
imediatismo e outros tantos exemplos. No entanto, um em particular ganha destaque
central na fala de outra assistente social, a respeito de sua visão sobre os usuários:

As pessoas hoje querem resoluções imediatas para sua demanda. Vivemos uma vida do
imediatismo para tudo na vida. Ninguém mais consegue esperar, querem resolver as
coisas de “bate pronto”. O foco ali na unidade de saúde não é o Serviço Social, [...] é o
atendimento dos problemas de saúde daquela população. […] Essa coisa do imediatismo
ele se cristaliza ai (D 1).

Esse argumento é importante para percebermos a relação entre o imediatismo e o


foco no aspecto biológico da saúde, que se desenvolve subordinando às abordagens sociais.
Afinal, na medida em que o cuidado com a saúde não é urgente no momento da prevenção,
por exemplo, pode ser deixado para depois e outras questões mais imediatas ganham
prioridade.
Feitas essas observações básicas acerca da identidade objetiva e subjetiva desses
usuários, voltaremo-nos à analise do que há de mais claro para as entrevistadas sobre a
193

relação entre o conjunto de demandas dos usuários e o projeto institucional na realidade


específica em que essas assistentes sociais estão inseridas. Percebemos que, apesar dos
interesses institucionais coincidirem essencialmente com os interesses da burguesia, a
maioria das assistentes sociais entrevistadas percebem, ainda que de maneira
extremamente pontual, alguns consensos entre ambos.
Duas assistentes sociais (E1 e E3) focalizaram seus respectivos discursos na
questão do atendimento às demandas gerais que os usuários apresentam em suas unidades.
Ou seja, o projeto institucional entra em consenso com os usuários no que diz respeito ao
atendimento de demandas urgentes da saúde.

O usuário busca a instituição. Como ela é uma empresa, está trabalhando com “metas”,
ela tem “metas de atendimento”. Ela não tem clareza, é só quantitativo de metas que ela se
propõe por um contrato que ela fez com a prefeitura. Tem um contrato com a prefeitura.
[…] Como eles sabem que lá atende, porta aberta, ele vai atender mesmo, vai demorar 7
ou 8 horas, não importa, mas vai atender, as pessoas vão procurando a unidade, estão
procurando. Domingo, eu vi uma pessoa dizendo: eu rodei vários hospitais até conseguir
atendimentos, e consegui aqui (E 1).109

O que coincide é essa questão, a questão da transferência [da UPA para unidades mais
adequadas para os usuários] também coincide com a demanda do usuário. Isso é óbvio (E
3).

Quando o cara que está infartando, a última coisa que vai querer fazer vai ser ver o
assistente social. Ele vai querer ver o médico, ele vai querer fazer um atendimento lá […]
e depois, durante o atendimento, vemos as demandas que a pessoa traz. Então, as pessoas
que vão lá elas querem que as demandas sejam atendidas rapidamente (E 3).

Uma terceira assistente social (E2) focalizou com mais intensidade e convicção as
divergências entre os usuários e a instituição, mas, em alguns momentos, deixou
transparecer, de maneira um pouco aberta, elementos de consenso. Ela exaltou, por
exemplo, que, para alguns usuários específicos, a instituição viabiliza determinadas
conquistas – o que nos leva a perceber a persistência do clientelismo em pleno terceiro
milênio. No final do discurso, afirma que o atendimento geral na instituição é bom,
passando a noção de atendimento de parte das demandas desses usuários.

As coisas acabam sendo muito pessoalizadas lá. Então, se um usuário é mais querido por
quem tem um cargo melhor, consegue mais coisas, mas, se ele é aquele que fica
perambulando, fumando pelos cantos, ele fica jogado. […] Embora eu acredite que o
atendimento lá é bom. Não questiono o atendimento. Os profissionais são muito bons, são
comprometidos. Mas eu digo assim, da instituição de uma forma geral, da direção (E2).

109
Vale destacar que essa é a assistente social entrevistada inserida numa instituição em que um dos chamados “Novos
modelos de gestão” está sendo implantado, trazendo consigo uma relação muito mais vertical por parte da hierarquia
institucional e uma lógica mais mercantilizada e “produtivista” de saúde.
194

Outra entrevistada (E5) exaltou esse mesmo aspecto de urgência, destacado pelas
duas primeiras profissionais citadas nesse quesito (E1 e E3), entretanto relacionando-o com
uma questão de ordem ideológica. Ela lembra que a hegemonia da concepção restrita de
saúde existente na instituição onde atua coincide com a concepção predominante dos
usuários que chegam àquela unidade. Ou seja, tanto os usuários quanto a instituição
colocam no centro do objetivo do atendimento o “cuidado médico”.

Os usuários também não têm consciência do conceito ampliado de saúde, compreensão da


saúde como um todo. Então, quando eles vão ao hospital, eles querem cuidado do médico,
e a instituição oferece isso: cuidado médico. Se eles saírem dali com o cuidado do
médico, eles vão sair satisfeitos (E4).

Em relação às divergências entre os usuários e a instituição, com exceção da


assistente social que disse “pelo menos agora no momento, não estou lembrando muito”
(E3), todas as entrevistadas identificaram questões nesse sentido. Em geral, todas atribuem
essas divergências aos limites institucionais para lidar com as necessidades reais desses
usuários e não, necessariamente, às aspirações imediatas trazidas pelas demandas iniciais
desses usuários. Em suma, podemos dizer que essas divergências entre usuários e
instituição se manifestam diante das insuficiências da instituição em fornecer determinados
serviços demandados pelos usuários, ou seja, restringe-se basicamente à dimensão objetiva
dos serviços. A entrevistada E2 não indica claramente quais são essas divergências, mas
atribui a existência das divergências à própria contradição entre o discurso emancipatório
da instituição e suas práticas tuteladoras e clientelistas. Vejamos:

A instituição diz que o objetivo dela é garantir a autonomia dos usuários, só que eu vejo o
contrário. A ideia de garantir a autonomia se coloca de uma forma como se fosse
responsabilizar o usuário e, quando não se responsabiliza o usuário, ou ele é o coitado ou
é os dois extremos. […] o que eu vejo da direção é uma ideia muito paternalista, de
conseguir as coisas muito por meio da figura do diretor, para que a gestão saia como se
fosse a melhor gestão que [a instituição] já teve (E2).

A entrevistada E 1 – que havia atribuído um consenso imediato entre os interesses


da instituição e dos usuários, tendo em vista a lógica “quantitativista” das “metas de
atendimento” existentes nas direções e adequadas aos novos modelos de gestão
institucional e da mentalidade imediatista dos usuários – assinala que as divergências entre
ambos se processam em função dos impactos dessas mesmas ideologias orientadoras que, a
curto prazo, coincidiam. Ela indica que a lógica “quantitativista” adotada pela instituição,
por possuir evidentes limites de ordem qualitativa, se colocam como divergência em
relação aos interesses dos usuários. É interessante que essa entrevistada consegue
demostrar, fazendo recurso a exemplos numéricos, os limites da própria lógica
195

“quantitativista” defendida pela gestão institucional:

Mas, entre atender as metas e ter qualidade, é outra questão. Eu digo que, no mesmo
momento em que você está atendendo, você não tem qualidade nesse atendimento, você
tem […] um reduzido número de profissionais. Que camuflagem é essa? […] o meu
hospital aumentou, o número de infecções aumentaram, e eu fico catando com meus
parceiros de domingo porque eu tenho um grupo que trabalha comigo na emergência que
é contratado, mas tem um grupo que não é. Eu vou lá na ortopedia e fico assim... “E aí,
como está o atendimento aí?” . “Ah, o pessoal tá revoltado!”, acabam falando. Então, eu
vou tendo uma leitura do que está acontecendo no meu plantão de domingo. Então, assim,
a superlotação vai atender números que eles não constam. Se é que atenderam! Mas isso
tem implicações na qualidade do atendimento. Outro dia eu soube que fizeram 20
cirurgias de ortopedia e liberaram os usuários [...], outro dia reinternou todo mundo por
conta de infecção. Entendeu? Então, que lógica é essa? Mas por que isso não aparece para
população? Como não tem conselho gestor, nem mecanismo de controle da população,
isso está tudo camuflado. Então, em algum momento [...] o prefeito vai usar esses
números em momento eleitoral: o hospital passou a atender num tal período tantas
pessoas (vai dar visibilidade, vai dar uma grande visibilidade). Agora, de que forma ficou
esse atendimento? (E1)

A entrevistada E5, que também havia exaltado o consenso imediato entre as


demandas dos usuários com os objetivos discursados pela instituição (referentes ao
imediatismo e à concepção restrita de saúde centralizada na figura médica), destacou o
mesmo tema de consenso para explicar as divergências percebidas. Ela aponta as próprias
conseqüências (negativas) dessas perspectivas na realidade vivida pelos usuários como
fontes pedagógicas para contraposição dos mesmos em relação à instituição. Ou seja, para
ela, quando determinantes que extrapolam o campo do “biológico” passam a interferir no
processo saúde-doença dos usuários, eles tendem a entrar em conflito com a instituição.

Porém, as emergências aparecem com o impacto de outras determinantes na saúde.


Determinantes de cultura, de religião, de problemas econômicos mesmo. E aí eles
divergem da instituição. Porque eles vão se deparar com algo que eles não dominam. Nem
a instituição e nem os usuários conseguem dar conta. E vão parar no Serviço Social (E4).

Trata-se também do que a entrevistada E5 problematiza com um exemplo


aparentemente dramático a respeito da questão da alta:

Tem muitos casos [...] que não é nem o usuário que diz: “Ah, não vou sair daqui porque
eu não tenho para onde ir”. Às vezes, é devido à questão clínica mesmo, tem muitas vezes
em que isso acontece aqui: “Assistente social, eu não tô bem, eu ainda não estou bem, eu
tô mal ainda, eu tô passando mal, eu recebi alta! (E 5).

Podemos concluir que a relação entre os projetos é marcada de contradições. A


princípio, a superficialidade e o imediatismo com que a lógica “quantitativista” e a visão
restrita de saúde – marcada pela centralidade das demandas pela “cura” e do cuidado
médico no processo saúde-doença – conformam um importante consenso relativamente
declarado entre usuários e projeto institucional. No entanto, as observações dessas
assistentes sociais nos levam à conclusão de que esses mesmos consensos entre projeto
196

institucional e conjunto de demandas dos usuários se desmancham diante das limitações


desses discursos em relação às suas consequências práticas – após serem vivenciadas pelos
usuários.
Essa relação contraditória de consensos e rupturas entre os projetos terão grande
importância na configuração das relações que permeiam a demanda institucional e a
demanda dos usuários ao assistente social. Ou seja, a partir dessa relação entre o projeto
institucional e o conjunto de demandas dos usuários, esses projetos se desenham na relação
com o projeto profissional, mesclando complexas relações de consenso e oposição.
Dessa maneira, partiremos, agora, para a discussão de alguns elementos trazidos
pela percepção dessas assistentes sociais entrevistadas sobre o projeto político
institucional. Buscaremos polemizar alguns pontos trazidos que nos ajudem a pensar como
esse projeto institucional se expressa na particularidade dessas profissionais, tendo em
vista nossa intenção de localizar o debate, travando até aqui, a respeito da configuração
política desse projeto institucional na particularidade desses profissionais. A ideia é apontar
alguns nexos entre o projeto institucional discutido até aqui com o cotidiano dessas
assistentes sociais, suas particularidades e generalidades para, após levantar um parâmetro
a respeito do conjunto de demandas dos usuários, discutir a relação entre ambos e, em
seguida, as formas possíveis de enfrentamento, tendo em conta o projeto ético-político do
Serviço Social brasileiro.
A primeira questão que gostaríamos de trabalhar em relação ao projeto institucional
é a que se explicitou de maneira mais recorrente nas argumentações das profissionais
entrevistadas. Dentre as cinco entrevistadas, quatro delas deixaram transparecer em suas
respostas a demanda pela liberação de leitos 110 como uma das principais colocadas pela
instituição ao Serviço Social. Entre essas quatro assistentes sociais, três colocaram a
questão da liberação dos leitos como central. Trata-se de um dado digno de exclamações,
principalmente se levarmos em conta que a única profissional que não trouxe essa questão
é justamente a única profissional que trabalha na unidade de saúde mental. Vejamos alguns
trechos das entrevistas em que essa questão se explicita:

110
A questão da liberação de leitos atravessa a prática profissional das mais diversas maneiras e conceitos: “alta social”,
“transferência”, desocupação, liberação de leito etc. No entanto, o que queremos evidenciar é a necessidade,
aparentemente desesperada, por parte da instituição, de promover a alta desses usuários para que esses leitos sejam
ocupados por outros usuários em seguida.
197

Numa palavra: transferência. Demanda social é uma coisa secundária. Eles nem veem! Se
atendeu: parabéns, tapinha nas suas costas... Mas o importante é você estar ajudando ali,
ligando para um “hospitalzinho”, vendo uma vaga, estar colaborando junto com o médico.
Acredito que o principal que eles querem mesmo é isso (F 4).

Por exemplo: paciente está de alta, aí o médico fala assim “Olha: está de alta, pode ir para
casa”. Só que a pessoa não anda. Eu falei: “Não tem um carro”. E a pessoa fala: “Não, não
posso, não tenho como ir para a casa...”. O que eles fazem? “Fala com o Serviço Social...
“(F 1).

A resolução das altas sociais é o principal. É o que eles demandam do Serviço Social […]
. Mas a principal demanda que chega ao Serviço Social é a questão da “alta social”
mesmo (F 5).

Isso que eu iniciei no comentário sobre a solicitação do Serviço Social aqui na unidade, a
principal demanda seria para tratar de questões de “desocupação de leito”. É uma questão
que causa impacto muito grande no nosso cotidiano de trabalho, que é a questão da falta
de rede, de intersetorialidade. Não existem políticas sociais funcionando, a partir do
momento em que você acessa a política de assistência, procurando CRAS/CREAS,
centrais, casas de repouso, instituições públicas de abrigamento, seja de população de rua,
seja de idoso, e não tem. É uma questão que me causa maior inquietação aqui no cotidiano
de trabalho (F5).

Ela ainda não definiu completamente o que ela apresenta, mas ela cobra uma lógica mais
eficaz de liberação de leitos. A questão principal está sendo a liberação de leitos. O
“Social” está atrapalhando a unidade. Ainda que esse “social” seja um ou dois casos num
universo de 400 ocupações, esse social está atrapalhando a lógica da desocupação do leito
(F2).

A esse respeito, gostaríamos de começar a problematizar essa questão pela última


citação (da entrevistada F2). Para compreendermos sua expressão, devemos levar em conta
que sua instituição está passando nos últimos meses por uma mudança estrutural muito
grande: o processo de implementação de um dos tipos de “novos modelos de gestão” da
saúde (a OSCIP). Por conta disso, a explanação dessa profissional não conseguiu fornecer
um panorama muito consistente no que se refere ao projeto institucional – apesar de
destacar constantemente vários aspectos desse projeto durante outros momentos da
entrevista. No entanto, devemos destacar que esse projeto institucional – que no decorrer
da entrevista se evidencia por seu caráter mercantil, arbitrário e organizado a partir de
critérios “quantitativistas” – também se mostra girar em torno do eixo da liberação de
leitos.
Como pudemos ver na sua resposta, a demanda pela liberação de leitos é amparada
por um paradigma bem particular: a visão restrita do conceito de saúde. É a partir dessa
visão restrita, na qual o “social” parece fazer parte de outro compartimento estranho à
questão da saúde, que a instituição designa ao assistente social aquilo que, na opinião dela,
não diz respeito à saúde propriamente dita. Ou seja, relega-se ao assistente social o papel
de interferir na questão da liberação dos leitos, especificamente naquelas múltiplas
oportunidades em que os aspectos sociais da saúde se fazem influenciar de maneira mais
198

clara e intensa. E, devido à posição marginal que o “social” ocupa dentro de instituições
com visões restritas como essa, esses casos “sociais” são relegados ao status de
“problemas”, na medida em que não fazem parte do percurso “natural” dos procedimentos
programados pela instituição. Essa noção esquemática e mecanicista, em que a realidade
precisa se encaixar nos planos institucionais, se aproxima muito com o que expõe a
entrevistada “F4” ao abordar esse tema, como poderemos observar abaixo.

Ele quer o usuário de uma forma […] o usuário é atendido, toma injeção e vai embora:
uma máquina. Uma coisa mecanicista. Ele quer uma coisa mecanicista (F4).

Essa visão mecânica, programada e restrita da instituição, que pudemos perceber


nas afirmações das profissionais F2 e F4, se expressa, em verdade, em diversos outros
momentos da prática profissional, sempre afinada com uma visão de que caberia ao
assistente social atuar com os “imprevistos” do processo saúde-doença que não estão
ligados a essa compreensão restrita de saúde. O que nos faz destacar uma pequena frase de
uma profissional ao tentar explicar essa questão: “Tudo que não dá certo, vai para o
Serviço Social” (F1). Atentemos sobre outras duas assistentes sociais ao tocarem nessa
questão:

Eu percebo que a instituição vê o Serviço Social como o “apagador de incêndio”, aquele


que, quando ninguém consegue resolver o problema, vai ao Serviço Social para resolver.
Mas, em geral, eu acho que a instituição quer apagar incêndio por meio do Serviço Social
[…] Para aquilo que as outras categorias não conseguem responder ou que a instituição
não consegue resolver, o Serviço Social é chamado (F 3).

Por exemplo: paciente está de alta, o médico fala: “está de alta, pode ir para casa”. Só que
a pessoa não anda, [...] Não tem um carro [no momento], e a pessoa fala: “não, não posso,
não tenho como ir para a casa...”. Ele fala: “Fala com o Serviço Social” (F1).

Por exemplo: hoje chegou uma pessoa lá com uma receita da médica, [...] precisava de
uma lente terapêutica, como se fosse um curativo para não ter infecção. O hospital
fornece, só que acabou. O que o médico tem que fazer? Entrar em contato com a direção e
falar “Olha, o paciente X precisa dessa lente porque fez essa cirurgia; compre”. Não,
passa tudo por escrito e passa para o Serviço Social. São coisas que eles não conseguem
resolver. É o que eu estava falando antes, coisas que a equipe de saúde não consegue
responder, por não ter, não conseguir ter essa visão [...], tudo manda para o Serviço
Social. Então, se materializa nessas coisas: é alta, é a família com que eles não conseguem
conversar, questões de diagnóstico, às vezes. […] Então isso que é difícil. Tudo que não
dá certo vai para o Serviço Social (F1).

Essas observações são importantes para chegarmos a uma questão um pouco mais
específica, mas que toca no mesmo ponto, ou seja, na incômoda tensão que há na realidade
dessas assistentes sociais entre suas convicções a respeito de quais devem ser suas
respectivas atribuições institucionais e o que a instituição de maneira geral, de fato, lhes
atribui. Trata-se do reconhecimento mais ou menos explícito da instituição a respeito de
uma das duas dimensões profissionais discutidas recorrentemente nessa dissertação: a
199

dimensão objetiva. Queremos dizer que a função socioassistencial do Serviço Social se


mostra como forte referência para a instituição contratante. No entanto, duas
particularidades históricas devem ser imediatamente ressaltadas a esse respeito: a
particularidade das instituições de saúde e o neoliberalismo.
Quanto à particularidade das instituições de saúde, queremos apenas ressaltar o fato
de que nelas grande parte desses recursos não pode ser efetivado apenas por meio da
própria instituição. Na medida em que o assistente social é demandado como mediador
entre os usuários e os serviços, isso o coloca como uma espécie de intermediário entre o
usuário, a instituição e outras instituições. Em relação ao neoliberalismo, o que
consideramos relevante ressaltar é a precariedade da rede socioassistencial neste período.
Essa questão também se apresenta como um entrave constante nas exposições de algumas
dessas assistentes sociais entrevistadas, como poderemos observar:

Aqui na unidade, a principal demanda seria para tratar de questões de “desocupação de


leito”. É uma questão que causa impacto muito grande no nosso cotidiano de trabalho, que
é a questão da falta de rede, de intersetorialidade. Não existem políticas sociais
funcionando, a partir do momento em que você acessa a política de assistência,
procurando CRAS/CREAS, centrais, casas de repouso, instituições públicas de
abrigamento, seja de população de rua, seja de idoso, e não tem. É uma questão que me
causa maior inquietação aqui no cotidiano de trabalho

E também foge um pouco do que o hospital oferece, porque precisamos de outras políticas
por fora. Tem o transporte solidário dos Bombeiros. Quase não funciona, não temos
clínica de apoio para idosos e pessoas acamadas (F1).

Percebemos que a demanda mais recorrente (liberação de leitos) é, assim como


todas as outras demandas institucionais expostas pelas assistentes sociais entrevistadas,
uma expressão da necessidade institucional de maior efetividade da rede de políticas
sociais para cumprir suas atribuições objetivas institucionais. Ou seja, as atribuições do
assistente social evidenciam, exatamente, a precariedade de funcionamento da rede
socioassistencial. No entanto, com o agravante de o assistente social ter pouca autonomia
no que tange à ampliação dessa rede, sobra-lhe a missão de aproveitar essa rede
socioassistencial da melhor maneira possível. Parece, portanto, irônico concluir que a
instituição, enquanto expressão do Estado, convoca o assistente social para “se virar” numa
rede socioassistencial falida – como se, para o funcionamento pertinente das instituições,
bastasse contratar alguns profissionais, independentemente das condições de trabalho e
recursos –, como se cobrasse que apague os “incêndios” do dia a dia sem lhe fornecer
água.
Resta-nos uma última consideração acerca das observações quanto à maneira como
200

o projeto institucional se apresenta nas diversas particularidades institucionais onde essas


profissionais atuam. Trata-se da dimensão subjetiva desse projeto institucional. Vale dizer
que apenas uma entrevistada expõe com maior clareza o eixo garantidor da adesão do
projeto institucional por parte dos sujeitos dirigentes nas instituições contratantes. Ou seja,
apenas a entrevistada F 3 indica que a adesão funcional desse projeto institucional por
parte da direção se dá, basicamente, por um mecanismo mais ou menos parecido com
aquele que subordina o assistente social ao diretor da unidade: a necessidade de esse
diretor se fazer legítimo pela Secretaria de Saúde. Ela explana:

A instituição diz que o objetivo dela é garantir a autonomia dos usuários, só que eu vejo o
contrário. A ideia de garantir a autonomia se coloca de uma forma como se fosse
responsabilizar o usuário e, quando não se responsabiliza o usuário, ou ele é o coitado ou
é os dois extremos. Ou é coitado demais ou é o manipulador e tal. É um discurso de
garantir a autonomia, mas o que eu vejo da direção é uma ideia muito paternalista de
conseguir as coisas por meio da figura do diretor, para que a gestão saia como se fosse a
melhor gestão que [a instituição] já teve […] tanto é que as atividades que são feitas,
que são mais valorizadas são aquelas que o Serviço Social [...] “'para o alto e avante”. [...]
tem o grupo de música (“o amor enlouquece”) – que aí é ótimo, acho muito legal a
proposta –, mas ele tem mais recursos [que os outros grupos porque] [...] dá visibilidade à
instituição. Os usuários mesmo da instituição do dia a dia, aqueles que dão mais trabalho,
aqueles que são psicóticos mesmo (…) ficam largados (F 3).

A respeito da relação entre projeto profissional e conjunto de demandas dos


usuários, é importante assinalar que as respostas, de modo geral, apresentaram duas
grandes questões constantes: a demanda por ações que os profissionais julgam como
coerentes (“legitimadas”) e aquelas que, na opinião das assistentes sociais entrevistadas,
não deveriam ser demandadas ao Serviço Social (“renegadas”).
Em relação ao primeiro grupo, destacamos as seguintes exposições:

Benefícios, BPC, orientações previdenciárias. Muita demanda [...] por benefícios. [...] Ou
orientação, ou passe livre, muita demanda de passe livre (F 3).

Dos usuários, o que eles querem do Serviço Social geralmente é o acesso à “recarga
especial” e ao “vale social” (para garantir o acesso à oportunidade do tratamento de
saúde); medicação que o hospital só oferece para pessoa que está internada, identificação
civil, procuração, interdição, demandas previdenciárias (aposentadoria, aposentadoria por
invalidez, auxílio-doença, pensão por morte, [...] benefício de prestação continuada),
tratamento fora do [hospital] (F1).

[...] usuário de álcool/drogas, buscar rede social, para pessoas cuja resolução das
demandas depende de uma rede social. [...] Também tem casos de que a pessoa vem
buscar a rede de saúde. Mas acho que o principal, se for delimitar, é a violência, Álcool,
drogas, violência contra criança e contra mulher, questões para idoso. Até que a violência
contra o idoso pego pouquíssimo. Nunca peguei demanda contra o idoso (F 4). 111

111
É necessário destacar que, apesar de insistirmos na questão durante essa etapa da entrevista, ao contrário das
entrevistadas D2 e D5, a assistente social D1 não explicitou as demandas recebidas de maneira muito objetiva, citando
essas demandas de maneira genérica, destacando apenas os temas das demandas e não as demandas em si. Por isso, não
201

Como podemos perceber, essas três entrevistadas, autoras dos trechos acima,
destacaram demandas relacionadas basicamente à função assistencial do Serviço Social. O
que predominou foi a requisição desses usuários em relação à melhoria de suas respectivas
condições de vida, ao reconhecer a utilidade do assistente social no que tange à sua
dimensão assistencial e restringindo a dimensão pedagógica ao que pode fornecer de
mediações assistenciais. Ou seja, embora a relação do usuário com aquela instituição
promova inevitáveis impactos políticos no plano da concepção de mundo dos usuários, eles
não têm pretensões políticas explícitas e, portanto, não requisitam a dimensão pedagógica
do assistente social para esses fins. Em suma, o caráter político da dimensão pedagógica
permanece “invisível” e desimportante para as aspirações desses usuários.
Também devemos destacar que a dimensão assistencial dos assistentes sociais da
saúde se apresenta com uma particularidade relevante em relação a outras áreas das
políticas sociais, pois sua dimensão assistencial é extremamente dependente da rede
socioassistencial. Ou seja, essa dimensão apenas tende a se legitimar de maneira completa,
a partir da complementação de outras instituições de política social, pois pressupõe
atendimento direto, por meio da prestação de serviços concretos aos usuários. Isso expõe
uma fragilização dos assistentes sociais no que tange à autonomia para responder essas
demandas, dado o fato de que uma parte relevante dos serviços e benefícios requisitados ao
profissional se encontra em espaços institucionais externos que, além de dificultarem o
acompanhamento do assistente social, encontram-se vigorosamente sucateados e escassos
devido à conjuntura neoliberal.
Além disso, uma quarta assistente social (F5) ressalta demandas ao assistente social
que exploram a contradição entre os direitos na sociedade capitalista e a precariedade de
sua respectiva estrutura voltada para a prestação desses direitos. Ou seja, há demandas que,
por serem mais conscientes, utilizam o direito como instrumento na tentativa de acessar
aspectos de seu interesse. Nesses casos, o assistente social vem sendo um profissional
requisitado para viabilizar a solicitação dos usuários. Por exemplo:

Aqui no hospital temos uma maternidade. É lei a permissão ao acompanhamento no


“pré”, no “durante” e “pós” parto. O Serviço Social é procurado no plantão pelo usuário
que tem consciência desse direito, da existência da lei, e a nossa unidade não cumpre (F5).

pudemos destacar como essas demandas se manifestaram e, em alguns momentos, tornou-se difícil até mesmo termos
certeza de que essas demandas vinham dos usuários ou eram reivindicadas por algum outro setor institucional.
202

A segunda categoria que destacamos, no que tange às demandas ao Serviço Social,


refere-se às demandas que, na opinião de três dessas assistentes sociais entrevistadas, não
competem ao Serviço Social. Ou seja, uma parte muito significativa das demandas
destacadas pelas entrevistadas está profundamente relacionada à falta de clareza sobre as
reais atribuições profissionais. Isso nos remete ao debate que fizemos no tópico 3.1 dessa
dissertação, pois levantamos alguns dos impactos dessa incompreensão por parte dos
usuários, que comprimem a autonomia profissional ao tomar tempo desnecessário e criar
uma situação potencial de atrito entre a expectativa do usuário e a disponibilidade do
profissional.

Tem muita coisa que vem bater na minha porta que não é do Serviço Social. “Ah, eu
quero visitar beltrano (o paciente do leito tal)”; “Ah eu quero ir lá, eu posso ir visitar
agora fora do horário de visita?”. Para mim, isso não é uma demanda social. “Ah, quero
saber noticias do fulano de tal”. Isso é recorrente. É muito mais recorrente até do que a
demanda social em si. Para mim não é. É o tipo de coisa que qualquer pessoa poderia
procurar (F 4).

Viabilizar acessos à unidade fora dos horários de visita. […] autorizar acompanhamento;
solicitar transferência. Devo ressaltar que acompanhamento e transferência existem
setores no hospital específicos que tratam, mas os usuários acham que é o Serviço Social
que resolve. No plantão, a maior demanda é essa (F5).

Colide com o entendimento que o usuário tem sobre o que o Serviço Social faz de fato.
Não que falamos “não” para uma situação. Ele acha que deveríamos resolver
determinadas demandas que realmente não são competências nossas. E que nem numa
questão de hierarquia pertence ao Serviço Social resolver (F5).

Uma coisa que conseguimos desvincular do Serviço Social, mas que ainda aparece: [...]
autorização para cartão de acompanhantes; entradas, autorização para entrada de
pertences. A outra é a elaboração do fluxo. São mais demandas institucionais, muito mais
demandas institucionais. Essas são espontâneas. São demandas referentes à questão da
instituição. “Onde fica setor tal?” (F 2).

As duas primeiras entrevistadas (F4 e F5) apontam nos trechos citados que, além
dessas demandas “renegadas” estarem inclusas entre as demandas mais comuns para esses
profissionais, se fazem mais intensas do que as próprias demandas “legitimadas”. Vale
ressaltar, ainda, que a última assistente social (F2) nem mesmo destacou a existência de
demandas “legitimadas” (não que elas não existam), fazendo-nos crer que essas demandas
“renegadas” são extremamente intensas também em sua realidade institucional.
Parece-nos curioso que, além de costumarem procurar o assistente social com
demandas que não estão entre as atribuições do Serviço Social, os profissionais ainda
identificam que, constantemente, o que deveria ser demandado por esses profissionais se
oculta, exigindo uma investigação muito atenta e competente por parte dos assistentes
sociais para que essas demandas, assimiladas pelos assistentes sociais como atribuições
profissionais, se explicitem. Trata-se da relevância da “demanda reprimida”, que também
203

se mostra conturbada frente à distorcida imagem da profissão. Podemos perceber isso, por
exemplo, nos seguintes trechos das respostas:

Às vezes, a própria pessoa que está ali na minha frente precisa de uma Bolsa Família, mas
não fala (F4).

Dentro da emergência, no leito [...] identificamos demandas de idosos desacompanhados,


crianças vítimas de maus tratos. Identificamos ou a equipe sinaliza, seja o médico, seja o
enfermeiro... (F5).

Em suma, a relação entre o projeto profissional e as demandas dos usuários se


conforma com alguns importantes agravantes. Grosso modo, poderíamos dizer que, do
ponto de vista geral dessas profissionais, o que mais chama a atenção a respeito do
conjunto de demandas dos usuários é que o assistente social é basicamente requisitado a
viabilizar serviços sem um arsenal de intrumentos de trabalho compatíveis às necessidades
desses usuários; a efetivar procedimentos que, segundo eles, não lhe dizem respeito; e não
são requisitados em vários momentos que deveriam ser requisitados. Isso coloca uma
necessidade muito importante na pretensão de ampliar a autonomia profissional: esclarecer
aos usuários as reais atribuições e potencialidades do Serviço Social naquela instituição. A
melhoria dessa compreensão por parte dos usuários, a nosso ver, traria impactos
substantivos na realidade de todos entrevistados, facilitando as possibilidades dos mesmos
criarem alianças com o Serviço Social, evitando o prejudicial conflito entre ambos.
Do ponto de vista do assistente social, há duas vias básicas de ação nesse
“triângulo” de aspirações (usuários, assistente social e instituição): uma referente às suas
intervenções junto aos usuários, e outra referente às suas intervenções frente à instituição.
Nessa reta final da dissertação, buscaremos trazer alguns elementos básicos para refletir
sobre cada uma das referidas frentes de ação e relacioná-la aos elementos trazidos pelas
assistentes sociais. Quanto à ação junto aos usuários, buscaremos dar ênfase à função
pedagógica e à função assistencial dos assistentes sociais. Em relação à ação junto à
instituição, buscaremos pensar as relações de enfrentamento, de consenso, concessão e
resistência entre a ação profissional e a ação institucional, na tentativa de materialização
desse projeto profissional.

3.4 Limites e possibilidades das funções (pedagógicas e assistenciais) dos assistentes


sociais

Neste tópico, buscaremos pensar nas estratégias de intervenção profissional, cujos


204

impactos da ação se voltarão diretamente para os usuários e, posteriormente, se voltarão


indiretamente ao conjunto de relações extrainstitucionais dos mesmos. As reflexões que
construíremos a respeito dessa questão seguirão tomando as entrevistas como base, com
vistas a pensá-las em sua funcionalidade (ou não) ao projeto societário condizente com o
atual projeto ético-político profissional. Nesse sentido, deixaremos o último tópico para
que possamos refletir, por meio também das entrevistas, acerca das estratégias cujos
impactos visarão alterações no âmbito intrainstitucional, ou seja, na lógica de
atendimento/organização institucional. Duas ressalvas devem ser feitas sobre a divisão dos
tópicos 3.4 e 3.5. Primeiro que, apesar dos impactos da ação profissional no plano
intrainstitucional recorrentemente extrapolarem esse limite, efetivando, também, impactos
no plano extrainstitucional (e vice-versa), decidimos manter essa divisão do debate em dois
tópicos, a fim de facilitar o desenvolvimento e apreensão dos aspectos contidos na
realidade analisada. Isso decorre da nossa compreensão de que cada intervenção
profissional possui impactos mais notáveis em determinado aspecto da realidade (seja ele
“intra” ou extrainstitucional). Segunda ressalva está relacionada à primeira, na medida em
que, em cada tópico, os leitores certamente perceberão elementos que dizem respeito
também ao outro.
Quanto à intervenção profissional junto aos usuários, como dissemos no final do
último tópico dessa dissertação, teremos, basicamente, duas funções profissionais:
pedagógica (de caráter subjetivo) e assistencial (de caráter objetivo), o que buscaremos
pensar a partir de suas respectivas funcionalidades em relação ao projeto ético-político
profissional.
Vale relembrar que essa relação entre demandas dos usuários e projeto profissional
– como já abordamos no tópico anterior – pode possuir uma série de consensos e dissensos.
No entanto, a partir do que estudamos, podemos considerar que o reconhecimento desses
dissensos não deve indicar uma postura de embate e disputa contra o conjunto de
demandas dos usuários. Ela exige uma postura pedagógica, que vise transformar esses
dissensos em consensos. Ou melhor, se, a princípio, a relação entre projeto profissional e
projeto institucional deve ser compreendida por seu horizonte como uma relação
antagônica e inconciliável – dado o elemento político intrínseco na prática profissional e o
norte societário de cada projeto societário –, a relação entre projeto profissional e o
conjunto de demandas dos usuários, ao contrário, deve ter em seu horizonte a aliança –
visto que suas “diferenças” não tomam a qualidade de “antagonismos”. Nesse sentido, faz-
205

se central a defesa incessante e contínua por parte do profissional pela construção dessa
aliança junto aos usuários, na medida em que o projeto profissional defende a classe
trabalhadora e a classe trabalhadora precisa/pode se defender.
O primeiro ponto a ressaltar diz respeito exatamente a essa divergência. Dentre as
cinco profissionais entrevistadas, apenas uma não percebe alguma forma de embate entre
seu projeto e o conjunto de demandas dos usuários. Ela reconhece momentos de impasse;
no entanto, não os atribui à sua perspectiva, mas, sim, aos limites objetivos dados pela
realidade em que atua:

Se eu levar em consideração que eles querem benefícios, [os objetivos dos usuários]
colide [com os meus] (…) mas não que eu não queira [atender aos objetivos deles]... (G
4).

As outras quatro profissionais (G1, G2, G3 e G5) apontaram a existência clara


dessa divergência entre ambos os interesses (dos profissionais do Serviço Social e dos
usuários das instituições onde atuam). As citações a esse respeito já foram abordadas no
tópico anterior, mas, apenas para relembrarmos, se destacam como eixo de divergência: a
requisição de soluções imediatistas (ainda que superficiais); 112 a visão restrita de saúde;113
a visão distorcida por parte dos usuários, sobre o fazer do assistente social. 114
Buscamos, então, tentar trazer elementos a respeito dessa necessidade do
profissional, ao reconhecer essas divergências, de ser capaz de reconhecer, também, a
necessidade de construção dessa aliança em seu norte profissional, considerando as
estratégias na construção desse consenso entre ele e os usuários.
Diante da divergência frente aos usuários, três dessas quatro assistentes sociais
centraram sua resposta em sua função pedagógica, como meio de conscientizar os usuários
acerca de alguns aspectos contidos na realidade que, na perspectiva delas, não estavam
sendo contemplados por esses usuários. Diante da dificuldade dos usuários de procederem
conforme suas orientações a respeito do acesso a outros serviços da rede assistencial em

112
Exemplo: “As pessoas hoje querem resoluções imediatas para sua demanda. Vivemos uma vida do imediatismo para
tudo na vida. Ninguém mais consegue esperar, ninguém consegue... Querem resolver as coisas de „bate pronto‟” (G1).

113
Exemplo: “usuários também não têm consciência do conceito ampliado de saúde, compreensão da saúde como
um todo. Então quando eles vão no hospital eles querem cuidado do médico “ (G2, grifos nossos).

114
Exemplo: “Há uma colisão entre o que o usuário entende que o Serviço Social faz e o que o Serviço Social faz de
fato. Não que digamos „não‟ para uma situação. Mas ele acha que deveríamos resolver determinadas demandas que
realmente não são competências nossas e que nem temos autoridade hierárquica para resolver” (G3).
206

geral, a assistente social G1 ressalta a necessidade de realizar com muita perícia o processo
de encaminhamento/orientações:

Penso que temos que demonstrar para as pessoas que é um processo (G 1).

Não adianta só você chegar e falar: “procura o CRAS”. Não adianta [...] falar: “Está aqui
o encaminhamento” […]. Uma coisa é você chegar e “cuspir” informação: “procura
tal lugar”. Outra coisa é você conversar, disponibilizar tempo para entender, fazer
encaminhamento adequadamente, com zelo. Então, acho que isso influencia... (G 1,
grifos nossos).

A assistente social G2 acrescenta a importância da utilização de referências teóricas


e jurídicas para amparar esse processo de conscientização:

Eu tento explicar, de acordo com a questão da formação, a Lei de Regulamentação... (G


2).

A terceira assistente social (G3), que buscou enfatizar essa função pedagógica como
meio de atingir esse consenso entre o conjunto de demandas dos usuários e seu projeto
profissional, indicou como recursos a utilização de uma linguagem simples (menos
“técnica”) para explicar as atribuições profissionais reais e a utilização de exemplos
empíricos de fácil absorção por parte dos usuários.

Interessante que [nós da equipe do Serviço Social da unidade] estávamos falando sobre
isso quase agora. Sobre um usuário que veio aqui, [e contestou]: “Então para que você
serve?”. Quando se faz essa pergunta, nós adoramos! Como é que resolvemos?
Respondendo normalmente essa pergunta: para atuar frente às expressões da questão
social. Quando o usuário não entende (porque essa expressão é nossa, do assistente social,
não tem como obrigar ele a entender isso), você começa a dar exemplos:
“encaminhamentos institucionais, questões previdenciárias, questões trabalhistas, DPVAT
(aqui entra muito atropelado). É um caso do seu familiar? Sofreu um acidente?”.
Procuramos dar respostas sobre como realmente é a função do Serviço Social. Qual é a
atuação, qual é a competência do Serviço Social. Respondemos exatamente. Tentamos
lembrar dos exemplos mais práticos e corriqueiros para fazer o usuário realmente entender
qual é a nossa função (G 3).

A última argumentação a esse respeito que cabe abordarmos é um pouco mais


complexa e específica, mas traz elementos que podem contribuir para pensarmos
alternativas de “aliança” entre o projeto profissional e os usuários demandantes de serviços
ao Serviço Social. No caso a seguir, a profissional é requisitada pela instituição, que, diante
de uma situação de conflito entre uma usuária e as demais numa enfermaria, não conseguia
dar uma resposta que solucionasse a situação naquele momento. Nesse sentido, não se trata
de uma demanda elaborada pelos usuários nesse momento, mas nos ajuda a refletir sobre a
questão do “convencimento” na medida em que há uma negociação diante da divergência
entre a perspectiva da profissional em questão e as usuárias. Nessa situação, que
poderemos observar a seguir, além de voltar sua função pedagógica para a negociação dos
207

interesses distintos entre os usuários – através da conscientização e sensibilização dos


mesmos –, a entrevistada G5 busca a conscientização de outros assistentes sociais da
equipe sobre a situação e aciona a intervenção de outras categorias numa perspectiva
interdisciplinar. Além dessa tática, também podemos identificar o esforço para acionar
outros sujeitos que poderiam contribuir com a dissolução do conflito entre os usuários,
como a família. Esses e outro elementos podem ser observados na argumentação a seguir:

Tivemos uma situação em que chamaram o Serviço Social porque tinha uma mulher
internada que estaria arrancando umas carnes do seio e aquilo estava causando um mau
cheiro enorme na enfermaria. Fui ver o que estava acontecendo. […] mas, geralmente,
quando pegamos essas coisas muito pontuais não conseguimos fazer um trabalho de
reflexão com o usuário, pois isso demandaria outro tipo de acompanhamento. [Chegando
na enfermaria, vi que] estava [...] a enfermaria num lado, do outro lado umas 15 mulheres
na enfermaria (todas sentadas próximas ao elevador). Eu fui ver o que era aquilo. A
enfermeira veio e disse: “Ela está com câncer de mama; o mau cheiro e a ferida são
típicos do quadro”. [...] Só que ela, extremamente irritada, enfiava a mão e ficava tirando
os pedaços da carne e ninguém suportava ficar dentro da enfermaria. […] Fui conversar
com a usuária internada. Tentei ver se ela estava com acompanhante. Ela disse que não.
[…] Vi que ela não estava sendo acompanhada, não estava recebendo visitas da família.
[...] Peguei um pouco da situação imediata dela e anotei. Disse que ela não estava
recebendo família, que ninguém estava visitando e que achei que ela estava um pouco
depressiva. [...] “Sugiro avaliação da psicologia” e expliquei o que percebi a partir do
quadro da usuária. Desci e fui falar com as outras mulheres. Elas disseram: “Eu não
quero ficar mais junto com ela na enfermaria”. Mas, antes, eu fui perguntar às
enfermeiras: “Vocês têm algum outro lugar em que você possa acomodar essas
mulheres?”, mas elas responderam que não. […] Então, voltei para as outras mulheres que
estavam fora e perguntei: “Vocês entendem de que maneira que ela está se comportando?
[…] todas estão aqui porque necessitam... [...] Ela também, só que ela está num estágio da
doença que ela precisa do mesmo atendimento que vocês. Eu não sei para onde mandar
nem ela nem vocês, porque a enfermagem já me disse que não tem condições de transferir
nenhuma das duas […] ela também não tem direito de ficar lotada aqui?”. Elas
responderam: “Mas não queremos ficar do lado dela não”. […] No dia seguinte, quando
eu troquei o plantão, já tinha deixado anotado no prontuário. Eu passei para a outra colega
[do Serviço Social] (G5).

Como podemos perceber, os recursos a que os assistentes sociais


predominantemente vêm recorrendo frente às divergências com os usuários demandantes
estão ligados, basicamente, à sua função pedagógica. Isso entra em consenso com nossa
convicção a respeito da necessidade de, frente às divergências e ciente do norte/potencial
aliancista, conscientizar os usuários sobre a necessidade de compreensão do projeto
profissional crítico.115
A respeito da dimensão assistencial, quando perguntadas se sua ação profissional
consegue contribuir para que se desencadeiem melhorias empíricas nas condições de vida

115
Devemos considerar que, na medida em que os valores e princípios que guiam o projeto profissional referem-se à
mesma realidade em que os usuários estão inseridos, abre-se margem para que os usuários possam partilhá-lo e legitimá-
lo.
208

desses usuários, uma profissional (H5) afirmou prontamente que “não”. Três assistentes
sociais apresentaram convicção ao responderem que acreditam que desempenham uma
função assistencial em seu cotidiano de atuação profissional. E uma entrevistada (H4)
afirmou que, embora tenha essa intenção, por não conseguir obter um “retorno” nem fazer
um acompanhamento sistemático dos usuários na instituição, não estava certa se realmente
sua intervenção consegue contribuir para que se desencadeiem melhorias empíricas nas
condições de vida desses usuários.
Esse dado parece dar força às duas afirmativas disseminadas na literatura
profissional. Primeiro, a afirmativa de Faleiros que considera que “a autonomia desse
profissional na atribuição de recursos e na prestação de serviços é limitada” (apud
MONTAÑO, 2007, p. 105). Segundo, as teses que buscaram abordar os impactos do
neoliberalismo no processo de precarização das políticas sociais mostram que essa
conjuntura limita, circunstancialmente, os aparatos institucionais que possibilitariam ao
profissional exercer com maior efetividade sua função assistencial.
Buscamos, a partir do que foi abordado, resgatar alguns procedimentos
profissionais que dizem respeito à configuração da função assistencial desses profissionais
em relação ao seu público usuário. Nossa intenção foi aproximar o debate da maneira com
que essa dimensão se reproduz no cotidiano desses profissionais, percebendo como eles a
veem e suas respectivas expectativas quanto a estas ações a curto e a médio prazo.
A esse respeito, novamente emerge uma marca, já destacada anteriormente nesse
estudo, a respeito da dimensão assistencial na atuação do Serviço Social na saúde. Dentre
os profissionais que percebem e discorrem com mais detalhes a respeito dos impactos
dessa dimensão assistencial no cotidiano dos usuários, todos expuseram ações que apenas
se concretizarão a partir de complementação em outra instituição. Essa característica
atribui um peso ainda maior à relevância da função pedagógica dos assistentes sociais,
particularmente na saúde, na medida em que esse tipo de conduta assistencial apenas se
torna vigorosamente possível, por meio de orientações a outras instituições capazes de
efetivar tais ações assistenciais. As três respostas a seguir exemplificam, de maneira muito
clara, essa questão:

Acredito que na saúde temos casos e casos. Na grande maioria das vezes, tratam-se de
casos muito pontuais, voltados para contribuir com o acesso aos direitos que já estão
previamente garantidos. Direitos à saúde, ao medicamento, ao acesso do hospital etc. Por
exemplo: a pessoa precisa de renda para se alimentar, outras coisas, transporte, de acesso
ao hospital. Então acho que a nossa intervenção vem para programar mesmo, para
socializar informação, falar: “Olha você vai em tal lugar tal hora tal horário, vai dar
entrada nesse lugar” (H 1, grifos nossos).
209

Acho que, na medida em que você aborda o usuário, que reflete com ele a questão
das condições de vida dele, que você consegue mobilizá-lo de alguma forma (ou não),
quando você explica quais as questões em torno daquela situação dele. Penso que isso
já é uma confirmação, a partir do momento em que você está esclarecendo para o
usuário acerca de determinada situação. Muitas vezes, você recebe um usuário, atende um
usuário, que mesmo que nós não resolvamos, [...] quando paramos com ele e fazemos ele
refletir, dizendo: “[não resolvi sua questão,] mas eu orientei você a fazer tal coisa,
procurar tal instituição”. Acho que isso já é uma contribuição (H 3, grifos nossos).

Quando você orienta a pessoa a ir além dos muros da unidade, buscar outros
atendimentos, outros locais (…) ela pode chegar na instituição [...] [que] eu
encaminhei e encontrar a porta fechada. Se as coisas funcionassem como deveriam,
poderia desencadear [impactos empíricos no cotidiano desses usuários] sim [...]. Mas só
que também não sabemos a apropriação que a pessoa teve daquilo. […] a pessoa vai virar
para você e falar: “Não, eu vou eu vou”. Mas pode virar a esquina e tentar outra coisa. As
condições reais da pessoa às vezes podem impedir que a pessoa busque os seus objetivos
de vida, como dinheiro, condições reais mesmo, enfim: trabalho (que faz com que a
pessoa não tenha tempo para buscar) outras coisas que acontecem nas instituições […] O
que você esta colocando é que, na verdade, é difícil prever isso (H 4, grifos nossos).

Essa última profissional, a mesma que não se mostra tão certa quanto à efetividade
de sua função assistencial, foca sua problematização a respeito de outra característica que
parece interferir fortemente contra sua autonomia profissional: a dificuldade de
acompanhamento dos usuários em algumas instituições específicas de saúde. Esta questão
se torna ainda mais dramática se levarmos em conta a dependência da rede externa
socioassistencial para que a abordagem se concretize. Essa questão também emerge na
exposição de outra assistente social, que veremos abaixo:

Como lá o assistente social não tem retorno dos usuários, é diferente da outra unidade em
que eu trabalho (a maternidade). Ainda que seja, também tem a área hospitalar, tem a área
de neonatal. Nesse, referente à alta rotatividade, não temos retorno do que fazemos. Fica
muito solto. Não tenho clareza por ser um hospital de alta rotatividade nesse espaço da
emergência. Quando você consegue fazer um trabalho um pouquinho mais elaborado,
você percebe uma mudança, depois que terminamos, nas falas das pessoas (H2).

Essa mesma questão dificultou a tentativa desses profissionais em vislumbrar suas


próprias expectativas a respeito de como essa função assistencial pode contribuir para que
se desenvolvam melhorias nas condições de vida desses usuários a curto e a longo prazos.
Por exemplo:

Quase não conseguimos acompanhar. Pelo menos onde eu trabalho, que é a enfermaria,
não tem como acompanhar os usuários a partir de um processo reflexivo. Talvez, em
outros setores que essa população frequente, tenha um tratamento próprio, em que [....]
você consiga um impacto a longo prazo (H1, grifos nossos).

No geral, as respostas dos profissionais a respeito dos efeitos de sua função


assistencial na vida desses usuários a curto e longo prazos se mostraram
predominantemente inviabilizadas por conta, principalmente, da necessidade de
complementação dos serviços de outras instituições e da dificuldade que os assistentes
210

sociais de determinadas instituições têm para exercer um acompanhamento dos usuários.


Nesse sentido, o trecho da entrevista a seguir, parece representar muito bem o conjunto das
entrevistas:

Acredito que nossa intervenção venha para programar mesmo, para socializar informação,
para falar: “Olha você vai em tal lugar, tal horário, vai dar entrada nesse lugar” […] dessa
forma. Eu acho que, quando fazemos isso, contribuímos a curto prazo, porque a pessoa
tem acesso àquele benefício naquela hora. Mas a longo prazo... Eu mal vejo a curto
prazo... Vendo que aqueles benefícios, aqueles meios que ela acessou, vão contribuir
para o processo de cura, mas não a médio prazo (H1, grifos nossos).

Outros componentes destacados pelas entrevistadas foram a possibilidade do


profissional ampliar as condições para que determinados sujeitos deixem de viver situações
de violência, assim como a possibilidade de evitar reinternações dos usuários. Vejamos,
respectivamente, o que outras assistentes sociais expuseram a respeito dessas expectativas:

Por exemplo: [fazer com que] uma criança e sua família deixem de viver em uma situação
de violência, romper com aquilo, para que as pessoas acabem procurando o atendimento
e, assim, sejam investigadas e visualizadas melhor para que percebam que aquilo ali vai
além do que está sendo colocado explicitamente. Para que, assim, essas pessoas consigam
encarar as coisas de uma maneira diferente, no sentido de romper com a banalização e
naturalização da vida e da violência e que aquilo não seja mais tratado de maneira natural
(H 4).

Até tentamos uma abordagem no sentido de entender quais são as condições desse
usuário, desse reincidente por questões clinicas. Quando percebemos que é uma pessoa
que está voltando pela segunda, terceira vez, tentamos abordar e identificar se tem uma
família por trás dando suporte, quem trouxe a alimentação, quais são as condições
nutricionais, quem provê, quem sustenta, quem ajuda essa pessoa. Se é uma pessoa
acamada, tentamos verificar quem é que está ajudando. Isso é uma forma de você evitar
o retorno, a reinternação da pessoa. Mesmo retornando por uma questão clinica,
mas os outros determinantes da saúde afetam. Quem tá ajudando? É o emocional?
Tem filhos? Não tem? Tem uma rede familiar, há parentes que possam ajudar essa
pessoa? Eu acho que fazemos isso aqui com frequência. “Acho” não, fazemos!
Abordar o usuário nesse sentido para evitar retorno devido a outros determinantes
que não sejam somente os clínicos (H3, grifos nossos).

O trecho da profissional citada imediatamente acima (H3) até expõe algumas


indagações relevantes para se viabilizar estratégias compatíveis com a realidade em que
esses profissionais se encontram. O levantamento dessas indagações, como ela mesma
menciona, facilita a busca das manifestações da “questão social” que interferem no
cotidiano dos usuários, para que a equipe do Serviço Social possa trabalhá-las e,
consequentemente, colaborar no processo de saúde-doença deles.
A quarta profissional (H2), que vê a possibilidade desses impactos empíricos, traz
uma reflexão um pouco mais profunda. Sua resposta, como veremos, na verdade não se
liga exatamente a impactos empíricos nem exatamente ao impacto de sua intervenção
particularmente como foi perguntado. Ela prevê que, a partir do conjunto de precarizações
dos serviços de saúde no município onde atua – que passa pela implementação das OSCIPs
211

–, tenderá a haver um crescimento do descontentamento dos setores da classe trabalhadora


usuária dos serviços de saúde do município. Ou seja, a precarização acentuada dos serviços
de saúde, dos quais ela faz parte, a seu ver resultarão numa precarização da hegemonia do
governo municipal. Tratar-se-ia de que, a partir da precarização da qualidade dos serviços
prestados pelo “governo” em questão, se criasse uma situação de impactos políticos
inversos àqueles desejados pelo “príncipe” (como problematizado no tópico 1.2 dessa
dissertação). Ou seja, a seu ver, a precarização das intervenções desse nível do Estado (a
prefeitura municipal), junto à dimensão objetiva da “questão social” (aqui particularizado
nas necessidades de saúde), impactará a longo prazo numa possível e relativa politização
da dimensão subjetiva da “questão social” (a “rebeldia” aqui manifestada pela possível
insatisfação popular frente ao mandato do prefeito). Para ela, esse movimento contraditório
já é percebido por outro possível concorrente à disputa eleitoral no município. Ela
problematiza da seguinte maneira:

Em curto prazo, eu não vejo muita perspectiva de mudança. Acho que em longo prazo
talvez... Por uma questão política: como toda essa mudança trouxe muita insatisfação
dentro de um universo amplo de profissionais que têm famílias dentro do próprio
município, muita gente não está satisfeita com essa lógica [de precarização do
atendimento em saúde com a chegada da OSCIP]. [...]. Acredito que, conforme
conversamos com os pacientes lá dentro, o [nome de um sujeito envolvido com a política
parlamentar] não está concordando com essa lógica da saúde, e se diz candidato à
reeleição, [...], ele se propõe a acabar com essa lógica na saúde, com um discurso de
valorização do servidor público. Acredito que possa ter uma perspectiva de mudança.
Porque vai depender do movimento político do próprio município […] Em outro
momento, de outra porta de favorecimento, de valorização da saúde e de mudar um pouco
essa perspectiva. Porque o trabalhador da saúde de antes da OSCIP era taxado como
preguiçoso, que não queria trabalhar. Mas esse trabalhador da saúde tinha mais
experiência, […] tinha uma qualificação em nível de trabalho. Ainda que a precarização
do serviço e as condições de trabalho não fossem favoráveis, já que continuam sendo
ruins, não houve mudanças significativas. Não houve tantos ganhos para que eles possam
afirmar: “Ah, mas agora eles estão trabalhando em melhores condições!”. É um equívoco.
Também faltam medicamentos para eles. Mas o outro grupo tinha uma qualificação
melhor e davam melhores respostas para a própria população (H2).

Em geral, podemos dizer que houve certa dificuldade e imprecisão por parte dos
profissionais para responderem às perguntas que lhes foram feitas sobre a sua função
assistencial e sobre os impactos que consideram conseguir promover a curto e longo
prazos. Poucos foram os aspectos destacados por essas profissionais acerca dos inevitáveis
impactos empíricos de sua ação profissional e maiores ainda foram as dificuldades para
projetar os impactos que esperavam promover em nível de melhorias nas condições de vida
desses usuários a médio e longo prazos. Apesar de essa “previsão” ser extremamente
vulnerável frente aos imprevistos da realidade e, consequentemente, resultar em constantes
erros, entendemos que essa expectativa é componente relevante nos projetos profissionais,
212

na medida em que conectam esse projeto às ações particulares. Uma ação que se faz
descolada de previsões tende a cair num imediatismo certamente contraditório com um
projeto profissional crítico vinculado a um projeto societário libertário. Essa dificuldade
em esboçar suas próprias expectativas a respeito dos impactos de sua atuação também se
repete quando as assistentes sociais são perguntadas a respeito da função pedagógica da
profissão.
É interessante destacar que nenhuma dessas profissionais afirma que esses impactos
empíricos, produzidos por sua respectiva atuação, diferem dos objetivos da instituição.
Duas delas, inclusive, destacam claramente a funcionalidade de suas respectivas funções
assistenciais em relação ao projeto institucional. Vejamos:

Eu acho que [minha ação profissional], [...] na medida em que atinge o objetivo […] de
cura como um todo prevenindo o retorno à instituição, […] [contribuindo] para o
processo saúde-doença, entendo que vá ao encontro aos objetivos institucionais (H 1).

Eu acho que coincide. Até porque quando o usuário não tem uma demanda resolvida, em
certas situações, ele vai reclamar com a instituição (H 4).

Essa visão coincide com o debate que travamos até o momento, em que
defendemos que o acesso efetivo por parte da população usuária a melhorias empíricas por
meio de serviços em si pode ser condição não apenas a um projeto emancipador, mas
também ao próprio projeto conservador. De acordo com a exposição dessas assistentes
sociais, esse é o caso também da instituição onde atuam: a competente execução da função
assistencial do assistente social, efetivando na medida do possível melhorias nas condições
de vida desses usuários, é também parte importante do objetivo do projeto institucional.
Segundo nossa premissa, a “pedra divisora de águas” entre o projeto de norte societário
emancipador e o projeto conservador se dá nesse mesmo processo, porém numa outra
dimensão: fundamentalmente na dimensão subjetiva (onde se localiza a função
pedagógica).
Quanto à função pedagógica, o primeiro ponto que chama a atenção na análise
desses dados é que, ao contrário da visão predominante por parte dos usuários e da
instituição – que costumam identificar o assistente social muito mais por sua função
assistencial do que por sua função pedagógica –, essas assistentes sociais percebem com
uma intensidade muito maior a existência de sua função pedagógica. 116 A preocupação em

116
Todas assistentes sociais consideram que sua intervenção desencadeia um efeito educador na consciência dos
usuários. Embora uma coloque como condição para esse efeito educador o recurso aos grupos: “nas pequenas
213

exaltar a existência e a importância da função pedagógica do assistente social frente à


tradição externa à categoria (usuários, chefias institucionais, outros trabalhadores da saúde
etc.) aparece, portanto, como um esforço legítimo na consideração de uma das
profissionais:

[...] Você tem que explicar repetidamente, inclusive para as assistentes sociais. Onde eu
trabalho são duas, [...] as duas têm dificuldade de entender o que é o Serviço Social e, em
especial, qual é o caráter socioeducativo da profissão. Dessa forma, fica difícil de
trabalhar com grupos. O Serviço Social só deveria trabalhar com as demandas que surgem
por benefícios e, então, o caráter socioeducativo da profissão, [...] acaba sendo deixado
um pouco de lado [...]. Meu trabalho foi questionado por isso. Parece que você está
deixando de trabalhar as demandas do Serviço Social para trabalhar outros tipos de
demandas (I1).

Percebemos, a partir desse trecho que acabamos de apresentar, a existência de uma


“invisibilidade” da função educativa do assistente social, até mesmo por parte de alguns
assistentes sociais. Nessa realidade institucional, em que atuam três assistentes sociais,
apenas uma assistente social (a entrevistada) parece reconhecer sua função pedagógica.
Não sabemos se essas outras duas assistentes sociais se comprometem a defender a
materialização do projeto ético-político profissional em seu cotidiano profissional, mas
sabemos que as cinco profissionais entrevistadas declararam esse compromisso e
reconhecem a existência dos impactos pedagógicos de sua ação profissional em relação aos
usuários, ao passo que essas duas citadas pela assistente social (I1) não reconhecem como
legítima essa função. Esses fatos, apesar de não nos permitirem uma amostra rígida (por
não sabermos exatamente se há um comprometimento em relação ao projeto ético-político
profissional por parte dessas duas profissionais citadas pela I1), nos permitem fortalecer a
hipótese de que o reconhecimento da função pedagógica do assistente social é base central
para a materialização do projeto ético-político profissional.
A entrevistada do trecho anterior também toca, ainda que com muita sutileza, na
sofisticação com que a instituição tenta coagir a profissional ao exercício de determinadas
condutas acerca de sua função pedagógica. Como podemos perceber, essa profissional
identifica o trabalho com grupo como dispositivo possível e privilegiado para exercer sua
função pedagógica na realidade específica daquela instituição. Em outro momento, ela dá
detalhes sobre a importância que vê na execução do trabalho com grupos, apresentando,

oportunidades que eu tenho com o grupo acredito que sim (H1). No entanto, é interessante assinalar que, em alguns
exemplos dados pela mesma profissional, essa função pedagógica se apresenta explicitamente. Talvez, essa contradição
existente em seus depoimentos esteja no plano da conceituação de “função pedagógica”.
214

inclusive, algumas temáticas que tenta abordar nessas reuniões ligadas diretamente à
“questão social” e à política de maneira geral. Essa aproximação pode facilitar, por
exemplo, o processo de constituição da identidade de classe e da “rebeldia” contra-
hegemônica.

No grupo de álcool e drogas, tentamos trabalhar questões do cotidiano dos usuários. Por
exemplo, uma das temáticas que tratamos é a abordagem policial, a questão da família,
cultura, poesia. Também tentamos trabalhar essa identidade em comum entre eles (I 1).

O recurso aos grupos é utilizado por apenas duas das profissionais entrevistadas,
mas pudemos perceber sua importância em relação àquelas profissionais que intencionam
materializar esse atual projeto ético-político. De maneira geral, o grupo expõe sua
importância não apenas entre aquelas que o realizam, mas também como objetivo a ser
conquistado por algumas assistentes sociais, como mediação privilegiada na tentativa de
materializar algumas ações – principalmente ligadas à função pedagógica do Serviço
Social. Esse recurso, como será citado a seguir pela assistente social I5, 117 se mostra como
uma alternativa diante do contexto de intensificação de demandas provocadas pela
diminuição relativa (e, em alguns casos, até mesmo absoluta) de assistentes sociais perante
solicitação cada vez maior de atendimentos.

Em função dessa loucura que é a emergência, sempre lotada, eu estou solicitando um


amparo de atendimento para trabalhar com as famílias […]. Eu preciso de um efetivo
maior, já que o trabalho individual não vai me permitir alcance necessário. Eu
preciso ter uma amplitude do trabalho no coletivo (I 5, grifos nossos).

Eu acho que nós teríamos que investir hoje na saúde – devido à quantidade reduzida de
profissionais com que contamos – com uma demanda gritante. Penso que temos que
investir mais no trabalho de coletivo, com grupo. Se não, vamos nos desgastar e não
vamos dar conta. E o grupo é um espaço em que você consegue ter uma amplitude de
divulgação da reflexão (I 5, grifos nossos).

Eu sento e falo: “Vamos pensar outra forma de atender...”. Porque esse atendimento leito a
leito já não serve mais. Com esse universo de tantos internados, eu preciso trabalhar com
o coletivo. Se eu não conseguir trabalhar com o coletivo, aparecerão mais demandas que
serão chamadas de “casos sociais”. A própria equipe, às vezes, sinaliza isso também, ela
fala: “Olha, aquele ali está abandonado... Aquele ali não tem ninguém vindo visitar”. Tem
que ficar atento na unidade, porque os profissionais fazem isso. Mas eu entendo as outras
orientações: tem usuário que sai de lá e que tem direito ao auxílio-doença, tem direito ao
DPVAT, tem direito a outros encaminhamentos. Ele sai de lá sem orientação mesmo ( I 5).

Como podemos perceber no último trecho da entrevista exposta, o atendimento em


grupo não deve ser concebido como uma alternativa de ação profissional para substituir

117
Essa assistente social trabalha com grupo em outra unidade também de saúde onde desenvolve o trabalho com grupo
e já teve algumas experiências passadas com grupos. Por isso, em alguns momentos da entrevista, ela recorrerá a essas
experiências como exemplo, para pensar esse recurso na realidade presente de sua explanação.
215

toda forma de atendimento individualizado. Ele deve ser utilizado como alternativa a
determinados casos, em acordo com os objetivos do profissional e dos usuários. 118 Assim, a
relação entre atendimento individualizado e coletivizado não deve ser estabelecida de
maneira competitiva, mas, sim, de complementação. Essa relação de complementaridade se
expressa num outro momento da exposição dessa mesma assistente social, quando afirma
que

Por exemplo, eu estava nesse grupo [...] um pouco depois da reunião com o grupo [...]
algumas pessoas vêm e falam “Ah, aquilo que a senhora falou assim, eu não tinha
pensado sobre isso”. Então você percebe que alguma coisa, algo do que você falou,
conseguiu ser absorvido (I 5).

Uma das potencialidades que a abordagem em grupo oferece ao assistente social diz
respeito à sua capacidade de facilitar o processo de conscientização da identidade entre os
usuários. O primeiro passo que percebemos a esse respeito está na possibilidade que o
assistente social tem de, através da abordagem em grupo, romper com a cultura
individualista que grande parte dos usuários tem ao chegar na instituição. A profissional (I
5) ilustra a existência desse individualismo, a partir da face do personalismo presente no
município e como o grupo pode ajudar a combatê-lo. Ela diz:

Na unidade, tem a questão do poder: “Fulano me arruma isso, me arruma aquilo”. Ao


trabalhar com o coletivo, você quebra essa lógica, porque a minha necessidade não é só
minha, ela é de todos. Eu precisaria desse espaço para trabalhar essa lógica (I 5).

Quanto à construção dessa identidade, essa mesma assistente social ilustra como
esse processo de lapidação da identidade vai se desenvolvendo no trabalho em grupo:

Nas reuniões que eu faço com a família, em algum momento, consigo [demonstrar a
identidade entre eles]. [...] eu dizia: “Está vendo? Olha: o mesmo problema que ele tem lá,
você também tem em determinado setor”. Ou algo parecido. Então, conseguir nesse
momento trabalhar o individual em nível de coletivo. E todo mundo falava: “Ah, eu
também!” (I 5).

A importância da abordagem coletiva se mostra tão relevante para a construção da


identidade entre os usuários que a assistente social (I2) atribui o seu insucesso, no que diz
respeito à maturação dessa identidade, à ausência de uma intervenção através dos grupos.
Ou seja, ela compreende o dispositivo de grupo como uma pré-condição para a construção
de uma identidade entre os usuários por meio de sua atuação. Quando perguntada “sua
intervenção consegue colaborar para que essa identidade entre os usuários se explicite?”,

118
Um exemplo que a profissional I5 considera mais propício de ser trabalhado no atendimento em grupo do que no
individual é a tentativa de intervir nas demandas reprimidas.
216

ela responde: “não, eu acho que não, porque a abordagem é individual e não faço grupo...”
(I2).
Outro potencial exposto pela assistente social (I5) a respeito do grupo corresponde
à possibilidade de os usuários, além de serem informados, informarem sobre aspectos da
realidade, fornecendo maior riqueza às informações trazidas pelo assistente social. Essa
qualidade pode ajudar, por exemplo, na maximização da compreensão por parte dos
assistentes sociais e dos usuários a respeito da própria rede externa à instituição. Como já
destacamos, sobre o assistente social costuma recair o papel de intervir sobre questões que
requerem complementação assistencial em outras instituições. Nesse sentido, a vivência da
experiência nos grupos pode oportunizar, por exemplo, algumas informações
complementares a respeito dessa rede por parte de outros usuários que vivenciaram
experiências a respeito.

Quando você trabalha com grupo, além da informação, trabalha com o retorno dessa
informação, dessa escuta com o usuário, com a reflexão daquele grupo. Você até possui o
material pronto para trabalhar. Mas quando você se predispõe a ouvir e dinamizar a fala
do usuário, você troca, tem uma ideia mais ampla (I5).

Podemos concluir que os grupos são vistos pelas assistentes sociais que conseguem,
ou já conseguiram utilizá-lo, como dispositivos muito importantes para potenciar sua
função pedagógica ao informar, dar retorno das informações, colaborar para a construção
da identidade entre os usuários, combater a cultura individualista e as dificuldades
impostas pela conjuntura de intensificação da rotina de atendimentos. Também pudemos
notar que a importância desse mecanismo vem sendo reconhecida também por assistentes
sociais que, por alguns motivos, não vêm conseguindo trabalhar com os grupos na atual
conjuntura institucional. 119
Em geral, tanto por meio de intervenções individuais quanto por meio de
intervenções coletivas, o grande foco de articulação entre função assistencial e função
pedagógica desses profissionais se voltou para as tentativas de, a partir da função
pedagógica do profissional, orientar os usuários através do que chamaram de
socialização/democratização de informações, para que eles possam acessar efetivamente

119
Dentre as duas que no momento não vêm conseguindo trabalhar com grupos, uma atribui a ausência desse
mecanismo à fragmentação da equipe de Serviço Social naquela instituição. Em sua compreensão, antes de iniciar um
trabalho com grupos, seria necessário que a equipe de Serviço Social como um todo criasse uma metodologia de atuação
comum, padronizada e articulada, onde a utilização dos grupos fizesse parte (I5). A assistente social I2, apesar de ver com
bons olhos esse mecanismo, não pontuou os limites que a impedem de utilizá-lo.
217

alguns serviços que lhes garantam melhorias objetivas de vida. Trata-se, obviamente, de
uma tarefa difícil diante da atual conjuntura de precarização das políticas públicas, em que
um dos recursos que os assistentes sociais vêm utilizando para melhorar as possibilidades
desse acesso é o amparo dos direitos sociais nesse processo pedagógico. O exemplo mais
claro e representativo a esse respeito foi a argumentação a seguir, em que a assistente
social expõe também uma importante consciência a respeito do aspecto “multiplicador”
das informações indicadas pelos assistentes sociais:

A questão da democratização da informação, da conscientização acerca do direito do


usuário, do que é possível, do que não é possível... [...] É uma forma de você educar o
usuário e receber as informações, de ter consciência, ter entendimento do que é direito, do
que é dever, algo que vai te servir hoje e para sempre, e é positivo porque você pensa na
questão da multiplicação daquela informação. Quando você atende um usuário aqui e o
orienta acerca de um direito previdenciário, por exemplo, eu tenho certeza que ele
vai chegar em casa e vai falar para os vizinhos, e os vizinhos, por sua vez, vão falar
para os familiares e isso os faz pensar: “Legal” . Isso é uma forma de você pensar que
meu trabalho tem um efeito positivo e um efeito multiplicador também da informação (I
3, grifos nossos).

No que diz respeito ao projeto desses profissionais sobre os impactos dessa função
pedagógica a curto e a longo prazos na vida desses usuários, percebemos que o perfil da
instituição e de seus usuários dificulta não apenas a consciência dessas assistentes sociais a
respeito do impacto da função pedagógica, mas, também, em alguns casos, a construção
mesmo de um projeto de impacto a esse nível. Nesse sentido, duas assistentes sociais (I 4 e
I 5) atribuem essa dificuldade ao perfil altamente rotativo de público usuário e a assistente
social (I 1) menciona a dificuldade de projetar esses impactos pedagógicos quando se trata
de usuários portadores de doença mental, como os com quem ela atua.
Em linhas gerais, apesar do reconhecimento e dos discursos a respeito da
efetividade do impacto educador de sua atuação profissional se mostrar mais presente e
incisivo nas exposições dessas assistentes sociais, a questão de apontar as expectativas
desses impactos se mostrou um desafio ainda mais complicado do que quando
questionadas a respeito das expectativas dos impactos objetivos de sua atuação com os
usuários. Devemos demarcar que, diante do desafio de formular respostas acerca dos
impactos da função educativa que desempenham na vida de seus usuários, detectamos
notáveis dificuldades por parte dessas assistentes sociais, até mesmo no que diz respeito
aos impactos em curto prazo.
A grande intensidade de discursos a respeito da função pedagógica também não
facilitou a extração de conteúdos para nossa reflexão, no que diz respeito à direção política
contida nesse desempenho pedagógico. Percebemos que a função pedagógica que pudemos
218

captar nas exposições dessas assistentes sociais, ao se focar nesse objetivo de viabilização
do acesso desses usuários aos serviços, pouco demonstrou a preocupação de fazê-la de
maneira articulada a estratégias factualmente politizantes. Separamos, a seguir, quatro
trechos pertencentes a respostas de três assistentes sociais, onde essa preocupação em
trabalhar o elemento político da função pedagógica emergiu de maneira mais clara:

A partir do momento em que eu consigo conscientizar politicamente [...], que consigo,


junto à equipe, uma vaga para um usuário nessa situação, [considero que minha
intervenção contribua para que se desencadeiem melhorias empíricas nas condições de
vida desses usuários] (resposta 1 da entrevistada I 3).

Essa pergunta é muito complicada. Eu procuro fazer o usuário refletir sobre aquela
situação. Não sei dizer se é uma questão marxista, fenomenológica […] funcionalista, mas
procuro fazer com que ele entenda por que chegamos nessa situação. Eu procuro
criticar as políticas atuais, incentivo à participação do usuário. Indago: “Como que os
médicos não estão ai? Por que que o nosso governante não contrata mais médico?”.
Então, eu procuro levar o usuário a essas reflexões sobre a realidade em que
vivemos. Eu sou questionadora sobre a política, procuro fazer com que ele repense a atual
condição do município, do Estado, do Brasil. E dos políticos, dos governantes que não
pensam. Eu cito o exemplo: a escola. Eu falo isso com frequência: a Cidade do Samba
pegou fogo, eles gastaram não sei quantos milhões e investiram imediatamente na
reforma. O Pedro II, o hospital Pedro II, pegou fogo. Faz um ano e ainda está sendo
reformado. Eu procuro fazer o usuário pensar nisso, refletir sobre as condições políticas
que nós vivenciamos (resposta 2 da entrevistada I 3).

No grupo de álcool e drogas, também tentamos trabalhar as questões do cotidiano deles.


Por exemplo, uma das temáticas que tratamos é a abordagem policial, a questão da
família, cultura, poesia. Também tentamos trabalhar essa identidade comum entre eles (I
1).

A expectativa é sempre positiva, de mudança de cultura. O trabalho é imediatista, muito


rápido. A orientação não é longa. Você não despende horas conversando com o usuário.
Você gasta meia hora, às vezes menos, e não se cria um vínculo. Quando você cria um
vínculo, você consegue estabelecer, ou fazer um trabalho educativo,algo emancipatório,
mais amplo que algo em curto prazo. [...] A minha expectativa é que [...] a nossa
orientação possibilite, cada vez mais, uma tomada de consciência emancipatória (I 4).

Observando com atenção, podemos notar que, dentre essas quatro explanações,
duas delas (a “resposta 1” da entrevistada I 3 e a entrevistada I 4), apesar de expressarem
uma preocupação no sentido de politização do público, abordaram esse aspecto político de
maneira muito vaga, não nos viabilizando captar claramente como essa politização é
efetivada por elas em seu cotidiano profissional. A entrevistada I 1 também não nos oferece
uma experiência metodológica que indique estratégias pedagógicas voltadas para a
politização, mas nos indica uma estratégia muito criativa no sentido da tentativa de abrir
margem para essa politização, na medida em que aponta a eleição de temas cotidianos
desses usuários profundamente permeados por elementos capazes de serem politizados
num momento coletivo de reflexão.
Apenas na resposta 2 da entrevistada I3, pudemos perceber com clareza a exposição
de uma estratégia de politização no sentido de potencializar o “signo positivo” (nos termos
219

de Diego Palma explicitados no tópico 2.4 dessa dissertação), contido na particularidade de


cada demanda dos usuários. Em sua explanação, a entrevistada deixa clara a tentativa de
resistência à pretensão do projeto institucional, ao tentar utilizar a particularidade de
determinados atendimentos aos usuários, para criar situações de reflexão funcionais à
perspectiva contra-hegemônica. Isso porque a assistente social (I 3) volta sua função
pedagógica justamente no sentido de evitar o sentimento de satisfação e submissão frente
às expressões cotidianas que a ordem capitalista determina sobre esses usuários. Essa
estratégia parece ser utilizada pela profissional recorrentemente e sem que haja a
necessidade de abordagem em grupo. O que nos leva à conclusão de que se trata de um
exemplo estrategicamente rico e legítimo, consoante com a noção chamada de radical-
democrata de conceber uma articulação entre a dimensão objetiva e subjetiva dos impactos
da ação profissional, de maneira a produzir efeitos funcionais a um norte societário que
extrapole a concepção de reformas como um “fim em si mesmas”. Devemos ainda destacar
que se trata de uma estratégia profissional que não requisita um grande aparato de recursos
físicos (como sala para intervenção em grupo, por exemplo) e que mesmo uma assistente
social com vínculo precarizado – como a assistente social em questão (I 3), que possui um
“contrato temporário” – parece-nos ter autonomia relativa suficiente para buscar
materializar.
Percebemos que poucas foram as indicações práticas que podemos destacar como
exemplos inspiradores no sentido de, a partir da função pedagógica profissional, alimentar
criticamente a face subjetiva da “questão social”. Os assistentes sociais, em geral, apesar
de reconhecerem com maior veemência sua função pedagógica, ainda parecem carecer de
referenciais teóricos que abordem esse tema. 120
É evidente que os recursos científicos que preparamos para analisar a realidade
desses profissionais não nos dão base (nem pretendíamos isso) para enquadrar os impactos
da prática de cada profissional dentro da tendência de pensamento social-democrata ou
radical democrata. No entanto, diante dessa relativa abstenção em relação ao esforço no
sentido de direcionar os impactos subjetivos da ação profissional, devemos assinalar essa
questão como uma fragilidade, na medida em que essa postura tende a ser funcional à

120
Basta retornar aos dados obtidos a respeito dos autores que esses assistentes sociais se pautam. Nesses dados, o leitor
perceberá que, dentre as referências teóricas desses profissionais, raríssimos são os autores que tratam com profundidade
a respeito da função pedagógica dos assistentes sociais.
220

conservação da sociedade capitalista. Isso porque, assim como ocorre com a social-
democracia, analogamente parece comum à maioria desses assistentes sociais a
concentração absoluta de suas projeções de ação profissional sobre os aspectos objetivos
que envolvem o processo de acesso aos serviços por parte dos trabalhadores – sem que se
leve em conta a relevância decisiva que os aspectos subjetivos (particularmente, o
elemento político) cumprem na totalidade do futuro da luta de classe. Isso significa que as
respostas que permearam a questão da função pedagógica do assistente social careceram de
preocupações que, nesse mesmo processo de atendimento das necessidades imediatas
materiais, procurassem expor a necessidade da classe trabalhadora em se compreender
como classe que deva lutar coletiva e politicamente por melhores condições de vida social.
Em suma, podemos dizer que, em geral, as preocupações relatadas por essas assistentes
sociais acerca da função pedagógica se abstiveram da tentativa de promover politizações
críticas.
No entanto, há evidências de que, de alguma forma, o desempenho pedagógico
dessas profissionais efetivam relativas rupturas em relação às expectativas pedagógicas
almejadas pelo projeto institucional. Isso porque, enquanto nenhuma assistente social
declarou perceber contradição entre o projeto institucional e os impactos de sua função
assistencial, apenas uma assistente social declarou não perceber oposição entre a função
pedagógica que desempenha e o projeto institucional. As outras quatro profissionais
indicaram algumas divergências com a instituição a respeito dessa função pedagógica.
Duas delas também abordaram algumas coincidências entre ambos projetos (profissional e
institucional) e outras duas só conseguiram recordar divergências.
A respeito dessas coincidências, resgatamos das argumentações dessas assistentes
sociais entrevistadas os seguintes elementos:

O que coincide: as propostas, os objetivos da instituição, quando o assistente social


participa de uma atividade que é interessante para direção da instituição. Por exemplo, se
é para trabalhar com um grupo de família, [...] ou então quando [os representantes
hierárquicos do projeto institucional falam]: “o usuário teve algum problema na
internação”: recorrem ao assistente social para “apagar o incêndio”. Nessa ocasião, o
caráter da profissão coincide com o objetivo da instituição (J 4).

A questão das regras da instituição, por exemplo [...]. Não divergimos, procuramos
cumprir as [...] regras institucionais. A respeito da rotina institucional, tentamos participar
[da viabilização do cumprimento das regras referentes ao] horário de visita, número de
usuários para visitar (J 1).

É importante destacarmos, logo de início, que nenhum dos dois trechos demonstra
concordância dos profissionais a respeito dessa coincidência. Ou melhor, não está explícito
221

nas colocações dessas profissionais entrevistadas se essa coincidência a respeito da função


pedagógica que esses profissionais desempenham seja por adesão voluntária dos
profissionais ou se é o resultado simplesmente de uma adesão por parte desses
profissionais por falta de autonomia ou estratégia para divergir nesse sentido, praticamente.
O depoimento da assistente social (J 1) trata ainda de uma função de orientação
quanto aos procedimentos rotineiros da unidade que se organizaram com a finalidade de
não atrapalhar o processo terapêutico na unidade e, assim, garantir efetivamente um melhor
atendimento aos usuários. Ou seja, as questões que dizem respeito a essa explanação
(regras institucionais, horário de visita, número de familiares na visita etc.) tomam a
função pedagógica, basicamente, no que se refere à viabilização das assistências em
questão, e não estão voltadas para as perspectivas hegemônicas da burguesia reformista.
Isso porque os aspectos pedagógicos contidos nas orientações em questão se voltam para
um embasamento capaz de viabilizar uma melhor efetuação dos serviços. Por isso, na
medida em que tanto o projeto conservador institucional quanto o projeto de intervenção
profissional de um assistente social comprometido com o chamado projeto ético-político
precisam da melhor materialização possível dos serviços socioassistenciais, para que
possam aspirar suas pretensões políticas por meio deles, não há (ao menos na maioria das
vezes) motivos essenciais para divergirem nesse caso.
Em relação às divergências, as quatro profissionais que conseguiram identificar
divergências entre a função pedagógica – que as assistentes sociais tentam materializar – e
os interesses institucionais, ressaltaram divergências por parte da instituição frente a
conteúdos pedagógicos relacionados a direitos já instituídos em lei. Isso indica a existência
de uma clara identidade entre a argumentação das profissionais a esse respeito, na medida
em que apontam uma forte contradição entre a formalidade do projeto institucional,
algumas vezes proferido por seus próprios representantes, e a efetividade desse mesmo
projeto. A partir das argumentações dessas profissionais, podemos perceber certa
indisponibilidade dessas instituições em, pelo menos com os recursos que hoje são
oportunizados para essas instituições de maneira geral, desenvolver grande parte dos
direitos que, ao menos em tese, elas possuem o dever de materializar.
Podemos dizer que, ainda que esses direitos tenham vindo como expressão da força
da classe trabalhadora em determinado cenário da luta de classes, tendo sido alterada essa
conjuntura, a necessidade do oferecimento dos serviços resultantes desses direitos como
meios de apassivar a classe trabalhadora amenizou-se. No entanto, os direitos que
222

regulamentam as reformas conquistadas no passado não regrediram na mesma velocidade


em que regrediram as necessidades por parte do capital em reproduzir serviços com vistas
à obtenção de consenso. Isso ajuda a explicar por que o nível dos direitos na atual
conjuntura é superior ao nível de serviços efetivamente disponibilizados pelo projeto
institucional. Esse fenômeno se expressa tensamente na particularidade do cotidiano desses
profissionais, principalmente quando eles utilizam sua função pedagógica para
conscientizar seus usuários a respeito de alguns desses direitos. Vejamos:

Quando é para trabalhar na perspectiva dos direitos, para os usuários entenderem o


que é direito deles. Por exemplo, quando eu fiz esse meu projeto, eles [representantes do
projeto institucional] perguntaram: “Mas e os deveres?”. Eu respondi “É,faz parte também
dos deveres lutarmos por quais são nossos direitos, entendê-los”. [...] Mas, por exemplo,
no grupo de álcool e drogas, parece que não, parece que a perspectiva educativa da
profissão colide com alguns objetivos da instituição (J 4, grifos nossos).

As dificuldades de se trabalhar numa perspectiva mais crítica, contrária à ideologia do


favor, nós colidimos nessa garantia de uma perspectiva educativa, na perspectiva
“socioeducativa” da profissão, na qual o Serviço Social tenta atuar com os usuários,
vendo-os enquanto sujeitos de direitos, potencializando uma visão mais crítica. É
maior a dificuldade (J 4, grifos nossos).

Não coincide [com os objetivos institucionais] quando falamos que não vai ter alta. Não
vai ter alta e vai permanecer na unidade por dois, três, quatro meses, até o
Ministério Público responder e conseguir alguma instituição pública para
encaminhar (J 2, grifos nossos) .

Eu falo do caráter educador pela questão da “socialização de informação”. O médico não


pode tirar, porque tem direito ou pela carta dos usuários ou tem direito a ter um
acompanhante. O hospital não vai poder, até que você tenha acesso a outras coisas.
Quando você informa, operacionaliza essa informação, o que pode contribuir para
os interesses opostos. Quando falamos [para o usuário]: “Não, olha, você pode
judicializar isso, você pode ir na Defensoria. Não sei quanto tempo vai durar, se dois
meses, três, um anos ou um mês. E, enquanto isso, você vai ficar aqui, não vai embora”.
[...] Quando você repassa essa informação, eu percebo também um caráter educador. Você
diverge, por mais que isso “seja assistencial” (J 2, grifos nossos).

Tem outras situações que eu posso citar que colidem [com os objetivos institucionais]. Por
exemplo: aqui no hospital, temos uma maternidade. É lei a permissão ao
acompanhamento no “pré”, “durante” e pós-parto. O Serviço Social é procurado no
plantão pelo usuário que tem consciência desse direito, da existência dessa lei, e a nossa
unidade não cumpre. Então, como é que explicamos para o usuário que é lei, que é
direito? Fica complicado para nós esse embate. Então, vou autorizar? […] E de que forma
orientamos o usuário aqui? [...] orientamos sobre o conselho tutelar, até à delegacia mais
próxima à unidade. [...] Vivemos um confronto, um dilema complicado entre: não vou
garantir o direito do usuário, mas pelo menos vou esclarecer que o direito que ele tem, dar
as orientações devidas, dizer: “Olha, você pode recorrer a essas alternativas” […] A
partir do momento em que você diz a ele que ele tem direito a acompanhar – idosos,
criança e adolescentes – na emergência, nas enfermarias. [...] Não gera embate, mas na
maternidade existe esse problema, então é um enfrentamento. Na verdade, diverge da
regra da instituição, que é impedir acompanhamento. É uma situação pontual, mas é um
exemplo aqui da unidade (J 4, grifos nossos).

A proposta que temos [...] é de prevenção. Trabalhar a questão da prevenção da saúde.


Eu sempre afirmo: “Isso aqui é um espaço para refletir, para se curar”. Os familiares dos
internados contestavam: “Mas aqui não cura ninguém...”. Eu respondia: “É preciso que
vocês façam o acompanhamento [...]”. Então, eu vou dando outros exemplos. Em relação
ao paciente renal crônico: Por que ele é renal crônico? Porque um quadro de hipertensão,
de diabetes, está sempre atrelado. Então, se ele tivesse feito o tratamento, talvez hoje ele
223

não estivesse fazendo hemodiálises. Outro diz: “Eu sei!” (isso dentro de um espaço
coletivo, quando é possível fazer isso). Então, trabalhamos essas questões […] do
indivíduo, coletivo individual, e que passam a ser o coletivo. Eu entendo que isso atende
à proposta do SUS, e não à proposta da instituição, porque a proposta da instituição
entende a saúde como mercadoria. Quando eu percebo que eles querem atender e
liberar... O que é isso? Atender e liberar do jeito que eles estão fazendo? (J 3, grifos
nossos).

Nesses depoimentos podemos identificar que as questões que desencadeiam as


divergências são variadas, tais como a “alta” dos usuários, o acompanhamento de
familiares no leito dos usuários internados e a prevenção em saúde. Essas questões, no
entanto, não devem ser descoladas de seus determinantes, como a falta de disponibilidade
de recursos institucionais (inclusive recursos humanos) e de rede externa de serviços
públicos que, ao provocarem a intensificação da rotatividade de leitos, a falta de vagas em
outras unidades (sejam de abrigamento ou de saúde) para a transferência, a falta de
estrutura física institucional para garantir o direito ao acompanhante em determinadas
enfermarias, criam essa situação de tensão entre o assistente social e a instituição.
Podemos ver que diante da própria incompatibilidade entre discurso institucional e
o factível projeto institucional, abre-se a possibilidade de que aqueles assistentes sociais
comprometidos com o projeto ético-politico profissional utilizem, por meio de sua função
assistencial, essa contradição em dois campos. Primeiro para impulsionar a efetivação de
serviços para além do que o projeto institucional pretende e, segundo, para trabalhar no
sentido de viabilizar que os usuários captem a essência do discurso institucional e os
limites do direito na sociedade capitalista. Ou seja, isso significa que os assistentes sociais
podem apropriar-se do discurso institucional contra o próprio projeto institucional a fim de
não legitimá-lo. Trata-se de uma estratégia que, além de importante, parece-nos ser
utilizada por significativa parte dos assistentes sociais entrevistados e, nos parece, com
relevante intensidade.

3.5 Limites e possibilidades das estratégias profissionais voltadas para os impactos


intrainstitucionais

Viemos destacando que a intervenção profissional do assistente social junto aos


usuários se volta basicamente para interferências no âmbito das relações sociais
capitalistas, cujos impactos extrapolam o âmbito da instituição onde atuam. As estratégias
e dilemas desses profissionais na tentativa de materializar, na medida do possível,
224

elementos funcionais ao projeto-ético político profissional nesse âmbito de atuação – que


se exercita basicamente por meio da função pedagógica e assistencial – foi o grande alvo
do debate que procuramos travar no tópico anterior.
No entanto, também já destacamos que, além dessa frente de ação, cujos impactos
se voltam basicamente para interferências no âmbito extrainstituição, a materialização do
projeto profissional deve levar em conta também estratégias de atuação que visem
interferências orgânizacionais no âmbito da própria organização da instituição onde atua.
Essas estratégias podem partir, basicamente, tanto da inserção do assistente social numa
situação de conflito já desencadeado entre expressões do projeto institucional com
conjunto de demandas dos usuários quanto diretamente de uma situação de divergência
entre o projeto profissional e o projeto institucional por iniciativa de um lado ou outro.
Nesse sentido, para podermos refletir sobre essa via de interferência na
conformação institucional, buscamos recair sobre alguns pontos de divergências.
Percebemos que a maioria das vezes em que essas profissionais buscaram intervir em
situações de conflito entre as demandas dos usuários e o projeto institucional, 121 o motivo
partiu basicamente de uma relação de conflito entre os interesses da instituição e os dos
usuários. Sobre esses casos, disponibilizaremos, a seguir, algumas argumentações das
assistentes sociais entrevistadas, que ilustram três dos temas desencadeadores de
divergências entre os assistentes sociais e a instituição: a pressão institucional pela
liberação de leitos (resposta 1 e 2 da entrevistada K 2, resposta 1 da entrevistada K 1 e a
resposta 1 da entrevistada K 3), a negação da instituição ao direito de acompanhamento de
familiares de internados (resposta 3 da entrevistada K 2) e o não acesso a determinados
serviços de competência de algum profissional (resposta 2 da entrevistada K 1, resposta 4
da entrevistada K 2 e resposta 2 da entrevistada K 3). Vejamos os relatos das assistentes
sociais entrevistadas a respeito dos motivos que desencadeiam os embates com a
instituição:

Eu queria muito falar dessa médica. Ela atrapalha totalmente o Serviço Social. Não vou
nem falar “atrapalha”: ela desrespeita, ela passa por cima da nossa atuação. É uma médica
[…] ela está aqui três vezes por semana, o que é pior […] e a gestão ama essa médica
porque ela é a médica “resolutiva” porque ela chega para resolver. Eu queria muito falar
dessa médica. Ela atrapalha totalmente o Serviço Social. Não vou nem falar “atrapalha”:
ela desrespeita, passa por cima da nossa atuação. É uma médica […] ela está aqui três

121
Vale ressaltar que, em todas oportunidades exemplificadas pelas assistentes sociais entrevistadas, essas se
posicionaram a favor dos usuários.
225

vezes por semana, o que é pior […] e a gestão ama essa médica porque ela é a médica
“resolutiva”, pois ela chega para resolver. O dia em que o plantão tá lotado, se no outro
dia é o plantão dessa médica, ela chega aqui e vai “limpar” o hospital. A enfermagem
também agradece, porque muito paciente significa muita demanda para enfermagem.
Então, beleza: “Olha, doutora fulana ela chega para limpar o hospital”, e ela desrespeita
totalmente a nossa prática. Ela tem o aval da gestão, da direção do hospital […]. Por mais
que você evolua no prontuário: “Estamos em busca de vagas, estamos tentando localizar a
família...”, “paciente possui família, no entanto estamos conseguindo contato”, isso não
quer dizer nada para ela. Ela passa por cima, e no outro dia, se você pergunta: “Cadê o
usuário?”, respondem: [...] “Dra. fulana deu alta, levou até a porta e deu o dinheiro para
passagem” (resposta 1 da entrevistada K 2).

[Há uma] imagem de que o Serviço Social serve para desocupar o leito a partir de
alta social. Você entra na emergência [...] e as enfermeiras já dizem: “Assistente social,
ainda bem que você chegou, está cheio de alta social!”. Você identifica uma situação, uma
demanda: “É população de rua”. Aqui na unidade, respeitamos a liberdade do usuário. Se
ele fala: “eu quero voltar para rua”, ele vai voltar para rua. Mas, quando ele diz: “Não, por
favor, eu quero mudar”, vamos trabalhar com isso. Mas, mesmo assim, às vezes voltam
para a rua. Quando conseguimos com muito esforço uma instituição, e chegamos para
obter um retorno, cadê o paciente? Cadê o usuário? Ai alguém diz: “Veio uma médica,
pagou a passagem dele e ele foi embora...”. Então, até no que tentamos fazer, nos
deparamos com a interferência de outros profissionais. Ou, ainda, quando
solicitamos, precisamos da ajuda, não conseguimos, porque não existe um trabalho
interdisciplinar. Ainda mais numa emergência com plantões com profissionais
diferentes, que têm visões diferentes e, inclusive, têm divergências, principalmente para
dar alta. Num dia, dizem que a pessoa vai morrer, no outro dizem: “Não, está liberado,
está de alta”. E nós enquanto assistentes sociais [...] pensamos: “Meu Deus, e agora, quem
estava certo: o médico de ontem – que falou que ela precisa fazer uma cirurgia – ou o
médico de hoje – que está dando alta?”. E como interferimos nisso? Isso foge da alçada
do assistente social. É uma questão clínica. Você vai discutir isso com a equipe? Não
existe, aqui, na emergência desse hospital, o diálogo com outro profissional […] (resposta
2 da entrevistada K 2, grifos nossos).

Por exemplo: aqui no hospital, há uma maternidade. A permissão ao acompanhamento no


“pré”, “durante” e pós-parto é lei. O Serviço Social é procurado no plantão pelo usuário
que tem consciência desse direito, da existência da lei, e a nossa unidade não cumpre
(resposta 3 da entrevistada K 2).

Exemplo: o usuário vem ao plantão e diz: “dona assistente social, minha mãe está lá está
esperando a cirurgia há um mês, o médico não passa visita, a técnica não faz a limpeza,
não faz a higiene, ela está lá toda defecada”. Chegam aqui diversas queixas (K 2).

Agora com a introdução da OSCIP, todas as direções que passaram nesse período em que
eu trabalho lá, perguntam: “O que o Serviço Social faz?”. Sempre pedem que você
entregue. Agora essa direção pediu, mas, mesmo tendo conhecimento, ela já vem
cometendo alguns desmandos. Por exemplo, temos uma situação de população de rua,
então o que o Serviço Social faz? O paciente já está de alta, geralmente é idoso ou com
alguma questão atrelada à dependência química. Esgotaram todas as possibilidades de
uma inserção familiar? Não tem referencial? Então, vamos pedir abrigamento. Só que os
usuários ocupam leito, e a lógica da gestão, assim como todas as outras, é a desocupação
dos leitos, a rotatividade. Só que potencializada. Então, eles afirmam: “O Serviço Social
não está fazendo nada” [por não ter viabilizado a alta de determinados usuários] (resposta
1da entrevistada K 1).

Nas situações que dizem respeito a algum contato ou a algum profissional (porque às
vezes também tem). Por exemplo, quando o usuário tem dificuldade de acesso a algum
profissional para falar alguma coisa sobre o quadro (resposta 2 da entrevistada K 1).

Não coincide quando falamos que o usuário não vai ter alta e vai permanecer na unidade
por dois, três, quatro meses – até o ministério público responder e conseguir alguma
instituição pública para ser encaminhado (resposta 1 da entrevistada K 3).

Uma enfermeira [...] acha que [...] eles não vão dar laudo, não dão laudo, não dão nada.
Tem que pegar no arquivo médico (resposta 2 da entrevistada K 3).
226

A primeira observação que devemos ressaltar, antes de partir para as reflexões das
diferentes categorias de ações pensadas pelas profissionais, é que todas as argumentações
que acabamos de relacionar apontam para a forte e já destacada contradição entre a
formalidade do projeto institucional – resumido em muitos casos a mero discurso – e a
efetividade desse mesmo projeto. Nela, podemos observar que, em determinados
momentos, a instituição, pressionada por diversos fatores determinantes, entra em
contradição com seu discurso reformista. Isso porque nega seus fundamentos voltados para
a viabilização de serviços mediadores da reprodução hegemônica e, expõe, assim, uma
postura liberal de negação de assistência aos trabalhadores. O interessante é notarmos que
é exatamente nessas situações de tensão – nas quais a instituição nega o oferecimento de
determinados serviços – que se desencadearam a maioria dos embates profissionais contra
o projeto institucional. Vale destacar: partindo de conflitos inicialmente entre instituição e
usuários e voltados, a princípio, para impactos orgânicos em nível intrainstitucional que
fossem capazes de permitir que as demandas dos usuários se efetivassem.
As alternativas de enfrentamento que essas assistentes sociais expuseram – tanto
nos casos em que a situação de conflito se colocou direto entre instituição e assistente
social quanto nos casos em que essa situação se realizou por meio da iniciativa dessas
assistentes sociais, junto a uma situação de conflito entre usuários e instituição –
mostraram variações básicas quanto aos sujeitos diretos da disputa: o próprio assistente
social, a ação do assistente social em aliança ou os próprios usuários. Além dos sujeitos,
também percebemos variações táticas na tentativa de materializar determinados projetos
profissionais. Percebemos que as posturas profissionais variaram entre a tentativa de
convencimentos e negociações com alguns sujeitos, cujas mudanças de postura podem
permitir alterações no desempenho do projeto institucional (sejam eles diretores, vice-
diretores, médicos etc.); criação de embates abertos, a fim de forçar a instituição a ceder
em sua postura diante de determinadas pressões; e o exercício de condutas de
desobediência às regras institucionais.
Para começar, destacaremos algumas situações em que os objetivos profissionais
buscam se efetivar por meio do convencimento de sujeitos estratégicos:

Quando [nós, assistentes sociais,] conseguimos [colocar em prática nossas convicções] é a


partir do momento em que conseguimos encontrar um médico que nos ouça e
pedimos a ele um pouco mais de paciência na viabilização de alguma solução para
determinado paciente. Quando existe um profissional, médico – trabalhamos mais com
médicos e com chefes de equipe que também são médicos – e você consegue que ele
entenda pelo menos a situação daquele usuário “X”, que o Serviço Social já está atuando
para resolver, é por meio do convencimento de “você pode dar uma adiada na alta do
227

paciente, porque estamos tentando...”, não de enfrentamento, porque não somos bem
vistos. O Serviço Social, às vezes, quando parte para o enfretamento, […] não
consegue resultados (L 4, grifos nossos).

Por exemplo, quando o usuário tem dificuldade de acesso a algum profissional para falar
alguma coisa sobre o quadro [clínico]. Às vezes, não está atrelado à questão do “fora do
horário da visita”. Mas o profissional se torna o intermediador do conflito frente à
necessidade do usuário. Você se dirige àquele profissional e você percebe a
dificuldade do usuário que acessa. Esse mecanismo é em nível individual. [...] Porque
o usuário, como ele é desprovido de conhecimentos, desprovido, às vezes de
interpretação, tem a necessidade da intervenção junto ao profissional para
atendimento daquele usuário. Em relação a algo que ele fez, que extrapolou, ou que ele
não avaliou corretamente, pedimos para ele reconsiderar Isso tem sido atendido (resposta
n° 1 da entrevistada L 3, grifos nossos).

Você não vê os funcionários da Direção geral no domingo. O que eles fazem? Eles fazem
uma rotatividade e colocam um elemento que não é o diretor para assumir o hospital. Em
geral, é o chefe de equipe. E, com esse chefe de equipe com quem eu trabalho domingo,
tenho uma boa parceria. Eu falo […] ele avalia, vê e encaminha (resposta n° 2 da
entrevistada L 3).

Então, o meio de convencimento seria o diálogo e a boa relação […] Alguns


profissionais percebem (resposta n° 3 da entrevistada L3, grifos nossos).

Podemos notar que, em geral, as situações em que os assistentes sociais priorizam


essas táticas de convencimento em detrimento das demais são exatamente aquelas em que
para seu sucesso não há a necessidade de interferência dos sujeitos que ocupam o cargo de
diretores institucionais. Trata-se da perspectiva de convencer, basicamente por argumentos,
outros profissionais a procederem de determinada maneira que favoreça os usuários.
Também é notável que essa via apresenta alguns limites marcantes. Sobre isso, o
primeiro ponto que destacaremos é a fluidez e imediatismo dessas tentativas. O exercício
dessas tentativas evidencia que seu sucesso depende muito do profissional com quem
atuam, podendo o mesmo argumento funcionar com um profissional e não funcionar com
outro, ou ainda: funcionar com um profissional em um dia e na outra semana não
funcionar. Isso gera uma situação de tensão incessante, em que – ainda que se trate de
tentativas legítimas – não se alteram regras organizacionais da unidade, dificultando uma
rotina mais planejada e constante. Em suma, podemos resumir essa questão da seguinte
maneira: essas tentativas podem materializar conquistas pontuais, mas, se ocorrerem,
pouco colaboram para que elas se cristalizem na rotina institucional.
Outro ponto a ser problematizado é o fato de os próprios sujeitos interessados na
situação de atendimento não serem convocados para o processo de conquista. Nesses
casos, a função pedagógica do assistente social se volta unilateralmente para os sujeitos
com quem negocia, desprezando o potencial mais significativo, o existente no sujeito
usuário. Trata-se, evidentemente, da preferência de lutar pelo usuário em detrimento da
alternativa de lutar com o usuário. Se, de um lado, essa posição pode contribuir com a
228

legitimação do Serviço Social junto ao usuário, de outro, esse mesmo procedimento


relativamente “tutelador” pode colaborar para a reprodução de uma consciência
subordinada e passiva por parte dos usuários. No entanto, devemos ressaltar que não
podemos dizer exatamente qual alternativa seria mais eficiente em nível objetivo, pois não
pudemos perceber, nos depoimentos das entrevistadas, quais os motivos que levam os
profissionais a tomar unicamente para si o protagonismo dessas disputas.
A única exposição em que a assistente social indicou uma experiência em que a
hierarquia institucional foi convencida pelo projeto profissional foi uma disputa
basicamente entre assistente social e instituição, em que esta requisitava da equipe de
Serviço Social determinadas condutas que estavam em desacordo com as convicções desta
profissional. Ela expõe o processo:

No hospital [antigo] quem distribuía o cartão de autorização de acompanhante era o


Serviço Social. O hospital era menor e a alegação da direção era que ela não tinha
funcionários habilitados. Como ela encontrava dificuldades nos profissionais, quem tinha
para assumir essa responsabilidade do cartão de acompanhante era o Serviço Social […].
Além de uma entrevista, tinha um acompanhamento com a família. Então, você verificava
se aquele familiar tinha condições de acompanhar. […] Nós temos uma divisão de Serviço
Social lá na secretaria [...], ela122 tinha uma boa compreensão do que é o Serviço Social. E
falávamos: “Olha, nós atendemos, mas […] enquanto uma está registrando que é o
acompanhante, estamos deixando de fazer outros atendimentos, pesquisando outras
demandas.”. Ela disse assim: “Então me apresentem o que vocês fazem, o quantitativo do
que vocês fazem....”. Fiz, então, uma pesquisa. Fiz um levantamento. Num mês,
disponibilizamos esse cartão para uma média de 500 pacientes. Levamos isso para a
direção. Depois disso ela colocou a seguinte questão: “E o que vocês precisariam
acompanhar?”. Respondemos: “Precisaríamos acompanhar essas enfermarias, tem
isso e isso de demandas”. E nós documentamos isso. A direção, então, colocou um
setor, e criou um setor de autorização de acompanhante. Saiu [das atribuições] do
Serviço Social [naquela unidade]. (…) Isso nos aliviou (L 3).

É interessante notar que, nesse caso, o que estava em jogo era a tentativa de ampliar
a autonomia do Serviço Social por meio da liberação de tempo para procedimentos
técnicos específicos da formação do Serviço Social – o que a princípio não é uma
requisição antagônica ao projeto institucional. Esse caso se mostra rigorosamente diferente
dos apontados anteriormente, por colocar também como objeto a estrutura orgânica
daquela particularidade institucional. Tratou-se de uma conquista materializada que, ao
incorporar-se ao sistema institucional, torna-se, de certo modo, permanente e capaz de
garantir maior constância em relação a essa situação. Foi uma conquista que, a curto e

122
A partir da resposta da entrevistada, não conseguimos identificar com exatidão a quem se refere. No entanto, foi
possível identificar que se trata de alguma autoridade da divisão de Serviço Social da secretaria do município que a
contrata e que, segundo essa assistente social, se trata de “uma pessoa que tinha uma compreensão muito boa do que é o
Serviço Social”.
229

médio prazos, provavelmente não requisitará mais embates.


Além disso, a entrevistada L3 apontou um interessante recurso à pesquisa de
campo, expondo dados quantitativos sobre a realidade de atuação da equipe de Serviço
Social para embasar seus argumentos e, assim, dar maior cientificidade a suas
argumentações. Pensamos que o recurso à pesquisa como meio de fortalecer o
posicionamento profissional frente a determinadas ofensivas do projeto institucional, além
de legítimo e eficaz, também pode servir para outros casos e estratégias. Por que não
pensar, por exemplo, em realizar pesquisas e utilizar seus dados para embasar demandas de
usuários por determinados serviços ou aprimoramento desses serviços conquistados?
A tática da desobediência às regras institucionais foi exposta apenas por duas
assistentes sociais. A primeira, como veremos abaixo, diferenciou-se por uma conduta
transparente de desobediência, na medida em que se explicitou num documento cujo
acesso pode ser feito por usuários e profissionais da instituição (inclusive de cargos
hierarquicamente superiores). A segunda assistente social expôs uma série de
posicionamentos de resistência às regras institucionais. Estas tanto partem de ações diretas
da profissional quanto do exercício de sua função pedagógica, por meio da qual orienta
seus usuários a se esquivarem de determinadas normas e critérios existentes em outras
instituições para que possam, assim, acessar determinados serviços e benefícios sociais.

Há uma lógica no hospital que a direção determina que ninguém pode pedir avaliação da
psicologia, a não ser o médico. Eu questionei. Está de brincadeira! Eu não vou pedir, eu
vou sugerir um atendimento – pode avaliar ou não. […] Se eu identifiquei que o usuário
está numa situação de depressão, bipolar, com um comportamento diferenciado, que não é
comum a todas as outras, por que eu não posso pedir? Eu vou recomendar: “Sugiro a
avaliação da psicologia, a paciente está apresentando um quadro tal” (L3).

Às vezes, eu boicoto o INSS. Às vezes, boicoto a instituição... Por exemplo, a questão da


família. [algum representante do projeto institucional hierarquicamente superior a essa
assistente social] fala: “Tem que encontrar a família do fulano de tal [...] porque ele não
tem família aqui, não tem trabalho, então é melhor voltar para família natal porque pelo
menos lá eles tenham algum apoio familiar”. Mas, na verdade, a intenção deles é passar a
responsabilidade para a família. Geralmente, quem eles querem que retorne para a família
natal são os usuários que dão mais trabalho, mais violentos. Eu falo: “Eu vou fazer
[contato]...”, até eles esquecerem! Quando sei que meu discurso não vai causar efeito,
falo: “Não, não, tudo bem”. Eu enrolo e falo: “Não, não deu tempo, não deu para fazer
etc.”. Tem certas coisas que você sabe que não adianta falar porque já falou diversas
vezes e não teve jeito. Então, eu falo que vou fazer e não faço! Exemplo: na lei consta
que é preciso ter até um quarto do salário mínimo para receber o benefício. Por exemplo,
tem uma usuária que a filha dela acabou de ser mandada embora do emprego, e que
recebe muito pouco [de salário] e a irmã dela precisa do beneficio. Só que a renda dela
ultrapassa esse ¼ de salário mínimo. Eu falei: “Assim que ela for mandada embora, você
vai continuar com esse beneficio nesse meio tempo para ela conseguir”. […] Como não
está formalizado que ela está empregada, já que ela estava saindo de um para entrar em
outro, disponibiliza-se o benefício. Ou, ainda, falamos para eles: “Você tem essa renda,
mas, como não tem carteira assinada, fala que não tem!” [...] (L1, grifos nossos).
230

Como pudemos perceber principalmente na última exposição (L1), são “manobras”


variadas em que o assistente social eventualmente – por conhecer de perto algumas normas
institucionais e, consequentemente, suas contradições – possui autonomia para intervir
diretamente ou por meio de sua função pedagógica para que determinadas demandas se
concretizem. 123 É preciso chamar a atenção para os procedimentos interventivos que
desobedecem as regras institucionais. Pois, na medida em que, de certa forma, cortejam a
via da ilegalidade, podem passar duas impressões negativas a seu respeito: a de que são
errados e a de que são perigosos.
A respeito dessas noções, a primeira pergunta que devemos nos fazer é: diante de
um projeto institucional, cujo norte societário é antagônico a valores como a igualdade,
liberdade, democracia e justiça social (por exemplo), qual é a legitimidade que os
parâmetros de certo e errado estipulados por esse projeto podem ter para alguém que
defenda a igualdade, a liberdade, a democracia e a justiça social? É historicamente
recorrente entre aqueles que se atreveram a defender um projeto societário voltado para a
emancipação dos indivíduos sociais que, diante do conjunto de regras posto pela burguesia,
as noções a respeito de certo ou errado extrapolam aquelas propostas pela burguesia. Isso
indica que, também na particularidade institucional, um assistente social compromissado
com a emancipação deve resguardar certa autonomia intelectual para discernir o certo ou o
errado, independentemente do que indique a esse respeito os padrões burgueses.
Nesse sentido, podemos dizer que fazer o “certo” (do ponto de vista da classe
trabalhadora), muitas vezes, pode significar extrapolar os parâmetros institucionais. Essa
possibilidade abre margem para considerações que acusem esses posicionamentos de
“demasiadamente perigosos” para um profissional subordinado à instituição por meio do
contrato de trabalho. Por isso, devemos dizer que as tentativas de desconsideração das
regras institucionais também devem ser cuidadosamente analisadas antes de serem
executadas. No entanto, também devemos destacar que, ao contrário do que possa parecer,
as “ações desobedientes” do profissional não são necessariamente as únicas (nem
principais) formas do profissional se arriscar institucionalmente. Isso porque em todos os
exercícios em que o profissional faz enfrentamentos ao projeto institucional,
independentemente de agir legalmente ou não, há um risco de vulnerabilizar sua

123
Não estamos discutindo os méritos referentes às finalidades e formas correspondentes às intervenções descritas
pelas profissionais supracitadas. Nesse momento, nossa finalidade reduz-se a enfatizar a factível possibilidade dos
profissionais materializarem suas perspectivas por meio de “desobediências” em relação à instituição contratante.
231

legitimidade frente às direções institucionais. Além disso, como pudemos ver,


principalmente nas inúmeras situações descritas pela entrevistada L1, não houve nenhuma
exposição da profissional em relação à instituição. Ela soube agir com muita perspicácia,
favorecida pelo contato direto que possui com os usuários.
Além dessas duas vias – a da obtenção da adesão consensual por parte da
instituição e a da possível desobediência às regras –, como dissemos no início desse tópico,
identificamos ainda casos em que os assistentes sociais buscaram materializar suas
respectivas convicções por meio de pressões ao projeto institucional. Trata-se de uma via
muito próxima a que tratei anteriormente como a via do convencimento, pois em ambas há
intervenções contrárias, por parte do profissional, às deliberações iniciais da instituição,
numa perspectiva de alterar essas deliberações. Os meios também tendem a ser muito
parecidos, seja numa ação direta em relação à instituição, seja pela ação dos usuários ou
por alguma aliança. No entanto, o que distinguirá os dois casos é que, nesse caso que
abordaremos, a condição de embate é explícita e, desde o momento do desencadeamento
da divergência até sua resolução, a instituição, cedendo ou não, permanecerá com os
mesmos interesses.
Além de recursos às documentações internas da instituição (como a evolução em
prontuários e registros de comunicação interna, por exemplo), as profissionais
entrevistadas também levantaram outros instrumentos, no auxílio desse embate aberto com
a instituição, como o recurso às diversas legislações e normas internas oficiais a que a
instituição é obrigada a se submeter.

Eu penso que, pelo menos no meu trabalho, nos pautamos pelo o que já está dado
previamente. Seja a carta dos [...] usuários do SUS, seja o Estatuto do Idoso que
garante o acompanhante, seja outra política já existente. Quando os direitos entram em
conflito com os interesses, nós apresentamos a nossa posição, o nosso objetivo, por que
acontece daquela forma, quais são os direitos dos usuários (K4, grifos nossos).

Os meios são os argumentos respaldados pelas leis, pelo que já temos dado. Protocolo
que tentamos elaborar para a direção para mandar para as enfermarias, dizendo: o
Serviço Social faz isso e isso. Nessas instâncias, tem os funcionários de nível médio para
realizar (K 4, grifos nossos).

[Na instituição que trabalhei,] todas as direções requisitavam que o Serviço Social
comunicasse o óbito. Eu tinha os materiais do CFESS com as atribuições do assistente
social, as referências do conselho, aquelas normas da Secretaria do Estado. Num [outro]
hospital [do mesmo município], são as assistentes sociais que comunicam o óbito, e, por
isso, o diretor entendeu que as nossas companheiras tinham que fazer o mesmo. Naquela
época, eu era chefia. Faz sete anos, eu falei: “Você pode até determinar que a equipe
comunique o óbito, mas eu, como chefia, estou respondendo pela equipe e estou dizendo
que não vai”. O diretor respondeu: “Não vai por quê?”. Expliquei as razões e passei todo
o material de orientação sobre o assunto para ele e, ele foi ler. [...] Então, [...] em sete
anos, enquanto permanecia no hospital, o Serviço Social não esteve atrelado ao óbito, no
sentido do comunicado, mas participando do processo do momento do médico comunicar
232

(K 1).

Nesse sentido, as leis, como já havíamos percebido na análise dos dados extraídos
dos questionários, apresentam-se como instrumentos privilegiados para o exercício da
autonomia profissional, na medida em que permitem submeter algumas direções do projeto
institucional ao projeto profissional (em nome da lei). Por isso, mostra-se tão importante ao
assistente social articular sua formação profissional ao conhecimento do arcabouço
jurídico-legal das políticas sociais e, logo, às questões presentes na realidade em que atua.
No entanto, as experiências mais ricas e recorrentes, a nosso ver, estiveram ligadas
às estratégias de embate profissional em que essas assistentes sociais buscaram convocar
outros sujeitos, numa tentativa de romper com a desarticulação e o isolamento ideológico
do seu projeto profissional. Trata-se do esforço para superar a dificuldade de criação de
alianças nesse projeto em vários níveis.
Em primeiro lugar, cabe ressaltar que observamos indícios dessa desarticulação em
relação à própria equipe. Essa desarticulação parece ser provocada por uma série de
dificuldades provenientes da estrutura da equipe de Serviço Social, tais como: o regime de
plantão que dificulta o contato entre os assistentes sociais das equipes;124 a diminuta
composição de assistentes sociais em algumas unidades; 125 a intensificação progressiva
das demandas sem proporcional ampliação de número de profissionais para atendê-las, que
diminui o tempo livre para que a equipe possa se organizar; a falta de articulação entre
algumas subequipes de Serviço Social em determinadas unidades. 126
Certamente, as dificuldades de articulação em torno de um projeto profissional
extrapolam os exemplos que acabamos de citar (extraídos das respostas dessas assistentes
sociais),127 mas o esforço por estratégias que busquem superá-los ou amenizá-los é
necessário, a fim de tensionar as possibilidades postas pela relativa autonomia frente ao

124
No caso da assistente social que atua na UPA, são 7 assistentes sociais que se revezam em 7 plantões paralelos de 24
horas, uma a cada dia da semana. O diálogo, nesse caso, é ainda mais complicado por nunca atuarem junto com outra
assistente social da equipe.

125
A assistente social que atua na área da saúde mental, por exemplo, tem apenas mais duas assistentes sociais na
equipe, o que diminui, relativamente, o poder de pressão no caso de algum posicionamento de embate da equipe.

126
A profissional que atua num hospital universitário destaca, por exemplo, que “[a relação com outros assistentes
sociais] é ruim, porque o Serviço Social é muito grande dentro do hospital e cada um ficou nas suas ilhas das equipes”.
127
Podemos apontar, por exemplo, o possível ecletismo de influências teóricas dentro da mesma equipe, o desinteresse
de muitos profissionais, problemas pessoais internos etc.
233

projeto institucional. A respeito da necessidade de se pensar uma maior articulação da


equipe de Serviço Social para que, com maior competência, possa enfrentar o projeto
institucional, algumas observações foram expostas por uma profissional entrevistada:

Eu entendo que a equipe tem que sentar para discutir processos de trabalho. O que
estamos fazendo? Qual é a proposta de trabalho do Serviço Social? Também discutir
como está sendo feita essa sistematização da prática. Eu entendo que temos que ter um
momento para nós pararmos, sentarmos e refletirmos (L 2, grifos nossos).

Para que eu consiga fazer esse trabalho com as famílias dos pacientes, [...] não adianta
que só eu faça, tem que ser um trabalho diário. Para que isso se materialize, eu entendo
que a equipe precisaria sentar, a equipe […] precisaria sentar e parar para pensar o que
estamos fazendo. Como está sendo a atuação do Serviço Social? Que propostas temos que
tentar? Como antes nós tentávamos, ainda que com um grupo pequeno? Eu não sei
quantos comparecem a uma reunião de equipe. Num grupo de 27, participavam 15, mas
nós tínhamos um grupo conciso, forte. Ainda que o grupo hoje seja pequeno, acho que é
preciso [fazer reuniões de equipe]. Eu já pedi: “Vamos fazer uma reunião, vamos fazer de
novo”. Parece que tem uma proposta de um professor em fazer um trabalho de assessoria
na unidade. Mas antes o grupo precisa se perguntar o que estamos fazendo. Cada um está
fazendo uma coisa diferente. Então, como é que vamos racionalizar o que fazemos? (L 2).

O conjunto de propostas que a entrevistada (L2) levanta aponta para a


possibilidade/necessidade de promover reuniões periódicas entre a equipe de Serviço
Social, a fim de refletir sobre o exercício profissional da equipe de maneira contínua e
propositiva. Essa proposta parece importante também para amadurecer um consenso
mínimo, entre a equipe de Serviço Social, sobre um parâmetro de atuação profissional e
enfrentamentos institucionais que julguem viáveis, consensuais e prioritários. No entanto,
vale destacar que, dentre tudo que foi dito pela profissional nesse momento, nada está
sendo feito ou conseguiu ser processado anteriormente, 128 por isso não podemos
exemplificar como uma experiência bem sucedida diante da realidade. Mas, ainda assim,
devemos destacar que, no nosso entender, se trata de uma proposta realista, cabível de
sucesso em determinadas realidades profissionais.
Além da possibilidade de construir/fortalecer a aliança entre a própria equipe
profissional, também ressaltamos a importância/possibilidade da construção/fortalecimento
da aliança por parte dos assistentes sociais comprometidos com o projeto ético-político
profissional com outras categorias profissionais da instituição. Ou seja, trata-se de expandir
princípios e objetivos desse projeto profissional para o âmbito de outras categorias
profissionais, numa tentativa pedagógica de conscientizá-las a respeito de determinadas

128
Essa dificuldade para conseguir promover reuniões de equipe também está profundamente relacionada ao contexto
neoliberal que vivemos, onde a baixa remuneração que os assistentes sociais costumam receber de maneira geral
pressionam esses profissionais a complementarem sua renda vinculando-se a outros contratos de trabalho. Isso, por sua
vez, dificulta a disponibilidade deles a comparecerem em reuniões em outros horários.
234

condutas estratégicas no âmbito institucional. O reconhecimento da preocupação a respeito


dessa questão se faz presente de maneira bem clara no seguinte depoimento:

Há uma correlação de forças negativa em relação aos nossos parceiros. Antes, nós
tínhamos alguns parceiros, e na discussão do Serviço Social sobre o projeto ético-
político, eu percebo, em alguns momentos, que nós temos compromisso com nosso
projeto, mas acho que não há condições de lutarmos sozinhos. Eu compreendo agora a
questão de se fazer um trabalho mais coletivo com outras categorias […]. Devíamos estar
juntos na luta pelo SUS, pela saúde púbica como um todo. E então, fortaleceríamos o
SUS (L 2, grifos nossos).

Esse grupo novo [...] está fragilizado, tanto de médicos quanto de enfermeiros (porque
eles também são frágeis na unidade). Eles não conhecem e sabem que você é um elemento
que já conhece a rotina. Em algum momento, eles também se apoiam em você. Eu já
percebo num grupo de médicos novos: “Ainda bem que você está aqui, me ajuda aqui
nesse determinado assunto com a família”. Então, você percebe a existência de uma
parceria, um melhor entrosamento. Atualmente, estamos num momento de conquista de
entrosamento com esse grupo novo. Mas eu tenho um referencial de um grupo de equipe.
Havia outra chefe de equipe que era muito boa. E agora eu tenho esse chefe de equipe que
ele é militar, mas ele é um homem mais organizado e temos uma referência boa. É
militar, mas é casado com uma assistente social que trabalha num tribunal! […] Você tem
que identificar [os parceiros] […] e ele, como chefe de equipe, tem o poder de determinar,
[...] definir determinadas condutas (L 2).

Também nesse caso agem contra essa perspectiva de aliança entre o projeto
profissional e outras categorias inúmeros fatores mais ou menos tradicionais, arraigados na
tradição das instituições de saúde (mas também em outras áreas específicas). Podemos
pensar, por exemplo, na questão da hegemonia médica (citada nessa dissertação), nas
diferenças marcantes de formação (principalmente no caso do Serviço Social, que é uma
das poucas profissões pertencentes à área das “ciências humanas”), na pouca tradição
dentro das unidades de saúde a respeito de reuniões interdisciplinares, na diversidade
ampla de horários de expediente e de condutas entre as profissões 129 etc.
Ainda assim, alternativas criativas frente a essas questões puderam ser capturadas
nas entrevistas. O destaque que gostaríamos de expor a esse respeito buscou ganhar a
adesão de outros profissionais da unidade em relação a determinado objetivo – que sem
apoio tenderia a ser abafado pela instituição – por meio de uma apresentação no centro de
estudos da instituição, tanto aos representantes do projeto institucional quanto aos
profissionais que lá atuam. Nessa apresentação, a assistente social expôs a avaliação do
trabalho que realizava para legitimá-lo em relação a outros profissionais, diminuindo as
chances desse trabalho ser interrompido pelo diretor institucional (que assim desejava),

129
Por exemplo, podemos destacar uma das falas da assistente social L 3: “E então, o assistente social chega oito horas,
mas o médico chega às sete [...]. Ninguém senta, ninguém projeta, pelo menos nas clinicas: nada em comum (L3).
235

como poderemos observar a seguir:

Por exemplo, nós trabalhamos com álcool e drogas e somos muito questionados pela
instituição. O que nós fizemos, como era um trabalho que estava mudando, conseguindo
inserir os usuários que não se inseriam em nada, num projeto, e queriam obter o retorno
dos profissionais. Essa questão do álcool e drogas afeta os profissionais, já que ninguém
sabe lidar com isso. Fizemos uma apresentação no centro de estudos, mostramos uma
avaliação que fizemos, mostramos os objetivos e como o trabalho era feito, para
garantirmos a legitimidade da instituição através dos profissionais. Porque era uma
legitimidade que tínhamos. Conseguimos a legitimidade do vice-diretor, só não
conseguimos da direção, mas os profissionais gostaram muito. São formas políticas (L1).

Uma terceira aliança que, a partir das entrevistas, podemos considerar cogitável e
estratégica para fortalecer o projeto ético-político do Serviço Social frente ao projeto
institucional, é a aliança com os familiares dos usuários com quem o assistente social atua.
Trata-se, na verdade, de expandir a noção de “usuário” no sentido de aproximar esses
familiares da instituição, vendo-os como sujeitos de apoio aos interesses dos usuários
diretamente demandantes. Essa perspectiva de aliança só aparece em um dos depoimentos:

Eu comentei com outra colega: “Vamos pensar numa forma de atendermos


coletivamente essas famílias?”. Porque o perfil dessa população é de idosos crônicos.
Temos uma incidência de internação de idosos com doenças crônicas. Idosos que às vezes
não podem nem falar. […] O idoso não vai poder falar, temos que falar com a família.
Meu alvo vai ser a família. E, se eu não tenho espaço para trabalhar com essas famílias,
eu vou ter que trabalhar individualmente? Não dá, não tem como. Eu estou pedindo, mas
eu não estou conseguindo respostas (L 2, grifos nossos).

Como podemos notar, além do recurso aos familiares no fortalecimento do projeto


profissional abrir maiores perspectivas em termos da política institucional, também
podemos perceber nesses sujeitos (familiares) uma importância particularmente maior em
relação aos outros campos. Trata-se do fato de que a própria situação de enfermidade dos
usuários demandantes dos serviços da instituição pode despotencializar, ou até anular, o
poder de pressão desses usuários demandantes em determinadas situações. Por exemplo,
nesse trecho da entrevista acima, a assistente social indica que alguns desses usuários não
conseguem nem mesmo falar. Essa alternativa também parece muito propícia também no
caso da assistente social L1, que indica uma dificuldade de desempenhar com
profundidade uma função pedagógica numa perspectiva comprometida com o projeto ético
político profissional – por atuar com usuários psiquiátricos:

Eu não trabalho com essa perspectiva em longo prazo, porque, como são psicóticos muito
graves, você tem que ficar indo e voltando repetidamente e, quando você acha que “foi”,
não foi, voltou (L 1).

Poderíamos sugerir, nesse caso, que, além da busca pelo fortalecimento do contato
236

com a família dos usuários fornecer alternativas mais propícias para um exercício
pedagógico mais eficaz, essa alternativa poderia gerar encaminhamentos e orientações
voltados para viabilização do acesso a outros tipos de serviços capazes de contribuir para
melhores condições de vida dos usuários futuramente.
Por último, e no nosso ponto de vista, o mais importante é o esforço pelo
fortalecimento da aliança profissional em relação aos próprios usuários demandantes da
instituição, com vistas à convocação para determinados enfrentamentos em nível
intrainstitucional. As quatro assistentes sociais, que consideraram haver divergências entre
seu projeto profissional e o projeto institucional, expressaram condutas que, diante de
situações de conflito, buscaram materializar princípios por meio de uma situação de
aliança com os usuários. Dividiremos os depoimentos que ilustram isso em dois blocos:

O grupo estava prestes a acabar. O meio que usamos para o grupo não acabar, no caso
do álcool e drogas, é o vínculo que criamos com os usuários. Foi tal o vínculo que
criamos com os usuários que não tem mais como acabar o grupo. Eles falam do grupo
assim. Não foi uma coisa planejada para falar a verdade. Mas, como são usuários que
nunca aderiram a nada e que sempre são deixados sem lugar, a atenção que temos dado a
eles, apesar de fugirmos dessa ideia assistencialista, despertou um vínculo deles
conosco, que acabou sendo funcional à permanência do grupo, porque eles passam a
falar em outros espaços e garantem mais legitimidade através do vínculo deles. Eu
sempre procuro garantir a legitimidade através do vínculo com eles. Eu uso muito o
vínculo (L 1, grifos nossos).

Que meio de controle existe em nível de município? [...] O prefeito visa eleitorado. Mas o
eleitorado não conhece o poder político que tem enquanto “cidadão de direitos”. Mas o
prefeito quer o voto daquele camarada. Eu falava: “Vocês têm ouvidoria (na outra gestão),
vocês têm ouvidoria local e vocês têm a ouvidoria da prefeitura”. Sei que eu não estou
me expondo e, ao mesmo tempo eu estou colocando, cobrando [...]. Então vocês têm a
ouvidoria do prefeito. Eu sei que ele tem isso como „brilho‟. “Vocês podem acessar a
ouvidoria da prefeitura e usar o „fale com o prefeito‟” […]. E isso teve um impacto,
porque teve um momento em que eram tantas denúncias na ouvidoria, […] que, por
exemplo: a visitação dos familiares é uma vez por dia, e isso foi a participação do Serviço
Social nessas discussões. Só que houve uma enxurrada de denúncias na outra gestão, que
era do Diretor do município, que já passou por várias direções. Foi uma enxurrada de
denúncias. [...] Qual é a saída? A ouvidoria do prefeito. […] Mas ainda eu digo: vocês têm
a ouvidoria, as queixas que vocês vão fazer, tem a ouvidoria do prefeito e tal... (L2).

No caso dos dois depoimentos acima, percebemos que a efetividade de determinada


conformação do processo de atendimento institucional depende basicamente da
legitimidade dos usuários em relação a essas normas institucionais e do potencial de
pressão que esses sujeitos usuários podem exercer para que isso se reproduza. No primeiro
caso, a demanda é pela permanência do grupo de álcool e drogas e, no segundo, a
assistente social relata o processo de conquista de determinada demanda frente ao projeto
institucional por meio de um mecanismo particular de pressão: a ouvidoria do município a
que a unidade de saúde pertence. Nesse caso, ficou explícito que, diante de uma situação
de massivas demandas a determinado órgão superior (a prefeitura municipal) a respeito da
237

instituição de saúde, este órgão, diante da possibilidade de ser não legitimado por aqueles
que procuraram a ouvidoria, viu-se pressionado a intervir em favor dessa demanda dos
usuários. O segundo bloco que destacamos também traz em si essa questão da pressão; no
entanto, essa pressão se mostra instrumentalizada pelos direitos. Vejamos:

Tem uma enfermeira no hospital que [...] acha que [...] eles não vão dar laudo, não dão
laudo, não dão nada. Tem que pegar tudo no arquivo médico […] e quando acontece
isso: “Você tem direito a isso e a isso, você vai falar, senão vai para direção médica do
hospital” e os usuários apoiam o nosso caminho. E eles conseguem acessar por esse
meio, mas não com organização [...] basicamente tudo pontualmente, porque a nossa
intervenção é muito pontual (L3, grifos nossos).

O médico não pode tirar [o paciente do leito], porque tem direito ou pela carta dos
usuários ou tem direito a ter um acompanhante, o hospital não vai poder dar alta,
até que você tenha acesso a outras coisas. Quando você informa, operacionaliza essa
informação, isso pode contribuir para os interesses opostos. Quando falamos: “Não,
olha, você pode judicializar isso, você pode ir na Defensoria, vai durar, sei lá, dois meses,
três, um anos, um mês. E, enquanto isso, você vai ficar aqui, não vai embora”. Eu
entendo que, quando você repassa essa informação, é que eu percebo também um caráter
educador. Você diverge, por mais que isso seja assistencial (L3, grifos nossos).

É, nesse mesmo exemplo, a partir do momento em que você diz a ele que ele tem direito
a acompanhar, idosos, criança e adolescentes, na emergência, nas enfermarias, têm
direito a acompanhante, […] então é um enfrentamento; diverge, na verdade, da regra da
instituição que é de impedir acompanhamento. É uma situação pontual, é um exemplo da
unidade (L4, grifos nossos).

Aqui no hospital temos uma maternidade. É lei a permissão ao acompanhamento no


“pré”, “durante” e pós-parto. O Serviço Social é procurado no plantão pelo usuário que
tem consciência desse direito, da existência da lei, e a nossa unidade não cumpre. Então,
como é que explicamos para o usuário que é lei, que é direito? Fica complicado para nós
esse embate. Então, vou autorizar? […] E de que forma orientamos o usuário aqui?
Primeiro: Conselho Tutelar, quando é uma situação de adolescente principalmente. O
adolescente tem direito a acompanhante. Não precisa nem ser adolescente: a lei diz que
não é. É o ECA que coloca que não é necessário, mas, principalmente quando é o
adolescente, tentamos brigar por isso aqui, orientamos sobre o conselho tutelar, até
delegacia, a delegacia mais próxima à unidade também orientamos. E, por último,
tentamos conversar com a instituição, com a administração da unidade, com a Direção
[…] Vivemos um confronto, um dilema complicado: não vou garantir o direito do
usuário, mas esclarecer que o direito ele tem, dar as orientações devidas: “Olha, você
pode recorrer a isso e a isso”, mas de não poder cumprir aqui, de fato, por uma questão de
necessidade do vínculo do trabalho (L 4, grifos nossos).

Nessas quatro exposições finais, percebemos a mesma lógica básica presente no


bloco anterior: a pressão exercida pelo bloco dos usuários na obtenção de uma demanda a
princípio negada pela instituição. No entanto, como já dissemos, agregada ao recurso às
leis. Para que essas leis sejam viabilizadas na particularidade institucional, foram
destacadas algumas instituições externas que as assistentes sociais indicaram aos usuários:
Conselho Tutelar, delegacia e Defensoria.
A última questão a ser ressaltada a respeito desse último bloco de depoimentos
refere-se às alternativas que os embates entre o projeto institucional e o projeto profissional
podem apresentar quando exercidos por meio de aliança com os usuários. Esse embate, em
238

que o assistente social exerce sua função pedagógica junto aos usuários para que esses
exercitem sua “rebeldia” contra determinadas condutas institucionais, pode ser exercido
não apenas em conjunto com os usuários, mas também limitar-se à postura dos usuários130
- dependendo da capacidade pedagógica desses assistentes sociais num atendimento
anterior aos momentos de embate. Essa alternativa, ao que parece, foi o caso ocorrido em
todas as exposições dos últimos dois blocos de depoimento. Inclusive, no final do último
depoimento, a assistente social ressalta essa alternativa por conta exatamente de sua
relativa autonomia. Ela diz: “Não vou garantir o direito dos usuários, mas esclarecer para
ele o direito que ele tem, dar as orientações devidas (…) por uma questão de necessidade
do vínculo do trabalho” (L4).
Podemos concluir que as disputas entre o projeto institucional e o projeto
profissional que colocaram como ponto de pauta os temas ligados às relações sociais
intrainstitucionais se desencadearam a partir de desentendimentos no âmbito de duas
relações: entre o projeto institucional e o dos usuários e entre o projeto institucional e o
profissional. No último caso, podemos dizer que ocorreu com uma intensidade bem
inferior em relação ao primeiro, e os desentendimentos estavam basicamente ligados a
demandas institucionais que o Serviço Social se negava a desempenhar e a requisição pelo
fim de determinadas atividades do Serviço Social que as assistentes sociais não queriam
deixar de fazer. No caso das disputas desencadeadas a partir de desentendimentos entre
instituição e usuários, o projeto profissional intervém, sem a convocação da instituição e,
basicamente, em defesa dos usuários. Esse “não convite” da instituição parece ser bem
traduzido na exposição relatada a seguir de uma das assistentes sociais que, diante de uma
situação de conflito na unidade, disse:

O coordenador não vai querer que você oriente o usuário a procurar o conselho tutelar
(porque envolveu uma criança). Estava a mãe com uma criança. Eles discutiram e
partiram, não para uma agressão física, mas foi uma relação conflituosa. Por envolver
uma criança poderia envolver o conselho tutelar. Está na saúde, agredindo... Tem a
Ouvidoria do Estado [para denunciar]. Só que se eu oriento dessa forma, eu “incomodo” a
unidade. Por isso, eu penso que em certas situações eles preferem que o Serviço Social
não apareça tanto. A instituição sabe que você pode orientar dessa forma. Ela não ignora
isso; ela sabe (L 5).

130
A modalidade que em tese poderia ser adequada seria com a participação ativa dos assistentes sociais nesse processo
de disputa com o projeto institucional. No entanto, devemos destacar que, em determinados casos, o mais prudente seria
que os assistentes sociais se limitem ao seu papel pedagógico de assessorar os usuários nesse enfrentamento. Isso porque,
em alguns casos, a exposição do assistente social no momento de embate pode não legitimá-lo frente à instituição,
causando perseguições que em alguns casos são desnecessárias.
239

Se nos casos de embate entre instituição e assistente social os motivos giraram em


torno das atribuições profissionais, quando as profissionais destacaram as disputas em que
se inseriram por conta de divergências entre instituição e usuários, os motivos giraram
basicamente em torno da não efetivação de alguns serviços. E mais: grande parte das
vezes, essa negação por parte da instituição em relação à prestação desses serviços
entraram em contradição com as próprias leis vigentes.
Diante dessa contradição entre o aparato legal vigente e as instituições prestadoras
das políticas de saúde, abre-se margem para que a prática das assistentes sociais busque
evitar que os serviços que supostamente deveriam ser ofertados pela instituição sigam sem
se efetivar – negando inclusive direitos instituídos. Frente a essa própria incompatibilidade
entre discurso institucional e essência do projeto institucional, abre-se a possibilidade de os
assistentes sociais comprometidos com o projeto ético-político profissional utilizarem, por
meio de sua função assistencial, essa contradição em dois campos. Primeiro, para
contribuírem para impulsionar a efetivação de serviços além do que o projeto institucional
pretende e, segundo, para trabalharem no sentido de que os usuários avancem na captação
das contradições do discurso institucional e os limites do direito na sociedade capitalista.
Ou seja, os assistentes sociais podem apropriar-se das contradições institucionais
exatamente contra o objetivo central do próprio projeto institucional: a obtenção da
legitimidade. Assim, além da possibilidade, indicada no tópico anterior, de o assistente
social exercer sua função pedagógica por meio dos serviços disponíveis para ampliar as
possibilidades de luta dos trabalhadores, abre-se a possibilidade de potencializar o “signo
positivo” contido nas demandas diante da não disponibilidade dos serviços necessários aos
trabalhadores que atende. Trata-se de uma estratégia que, além de importante, já vem sendo
utilizada por significativa parcela dos assistentes sociais entrevistados e, nos parece, com
significativa intensidade.
240

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consideramos imprescindível que essa seção seja iniciada destacando nossa ciência
quanto às implicações da crise contemporânea do capital e do neoliberalismo na vida
acadêmica. Terminamos a presente dissertação tornando evidente o quanto observamos e
vivenciamos as repercussões desse processo em curso, impostas a docentes e a discentes,
cotidianamente. Ou seja, as distorções e os sofrimentos presentes no cotidiano acadêmico
devido aos prazos, metas “quantitativistas” que se mostram de maneira inusitada. Por mais
que se busque resistir, a pressão do “produtivismo” acadêmico aliada ao pouco recurso
destinado às universidades públicas vêm traçando um difícil percurso para os professores e
alunos que pretendem desenvolver suas produções acadêmicas com seriedade e
competência intelectual. Enfim, parafraseando o cantor Renato Russo, destacamos a
experiência de dias desleais para os programas de pós-graduação no Brasil (e para o ensino
público brasileiro em geral).
Voltando diretamente o foco para a nossa dissertação, nos cabe sublinhar que se
trata de um estudo comprometido com os rumos do trabalho profissional dos assistentes
sociais brasileiros e, portanto, com o que se convencionou chamar expressões da questão
social, Projeto Ético-poítico do Serviço Social brasileiro e exercício profissional. Nesse
sentido, cabe regressarmos a alguns elementos discutidos nessa dissertação, antes de
explorarmos as considerações finais que permearam nosso objeto de estudo.
Nossa dissertação procurou recorrer basicamente a referências teóricas ligadas ao
projeto ético-político do Serviço Social brasileiro. Inicialmente, buscamos retomar debates
que expliquem não apenas o surgimento, mas também os principais fenômenos e
contradições que condicionaram o surgimento de nossa profissão. Nossa intenção foi trazer
à tona elementos centrais e seus respectivos laços, de maneira que nos permitissem
visualizar questões gerais que perpassam, de certa forma, a realidade, principalmente, dos
assistentes sociais brasileiros nos mais variados campos de intervenção. Para isso,
buscamos resgatar o surgimento dessa profissão a partir de sua relação com a estrutura
econômica capitalista, resgatando elementos que, para a categoria dos assistentes sociais,
nos parecem centrais: “questão social”, luta de classes, hegemonia, políticas sociais etc.
Vale destacar que nos esforçamos em fazer o debate acerca dessas e outras
questões, a partir da centralidade da luta de classes, dos seus interesses e suas estratégias
de colocá-los em prática no plano histórico da realidade. Essa lógica trouxe ao nosso
241

debate a relevância das reformas, compreendidas, aqui, como mediações capazes de, por
diversos mecanismos e campos sociais, possibilitar melhorias nas condições de vida de
determinados grupos sociais. Tais reformas foram enfocadas nesse estudo a partir dos
interesses antagônicos entre as duas classes fundamentais do capitalismo: a trabalhadora e
a burguesa. Com a finalidade de detectar possíveis e relevantes diferenças entre
perspectivas teóricas e políticas existentes em nosso meio profissional, não apenas essas
reformas, como também algumas de suas determinantes e implicações, foram pensadas a
partir da relação entre seus aspectos objetivos e subjetivos. Assim, recrutamos esses
aspectos para pensar alguns dos efeitos produzidos pelo capitalismo desde seu surgimento,
onde o mesmo precisou acumular riqueza por meio da socialização do trabalho,
disseminando a pobreza, na medida em que a apropriação da riqueza socialmente
produzida é privadamente apropriada.
Isso gerou uma nova qualidade à pobreza (a dimensão objetiva da “questão
social”), que, por sua vez, produziu, nesse mesmo processo, um “cotidiano de sofrimento”
– correspondente à dimensão subjetiva da “questão social”. Essa situação de sofrimento,
com o amadurecimento da organização política da classe trabalhadora na sociedade
capitalista, tomou uma nova importância: ser um dos fatores básicos para desmanchar a
solidez da estrutura capitalista “no ar”. Ou seja, na medida em que esse sofrimento passou
a se articular à consciência de classe e, consequentemente, se expressar de maneira
politicamente organizada, a burguesia percebeu que a própria estrutura econômica
capitalista entrava em “xeque”. Diante dessa situação, as reformas passaram ocupar um
espaço indispensável para nossa reflexão: elas pautaram as demandas da classe
trabalhadora e, embora a materialização dessas pautas no plano da realidade significasse
perdas relativas em termos de “riquezas produzidas” em prol dos trabalhadores, a não
materialização delas poderia provocar uma radicalização da organização política da classe
trabalhadora. Em função da demanda dos trabalhadores por melhorias de suas respectivas
condições de vida e da necessidade da burguesia de reproduzir sua hegemonia, vimos que o
resultado central dessa tensão foi o surgimento/expansão daquilo que se convencionou
chamar de políticas sociais, sofisticando de maneira articulada, racionalizada e contínua, a
materialização de uma série de serviços em função dessas reformas.
Essas políticas sociais, como vimos, possuem um caráter contraditório que lhes
confere funções que ora podem favorecer, ora podem prejudicar a classe trabalhadora. Mas
o que, para os fins desse estudo, nos parece mais importante evidenciar é o fato de essas
242

políticas sociais serem capazes de garantir melhorias em relação ao cotidiano de


sofrimento da classe trabalhadora, correspondem à expressão mais imediata da dimensão
objetiva dessas reformas. Dimensão essa que insistimos em relacionar à dimensão
subjetiva também inseparável das reformas, em que procuramos chamar a atenção para seu
caráter político que, a partir das melhorias nas condições de vida dos “beneficiários” dessas
reformas (os usuários das políticas sociais), tanto podem desencadear um efeito na
consciência desses usuários funcional à reprodução hegemônica do capitalismo quanto
favorecer a contestação dessa ordem. Essas alternativas ficam em aberto, à mercê da
história e, consequentemente, da ação dos interesses classistas em cena. E, exatamente por
isso, fomos categóricos ao concordar com Faleiros, quando afirma que as políticas sociais
não devem ser compreendidas como medidas boas ou ruins em si mesmas (2007, p. 59-60),
mas sim como medidas que podem contribuir ou prejudicar as estratégias de emancipação
da classe trabalhadora. Também destacamos que, tanto no esforço de contribuir quanto no
de prejudicar essas estratégias de emancipação, coexistirão diferentes projetos pedagógicos
que, basicamente, se esforçam no sentido de manipular os sujeitos envolvidos no processo
de acesso a essas reformas, de acordo com o efeito subjetivo funcional ao seu respectivo
projeto societário. Ou seja, existem projetos pedagógicos que organicamente estão
submetidos a determinado projeto societário.
Recorremos ao autor Diego Palma para pensar a respeito dos dois efeitos subjetivos
básicos, que podem ser desencadeados a partir da prestação de serviços nas instituições
onde atuam os assistentes sociais. O autor chamou de “signo positivo” o potencial a ser
desenvolvido a partir das reformas por aqueles que defendem a emancipação dos
trabalhadores, e de “signo negativo” aquele a ser desenvolvido em prol da reprodução
burguesa. A respeito disso, destacamos a relação intrínseca entre o projeto pedagógico de
norte conservador (que chamamos de “projeto institucional”) e sua necessidade de
desenvolver o “signo negativo” contido nos processos de acesso aos serviços.
Desenvolvemos essa questão, no sentido de explicar o conjunto de intencionalidades que
permeia a convocação de assistentes sociais nessas instituições. A esse respeito, atribuímos
os objetivos correspondentes à dimensão objetiva dos serviços àquilo que se convencionou
chamar, na literatura do Serviço Social, de função assistencial e à dimensão subjetiva a
chamada função pedagógica do profissional. Dessa maneira, configuramos o projeto
institucional como um projeto pedagógico em particular, de caráter conservador, que, a
partir principalmente do “contrato de trabalho”, subordina o assistente social para colocar
243

em prática, a partir de sua função assistencial, os serviços, no entanto esforçando-se


tecnicamente na direção de potencializar o signo negativo contido nessas demandas por
reforma.
No entanto, vimos ainda que, além desse projeto de intervenção profissional
subordinado ao projeto institucional, há uma margem de autonomia resguardada a cada
profissional, que garante a possibilidade de que, em determinados momentos de atuação,
os assistentes sociais materializem intervenções cujos impactos sejam funcionais a projetos
societários de emancipação da classe trabalhadora. Essa questão ganhou proporção com o
Movimento de Reconceituação e, na tentativa de elaborar respostas alternativas à “prática
tradicional” atribuída pelo projeto institucional, buscou referências científicas no debate
marxista. Esse contato gerou, em parte da categoria, a intenção de romper não apenas com
a “prática tradicional”, mas também com qualquer prática profissional subordinada ao
projeto societário conservador.
Após avanços e recuos históricos, esse recurso ao marxismo trouxe para a década
de 1990 um cenário em que a ascensão de um projeto profissional vinculado ao projeto
societário emancipatório trouxe tamanha adesão e visibilidade que se convencionou
qualificá-lo como hegemônico dentro do Serviço Social brasileiro. No entanto, esse projeto
profissional vinculado ao projeto societário emancipatório, que no Brasil chamamos de
projeto ético-político, apesar de possuir uma autonomia relativa e flexível, pelo que
pudemos avaliar nos nossos estudos, pouco trouxe de mudanças para o plano da
intervenção profissional. Esse ponto configura-se como a grande marca propulsora dessa
dissertação, que chamamos, aqui, de “crise de materialização” de elementos pertinentes ao
projeto ético-político profissional, no que tange à intervenção profissional. Para ilustrá-la,
trouxemos resultados de estudos acadêmicos a respeito de determinados cotidianos de
atuação, que, a nosso ver, justificam um grande consenso acadêmico acerca dessa crise de
legitimação do projeto ético-político profissional nos campos de intervenção do assistente
social.
Em virtude dessa questão e cientes do papel que os profissionais vinculados à
academia têm de auxiliar a intervenção propositivamente, fizemos um esforço em discutir,
com maior cuidado possível, questões acerca da supracitada “autonomia profissional”.
Fizemos questão de situar como a autonomia profissional é o resultado de múltiplos
determinantes, que lhe conferem não apenas um perfil relativo e flexível, mas também
variável (se buscarmos comparar um profissional com outro). Alguns desses múltiplos
244

determinantes foram situados e problematizados no início do capítulo 3 dessa dissertação,


no qual recorremos aos questionários tabulados e às entrevistas para aproximar o debate da
realidade vivida por aqueles profissionais. A partir dessa tabulação, pudemos levantar
alguns aspectos interessantes, que apontam, por exemplo, o destaque que os assistentes
sociais atribuem ao contexto sociopolítico atual e o tipo de contrato de trabalho que
possuem, no que se refere aos impactos em suas respectivas autonomia profissional.
Também buscamos discutir que a flexibilidade da autonomia profissional abre
margem para que os assistentes sociais exerçam seus esforços no sentido de não apenas
ampliar essa autonomia, mas também de evitar que ela se minimize. Quanto ao caráter
relativo, buscamos enfatizar dois possíveis e comuns equívocos que permeiam a ignorância
em relação a esse aspecto: o fatalismo e o messianismo. Para ilustrá-los, buscamos situar
como essas duas noções foram (e, de certa maneira, ainda o são) capazes de permear
concepções acerca da intervenção profissional, mesmo vinculadas ao projeto societário
emancipatório.
Todos esses aspectos acerca da autonomia profissional certamente dificultam o
papel acadêmico de iluminar caminhos para a ação dos assistentes sociais, sem cair em
dois erros extremos, também levantados por esse estudo. O primeiro de indicar propostas
tomando uma postura de “cartilha”, ou seja, ignorando a dimensão variável que compõe a
autonomia de cada profissional, indicar propostas de ação prescritivas. O segundo de,
ciente desse aspecto variante e das demais particularidades de cada campo de intervenção,
abster-se de levantar propostas de intervenções deixando esse papel a mercê dos assistentes
sociais.
Diante dos dados colhidos a partir das 5 (cinco) entrevistas realizadas, percebemos
que, mesmo em se tratando de assistentes sociais em processo de formação continuada
num programa de pós graduação de Serviço Social e que se referenciam em intelectuais
vinculados ao projeto ético-político profissional, existe, por parte delas, uma notável
dificuldade em apontar propostas de ação profissional indicadas pela literatura profissional.
Notamos que a maior parte dos recursos que essas assistentes sociais extraem da literatura
profissional a fim de pensar sua inserção profissional limita-se ao plano da leitura da
realidade, e grande parte das propostas de ação profissional resgatadas da literatura,
segundo elas, não está de acordo com a autonomia que de fato possuem.
Essa questão abre margem não para uma conclusão, mas para uma hipótese a ser
pensada: a de que grande parte da literatura lida por esses profissionais não cumpre em si
245

mesma a função de expor (ao menos didaticamente) mediações propositivas entre as


questões abordadas e suas respectivas realidades profissionais. Ou seja, ainda que tragam
elementos plausíveis, críticos e cotidianos, essa leitura pode não ser, até o momento, capaz
de direcionar, oferecer, aos profissionais propostas de ação também plausíveis, críticas e
cotidianas. Se essa hipótese for verdadeira, a literatura profissional vem, ainda que
involuntariamente e/ou por falta de possibilidades históricas, deixando a cargo de seus
próprios leitores um papel demasiadamente exigente: o de encontrar mediações, que lhes
permitam intervir propositivamente, que nem a própria literatura vem conseguindo esboçar.
Isso pode ser muito grave se levarmos em conta que nem esses assistentes sociais – em
processo de formação continuada numa especialização de um programa de pós-graduação
conceituado como o da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – vêm conseguindo
perceber evidentemente essas mediações.
O fato é que a distância entre academia e assistentes sociais de campo, ressaltada
por Lessa (2011), talvez seja um elemento alimentador dessa “crise de materialização” de
elementos pertinentes ao projeto ético-político profissional no que tange à intervenção
profissional. Por isso, essa concepção deve ser compreendida como uma ameaça à
hegemonia do projeto ético-político. Isso porque essa posição é certamente perigosa,
principalmente na medida em que, se generalizada, é capaz de produzir por parte dos
“práticos” um empirismo reacionário, o que, por consequência, traria por parte dos
“teóricos” uma espécie de “isolamento”, capaz de não legitimá-los frente aos primeiros e,
assim, abrir portas para predominância de outras perspectivas teórico-metodológicas dentro
do Serviço Social brasileiro.
Na busca justamente de esboçar alguns elementos capazes de inspirar propostas de
intervenção funcionais ao projeto ético-político profissional, resgatamos alguns aspectos a
partir da realidade interventiva narrada pelas assistentes sociais entrevistadas. Isso foi feito
buscando honrar, ao máximo, a riqueza de projetos e, consequentemente, de conflitos e
alianças que perpassam o contraditório campo de intervenção dos assistentes sociais da
saúde, contratados pelo Estado. Enfatizamos a existência de coincidências entre os
interesses dos usuários e do projeto institucional, em que, a partir das entrevistas,
percebemos estarem atribuídas a fragilidades inerentes ao senso comum e à força do
discurso institucional, ligadas a uma noção restrita de saúde ao âmbito da biológico da
cura, centrada na figura do médico e voltada para as ações pontuais e imediatistas.
Curiosamente, os profissionais indicaram que os maiores desencadeadores de divergência
246

entre ambos são frutos da própria contradição entre o discurso promovido pela instituição e
a necessidade real desses usuários. Ou seja, as divergências entre usuários e instituição
costumam se dar na medida em que os usuários percebem que essas e outras convicções,
de fato, não contemplam suas respectivas necessidades. Na medida em que se evidenciam
as incoerências da concepção restrita de saúde, que tenta excluir os aspectos “sociais” do
processo de saúde-doença, e a instituição não sabendo o que fazer com a tensão gerada,
convoca-se o assistente social para “apagar o incêndio”. De acordo com as entrevistas, isso
parece se expressar principalmente na demanda pelas “altas sociais”, em que se atribui a
permanência dos usuários em questão ao âmbito “social”.
Quanto à relação entre as perspectivas dessas profissionais e às dos usuários, duas
constantes se mostraram muito claras: a demanda por parte dos usuários por atribuições
que as assistentes sociais entrevistadas julgaram não fazer parte das suas atribuições e
aquelas reconhecidas por essas assistentes sociais como “legítimas”. O interessante é que,
nessas últimas, os usuários buscaram o profissional especificamente por sua função
assistencial, expressando uma suposta “invisibilidade” da dimensão pedagógica dos
assistentes sociais.
A partir desses e outros aspectos que perpassam o cotidiano desses profissionais,
expusemos duas frentes de atuação profissional. A primeira refere-se à sua função básica
para o qual foi convocado pela instituição, ou seja, ao atendimento junto aos usuários. A
respeito desses atendimentos, a partir das respostas fornecidas pelas assistentes sociais,
pudemos perceber que, apesar de a função assistencial ser a mais referenciada pelos
usuários, poucas são as possibilidades que essas assistentes sociais têm de viabilizar –
diretamente na unidade em que atuam, os serviços necessários. Um dado certamente
atribuível ao contexto neoliberal, mas também ligado à particularidade da prática na saúde,
já que é comum que as profissionais, diante de determinadas demandas, realizassem
orientações capazes de dar as devidas informações para que os usuários acessassem
futuramente os serviços necessários. Ou seja, a prática do assistente social parece tender a
atuar menos no momento de acesso aos serviços e mais no momento imediatamente
anterior a esse acesso: o de criar bases concretas para viabilizá-lo. Ligada a essa questão
está a dificuldade de acompanhamento dos usuários na maioria das instituições que essas
profissionais atuam. Também chamou a atenção o fato de que essas profissionais
demonstraram significativas dificuldades em projetar os impactos objetivos de suas
intervenções, pois no processo em que atuam há uma relevante dificuldade do
247

acompanhamento dos usuários atendidos.


Essa dificuldade de projetar os possíveis impactos de sua atuação também se
expressou, com intensidade ainda maior, diante do desafio de pensar a função pedagógica
que exercem. A nosso ver, isso parece estar articulado ao fato de que a função pedagógica
exercida por essas assistentes sociais está praticamente limitada para seu papel
instrumental de permitir a esses usuários, basicamente por meio de outras instituições, o
acesso aos serviços em outras instituições. Esse perfil de função pedagógica vem deixando
quase que totalmente de lado os aspectos subjetivos referentes aos impactos políticos da
intervenção, o que abre margem para supor a existência de elementos capazes de indicar
certa funcionalidade ao perfil metodológico da social-democracia.
No entanto, observamos que, apesar das entrevistadas, a partir de suas funções
pedagógicas, não projetarem a politização dos usuários no curso do trabalho que
desenvolvem, a maioria delas levantou questões que nos levam a crer que, de alguma
forma – não muito clara para elas mesmas –, elas acabam contribuindo para essa
politização. A maioria das entrevistadas registrou incômodos muito grandes por parte da
instituição, fundamentalmente em relação ao exercício de suas respectivas funções
pedagógicas. Percebemos que isso costumou se dar, principalmente, diante da insuficiência
dos serviços fornecidos pela instituição em relação às necessidades dos usuários, em que
essas profissionais subsidiavam seus usuários para acessarem suas demandas frente à
instituição. Isso aponta que, apesar de não projetarem os impactos de sua função
pedagógica, por perceberem por parte da instituição certo incômodo em relação a essa
função, é bem possível que as assistentes sociais entrevistadas desempenhem – ainda que
sem as devidas projeções – impactos politizantes junto aos usuários.
Essa curiosa característica transfere, sensivelmente, o campo privilegiado de análise
a respeito da materialização do projeto ético-político do espaço do atendimento “clássico”
para o atendimento “imprevisto”. Ou seja, desloca do espaço onde o assistente social
deveria, de acordo com as necessidades dos usuários e sob o aval da instituição, viabilizar
o acesso aos serviços necessários. O espaço do atendimento “imprevisto” refere-se aos
momentos de intervenção em que a instituição, a princípio, não se dispõe (seja porque não
quer ou porque não possui autonomia) a viabilizar as demandas postas pelos usuários. É
justamente nesses momentos em que os usuários tornam-se inconformados com o projeto
institucional, uma vez que lhes parece a evidência de negação a determinados serviços por
eles demandados. Os exemplos mais citados pelas assistentes sociais entrevistadas foram
248

as negações por parte da instituição em relação à permanência nos leitos de internação,


acompanhamento de familiares a internados e ao “não acesso” a serviços de determinados
profissionais da instituição.
Nessas circunstâncias, podemos dizer que ocorre um relativo e particular
movimento de não legitimação da instituição contratante. Na medida em que determinada
instituição é parte representante da rede institucional do Estado e, por isso, numa
comparação ao nosso estudo de Maquiavel, mostra-se de acordo com os interesses
hegemônicos (do “príncipe”), deve cuidar para se manter legitimada diante de seus
“dominados” (naquela particularidade: a classe trabalhadora usuária da instituição). Isso
nos leva a considerar que esses movimentos particulares de inconformismos, ainda que
pontuais, parecem ser desfavoráveis ao projeto societário conservador que buscamos
especificar no Capítulo 1 dessa dissertação. No entanto, esse atendimento às demandas dos
usuários por meio dos serviços institucionais é também, enquanto mediação das reformas
problematizadas no tópico 2.4, condição fundamental para o fortalecimento de um projeto
societário emancipatório. Isso significa, que o que defendemos aqui não é a ocorrência de
uma não legitimação institucional sem o atendimento das necessidades dos usuários, mas
que a mesma se dê concomitantemente às melhorias das condições de vida dos setores da
classe trabalhadora atendidos pelos assistentes sociais.
É justamente nesse sentido que pudemos extrair algumas experiências muito
interessantes a partir das respostas de algumas dessas assistentes sociais. Foram
recorrentes, nas falas dessas assistentes sociais, a implementação de estratégias que
buscassem garantir aos seus usuários o acesso às demandas que, desde então, estavam
sendo negadas pela instituição. As profissionais, por algumas vezes, se colocaram ao lado
das demandas dos usuários e, seja negociando, enfrentando abertamente ou mesmo
desobedecendo, em silêncio, a instituição, desafiaram o projeto institucional, em prol da
garantia das demandas requisitadas. Para isso, utilizaram recursos criativos, como
pesquisas acerca da realidade em que atuam, documentos oficiais da instituição e leis.
Além desses recursos burocráticos, chamou nossa atenção a expansão de estratégias
profissionais voltadas para a conformação de alianças, sejam elas simplesmente com os
usuários interessados ou/e com outros profissionais da instituição e familiares desses
usuários interessados.
Diante do exposto, cabe-nos salientar que, rumo ao término do nosso estudo,
pudemos captar que as estratégias profissionais que avaliamos como mais ricas entre as
249

que pudemos extrair das entrevistas emergiram nos momentos em que as instituições não
conseguiam/pretendiam viabilizar condições para o atendimento qualificado aos usuários.
Ou seja, não possibilitavam meios suficientes e consequentes para que os profissionais
exercessem suas ações de modo compatível com as reais necessidades objetivas dos
usuários. Entretanto, o que dissemos não assegura a perspectiva de contribuição
profissional visando às reformas sociais como via de superação da ordem vigente. Pelo que
pudemos perceber, as entrevistadas, mesmo que atuem em prol dos serviços qualificados
aos usuários, na grande maioria das vezes, não atrelam essa possibilidade a um trabalho
que objetive a politização dos usuários, identificando-os como classe trabalhadora que
pode pretender ser sujeito na construção de rumos diferentes para a ordem social.
250

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258

APÊNDICE A - Questionário.

Nome:

Idade:

Ano de formação:

Instituição de formação:

Já realizou algum curso ou especialização na área de Serviço Social? Quais?

Instituições onde exerce a função de assistente social (nas instituições onde atuar na área da
saúde enumere-as entre parênteses. Nas perguntas posteriores, marque entre os parênteses o
número correspondente a cada instituição).

Natureza da instituição:

( ) Pública ( ) Particular ( ) “Terceiro Setor” ( ) Outro:____________________.

Tipo de contrato: _______________________________________________________

Você intenciona materializar o projeto ético-político profissional na instituição onde atua?

( ) sim ( ) não ( ) outro: _____________________________________

Qual você considera ser a perspectiva teórico-metodológica orientadora de sua prática? *

( ) Marxismo ( ) Positivismo ( ) Funcionalismo ( ) Fenomenologia

( ) Pós modernismo ( ) Outro: _______________________

Telefone/e-mail para contato: _____________________________________________

Permite que os dados desse questionário sejam utilizados na pesquisa? ( ) sim ( ) não

Caso seu perfil seja compatível com as necessidades da pesquisa, você poderia conceder

uma entrevista numa data a combinar? ( ) sim ( ) não

Quais instrumentos e técnicas de intervenção fazem parte de sua rotina de intervenção:

( ) Grupo ( ) Entrevista ( ) Observação ( ) Orientação ( ) Reunião

( ) Visita domiciliar/institucional ( ) Laudo/parecer/perícia ( ) Encaminhamento

( ) Pesquisa ( ) Outro(s):
259

QUESTIONÁRIO:
A partir dos elementos que citarei em seguida, gostaria que me dissesse a intensidade em que eles interferem na sua autonomia (ou seja: sua liberdade
para atuar da maneira que deseja) em termos de possibilitar uma prática na direção que você intenciona. Marque com um “X” as alternativas que melhor
representam sua opinião.
15. O Código de Ética do Serviço Social ( ) positivamente ( ) negativamente ( ) indiferente ( ) pouco ( ) regular ( ) intensamente
16. A Lei de Regulamentação dos Assistentes Sociais. ( ) positivamente ( ) negativamente ( ) indiferente ( ) pouco ( ) regular ( ) intensamente
17. O tipo de contrato do profissional. ( ) positivamente ( ) negativamente ( ) indiferente ( ) pouco ( ) regular ( ) intensamente
18. O contexto socio-político do Brasil hoje ( ) positivamente ( ) negativamente ( ) indiferente ( ) pouco ( ) regular ( ) intensamente
19 .O conjunto de entidades representativas da ( ) positivamente ( ) negativamente ( ) indiferente ( ) pouco ( ) regular ( ) intensamente
categoria dos assistentes sociais de maneira geral
(sindicato, conjunto CFESS/CRESS, ABEPSS, ENESSO etc).
20. O relacionamento com os assistentes sociais da equipe ( ) positivamente ( ) negativamente ( ) indiferente ( ) pouco ( ) regular ( ) intensamente
21. O relacionamento com outras categorias profissionais ( ) positivamente ( ) negativamente ( ) indiferente ( ) pouco ( ) regular ( ) intensamente
22. A clareza para os usuários do “o que é” e “o que faz” ( ) positivamente ( ) negativamente ( ) indiferente ( ) pouco ( ) regular ( ) intensamente
o Serviço Social na instituição. 22.1 Existe essa clareza por parte dos usuários? ( ) sim ( ) razoavelmente ( ) não
23. A clareza para a instituição/outras categorias de “o que ( ) positivamente ( ) negativamente ( ) indiferente ( ) pouco ( ) regular ( ) intensamente
é” e “o que faz” o Serviço Social na instituição. 23.1 Existe essa clareza por parte da instituição? ( ) sim ( ) razoavelmente ( ) não
24. O prestígio do Serviço Social frente à instituição. ( ) positivamente ( ) negativamente ( ) indiferente ( ) pouco ( ) regular ( ) intensamente
24.1 Existe esse prestigio por parte da instituição? ( ) sim ( ) razoavelmente ( ) não
25. O prestígio do Serviço Social frente ao público usuário ( ) positivamente ( ) negativamente ( ) indiferente ( ) pouco ( ) regular ( ) intensamente
25.1 Existe esse prestigio por parte do usuário? ( ) sim ( ) razoavelmente ( ) não
26.Seu acúmulo teórico adquirido na formação ( ) positivamente ( ) negativamente ( ) indiferente ( ) pouco ( ) regular ( ) intensamente
de maneira geral.
27. A infraestrutura institucional ( ) positivamente ( ) negativamente ( ) indiferente ( ) pouco ( ) regular ( ) intensamente
28. Os serviços (programas, benefícios, parcerias, redes etc) ( ) positivamente ( ) negativamente ( ) indiferente ( ) pouco ( ) regular ( ) intensamente
29. Você conseguiria identificar outras influências que interfiram em sua relativa autonomia (alguma outra lei por exemplo)? Diga que elementos e classifique
como fez acima:
30. De 0 (zero) a 100 (cem), quanto você quantificaria sua autonomia dentro da instituição onde atua? ___________________
260

APÊNDICE B – Termo de consentimento.

Pesquisa: Entre o princípio da emancipação e o fardo da institucionalização: dilemas da


“perspectiva de ruptura” e a busca de caminhos para a ação.

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO


PARA ASSISTENTES SOCIAIS

Prezado(a) Assistente Social,

Você foi selecionado(a) e está sendo convidado(a) para participar da pesquisa


intitulada “Entre o princípio da emancipação e o fardo da institucionalização: dilemas da
perspectiva de ruptura e a busca de caminhos para a ação.” que tem como objetivo analisar
as diferentes estratégias profissionais na tentativa de materializar uma prática profissional
comprometida com o projeto ético-político dos assistentes sociais brasileiros. A pesquisa de
campo terá duração de aproximadamente 3 meses. Suas respostas serão tratadas de forma
anônima e confidencial, isto é, em nenhum momento será divulgado o seu nome em
qualquer fase do estudo. Os resultados serão apresentados em conjunto, não sendo possível
identificar os indivíduos que dele participaram. As pessoas, por acaso, referidas durante a
entrevista também terão suas identidades mantidas em sigilo. Os dados coletados nesta
pesquisa poderão ter seus resultados divulgados em eventos e/ou produções científicas. A sua
participação é voluntária, isto é, a qualquer momento você pode recusar-se responder
qualquer pergunta ou desistir de participar e retirar seu consentimento. Sua recusa não trará
nenhum prejuízo em sua relação com o pesquisador ou com a instituição. Você não terá
nenhum custo ou quaisquer compensações financeiras. Não haverá riscos de qualquer
natureza. Você receberá uma cópia deste termo onde consta o telefone/ e-mail do pesquisador
principal, podendo tirar suas dúvidas sobre o projeto e sua participação, agora ou a qualquer
momento.
Eu____________________________________________________ abaixo assinado(a)
concordo em participar voluntariamente desta pesquisa. Declaro que li e entendi todas as
informações referentes a este estudo e que todas as minhas perguntas foram adequadamente
respondidas.

________________________________ _____________________ ____________


(Nome do entrevistado) (assinatura) (data)

________________________________ _____________________ ____________


(Nome do entrevistado) (assinatura) (data)

Responsável pela pesquisa: Jonatas Lima Valle


jonataseso@yahoo.com.br
Rua Barão do Amazonas 576, apartamento 704
Telefone: 3902-4014 / 8453-8423.
261

APÊNDICE C – Roteiro de entrevista:

 Dentre os elementos anteriormente tratados no questionário, há algum que você gostaria comentar
com um pouco mais de profundidade?
 Quais as literaturas/autores que mais contribuem para orientar seu exercício profissional?
 Você poderia citar algumas propostas de ação profissional indicadas nessas literaturas que você
consiga materializar com maior constância em seu cotidiano?
 Você poderia citar algumas propostas de ação indicadas nessas literaturas que você não consiga
efetivar frequentemente (ou nunca) em seu cotidiano? E por que você considera que isso ocorre?
 Em termos de subsídios teóricos para uma ação profissional comprometida com esse projeto ético-
político profissional, quais os maiores méritos e limites da literatura profissional hoje?
 Quais são as principais demandas ao Serviço Social apresentadas pelos usuários na instituição
onde você atua?
 Na sua opinião, as necessidades que geram essas demandas possuem motivos comuns que dêem
certa identidade entre os usuários dessa instituição? Quais?
 Sua intervenção consegue colaborar para que essa identidade entre os usuários se explicite? De
que maneira?
 Há momentos em que aquilo que você considera ser o ideal para os serviços oferecidos pelo
Serviço Social colide com o que o usuário demanda?
 Por que existem essas divergências?
 Como você conduz sua prática quando ocorrem essas divergências?
 Quais os principais objetivos que a instituição, de maneira geral, busca concretizar no atendimento
aos usuários por meio do Serviço Social?
 Quais as maiores coincidências e divergências entre as demandas desses usuários e os objetivos
institucionais?
 Na sua opinião, sua intervenção contribui para que se desencadeiem melhorias empíricas nas
condições de vida desses usuários?
 Quais suas expectativas do impacto dessas melhorias em termos de curto e longo prazo?
 Essas mudanças coincidem com os objetivos da instituição ou diferem dos objetivos da
instituição? Em que diferem? Em que coincidem?
 Você considera que sua intervenção desencadeie um efeito educador na consciência dos usuários?
 Quais suas expectativas em relação a essa função pedagógica em termos de curto e longo prazo?
262

 Esse caráter educador presente em sua intervenção coincide ou não com os objetivos
institucionais? Em que diferem? Em que coincidem?
 Quando suas convicções colidem com a direção institucional quais os motivos mais
comuns?
 É comum que suas convicções prevaleçam por meio de embates? Quais os meios que você
utiliza para viabilizar isso?
 É comum que suas convicções prevaleçam por meio de desobediência às regras
institucionais? Quais os meios que você utiliza para viabilizar isso?
 É comum que suas convicções prevaleçam por meio do apoio mobilizado do público
usuário? Quais os meios que você utiliza para viabilizar isso?
 É comum que suas convicções prevaleçam por meio de convencimento? Quais os meios que
você utiliza para viabilizar isso?
 Tendo em vista que a intenção desse estudo é detectar as estratégias profissionais de
materialização do projeto ético-político dos assistentes sociais brasileiros, você teria mais
alguma consideração a fazer?

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